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A Inocência Primeva e a Contemplação Sacral do Universo

no pensamento de

PLINIO CORRÊA DE OLIVEIRA

© 2008 - Todos os direitos desta edição pertencem ao

INSTITUTO PLINIO CORRÊA DE OLIVEIRA

Dezembro de 2008

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Parte II

Capítulo 5

A procura do absoluto

( Para Textos Ilustrativos deste capítulo clicar aqui )

1. A ausência da noção do absoluto

A vida contemporânea já não deslumbra como antes. Ela ‘começou a aparecer com seu fardo, suas decepções e seu prosaísmo’.[1] O quotidiano contemporâneo — ‘esse tran-tran pardacento, sem graça e sem dignidade’[2] — produz tédio ou confusão.

As causas são muitas. Uma delas reside no fato de que ‘as gerações mais recentes têm sido educadas sem nenhuma noção do absoluto’.[3] Para elas, tudo é relativo.

Entretanto, há no homem uma ‘sede como que inata do absoluto’, e essas gerações procuram saciá-la pela alta intensidade das sensações. ‘Quando não é o delírio do vício, é o abandono de tudo para se jogar em extravagâncias de toda ordem, deixando a normalidade’.[4]

Daí para a droga há um passo. Aliás, por que tantos procuram a droga hoje em dia?

É uma pergunta oportuna. Geralmente, ela é precedida, conscientemente ou não, por certo sentimento do tédio que aflige a vida moderna. Eles sentem o insípido do mundo moderno e ‘querem algo que uive, que urre, que esperneie’.[5]

Se a pessoa se refugia na normalidade, pode encontrar, novamente, o tédio. ‘Apareceu uma verdadeira náusea da «normalidade normal»: da luz do dia como ela é, das coisas habituais como elas são, do sentir-se na normalidade sem sentir nada de intenso’.[6]

‘A náusea da normalidade acaba sendo uma das características de nossa época. É uma característica tão marcante que, mesmo entre pessoas que levam um estilo de vida moderado, podem-se encontrar sinais característicos dela’.[7]

Há alguma solução?

 

2. A sede inata do absoluto

A solução para essa náusea só pode ser encontrada na procura de absolutos verdadeiros. ‘A frustração tão freqüente, à medida que as gerações vão avançando, tem como causa o não ter em vista o absoluto’.[8]

Como quem tem sede anseia por água, aquilo que é contingente — como todos nós, homens, o somos — pede naturalmente o absoluto: «Anima mea sicut terra sine aqua tibi» (Sl 143, 6): minha alma está para Vós como a terra árida para a água.

‘A pessoa fica como um filhote de passarinho que quer voar e ainda não tem o aparelho de vôo adequado. Então todas as plumas dele se levantam com o vento, ele se coloca na ponta dos pés; ele tem vontade de dar um pulo, mas quando pula, cai. É um passarinho gracioso que faz um começo de vôo encantador. Ele é chamado a voar, sente que voará, cresce no desejo de voar; com o desejo, cresce a capacidade de voar, mas ainda não voa. Em determinado momento, alguma coisa se passa e então o vôo se dá’.[9]

 

3. Elementos naturais que são símbolos do absoluto

Só Deus é Absoluto. Mas existem seres criados com características próprias a simbolizar o absoluto. E, por meio deles, podem-se ter pensamentos que conduzem à contemplação de Deus.

— A sede do absoluto é, então, algo essencialmente religioso?

A resposta correta deve ser muito matizada:

Sim, sobretudo quando o homem conhece que há um ser que personifica todos esses valores de modo eterno, imutável, necessário, que é Deus. Como a graça fornece auxílios preciosos e contínuos a todas as iniciativas que conduzam a Deus, essa sede do absoluto pode não ser puramente natural, e nesses casos tem um fundo religioso.

Em termos, porque podem fazer parte dessa sede do absoluto elementos naturais em proporção maior do que os existentes nos atos de culto que levam diretamente ao sobrenatural. Um simples copo de chope, por exemplo, pode servir para a procura do absoluto* e nele obviamente entram mais elementos naturais que num ato de culto.

* Ver Degustando um chopp… no Apêndice VI.

É claro que a finalidade específica da esfera religiosa é levar até Deus, que é o Absoluto. Mas é possível ir ao absoluto também através do mundo temporal, pois Deus é o autor de ambos os mundos. Negá-lo, seria aderir a «certo espiritualismo» que, como se viu, Pio XII reprovava. Assim, salvo para vocações especiais*, não é correto deixar de lado a esfera temporal.

* Ver O homem do poço no Apêndice VI.

Assim, no mundo temporal há criaturas com graus de perfeição muito elevados que nos remetem para a idéia de Deus de maneira mais excelente umas que outras. São símbolos do absoluto.

A verdadeira vida espiritual deve favorecer a admiração desses símbolos, mesmo quando profanos, pois são algo que conduz a Deus na vida quotidiana. ‘Não numa atitude de ciúme, mas, pelo contrário, colocando-os — em relação ao ato religioso sobrenatural — como a escadaria que serve um monumento, ou as grades e os jardins que são sua moldura’.[10]

 

4. Ascensão a Deus pelos seus vestígios na Criação

Por isso diz São Boaventura que «o Universo é a escada pela qual ascendemos até o Criador».* E ele faz notar que os seres criados têm semelhança com Deus: «A criação do mundo é como um livro, no qual resplandece, representa-se e se lê a Trindade Criadora em três graus de expressão, a saber: como vestígio, como imagem e como semelhança».**

* Itinerário da Mente para Deus, cap. I, 2.

** Breviloquio, II, XII. Cfr. também Santo Tomás, Suma Teológica, I, q. 45, a.7, c. (ver Excerto Em todos os seres criados há um vestígio da Santíssima Trindade, Parte I, cap. 1, item 4).

As criaturas são vestígios, representações e sinais que nos ajudam a ver a Deus

Do Itinerário da Mente para Deus:

As criaturas são, efetivamente, uma sombra, um eco e uma pintura daquele Primeiro Princípio potentíssimo, sapientíssimo e boníssimo — daquele que é a eterna fonte, a luz, a plenitude, a causa, o exemplar e a ordenação de tudo. Elas são os vestígios, as aparências, as representações e os sinais divinamente apresentados aos nossos olhos para nos ajudarem a ver a Deus na criação (op. cit. II, 11).

Cego é, por conseguinte, quem não é iluminado por tantos e tão vivos resplendores espalhados na criação. É surdo quem não acorda por tão fortes vozes. É mudo quem em presença de tantas maravilhas não louva o Senhor. É insensato, enfim, quem com tantos e tão luminosos sinais não reconhece o primeiro Princípio.

Abre, pois, os olhos e inclina o ouvido de teu espírito, desata teus lábios e dispõe teu coração para que, em todas as criaturas, vejas, ouças, louves e ames a teu Deus, se não quiseres que todo o universo se levante contra ti. Um dia toda a criação se erguerá contra os insensatos (Sap. 5, 21), ao passo que será motivo de glória aos sensatos, os quais podem dizer com o profeta: Senhor, a visão de tuas criaturas me encheu de gozo. Exulto perante o espetáculo de tuas mãos. Como são grandiosas, Senhor, as tuas obras! Tudo fizeste com sabedoria. Toda a terra está cheia de teus bens (op. cit. I, 15).

As perfeições invisíveis de Deus, desde a criação do mundo, se vêem visivelmente através do conhecimento que as criaturas dele nos dão. De maneira que são indesculpáveis (Rom. I, 20) os que não querem considerar tais coisas e recusam, com isso, reconhecer, bendizer e amar a Deus na criação, porque estes não querem passar das trevas à admirável luz de Deus (op. cit. II, 13)

São Boaventura

Esta ascensão da criatura a Deus pelos vestígios, imagens e semelhanças existentes nos seres criados, ou — como o mesmo Doutor da Igreja diz em outra passagem* — pela sombra, pelo eco, pela pintura de Deus que há neles, é o que aqui se denomina a procura do absoluto. É por esta forma que a sede de absoluto pode ser saciada ou mitigada.

* Ver Excerto ao lado.

Nenhuma manifestação do absoluto repete a outra. ‘Deus não gagueja’[11], não pronuncia duas sílabas inúteis. Assim, em tudo o que nos cerca podemos ver o lado sublime. Infelizmente, a tendência geral é buscar nos seres só o que é do nosso próprio tamanho, quando devíamos procurar o que lembra a infinitude de Deus.

 

5. A procura do «absoluto» através dos seres relativos

Entre Deus e nós há uma separação. No Céu conhecê-Lo-emos todo, embora não em sua totalidade, pois Ele é infinito. Totum sed non totaliter, como diz Santo Tomás.*

* Suma Teológica I, q. 12, a. 7, ad 3.

E na Terra? — Podemos conhecê-Lo por vislumbres através das criaturas, pois é possível ver vislumbres do absoluto através do relativo.

Na procura do absoluto, faz-se a busca da semelhança que todo ser relativo tem com Deus e com os seres ápices em cada categoria.

Assim, uma pessoa que nunca tivesse visto uma chama, vendo-a numa pintura, teria certa idéia do que é o fogo, porém nunca poderia dizer que dele teve uma idéia suficiente. ‘O maior pintor do mundo não me diz, a respeito da chama, o que diz um fósforo aceso’.[12]

Por outro lado, um cego que nunca tivesse visto uma chama, tocando com o dedo um objeto quente, poderia acabar formando certa idéia do fogo.

Entre a chama pintada e uma labareda, entre a sensação de calor ardente e uma chama verdadeira, há um abismo. Mas há também uma semelhança. E este aspecto reveste-se de grande importância para a elucidação da questão que estamos tratando.

Temos aqui, portanto, dois graus de conhecimento. A pintura e o fósforo aceso são dois relativos que levam ao conhecimento de outro relativo, que é o fogo. Mas, em comparação com a pintura e o fósforo aceso, o fogo tem algo de absoluto. Assim, subindo através de relativos podemos chegar a ter certo conhecimento de Deus, o único Absoluto propriamente dito.

Exemplificando: na virtude da fortaleza há um Absoluto que é participado em graus sucessivos por uma rocha (um ser inanimado), um jequitibá (uma árvore frondosa), um leão (um animal), um Moisés (ser humano). Podemos, a seguir, imaginá-lo num anjo: o anjo da fortaleza. E acima deste, está Deus, que não tem fortaleza, mas «é» a fortaleza.

O «anjo da fortaleza» é, portanto, relativo, face à suprema perfeição que é Deus e só Deus; mas tem algo de absoluto para os que estão abaixo dele.

O anjo tem, pois, ao mesmo tempo algo de relativo e algo de absoluto. E o mesmo acontece com os graus que lhe são inferiores.

A procura do absoluto considera, nos mais variados seres relativos, aquilo que os transcende. Num panorama, num castelo, numa planta, numa pedra ou até, como dissemos, num copo de chope... Em um faisão, num ipê, numa ametista, num palácio, numa poesia, num personagem histórico, e assim por diante.

Essa subida dos seres relativos até Deus transcendente a todas as criaturas constitui o que denominamos exercício de transcendência.* Assim fazendo, quando nos apresentarmos diante d’Ele estaremos com a alma sedenta de sua contemplação.

* Dele trataremos mais pormenorizadamente adiante, no Capítulo 7.

Não se trata — e é bom que se saliente — da idéia gnóstica ou panteísta de que em tudo e, portanto, também no relativo, está presente a divindade. Para estas heresias, Deus está aprisionado no universo (gnose) ou confundir-se-ia com ele (panteísmo). De acordo com o pensamento católico, o relativo pode lembrar a Deus, sem confundir-se com Ele.

 

6. Os falsos absolutos

‘Há, no homem uma tendência a absolutizar-se, no sentido de que cada coisa tende à plenitude de si própria. Existe no homem algo por onde a contingência*, não propriamente lhe dói, mas entra em atrito com ele e, em conseqüência, aceitá-la pode ser para ele uma provação’.[13]

* Contingente: é o que pode ser ou não ser. Em conseqüência, todo homem é contingente. Deus é o único Ser necessário.

Daí decorre que, como seria previsível, há falsas formas de absoluto:

O «absoluto» do sensual. A sensualidade é tudo para o sensual. O apetite sensual procura satisfazer a alma na sensualidade, oferecendo-lhe um pseudo-absoluto. Não que o sensual procure alguma elevação, mas o absoluto é substituído em sua alma pela sensualidade.

O indivíduo sensual julga que, satisfazendo seus apetites, ele vai a certo absoluto por meio dessa espécie de paroxismo que é o êxtase sensual.

Esse paroxismo, tendendo a ser completo, vai procurando cada vez mais um requinte que lhe dê, em determinado momento, a plenitude da fruição.

‘Em um artigo sobre Casanova*, o autor dizia que só se apresentava dele um aspecto: usando uma escada de seda para atingir o balcão da bem-amada que o esperava toda perfumada. Mas ninguém via a frustração de Casanova, após mil aventuras, insatisfeito e velho, pulando ainda escadas e se extinguindo em busca de um prazer que nunca encontrou’.[14]

* Giovanni Giacomo Casanova: gentil-homem vêneto (1725-1798), célebre por suas aventuras amorosas.

Qual era o prazer que ele queria? — Encontrar uma mulher que depois nunca mais lhe desse vontade de procurar coisa alguma, pois estaria em plena posse dela e de seu prazer.

Mas ninguém punha atenção na «Quarta-feira de Cinzas» do Casanova...

Na própria tendência ardente da alma humana para inebriar-se se vê, de alguma forma, que ela é feita para o infinito, pois sem o infinito nada a satisfaz. O que Santo Agostinho exprimiu com a célebre frase: «Fizestes-nos para Vós, Senhor, e nosso coração está inquieto enquanto não repousa em Vós».

— O «absoluto» do orgulhoso. ‘Há duas espécies de orgulhosos: o introvertido e o extrovertido.

‘O orgulhoso introvertido julga que é um ser tão alto que nem lhe interessa a aprovação do próximo. A aprovação de seu próprio juízo vale muito mais do que o juízo dos outros...

‘Dentro de si está acesa a lâmpada de uma superioridade inacessível. Mesmo que lhe cuspam, não importa. Ele acha que tem a cabeça nas estrelas enquanto seus pés estão no chão.

‘Esse tipo de orgulhoso às vezes vai atrás de literatices ou de livros de filosofia. Certamente existe também o orgulhoso artista, e pode haver inclusive um orgulhoso teológico. Ele se contempla buscando outra forma de infinito: um valor tão alto que quase o diviniza’.[15]

Há também o orgulhoso extrovertido, que busca os aplausos da multidão.

Mesmo que seja plagiando, copiando o que outros fizeram, lançando mão de truques, ele procura de tal maneira desconcertar os outros na admiração a si, que é como buscar ser adorado.

Em ambos existe um fenômeno de carência que produz determinado êxtase. Tal êxtase lhes dá a sensação de ter atingido o absoluto.

E poder-se-ia discorrer ainda sobre o «absoluto» do preguiçoso, o «absoluto» do blasé, e de praticamente todos os vícios.

* A palavra francesa blasé não é de fácil tradução. É o homem cansado da vida, de tudo, até mesmo dos prazeres. E que cai num estado de indiferença total a tudo.

 

7. Os verdadeiros absolutos

— Absolutos? Se Deus é o Absoluto, não é impróprio usar o plural, e falar em absolutos? Se Deus é um só, um só também é o Absoluto.

Trata-se de uma analogia. Os absolutos, na concepção aqui adotada, são como que imitações do Absoluto, que é Deus. Os seres relativos formam uma gradação enorme no universo. Cada grau superior na escala da criação, em comparação ao grau que lhe é inferior, é como uma imitação do Absoluto. Assim sendo, para chegar ao Absoluto (com maiúscula) que é Deus, pode-se separar em cada grau o que tem de relativo, e o que tem de imitação do absoluto (com minúscula).

Voltemos ao exemplo do fogo. Ele obviamente é um relativo, não o Absoluto. O calor é outro relativo. Mas o calor é produzido pelo fogo. Por esta razão, estabelecida a relação entre fogo e calor, o fogo — que é um relativo — é como se fosse um absoluto em relação ao calor.

Diz um ditado que nem tudo que se parece é idêntico, e é verdade. Mas o que se parece lembra aquele com quem se parece. Por isso, o relativo lembra o absoluto.

Vias ascendente e descendente pelas quais se chega ao conhecimento de Deus

Da Summa Contra Gentiles, Livro IV, Proemium:

A inteligência humana que, por natureza, extrai seu conhecimento das coisas sensíveis, não poderia, somente com suas forças, alcançar a intuição da substância divina em si mesma: com efeito, por sua elevação, a substância divina não está em nenhuma proporção com os seres sensíveis, nem com qualquer dos outros seres.

Entretanto, o bem perfeito do homem consiste em conhecer a Deus, de alguma maneira. Portanto, (…) uma tal criatura seria incapaz de atingir seu fim, se uma via não lhe fosse aberta para que ela pudesse se elevar ao conhecimento de Deus.

Assim, posto que as perfeições das coisas existentes se escalonam abaixo de Deus, que constitui como que o seu cume, a inteligência, partindo das perfeições ínfimas e elevando-se por degraus, pode chegar ao conhecimento de Deus. (…)

Que as perfeições se escalonem desse modo, a partir de Deus, segundo uma via descendente, vemos para isso duas razões:

A primeira decorre da origem das coisas: com efeito, querendo a sabedoria divina estabelecer a perfeição nos seres, produziu-as segundo uma ordem, de tal modo que o conjunto das criaturas forme um todo completo, dos seres mais elevados aos mais humildes.

A segunda razão se baseia na natureza mesma das coisas: pois toda causa é de um valor superior ao seu efeito; as primeiras causadas são inferiores à causa primeira, isto é, Deus, porém superiores a seus próprios efeitos, e assim em seguida, até os seres ínfimos. (…)

Tais são as vias pelas quais nossa inteligência pode se elevar ao conhecimento de Deus.

Santo Tomás de Aquino

Essa semelhança é a solução para o problema que é objeto deste estudo: como contemplar o universo? Pois assim como, pela consideração da chama pintada, podemos vislumbrar o que é uma chama verdadeira, pela contemplação das criaturas pode-se chegar à idéia do Criador.*

* Ver Excerto ao lado.

Se assim é, o objeto dessa procura do absoluto é ilimitado: vai desde o mais alto — o mais sublime de um universo eminentemente hierárquico — até o grão de poeira, passando pela natureza, pela arte, pelas cores, pelos sons, pelas pessoas, pela sociedade. Pelo religioso e pelo profano; pelo grande e pelo pequeno.

‘O que está no fundo da cabeça de uma pessoa bem formada é que, por meio de cada coisa que conhece, deve chegar ao absoluto. Como em certo licor, cuja melhor parte está no fundo da garrafa: não bebe o melhor quem degustar apenas a superfície’.[16] O mesmo acontece em relação a toda a realidade que nos cerca.

‘O absoluto é o ponto terminal de tudo quanto é qualidade’.[17] ‘É um padrão em função do qual se medem todas as outras coisas’.[18]

 

8. O Primeiro Mandamento e a procura do absoluto

Os verdadeiros absolutos podem ser encontrados nas virtudes, compendiadas divinamente nos Dez Mandamentos. Estes ‘não têm uma importância horizontal, mas estão mencionados em ordem de importância. Os que dizem respeito a Deus (os três primeiros) são incomensuravelmente mais importantes do que os que dizem respeito ao homem. Além disso, os três primeiros mandamentos do Decálogo condicionam a prática dos demais. Sobretudo o primeiro, que é o rei de todos os outros mandamentos.

‘Quem tem verdadeiramente amor de Deus observa os outros mandamentos. A perfeição, a integridade, a duração, a solidez na prática dos outros mandamentos estão na dependência do primeiro mandamento: o amor de Deus.

‘Por outro lado, o ensino corrente a respeito do Primeiro Mandamento, que era correto na Igreja pré-conciliar, nas circunstâncias de nosso tempo exige que se insista sobre algumas particularidades.’[19]

Em especial, é preciso que se insista sobre a procura do absoluto. Essa busca faz parte do que se poderia chamar de uma escola do amor de Deus.

‘Não é apenas o amor de Deus como se aprende na aula de catecismo — o amor ao Deus invisível, que é certamente o principal — mas trata-se também, e é indispensável, de termos amor às coisas visíveis que são segundo Deus, e termos ojeriza às que são à maneira do erro, do pecado e do mal.

‘Sabendo que uma pérola obviamente não é Deus, podemos, entretanto, conhecer como Ele é imaginando as qualidades de quem criou a pérola, da mesma maneira como através de uma obra de arte pode-se conjeturar como é a alma do artista’.[20]

Só Deus — o Deus transcendente, o Deus pessoal, o Deus da teologia católica, dos Papas, dos teólogos, de Santo Tomás de Aquino — é Absoluto. Todos os outros seres são relativos e contingentes.* ‘Mas um ser do degrau superior, em comparação com um do degrau inferior, sendo uma imitação do absoluto, está mais próximo do absoluto’.[21]

* Absoluto (ab-solutus) é o que não depende de outrem. Seu antônimo é relativo. Contingente é o que pode ser ou não ser.

Assim, a contemplação sacral convida a ver, por detrás dos mais variados seres, o Absoluto que ele imita. E desse modo chegar até Deus.

 

9. O igualitarismo rejeita o absoluto

O uso adequado do simbolismo nos leva ao absoluto. Quando conhecemos o absoluto, conhecemos algo que amamos, que nos transcende infinita e completamente, diante do qual tomamos uma atitude de vassalagem.

Com o espírito feito assim, somos propensos a amar todas as coisas que estão em ordem à vassalagem. Pelo contrário, um espírito que não gosta do absoluto, odeia a vassalagem.

Por isso, o igualitarismo rejeita o simbolismo e, sobretudo, o absoluto. Quem tem espírito hierárquico é aberto ao simbolismo e ao absoluto.

Em todas as coisas em que há vários símbolos reunidos têm-se várias analogias reunidas. O que tem mais a plenitude dos caracteres do ser assemelhado é mais rei daquela semelhança que todos os outros. Ele é uma espécie de quintessência* de todos os outros. Exemplificando, poder-se-ia dizer que numa sala do trono há vários elementos que simbolizam a realeza. O trono, porém, é o que mais se assemelha a ela, sendo, pois, o «rei» da sala.

* O que há de melhor, de mais puro; o mais alto grau, o requinte, a plenitude, o auge (cfr. Aurélio).

 

10. É preciso despertar o «bramido do absoluto»

O estudo do absoluto, do simbolismo, do papel da arte e da cultura pode sugerir que o sistema de pensamento aqui descrito não visa gerar certezas, mas apenas sensações. Nada mais falso! Tanto em nossa vida de pensamento, como na de homens de ação, devemos ser paladinos do princípio de contradição.

‘No homem quebrado de hoje, é preciso despertar, por meio de figuras, discursos, comentários, explicitações, o princípio de contradição’.[22]

Esse princípio fundamental, pelo qual algo não pode ser e não ser, ao mesmo tempo, sob o mesmo aspecto, é um dos eixos do pensamento humano. Inclusive quando alguém recebe a graça da conversão, adquire ‘uma certeza nova, cheia do princípio de contradição’.

Em suma, assim se pode despertar ‘o «bramido de absoluto», e é um dever primeiro procurar preservar e intensificar esse bramido’.[23]

«Bramido» é uma palavra enérgica. Mas se, como foi dito, aquilo que é contingente pede naturalmente o absoluto, como quem tem sede anseia por água, essa ênfase parece adequada. Pode-se, até, chegar a dizer que ‘o que o homem tem de mais nobre é o bramido do absoluto’.[24]

Um dos grandes enganos da modernidade é criar a ilusão de que os bens materiais são a finalidade da vida. Um antídoto para esse defeito seria o desenvolvimento dos símbolos do absoluto com vistas a uma nova civilização, esplendorosa, magnífica, inteiramente cristã.

É para esta meta que devem estar voltadas todas as cogitações de nossa mente, todos os anseios de nosso coração e todos os esforços de nosso ser.

 

Fontes de referência:

[1] 29-1-1985. [2] 5-12-1973.  [3] 29-8-1974. [4] 28-9-1976. [5] 26-11-1986. [6] 6-11-1974. [7] 28-9-1976. [8] 17-1-1974. [9] 18-3-1977. [10] Sem data. [11] 19-12-1974. [12] 16-4-1966. [13] Todo este tópico sobre os falsos absolutos foi extraído de várias reuniões sem data. [14] Sem data. [15] Sem data [16] 6-11-1965. [17] Sem data. [18] 10-6-1976. [19] 17-11-1972.  [20] 27-10-1972.  [21] 6-11-1965. [22] 10-6-1976. [23] 10-6-1976. [24] 10-6-1976.