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Instituto Plinio Corrêa de Oliveira

 

A Inocência Primeva e a Contemplação Sacral do Universo

no pensamento de

PLINIO CORRÊA DE OLIVEIRA

 

 

© 2008 - Todos os direitos desta edição pertencem ao

INSTITUTO PLINIO CORRÊA DE OLIVEIRA

Dezembro de 2008

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Parte II

 

Capítulo 7

A via da transparência

e da transcendência para chegar a

Deus através das criaturas

( Para Textos Ilustrativos deste capítulo clicar aqui )

 

 

1. O que é transcender? Como transcender?

Como foi exposto nos capítulos anteriores, a procura do absoluto consiste em buscar, nos mais variados seres, o por onde eles participam das perfeições infinitas de Deus. Buscar, portanto, algo que os transcende. Pergunta-se, então:

— O que é transcender? Como transcender?

O foco de nossa atenção será, agora, essa transcendência. Ou seja, como transcender os aspectos sensíveis de um ser, até chegarmos a pressentir o Ser transcendente por excelência, aquele Ser que nos transcende infinitamente, que é Deus.*

* Segundo o dicionário de Silveira Bueno, transcender significa «ser superior; exceder; ultrapassar; passar além; elevar-se acima de, avantajar-se, ser superior aos outros ou a alguma coisa». Exemplos: «todos esses fatos incomuns transcendem nosso entendimento»; «são conceitos que transcendem à mediocridade dos lugares-comuns».

 

2. A escala das transcendências

‘Imagine-se uma partícula de granito tão pequena, que seu tamanho possa ser comparado a um grão de poeira, e admita-se que o Pão de Açúcar seja também constituído inteiramente do mesmo material. Qual seria a relação entre esse fragmento mínimo de pedra e o Pão de Açúcar?

‘É a relação de algo ínfimo com outra coisa da mesma natureza, mas numa desproporção quantitativa esmagadora. A massa de granito existente no Pão de Açúcar é imensa; a que existe na partícula, insignificante. Como quantidade, a desproporção é colossal; porém, como qualidade, não há desproporção alguma, pois ambos são constituídos da mesma matéria. Há uma diferença enorme, mas não transcendente, pois não situa o Pão de Açúcar num nível qualitativo diferente do da pequena partícula.

‘Entretanto, um vegetal, qualquer que seja, transcende a pedra, que é de natureza mineral. E, da mesma forma como uma planta transcende um mineral, um animal transcende a planta; e o homem, animal racional, transcende o simples animal.

‘A transcendência supõe a existência de uma superioridade especial de uma coisa sobre a outra, envolvendo o fator qualidade.

‘Sem embargo, pode-se encontrar em todas as categorias determinadas analogias. Considere-se, por exemplo, a pureza na escala das transcendências. Ao lado da candura de um cristal existe a pureza do lírio que, como ser, transcende o cristal. Do mesmo modo, a pureza da pomba, por pertencer ao reino animal, transcende à do lírio. E, finalmente, há a pureza de um homem que, como ser, transcende a pomba. A noção de pureza é, pois, aplicável analogicamente a vários seres.

‘O mesmo sucede quanto à noção de distinção. A distinção existente em uma pérola, ou em uma rosa, ou em um faisão é diversa em cada um desses seres e vai se requintando, à medida que se passa de um reino da natureza para outro. Mas superior a de todos eles é a distinção de uma princesa. A distinção é, portanto, um atributo que se aplica analogicamente a seres de categorias diversas.

‘Se um cristal fosse capaz de pensar, poderia imaginar a existência de um ser de natureza superior à sua. Seria capaz de conhecer a pureza do lírio, e compreenderia o que tem de semelhante a este; mas deslumbrar-se-ia com a candura do lírio porque, comparada com a dele, é qualitativamente muito superior.

‘Do mesmo modo, se o lírio fosse capaz de pensar, se entusiasmaria conhecendo a pureza da pomba. E se a pomba pudesse refletir, ao conhecer a pureza de uma alma humana — como, por exemplo, a de uma Santa Maria Goretti — entusiasmar-se-ia muito mais.

‘Qual a razão disso? É que a mesma qualidade que um ser possui está realizada numa criatura de categoria superior, de modo mais eminente, mais pleno e mais brilhante, em outra esfera da realidade’.[1]

 

3. Os exercícios de transcendência

Partimos, pois, da consideração de que os seres se transcendem uns aos outros, e é preciso amar esta relação: a planta transcende a pedra, o animal transcende a planta, o homem transcende o animal; e nós homens, em outro sentido da palavra, nos transcendemos uns aos outros. Há superioridades inimagináveis, misteriosas, insondáveis, e é preciso nos entusiasmarmos com elas.

Ver o oceano, ou uma montanha, ou certas nuvens, ou uma noite de luar muito bonita, são coisas correntes da vida. Mas essas coisas podem incluir grandes belezas e grandes valores, para os quais o homem deve ter a atenção posta, pois possuem um significado latente.

‘Assim é que, no homem, existe uma espécie de sede insaciável de algo ainda mais perfeito, mais alto, mais transcendente. Ele é capaz de vislumbrar pela inteligência outros mundos, outras realidades, outras perfeições, outros firmamentos, que normalmente não tem diante de si’.[2]

‘Ao ouvir o som de um sino, alguém poderia considerá-lo rotineiro, ou até banal; mas é possível transcender da materialidade daquele som’. Quem já ouviu uma gravação com os sinos da Abadia de Solesmes, na França, pôde perceber que ‘estão ali representados todos os anseios de glória como todos os desejos de intimidade, todos os ímpetos de ação como todos os anelos de contemplação. Todos os ideais de luta recebem ali um incentivo, como igualmente todo anseio de paz. Todos os contrários harmônicos de que a alma humana é capaz encontram, nesse carrilhão, sua expressão’.[3]

Onde alguém perceberia apenas um belo som, outro ascenderá a algo que fala de glória, ação, contemplação, luta e paz. Ou seja, transcenderá o mero som.

Uma infinidade de outros objetos se presta a uma ascensão semelhante. Uma simples árvore de jardim pode ser objeto adequado para uma observação transcendente.

Olhando determinada árvore, posso ver nela ‘aquilo que, segundo a razão, é um bem: a leveza, a altaneria, a elegância. Assim, meus sentidos me conduzem a um ato de amor; e, em seguida, sou levado a desejar a vida eterna, onde verei, face a face, na suma perfeição, insondável e eterna, a elegância, a altaneria, a leveza incriada. Eu teria feito, desse modo, um exercício de transcendência.[4] *

* Ver exemplo de exercício de transcendência no Apêndice III.

Por que chamar esta ascensão de transcendência? — Porque se transcendeu a coisa criada e se partiu para algo de absoluto.

Ou seja, para a idéia de um Ser absoluto que tem todas as perfeições — portanto, também, a leveza, a altaneria e a elegância que distinguimos numa simples árvore. Esse Ser absoluto é Deus!

A sã filosofia nos ensina a dizer que ‘Deus não é pleno, Deus é a plenitude. Ele pode ser comparado a um oceano infinito de perfeições, ou a uma montanha, uma rocha estável que ninguém abala. Deus criou esses seres de modo a terem semelhança com Ele. E eu, contemplando-os, posso pensar nas qualidades, nos atributos infinitos de Deus que neles se refletem, e desejar o dia em que verei face a face esses atributos em sua forma incriada, como nem de longe posso imaginar’.[5]

 

4. Transparência e transcendência, matizes e distinções

Caberia fazer uma distinção entre transcendência e transparência.

Não se trata exatamente do mesmo, mas as duas temáticas podem ser abordadas juntas devido a seu parentesco semântico. O prefixo trans, comum aos dois termos, inclui a idéia de um plus ultra, de um mais além para o qual devemos tender. Ou seja, a apetência de dar mais um passo, rumo a uma compreensão ainda maior do universo, numa contínua, insaciável ascensão. Seria preciso ‘ir muito para cima, mas muito, muito! A perder de vista para cima!’[6] Através da transparência, por meio da transcendência.

A etimologia desta última palavra é expressiva: vem do latim ascendere trans, subir além, subir ainda mais.

Podemos tomar como ponto de partida a frase inspirada e lapidar do apóstolo São João, que disse: «Aquele que não ama a seu irmão, a quem vê, como pode amar a Deus, a quem não vê?» (I Jo 4, 20). Esta sentença, de certo modo, ressalta a importância daquilo que se vê, para se chegar ao que não se vê.

As perfeições invisíveis de Deus se tornam visíveis por suas obras

Da Epístola aos Romanos (1, 19-23):

O que se pode conhecer de Deus, é-lhes [aos pagãos] manifesto, porque Deus lho revelou com evidência. Porque desde a Criação do mundo, as coisas invisíveis dele são vistas e compreendidas pelas suas obras; por exemplo, o seu poder eterno e a sua divindade; de modo que são inexcusáveis. Porque, tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças, mas extraviaram-se em seus vãos pensamentos, e obscureceu-se o seu coração insensato; porque, pretendendo-se sábios, tornaram-se estultos, e mudaram a glória de Deus incorruptível para a figura de um simulacro de homens corruptível, de aves, e de quadrúpedes, e de serpentes.

São Paulo Apóstolo

Assim, ‘há uma maneira de ver as criaturas que revela algo de Deus que sequer seríamos capazes de supor se não o víssemos nas criaturas. É vendo em tudo, por assim dizer, os sinais digitais de Deus, e amando tudo o que transparece dEle nas criaturas — na alma humana, sobretudo — que se chega ao perfeito amor de Deus’.[7]

A frase de São João pressupõe que «o irmão, a quem (se) vê» tem uma como que transparência, através da qual se vê «Deus, a quem não (se) vê». Mas, como chegar a ver Deus? Transcendendo as deficiências da natureza humana; é preciso ir além delas.

O mesmo se deve dizer quando desejamos contemplar qualquer coisa elevada. Nela sempre há algo que vai além do que ela é em si mesma. Para atingir seu significado mais profundo, é preciso transcender a mera aparência.

Infelizmente existe a ilusão de que não há transparências e que só a matéria existe.

Considerando uma linda catedral, ou um bonito faisão, devemos ver algo mais alto através de sua figura — é a transparência — ou acima de sua aparência — é a transcendência.

O sol visto, não face a face, mas através de um vitral da catedral de Chartres, é realmente o astro-rei. Naquilo que os sentidos captam, há a transparência de um maravilhoso que os sentidos não captam. Dir-se-ia algo como que miraculoso sem ser miraculoso.

O universo é transparente no sentido de que, através dele, podemos pressentir características de Deus, bem como dos diferentes degraus que dEle nos separam. Também se pode falar com propriedade da transcendência do universo, já que sua consideração nos leva para mais alto.

‘A finalidade das criaturas e do universo é Deus, e Ele é alcançável não por um conjunto imenso de engrenagens que reciprocamente se articulam, mas pela transparência, no ser, da semelhança com Ele’.[8] *

* Ver Excerto acima.

 

5. Só uma ordem transcendente satisfaz a alma humana

Foi a Renascença que abriu caminho para a concepção positivista dominante em nosso tempo. O positivismo nega a validade de especulações metafísicas, e sustenta que os dados fornecidos pela experiência são o único objeto e o supremo critério para o conhecimento humano.*

* Segundo a concepção positivista, o «homem evoluído», forte e «esclarecido» pelo positivismo, com os pés postos firmemente no chão, olhava os séculos passados com um olhar de desprezo, até de pena. Sabemos no que resultou essa concepção! O próprio Auguste Comte (1798-1857) fundou uma religião e uma igreja positivista. E em Londres os membros da London Positivist Society mantiveram em pleno funcionamento uma Church of Humanity. Nada de sobrenatural, nem de metafísico, apenas o culto dos grandes homens produzidos pela humanidade.

Ora, há no homem o apetite de algo que está além da ordem visível e da ordem natural.

Todas essas realidades transcendentes, que nos outros sistemas ameaçam ficar no terreno do vago e do impalpável, na doutrina católica se personificam na figura de Nosso Senhor Jesus Cristo.

‘Tudo quanto o homem pode imaginar de uma ordem transcendente superior, mais bela, mais extraordinária, mais perfeita, na doutrina católica por assim dizer transluz na pessoa adorável de Nosso Senhor Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, em quem residem, por excelência, todas as perfeições imagináveis, e em cujo vulto humano temos como que uma espécie de conduto sensível, para alcançar perfeições e maravilhas que, de nenhum outro modo, o homem poderia perceber’.[9]

Em Nosso Senhor Jesus Cristo, a transparência falava ainda mais alto do que os incontestáveis e divinos milagres. Por isso, ‘não há milagre que resolva o caso de alguém que, olhando para o Santo Sudário, põe em dúvida se Nosso Senhor existiu ou se Ele era Deus. Este pode ver Nosso Senhor ressuscitar Lázaro e sai aborrecido com o fato. Não tem argumentos contra, mas diz: é preciso matar esse homem*. Grande é a transparência do Santo Sudário!’[10]

* Cfr. Jo 11, 47-53.

Além de Jesus Cristo, temos a Igreja Católica, sua esposa mística. Qualquer pessoa o sente quando, por exemplo, ouve o som de um belo órgão numa igreja construída num estilo genuinamente católico; o culto católico, ordenado e sóbrio, aí se desenrola em toda a sua pompa e esplendor. Sentimos em torno de nós o calor da piedade de todos os fiéis reunidos, que sobe aos céus. Esse conjunto de coisas transporta nosso espírito para muito além das realidades terrestres.

‘E então, como não se trata de mentiras abomináveis como o misticismo satânico, ou de erros condenados como o panteísmo, mas da verdade plena, o homem que tem a felicidade de ter fé se entrega sem limites. Como uma pessoa sedenta, que finalmente chega à abundância plena de todas as águas, assim é o fiel católico ao contemplar as belezas insondáveis da Esposa Mística de Cristo: é só fartar-se, porque encontrou a água verdadeira de que Nosso Senhor falou no Evangelho’.[11] *

* Cfr. Jo 4, 13-14.

 

6. A transcendência no terreno do mal

A transcendência pode aplicar-se também ao terreno do mal.

‘Lembro-me no momento de um daqueles demônios da catedral de Notre-Dame, chifrudo, um tanto asmático, e olhando, com uma respiração de ódio, para a cidade de Paris. É apenas um ente concreto, mas tem qualquer coisa de universal. Todas as invejas, todos os ódios de todos os tempos, encontram ali uma expressão’.[12]

A rejeição categórica desse ódio diabólico, que se manifesta também nas ações humanas ao longo da História, nos projeta definidamente em direção a Deus.

 

7. Relativismo, o contrário da transcendência

O contrário da transcendência é o relativismo. Para quem foi atingido por esta enfermidade, ‘a verdade eterna, absoluta, óbvia, imutável não existe, nem ele quer que exista’. O relativista só tem impressões. ‘Ele chama essas impressões de convicção, quando são muito velhas, quando vêm de algumas gerações e ninguém as pôs em dúvida diante dele. Mas não são verdadeiras convicções’.[13]

No livro do universo, ele nada lê. E o profeta Isaías parece estar referindo-se a ele, quando diz: «Flutuai e vacilai, embriagai-vos, mas não de vinho; cambaleai, mas não de embriaguez. Porque o Senhor espalhou sobre vós um espírito de adormecimento» (Isaias 29, 9). Em tudo, o relativista vê apenas banalidade, o que é uma forma de adormecimento.

 

8. Há objetividade na transcendência?

Um relativista perguntará: «Para que essa labuta em prol da transcendência? Não é perda de tempo? Não é falta de objetividade? Não é melhor ver sempre a realidade nua e crua, em sua simplicidade?» Entretanto, se existe um sentido subjacente nas coisas, deixar de vê-lo é que seria empobrecer e fugir da realidade.

‘As perguntas do relativista levariam a outra, que desde a infância eu me fazia: um bloco de granito é sempre só quartzo, feldspato e mica, ou pode ter algum significado? Uma esmeralda é apenas silicato alumínio e de berílio, como me dizia o professor de química, ou é algo mais?’[14]

A procura de algo transcendente em cada coisa seria falta de objetividade se esse algo não fizesse parte da realidade. Ora, a transparência aponta para algo que, de um modo ou de outro, está de fato na coisa, pelo mecanismo já descrito da participação (de que se tratou na Parte II, cap. 6).

Palácio de VersaillesAquele que deseja ver a realidade nua e crua, simplista e despida de qualquer outra consideração, com certeza prefere a fotografia à pintura.

Nas fotos, a realidade seria retratada por um mero mecanismo, sem a interferência da fantasia do homem. Mas, será certo que, mesmo nas fotos, não há algo mais? A arte fotográfica moderna muitas vezes procura insinuar algo que transcende a realidade. As fotos mais excelentes geralmente insinuam uma transparência. A fotografia de um simples muro, banal e corrente — como faz, por exemplo, o grande fotógrafo Fulvio Roiter em seu álbum sobre Veneza — é eloqüente neste sentido.

Na foto que ilustra esta página, vemos que o fotógrafo conseguiu associar ao clic de sua máquina uma mensagem. Ele soube notar certa transparência em nuvens sobre o Palácio de Versailles.

‘Acima do castelo, o céu: o fotógrafo flagrou as nuvens num momento muito feliz. Elas evidentemente não foram postas ali por Luís XIV... Estão no ponto exato, com a configuração exata para adornar a fotografia.

‘Imaginem o céu sem essas nuvens: azul... azul... Um superficial pensaria assim: quanto mais azul, mais bonito.

‘Aqui não, as nuvens compensam certa falta de mistério do Castelo de Versailles. Vê-se que estão em movimento e vão se diluindo e escurecendo. Tem-se a impressão de que se trata de algo que sobe, vai-se avolumando e insinua o começo de um drama por cima do castelo risonho e do céu azul. Quase se diria que são os primeiros sinais da Revolução Francesa, misturados com as últimas glórias da monarquia. As nuvens estão aí na quantidade exata, no ponto exato, no tamanho exato para adornar o quadro.

‘Tudo quanto é grande, se não tem algo de heróico ou de trágico, perde sua grandeza. Ao Castelo de Versailles por vezes falta esta nota trágica, esta nota heróica, esta nota misteriosa; as nuvens da foto compõem isso perfeitamente’.[15]

Nessa foto, não houve nenhum artifício para representar a realidade como ela não é. Mas também não se trata de uma imagem literalmente realista, pois captou a realidade com algumas notas irreais.

 

9. Certos aspectos da realidade são mais bem expressos pela arte

‘O significado de uma coisa, quando se faz notório, é a luz da coisa. Essa luz se percebe pela via puramente analítica (ou seja, por uma análise racional daquilo que ela é) ou pela via simbólica’.[16]

A análise racional se faz por meio das palavras. Ora, ‘é geralmente admitido que a literatura e a arte têm por fim servir ao homem como meio de exprimir determinadas coisas que, pela palavra, ele não é capaz de explanar com a fidelidade com que a arte e a literatura as exprimem.

‘Deste fato, por vezes, se tira uma conclusão depreciativa — e inaceitável — em relação à filosofia. O campo desta seria o que é explicito e secundário. A arte e a poesia expressariam algo de superior, que a filosofia não poderia exprimir.

‘É certo, entretanto, que a palavra humana não é capaz de exprimir adequadamente determinados aspectos da realidade. Estes chegam ao conhecimento do homem por via não abstrativa e, por vezes, pertencem a uma ordem tão elevada que até superam a força de expressão da palavra’.[17]

‘Estabelecendo uma reversibilidade entre arte e filosofia, o homem se sentiria explicado no que tem de mais fundo. Assim, ele poderia reverter a termos expressos o que percebeu através da via artística. E, em sentido contrário, poderia encontrar na via artística o símile do que vê em termos expressos’.[18]

No mundo do pensamento, a partir do instante em que o homem procurasse habitualmente exprimir o inexprimível, abrir-se-ia uma intercomunicação entre os dois domínios, da qual poderia nascer uma era nova.

 

10. A transcendência através da História

Hoje em dia, poucas pessoas têm o senso da transcendência. Foi sempre assim, no passado?

Comecemos pela Idade Média, única era da História em que, apesar dos defeitos, existiu uma civilização cristã.

Toda a concepção do medieval era como que banhada pela idéia de uma ordem superior à ordem natural, que dominava toda a sua vida e a ordenava.

‘O homem tem a capacidade de compreender, em primeiro lugar, sua transcendência em relação a todos os seres que lhe estão abaixo e, em segundo lugar, a possibilidade da existência de uma ordem de seres que transcenda a ele mesmo, e lhe seja muito superior. O medieval com freqüência considerava ambos os aspectos.

‘Ao lado disto, havia também o misticismo diabólico. As explosões de satanismo, na época medieval, são muito freqüentes e palpáveis.

‘Retrato fiel de homens que concebiam a existência de uma ordem de coisas superior aparece em quadros de Fra Angélico, que, por seu espírito, pode ser considerado um pintor de inspiração medieval. Em suas pinturas, vemos pessoas imbuídas de uma luz, de uma claridade, de uma leveza que não encontramos na vida real, e nos falam de uma ordem transcendente.

‘O mesmo se pode afirmar das figuras esculpidas nos portais das catedrais góticas. Inclusive em cenas representando pessoas no seu trabalho quotidiano — portanto sem nada de diretamente religioso — percebe-se que são homens com o espírito povoado por idéias de uma ordem superior, o que lhes confere dignidade, equilíbrio, recolhimento e uma total preponderância da alma sobre a matéria’.[19]

O conhecido especialista Émile Mâle afirmou — em trecho já citado [cfr. Parte II, cap. 4] — que a arte medieval «nos mostra uma coisa e nos convida a ver outra».* Mas a Renascença assentou um golpe traumático nessa visão profunda, operando uma mudança radical na maneira de o homem considerar o universo.

* Apud Painton Cowen, Roses Medievales, Seuil, Paris, 1979, p. 81.

A concepção medieval estava baseada na idéia da existência de outra vida e de uma ordem de coisas superior. A Renascença rompeu com esta percepção. Ao invés de procurar sempre uma ordem transcendental, vendo todas as coisas à luz de um anelo para essa ordem superior, o renascentista apenas compreendia aquilo que podia ver e sentir de modo natural.

‘Vemos então nascer, lado a lado, dois veios de arte que se vão acentuando e dois estados de espírito que vão também progredindo quase indefinidamente, até o nosso tempo. De um lado a alegria sem peias, que começa por ser olímpica na Renascença; vai se tornando cada vez mais alegria de orgia até a Revolução Francesa; e depois passa para o tipo da alegria descontrolada de nossos dias. Mas, ao lado desse fluxo de alegria cada vez mais desordenado, a Renascença vai manifestando na arte a tristeza desesperada, a outra face da humanidade, inseparável da alegria desordenada’.[20]

Cortou-se a tendência do homem para o transcendente. Ele passou a não aceitar mais qualquer ordem que não ficasse estritamente dentro do terreno da natureza.

Mesmo quando pintavam ou representavam cenas sobrenaturais, os renascentistas não espelhavam senão a natureza. Ora, quando o homem exclui completamente o transcendente, os valores sobrenaturais e a vida eterna, coloca-se implacavelmente uma alternativa: ou a vida se torna insuportavelmente penosa, ou a pessoa se engolfa inteiramente nos prazeres, no prazer terreno, ou no ocultismo.

Essa apetência existe também no satanista, um homem decepcionado e degradado pelos vícios, mas procurando de qualquer maneira contato com realidades mais vivas e mais interessantes que as desta Terra. Por isso, ele entra em contato com o mundo das sombras, do pecado, da mentira, e às vezes da fraude.

A via da transparência e da transcendência é o caminho oposto ao da degradação. E é a via que o homem moderno deve trilhar, se quiser voltar para as luzes da virtude, da verdade e do bem-estar moral da civilização cristã.

 

Fontes de referência:

[1] 15-5-1966. [2] 15-9-1966. [3] 15-12-1974. [4] 27-12-1974. [5] 27-12-1974. [6] 6-10-1979. [7] 15-9-1994. [8] Sem data. [9] 15-9-1966.  [10] 3-3-1977. [11] Sem data. [12] Sem data. [13] Sem data. [14] Sem data. [15] Sem data. [16] Sem data. [17] Sem data. [18] Sem data. [19] Sem data. [20] 15-9-1966.