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Instituto Plinio Corrêa de Oliveira

 

A Inocência Primeva e a Contemplação Sacral do Universo

no pensamento de

PLINIO CORRÊA DE OLIVEIRA

 

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INSTITUTO PLINIO CORRÊA DE OLIVEIRA

Dezembro de 2008

Parte II

Capítulo 6

A procura do absoluto,

a «quarta via» de Santo Tomás

e a teoria da «participatio»

 

( Para Textos Ilustrativos deste capítulo clicar aqui )

1. Via apta a despertar no homem contemporâneo a sede de Deus

‘Em nossos dias se levanta uma indagação: diante do insolúvel dos problemas hodiernos e da ineficácia de todas as fórmulas que se propõem, não haveria, numa ordem maior e mais profunda, alguma solução?’[1]

Se se mostrar a inviabilidade dos caminhos sugeridos, seria possível despertar a sede de Deus numa das vias mais aptas a atrair o homem contemporâneo: a chamada «quarta via» de Santo Tomás de Aquino, que se destaca entre ‘as cinco provas fundamentais da existência de Deus’ por ele desenvolvidas ‘(que, aliás, ele não pretende sejam as únicas)’.[2] *

* A «quarta via» foi exposta por Santo Tomás em várias de suas obras, entre as quais a Suma Teológica, a Suma contra os Gentios, o Compêndio de Teologia, a Quaestio Disputata De Potentia, o estudo sobre o Prólogo do Evangelho de São João, a Symbolorum Apostolorum Expositio.

A «quarta via» de Santo Tomás, por sua vez, tem conexão com a «teoria da participação», a qual é apontada por excelentes autores como fundamento de toda a metafísica do Doutor Angélico.*

* Assim, o Pe. Cornélio Fabro afirma: «Podemos dizer com segurança que a participatio é a única chave que abre e descerra a intelegibilidade do ser finito» (La Nozione Metafísica di Partecipazione Secondo San Tommaso d’Aquino, Edivi, Segni [RM], 2005, p. 322). Embora essa tese não tenha sido acolhida por todos os tomistas, ela tem o mérito de salientar a contribuição do platonismo e de Santo Agostinho na obra de Santo Tomás, que alguns erroneamente vêem confinada num estrito aristotelismo.

A procura do absoluto — de que se tratou no capítulo anterior — conjuga-se intimamente com esses dois temas.

 

2. O método da «quarta via»: aspiração por algo muito superior à natureza

Como se pode fazer uma contemplação sacral do universo segundo o método da «quarta via» de Santo Tomás de Aquino*?

A «quarta via» num exemplo do próprio Santo Tomás

In Symbolum Apostolorum Expositio, c. I:

Para evitar sutis demonstrações, exporei com um exemplo vulgar nosso propósito, a saber, que todas as coisas foram criadas e feitas por Deus.

É patente que se alguém entra numa casa, e logo na entrada nota calor, penetrando mais para dentro sentirá mais calor, e continuando, crerá que há fogo dentro,* mesmo que não o veja, por causa dos calores assinalados.

* É escusado dizer que o aquecimento de uma casa naquele tempo, no inverno europeu, se fazia pelo fogo.

Assim acontece também com quem considera as coisas deste mundo, pois pode notar que todas estão dispostas segundo diversos graus de beleza e nobreza, e são tanto mais belas e nobres, quanto mais se aproximam de Deus. [...]

Portanto, é preciso acreditar que todas estas coisas procedem do único Deus, que dá a cada uma das coisas criadas seu ser e sua nobreza.

Santo Tomás de Aquino

‘Por bela que seja a natureza — e o é muitíssimo — ela não sacia o desejo de beleza, nem o desejo de bem-estar do homem. Nele, que é um exilado do Paraíso terrestre, há qualquer coisa que está sempre à procura de belezas, confortos, delicias maiores. Ele aspira por algo de mais maravilhoso. Algo de muito superior a sua própria natureza. O paraíso terrestre teria sido, de algum modo, algo assim’.[3]

‘Os contos das mil e uma noites, os contos de fadas, são artifícios literários para que o homem sinta algo da magnificência desta natureza para a qual foi criado, e que não encontra nesta Terra. Quando o homem olha para as estrelas — e não sente a insegurança do vôo… — ele tem naturalmente vontade de voar, vontade de se pôr naquelas altitudes.

‘Na liturgia há frases como esta: «eu moro no mais alto dos Céus, e meu trono está sobre uma coluna de nuvens»*. É uma frase inspirada, que corresponde aos desejos da criatura humana, de instalar um trono no alto das nuvens e olhar para a Terra do alto dos céus. Eis uma aspiração que nos eleva para a «quarta via»!’[4]

* Pequeno Ofício da Imaculada Conceição, hora tertia.

 

3. Discernir o espiritual através de aparências sensíveis

‘O corpo é, de algum modo, o símbolo da alma, e as propriedades da alma se irradiam através do corpo. Quando uma pessoa possui certo gênero de atributos em grau muito alto, é possível ver sua alma em seu físico, ou seja, uma realidade que fica acima da realidade física.

‘Este é o primeiro passo para utilizar a «quarta via»: através de aparências sensíveis, perceber algo que de si não é sensível, mas espiritual. Não é coisa física, portanto; os olhos não vêem, os sentidos não atingem, mas transparece através das coisas físicas.

‘O exemplo mais perfeito — exemplo adorável em todos os sentidos da palavra — é a face de Nosso Senhor Jesus Cristo no Sudário de Turim. Ali se percebe a alma, a santidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, simbolizada em sua Face. Algo da própria alma d’Ele — portanto uma realidade espiritual — está ali simbolizada’.[5]

 

4. «Participatio»: o que é?

Descrever a «quarta via» de Santo Tomás é um convite para falar da participatio (participação). Trata-se da ‘propriedade que tem uma coisa de receber algumas das propriedades de outra, e por causa disso ficar de certo modo participante da natureza da outra’.[6]

‘Infinitamente abaixo de Deus, há os anjos. O anjo não é a pureza, mas há um anjo especial da pureza, que é padrão de pureza em toda a criação. Esse anjo tem uma participação muito grande na pureza de Deus. Esse anjo constitui uma espécie de manancial de pureza de que participam, em graus diversos, todas as coisas que têm pureza. Tudo quanto é puro tem participação na pureza dos anjos’.[7]

O mesmo se dá com todas as perfeições.

A Sagrada Escritura descreve uma forma de participatio existente entre Davi e Jônatas, que ‘passaram a ser como que dois irmãos unidos por uma amizade e por uma mútua compreensão profundíssima. De tal maneira que cada um considerava o outro como «um outro eu mesmo»’.[8] *

* «Sicut animam suam, ita diligebat eum» (I Reis, 20, 17).

É de se notar que ‘nas participações continua a haver alteridade’. ‘A participação é uma espécie de ponte entre duas alteridades’.[9]

Entretanto, ‘há algo de ontológico quando existe uma participatio. Não se trata de uma pura semelhança. É preciso ver na participatio algo mais do que uma semelhança’.[10] Mas sem prejuízo de continuar a haver alteridade: ‘A incomunicabilidade é o verdadeiro contraforte da participação,[11] ou seja, a participação representa um auge de comunicação entre dois seres, mas tem um limite: a alteridade entre eles é conservada.

A participatio é bifronte, pois é uma comunicação, mas ‘só tem sentido a partir e em função da individualidade’.[12]Participatio e comunicação constituem, entre si, uma espécie de binômio harmônico’.[13]

‘Tudo que existe possui determinados predicados, os quais participam dos predicados de outro ser que os tenha em grau maior. E não se trata só dos predicados de pessoas, mas também dos seres irracionais e até dos seres inanimados.*

* Diz Santo Tomás: «Cada ser é bom pela divina bondade, princípio primeiro exemplar, efetivo e final de toda bondade. Contudo, cada realidade é considerada boa também por uma semelhança da divina bondade, que lhe é inerente, que é a sua forma própria e o fundamento essencial de suas denominações. De modo que há uma só bondade, em virtude da qual todas as coisas são boas; e, por outro lado, há muitas bondades» (Suma Teológica, I, q. 6, a. 4, c.).

‘Portanto, sempre que existe um predicado em determinado ser, este predicado participa de um predicado de outro ser mais alto.

‘Vamos dizer, por exemplo, o vermelho. Existe toda a gama de vermelhos, mas há de haver, em algum lugar da criação, um vermelho perfeito e ideal; o vermelho absoluto, arquetípico, que seja a perfeição do vermelho, e do qual todos os outros vermelhos participem. É o monarca dos vermelhos’.[14]

‘O que sustenta este vermelho na sua cor é o fato de que, na ordem criada por Deus, existe um vermelho maior, do qual todos os outros participam. Se ele não existisse, tornava-se problemática a existência dos vermelhos menores.*

* Santo Tomás de Aquino, no De Substantiis Separatis, uma de suas últimas obras, é explicito: «Se alguém considera a ordem das coisas, sempre encontrará que o que é máximo é a causa de tudo o que está depois dele, da mesma maneira como o fogo, que é quentíssimo, é causa do calor de todos os demais elementos corpóreos» (op. cit., c. 9).

‘O mesmo pode ser afirmado também das qualidades humanas. Ao longo da História, a humanidade vai destilando tipos perfeitos, sobretudo quando ajudada pela Igreja, que limita os efeitos do pecado original e leva à mais alta santidade os homens que correspondem à graça.

‘As perfeições menores, que nascem sob a inspiração de uma maior, são sustentadas por esta. Assim, toda a criação deve ser vista como uma série de tipos que se escalonam uns em relação aos outros, e que têm como ápice um arquétipo*. Este arquétipo, por sua vez, tem sua realização mais alta num anjo. Os anjos são arquétipos puramente espirituais das qualidades existentes na criação.

* Tipo é o «modelo ideal reunindo em si os caracteres essenciais de certa espécie de objetos, em seu mais alto grau de perfeição». Arquétipo é o «tipo supremo, de que os objetos dos quais temos a experiência não são senão cópias; protótipo, padrão, original, modelo, paradigma» (Paul Foulquié, Dictionnaire de la Langue Philosophique, PUF, Paris, 1962).

‘Alguns anjos por sua vez são arquétipos de outros e assim se chega até Deus, que é o fundamento de toda esta hierarquia de analogias e participações, porque é perfeito, supremo e incriado. Não é correto dizer que Deus «tem» qualidades: Ele «é» as qualidades que tem. E todas as qualidades existentes na Terra são participações das qualidades d’Ele’.[15]

 

5. A pirâmide de arquétipos

‘Se algo possui determinada qualidade em grau «x», apenas a possui, como se verá em seguida, porque outro ser tem a mesma qualidade num grau muito mais alto. Ele participa de algum modo da qualidade existente no ser mais alto.

‘Este ser mais alto pode ser um arquétipo. Que é um arquétipo? É um tipo que tem, de modo ultra-característico, saliente e pleno — tanto quanto cabe a uma criatura — certas qualidades.

‘Pode haver um rei arquetípico, como um guerreiro arquetípico, um professor arquetípico, um porteiro arquetípico.

‘Quando existe um arquétipo, florescem em torno dele muitos homens que têm, em grau menor, qualidades participadas dele. E para que as qualidades existam no gênero humano, é preciso haver toda uma pirâmide de arquétipos.

‘Para além do gênero humano, deve haver anjos que possuam esta qualidade com uma densidade muito maior do que nós homens temos. E acima, há Deus.

‘Vamos centrar nossa idéia em Deus. As qualidades que há nos seres, existem em Deus de modo infinito. Que qualidades? Todas. Dos anjos, dos homens, dos animais, dos vegetais e dos minerais.

‘Por que um brilhante brilha? Porque Deus tem, de um modo espiritual, uma qualidade cuja imagem material é o brilhante. Se Deus não existisse, ou deixasse de existir, todos os brilhantes deixariam de brilhar, porque todo o brilho dos brilhantes deflui continuamente de Deus, que não brilha como uma pedra porque não é pedra, mas tem uma perfeição que a pedra imita brilhando.

‘Por que uma flor tem perfume? Porque este perfume da flor é uma qualidade que, a seu modo, existe de modo infinito em Deus, como num espírito e não como na matéria. Dessa qualidade, a matéria participa a seu modo, tendo aquele perfume.

‘Mas eu, apreciando aquela flor, tenho — em geral não conscientemente — uma idéia misteriosa e inefável de algo que existe em um ente fora desta vida, perfeito e infinito.

‘Vamos imaginar um perfeito causeur [um homem que conversa muito bem], agradável, interessante, atraente, gentil, variado; enfim, com todas as qualidades possíveis, muy entretenido [muito entretido], como se diz em espanhol. Eu teria vontade de passar o tempo inteiro em contato com ele. Uma pessoa cuja ação me chamasse à ação e me estimulasse, cujo repouso fosse repousante e me descansasse, cujo timbre de voz fosse para mim uma música, cujo olhar fosse uma luz, cuja presença fosse um calor, etc. Tudo sumamente entretido!

‘Está bem. Mas se é tão entretido, ele o poderia ser mais, porque sempre se pode ser mais. E, em última análise, se ele tem esta qualidade, deve haver um ser que a tenha mais do que ele; deve haver um ser, no fim, que a possua em proporções infinitas. Ó que maravilha quando eu puder ver — face a face — Deus, infinitamente entretido, tão diferente daquele azul vazio que certos santinhos representando o Céu apresentam... um azul tão pouco entretido!

‘Todas as coisas foram criadas e postas para despertar em nós o gosto do mais... «Quero mais, quero mais, quero mais!», é o movimento contínuo da alma do católico.

‘Não só quero mais, mas quero tudo. E, porque quero tudo, não o encontro em nada, mas minha razão me mostra que existe além e de um modo infinito.

‘Eis a possibilidade de gostar das coisas de modo não frustrante! Porque, a princípio, gosta-se delas, e depois decepcionam. Mas elas contêm um anúncio, uma promessa e um antegozo. Então, sim, pode-se viver.

‘Essas considerações nos convidam a ter o espírito antiigualitário. Isto porque, naqueles que são meus arquétipos, capazes de ser mais do que aquilo que eu sou, vejo imagens de Deus. Estes, por isso, me atraem como a plenitude atrai a parte, mas me encaminham depois para a plenitude das plenitudes que é Deus Nosso Senhor’.

‘Este espírito, em vez de tornar a vida monótona, torna-a entretida.

‘Tenho pena de quem não faz isto, como um homem que vê tem pena de um cego.

‘É esse entretenimento que nos dá força para agüentar muita coisa maçante, muito dissabor desde a manhã até a noite.

‘Entretenimento no quê? Em olhar mil coisas e pensar: «Quero mais! Terei mais! Tenho mais!»

‘Na hora da Comunhão, este Deus perfeito e absoluto — «omne delectamentum in se habentem» — tendo em si toda espécie de deleites e sabores, embora de modo insensível, entra na minha alma; e então, desde esta Terra, eu tenho algo’.

‘Eis a impostação do espírito católico: um espírito muito hierárquico, porque em todas as coisas procura o arquétipo, procura a maior perfeição criada que seja possível, e depois voa para a perfeição incriada.

‘Alguém observará: «É muito diferente do espírito moderno».

‘Muito diferente? Eu protesto: é exatamente o contrário! Não vai por menos! Porque é exata, frontal, rombuda e diretamente o contrário. É a negação do espírito moderno, o qual é o contrário de tudo isto’.[16]

 

6. As qualidades de todo ser procedem de um ser superior

Insiste-se tanto na necessidade de sermos lógicos, racionais, coerentes, conseqüentes. Mas, que é preciso fazer para ser lógicos?

Imaginemos diante de nós uma jarra de água, muito simples, um tanto bojuda, cuja forma, entretanto, seja apreciável. Para sermos lógicos, devemos saber olhar para essa jarra e ver nela os valores que possui. E procurar discernir esses mesmos valores, primeiro na natureza mineral, vegetal e animal; depois nos homens; e, por fim, imaginá-los nos anjos! E, acima dos anjos, em Deus, porque todos os valores verdadeiros participam de uma perfeição de Deus.

Esse é o caminho da lógica, mas de uma lógica com horizontes largos, sem estreiteza de vistas.

‘Imaginem que eu vá à Inglaterra, e encontre várias senhoras de educação, finas, distintas. Pergunto a um inglês quem são.

‘— São senhoras da boa burguesia antiga e tradicional do Reino Unido.

‘— De onde elas receberam a influência que as torna tão finas?

‘O inglês responde:

‘— É simples: de uma classe social superior, a nobreza. A nobreza ainda tem muito mais finura do que estas senhoras da burguesia. A finura que elas têm é uma participação da finura que têm as senhoras da nobreza.

‘— Mas onde é que se encontram senhoras da nobreza?

‘— Em tal clube.

‘— Vou ver... Excelente! Mas as senhoras da nobreza, de quem receberam essa finura?

‘— Temos uma rainha que é o protótipo da finura. É como que a finura em sua fonte. Dela dimana, com a posição excelsa que ocupa, com a educação magnífica que é a sua, com a hereditariedade especial que ela possui, com o carisma que teria numa monarquia católica, dela dimana uma finura especial que é a finura régia. Há burgueses finos porque há nobres; e há nobres, porque há reis. Há um ser que, contém no seu mais alto grau, certa qualidade das quais os outros vão participando; se não houvesse este ser, este tônus aristocrático não existiria em toda a sociedade’.[17] *

* Há aqui uma alusão à teoria da participação. Diz Santo Tomás: «A coisa existente em outra, por participação, é nesta outra causada necessariamente pelo ser ao qual ele essencialmente convém; assim, o ferro torna-se ígneo pelo fogo [...] Donde se conclui que todos os seres, exceto Deus, não têm o ser por si mesmo, mas por participação. Logo, todos os seres diversificados, por participarem diversamente do ser e, assim, mais ou menos perfeitos, necessariamente devem ser causados por um ser primeiro perfeitíssimo» (Suma Teológica, I, q. 44, a. 1, c.).

‘— Isto não é algo que faz sentido? Não é uma coisa razoável e natural?

‘É o assunto do vermelho, acima mencionado, transposto para outro plano. Pode-se dizer que a rainha é o absoluto de uma qualidade que se encontra esparsa em graus diferentes em todo o corpo da sociedade britânica’.[18] *

* Aproxime-se esta descrição, com as devidas adaptações, do que diz Santo Tomás no I Livro das Sentenças: «O primeiro em qualquer gênero, simplíssimo, perfeitíssimo, é a medida de todas as coisas que estão nesse gênero» (D. 8, q. 4., A. 2, ad 3).

 ‘O mesmo acontece em um país com a vida cultural bem constituída. Vendo homens muito cultos, alguém dirá: «Este país deve ter excelentes universidades e grandes sábios; porque não pode haver tantos homens cultos sem que haja um foco como, por exemplo, uma universidade. Mas esta, para ser capaz de produzir tantos homens muito cultos, deve ter pelo menos alguns sábios». Ou seja, deve haver sempre alguns que são o foco de irradiação de qualidades das quais os outros participam.

‘É por esta forma que está organizado o Universo. Todas as qualidades existentes nos seres procedem de seres superiores’.[19] *

* Imperfecta a perfectis sumunt originem (O imperfeito tem sua origem no perfeito). Summa contra Gentiles, II, 15.

‘Daí São Tomás concluir: se existe, no mundo que vejo, uma qualidade qualquer, deve haver, fora do mundo, um ser que tenha essa qualidade em grau infinito’.[20]

 

7. No topo da pirâmide dos arquétipos está Deus

Por isso, deter-se no exemplo da rainha seria não ir até ‘o fim da questão, porque: Quem deu isso à rainha? Parar aí seria chegar ao alto de uma pirâmide truncada. Há de haver outro ser do qual ela o tenha recebido, e, no final, um ser que não o recebeu de ninguém; que o possua de modo absoluto, de modo infinito, sem ter recebido nada e dando aos outros seres tudo.

‘Um ser, no qual todas as coisas excelentes existem de modo perfeito e infinito. Este ser é Deus.

‘O fato de haver no mundo coisas belas, nobres, elevadas, harmônicas e ordenadas, demonstra que há algo mais e mais alto; demonstra a existência de Deus’.[21]

 

8. Nem o Paraíso Terrestre satisfaz

‘A procura dos arquétipos nos faz buscar um ambiente material mais perfeito que o atual, de que este não faça senão participar. Ainda que fôssemos para o Paraíso Terrestre — imaginemos essa hipótese irrealizável — nossa alma, sendo bem constituída, não se contentaria, porque as maravilhas aí existentes convidariam para uma beleza ainda maior. Essa beleza seria exatamente a do Paraíso Celeste que, como se sabe, é também um lugar’.[22] *

* Ver, a respeito, Santo Tomás, Suma Teológica, I, q.70, a.2, ad 4; q.76, a.5, ad 2; q.91, a.1, c e ad 2, 3.

‘O Paraíso Celeste está para o Paraíso Terrestre numa superioridade maior do que o Paraíso Terrestre está para a nossa Terra’.[23]

 

9. Nossa Senhora como arquétipo do gênero humano

A doutrina da participação, que comporta tantas aplicações ao mundo temporal, também pode ser útil para a vida espiritual. Não é despropositado estabelecer um relacionamento entre esta doutrina e a da escravidão a Nossa Senhora, constante no célebre Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, de São Luís Maria Grignion de Montfort.

Assim, ‘para bem recebermos Nosso Senhor na comunhão, podemos imaginar como Nossa Senhora faria sua adoração a Ele. Porque, se pedirmos, Ela nos atenderá, e no céu estará adorando a Ele presente em nós. Posso imaginar, no momento em que estou comungando, Nossa Senhora no céu adorando a Ele dentro de minha alma. Mas não é uma imaginação, é um fato real.

‘Um modo de fazê-lo é considerar Nossa Senhora como a síntese da santidade de todas as pessoas boas que houve, há e haverá neste mundo. Se tomarmos todas as pessoas boas que houve na terra e haverá até o fim do mundo, Ela possui a forma de santidade que cada uma dessas pessoas tem. Ela o possui de modo inimaginável, de modo excelso.

‘Cada homem, em algo, é diferente dos outros. Uma alma que se salvou em algo dá glória a Deus como ninguém dará, nem antes, nem durante, nem depois da vida dele.

‘Cada homem é capaz de adorar a Deus de um modo como só ele adoraria, de executar os outros clássicos atos de culto — agradecimento, reparação e petição — como só ele faria.

‘Nossa Senhora possui todos esses modos, mas à maneira dela. Assim sendo, posso fazer-Lhe o seguinte pedido:

‘«Minha Mãe, entre vossas excelsitudes incontáveis, há em Vós um filão que é a arquiperfeição do meu próprio modo de adorar. Eu me uno a essa perfeição que, em Vós, é como uma perfeição ideal do meu modo de adorar. É assim que adoro vosso divino Filho. Adorai-O desse modo por mim».

‘Seria como se eu estivesse falando a Ele com um alto-falante celeste, que tornasse minha voz encantadora. Ainda que eu fosse gago e rouco, minha voz se tornaria maravilhosa, porque seria como se fosse a voz de Maria.

‘E assim concluo: «Ó minha Mãe, falai agora a Ele. Vou pensar n’Ele, vou adorá-Lo. E peço-Vos que façais simultaneamente o mesmo, do vosso modo insondavelmente perfeito».

‘Então faço a minha adoração’.[24]

 

Fontes de referência:

[1] 29-12-1972. [2] 29-12-1972. [3] 19-2-1973. [4] 19-2-1973. [5] 23-3-1973. [6] 17-5-1995. [7] 6-11-1965. [8] 1º-5-1993. [9] 22-12-1978. [10] 28-12-1978. [11] 25-11-1963. [12] 6-6-1984. [13] 25-2-1982. [14] 11-6-1966. [15] 29-12-1972. [16] 27-11-1972. [17] 17-11-1972. [18] 17-11-1972. [19] 19-3-1980. [20] 17-11-1972. [21] 17-11-1972. [22] 19-2-1973. [23] 19-2-1973 [24] 16-7-1977.