Capítulo IX

 

Não há contradição, e sim harmonia
entre as obrigações para com Deus e os
deveres para com os pais; mas,
se importa honrar pai e mãe, acima de
tudo se deve colocar o amor de Deus

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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137. Os pecadores, como homens capazes de bem-aventurança, hão de ser amados; pela sua culpa, hão de ser odiados, mesmo sendo pai, mãe ou chegados

Da Suma Teológica, de São Tomás de Aquino (1225-1274):

"É preciso considerar duas coisas nos pecadores: a natureza e a culpa. Pela natureza que receberam de Deus, são capazes da bem-aventurança, em cuja comunicação se funda a caridade, como está dito; portanto, pela sua natureza hão de ser amados com caridade. Pelo contrário, a sua culpa contraria a Deus e é impedimento da bem-aventurança; daí que pela culpa, que os torna inimigos de Deus, hão de ser odiados todos, mesmo sendo pai, mãe ou chegados, como se lê em São Lucas. Devemos, pois, odiar nos pecadores o sê-lo, e amá-los como homens capazes de bem-aventurança. E isto é verdadeiramente amá-los na caridade por Deus" (São TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, II-II, q. 25, a. 6).

138. Depois de Deus, somos obrigados a prestar culto aos pais e à pátria

Da Suma Teológica, de São Tomás de Aquino (1225-1274):

"Nós nos tornamos obrigados para com os outros, segundo a excelência diversa deles e os benefícios diversos que nos fizeram. Ora, em ambos os casos o lugar supremo pertence a Deus, por ser excelentíssimo e o princípio primeiro que nos deu o ser e nos governa. Mas, em segundo lugar, os princípios que nos governam e nos dão o ser são os pais e a pátria, em que e de quem nascemos, e que nos criaram. Portanto, depois de Deus, somos obrigados sobretudo aos pais e à pátria. Por onde, assim como o fim da religião é prestar culto a Deus, assim, em segundo grau, o objeto da piedade é prestar culto aos pais e à pátria" (São TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, II-II, q. 101, a. 1).

139. A virtude da piedade filial não pode contrariar os deveres de religião

Da Suma Teológica, de São Tomás de Aquino (1225-1274):

"A religião e a piedade (para com os pais) são duas virtudes. Ora, nenhuma virtude pode contrariar ou opor-se a outra; pois, segundo o Filósofo, o bem não pode ser contrário ao bem. Por isso não é possível a piedade e a religião constituírem obstáculo uma para outra, de modo ao ato de uma excluir o da outra.

"Ora, os atos de toda virtude, como do sobredito se colhe, se delimitam pelas circunstâncias próprias, as quais, sendo preteridas, já não haverá ato de virtude, mas, de vício. Por onde, o dever de piedade filial manda honrar os pais, do modo devido. Ora, não é o modo devido querer cultuar os pais mais que a Deus; mas, como diz Ambrósio, "os deveres de religião, por natureza, divinos, necessariamente se antepõem aos da piedade filial'.

"Se portanto os deveres para com os pais nos levarem a abandonar os de cultuar a Deus, já não seria piedade filial apegar-se aos deveres para com os pais, desprezando os para com Deus. Por isso diz Jerônimo: "Calcando aos pés o amor paterno, calcando aos pés o amor materno, corre, voa em demanda do pendão da cruz; a suma piedade, nesta matéria, é ser cruel'.

"Portanto, em tal caso, devem-se preterir os deveres de piedade filial, por causa do culto religioso divino. Se porém, o cumprimento dos nossos deveres para com os pais não nos fizer abandonar os do culto divino, a piedade filial mantém os seus direitos. E, então, não devemos abandoná-la por causa da religião" (São TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, II-II, q. 101, a. 4).

140. "Tu, que temes ofender a um superior, vê se não há outro Superior ainda mais alto a quem devas temer"

De uma homilia de Santo Agostinho (354-430):

"Tu que temes ofender a um superior, vê se não há outro Superior ainda mais alto a quem devas temer. Não, não queiras ofender ao Soberano Superior. (...)

 "Examina, pois, quais são teus superiores. Em primeiro lugar, o pai e a mãe. Se te educam bem, se te alimentam em Cristo, há que lhes dar tudo, há que lhes obedecer em tudo o que mandem. Se nada mandarem contra o Superior deles, serve-os.

"E quem há, dirás, superior a quem me engendrou? Teu Criador. O homem, com efeito, engendra, mas é Deus Quem cria. Como um homem consegue engendrar, ele próprio não o sabe, e tampouco sabe o que será engendrado. Quem olhou para ti a fim de constituir-te, quando ainda não existias, decerto é maior do que teu pai.

"E acima de teus próprios pais há a pátria; de tal sorte que uma ordem que os pais dêem contra a pátria não há de ser cumprida. E ao que a pátria mande contra Deus, também não se atenda. (...)

"Se quem te governa for bom, nele encontrarás um protetor; se for mau, será tua pedra de escândalo. (...)

"Mantende-vos firmes, irmãos; não existe poder acima do poder de Quem vos chamou para o cristianismo. Não temais as ameaças dos ímpios. Suportai os inimigos; tendes por quem rezar; não vos intimidem de nenhuma maneira. (...)

"Significa isso excitar-vos ao orgulho? Dizemos que menosprezeis os poderes legais? Não. E os que sofrem dessa doença, toquem também a fímbria das vestes. Esta fímbria, ou seja, o Apóstolo, diz: "Toda alma esteja sujeita aos poderes superiores, porque não há poder que não venha de Deus; e os que existem foram instituídos por Deus. Aquele, pois, que resiste à autoridade, resiste à ordenação de Deus' (Rom. XIII, 1-2).

"Mas o que fazer se aquela manda o que não deves fazer? Aí não há dúvida: Despreza esse poder por temor ao Poder sumo. Examinai os graus das hierarquias humanas. Se um pretor manda algo, não se há de fazer? Mas se ordena contra o procônsul, não despreza sua autoridade quem não o atende, mas prefere, a uma obediência, outra maior. Nem há aqui razão alguma para tomá-lo a mal; o Maior está na frente.

"Deste modo, se o procônsul ordenasse algo contra as ordens do imperador, por acaso alguém vacilaria entre ouvir a este e obedecer ao outro? Portanto, se o imperador manda uma coisa e Deus outra, que vos parece? "Paga os tributos, acata minha vontade'. "Muito bem; mas não em servir aos ídolos. Isso o proíbe...' "Quem o proíbe?' "Um poder maior; e, com licença, se tu me ameaças com o cárcere, Ele me ameaça com o inferno'. Se isto acontecer (ser perseguido por esta fidelidade a Deus antes que aos homens), seria oportuno fazer da fé um escudo no qual os inflamados dardos do inimigo sejam apagados" (Santo AGOSTINHO, Obras Homilías, BAC, Madrid, 1965, t. X, pp. 124-125, 129-130 ?Imprimatur: José María, Obispo aux. y vic. gen., Madrid, 12*1952).

141. É preciso amar os pais, mas pôr Deus acima de tudo

De outra homilia de Santo Agostinho (354-430):

"A outro, sempre quieto, que não fala nada e que não se oferece para nada, (Jesus Cristo) lhe diz: Segue-Me. (...)

"O que responde? "Irei primeiro dar sepultura a meu pai'. Via o Senhor claramente a fé de seu coração, mas a piedade filial pedia uma dilação; entretanto, quando Nosso Senhor prepara os homens para difundir o Evangelho, não admite que se interponha razão alguma de piedade carnal e temporal. É claro que a lei de Deus impõe esse dever; o próprio Senhor acusou os judeus de quebrantar esse mandamento divino, e o apóstolo Paulo disse em uma de suas epístolas: Este é o primeiro mandamento seguido de promessa: "Honra a teu pai e a tua mãe'. Sim, é palavra de Deus. Queria, pois, aquele moço obedecer a Deus enterrando o pai; mas há momentos e circunstâncias e empreendimentos que devem estar subordinados a esta empresa, a esta circunstância, a este tempo que é o de seguir a Nosso Senhor.

"Deve-se querer ao pai; o Criador há de se lhe antepor. Eu, disse-lhe,

chamo-te para o Evangelho; necessito de ti para outra tarefa mais importante do que aquela que desejas fazer. "Deixa os mortos enterrarem seus mortos'. Teu pai morreu, mas há mortos para enterrar os mortos. Quem são esses mortos enterradores de mortos? Pode um morto ser enterrado por mortos? Como o amortalharão, se estão mortos? Como o conduzirão, se estão mortos? Como o poderão chorar, se estão mortos? Pois de fato os amortalham, os levam, os choram, e mortos estão, porque mortos são os infiéis. (...) Amai aos pais, mas ponde a Deus acima dos pais" (Santo AGOSTINHO, Obras Homilías, BAC, Madrid, 1965, t. X, pp. 341-342 / Imprimatur: José María, Obispo aux. y vic. gen., Madrid, 12-12-1952).

142. Grande é a obrigação que temos para com os pais, mas nenhuma obrigação se compara à que temos em relação a Deus

Do Pe. Alonso Rodríguez SJ (1538-1616), cujos escritos o Papa Pio XI recomendou vivamente numa Carta Apostólica:

"O primeiro mandamento da Lei de Deus é amar a Deus sobre todas as coisas. Esse mandamento é o maior de todos: assim o diz expressamente Cristo Nosso Senhor, respondendo a um doutor da lei que Lhe perguntou "Mestre, qual é o maior mandamento da lei?' Respondeu: "Amarás a Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças. Este é o primeiro e o maior dos mandamentos' (Mt. XXII). (...)

"É grande a obrigação que temos para com os pais, os senhores, os prelados, os mestres, os amigos e benfeitores, e outros semelhantes. Mas nenhuma obrigação se compara à que temos em relação a Deus; pois ninguém é tão pai, nem tão mãe, nem tão rei, nem tão senhor, nem tão amigo, nem tão benfeitor, quanto Ele. Além disso, em todos esses tipos de pessoas dificilmente se encontra mais do que um único título de obrigação, mas em Deus acham-se juntas todas essas obrigações, e todas elas no sumo grau da perfeição. (...)

"De onde decorre que todas as demais obrigações e todos os mandamentos que há para cumpri-las, devem-se regular por essa obrigação e por esse mandamento; porque só nos obrigam na medida em que não contradizem a este. E se alguma vez contradissessem, então já não nos obrigariam, como o mostra o Apóstolo São Paulo dizendo: "obedire oportet Deo magis quam hominibus' ("é preciso obedecer a Deus mais que aos homens'). Ainda que sejam príncipes, quando nos mandam algo contra o que manda Deus, não se lhes deve obedecer.

"É também por isto que São Jerônimo diz que se for preciso, para ir servir a Deus, passar por cima do pai e da mãe, que isso seja feito por Deus (calcatum perge patrem, pietatis est in hac re esse crudelem). Nessa matéria, a grande piedade consiste em ser cruel. (...)

"Estamos obrigados a amar a Deus mais que a todas as coisas, mais do que à fortuna, mais do que à honra, mais do que ao pai e à mãe, mais do que ao filho, à mulher, e mais do que à vida. O que quero dizer é que pelo amor de nenhuma destas coisas nem de nenhuma outra do mundo, faça o cristão algo que lhe traga a perda do amor de Deus, e sua amizade; se tiver que escolher entre perder a fortuna ou pecar mortalmente, antes prefira perdê-la a pecar; e o mesmo com qualquer outra coisa, até com a própria vida. Isso é amar a Deus sobre todas as coisas" (Pe. ALONSO RODRGUEZ SJ, Pláticas de la Doctrina Cristiana, Grupo de Editoriales Católicas, Buenos Aires, 1945, t. I, pp. 162-163 e 165 / Con licencia eclesiástica).

143. Acima de tudo, honrar e venerar o Pai e Criador de todos os homens

Do Catecismo Romano, redigido por decreto do Concílio de Trento e promulgado em 1566 por São Pio V:

"É necessário que nosso amor a Deus se torne cada vez mais ardente; pois, segundo seu preceito, devemos amá-Lo de todo o nosso coração, de toda a nossa alma, de todas as nossas forças.

"Ora, o amor que nutrimos ao próximo tem seus limites. Nosso Senhor manda amar o próximo como a nós mesmos (Mt. XXII, 37). Se alguém ultrapassa os limites, a ponto de ter igual amor a Deus e ao próximo, comete um pecado de máxima gravidade.

"O Senhor declarou: "Se alguém vem a Mim, e não odeia (quer dizer: quem não ama os pais menos do que a Mim) pai, mãe, esposa, filhos, irmãos e irmãs, e até a própria vida: não pode ser meu discípulo' (Lc. XIV, 26).

"Mais clara é a explicação deste assunto em São Mateus: "Quem ama pai e mãe mais do que a Mim não é digno de Mim' (Mt. XXII, 37).

"Não há dúvida, devemos extremar-nos no amor e respeito a nossos pais. Mas, para que nisso haja piedade filial, é preciso antes de tudo prestar a principal honra e veneração a Deus, que é Pai e Criador de todos os homens (Deut. XXXII, 6; Is. LXIII, 16; Jer. XXXI, 9; II Mach. VII, 23)" (Catecismo Romano, Vozes, Petrópolis, 1962, 2.} ed. refundida, p. 382 ?Imprimatur: Por comissão especial do Exmo. e Revmo. Sr. Dom Manuel Pedro da Cunha Cintra, Bispo de Petrópolis, Frei Desidério Kalverkamp OFM, Petrópolis, 26-1-1962).

144. "Não faltes à vocação por um mal entendido amor a teus pais, pois então não serias digno de Deus"

De uma conhecida obra de Santo Antonio Maria Claret (1807-1870), destinada a seminaristas e Sacerdotes:

"Obedece sempre aos teus pais em tudo aquilo que não seja mau. Imita o Menino Jesus, que estava sujeito a Maria Santíssima, sua Mãe, e a São José, que fazia as vezes de pai, e não só quando menino, mas também durante toda a sua vida. (...)

"Ao longo de toda a tua vida, mesmo depois de teres saído da tutela do pátrio poder, estás obrigado a amar e respeitar a teus pais, a defender, quando seja necessário, sua honra, sua pessoa, e seus bens; a socorrê-los se puderes e eles o necessitarem, mas não podes enriquecê-los com os bens da Igreja que são para os pobres e não para enriquecer parentes. "Ne ditiores fiant', como diz Bento XIV.

"Mas cuidado para que, por um amor mal entendido a teus pais, não faltes à vocação e a tuas obrigações, pois então não serias digno de Deus, como diz Jesus Cristo em seu Santo Evangelho" (Santo ANTONIO MARIA CLARET, El Colegial o Seminarista Instruido, Editorial del Corazón de María, Madrid, 1924, t. I, pp. 424-425 / Imprimi potest: Nicolaus García CMF, Spr. Matriti, 16-7-1924).

145. Não nos separemos de Deus por amor a nossos pais

Em sua célebre Catena Aurea, São Tomás de Aquino reproduz o seguinte trecho de Santo Ambrósio (340-397):

"Se, pois, o Senhor renunciou a sua própria Mãe por nós dizendo: "Quem é minha Mãe e quem são meus irmãos?', por que desejas tu ser mais que teu Senhor? O Senhor não manda desconhecer a natureza, nem viver escravo dela; mas manda que a acomodemos de tal forma que veneremos a seu Autor e não nos separemos de Deus por amor de nossos pais" (São TOMÁS DE AQUINO, Catena Aurea, São Lucas, Cursos de Cultura Católica, Buenos Aires, 1946, t. IV, p. 358 / Puede imprimirse: Antonio Rocca, Obispo tit. de Augusta y Vic. Gen., Buenos Aires, 6-4-1946).

146. Quando os pais nos excitam ao pecado, devemos, nesse ponto, abandoná-los e odiá-los

Da Suma Teológica, de São Tomás de Aquino (1225-1274):

"Gregório (São Gregório Magno), explicando a palavra do Senhor ("Se alguém vem a Mim e não odeia o pai, a mãe, a mulher e os filhos, os irmãos e irmãs e, ainda mais, a própria vida, não pode ser meu discípulo'), diz: "Os pais, que surgem como nossos adversários, no caminharmos para Deus, devemos ignorá-los, odiando-os e fugindo deles. Pois, quando os pais nos excitam ao pecado e nos querem fazer preterir o culto divino, devemos, nesse ponto, abandoná-los e odiá-los. E nesse sentido é que refere a Escritura terem os Levitas ignorado os seus consanguíneos; porque não pouparam aos idólatras, para obedecer à ordem do Senhor" (São TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, II-II, q. 101, a. 4).

147. "Ame-se neste mundo a todos, ainda que seja ao inimigo; mas odeie-se ao que se nos opõe no caminho de Deus, ainda que seja parente"

De uma homilia do Papa São Gregório Magno (540-604) sobre passagem do Evangelho de São Lucas:

* "Naquele tempo disse Jesus à multidão: se algum vem a Mim, e não aborrece seu pai, e mãe, e mulher, e filhos, e irmãos, e até sua vida, não pode ser meu discípulo. E o que não leva a sua cruz e Me segue, não pode ser meu discípulo' (Lc. XIV, 26-27). (...)

"Como é que se nos manda ter aversão aos pais e aos chegados pelo sangue, sendo que temos preceito de amar até os inimigos? Porque é certo que a Verdade, referindo-se à esposa, diz (Mt. XIX, 6): "Não separe o homem o que Deus juntou'; e São Paulo diz (Eph. V, 25): "Maridos, amai as vossas mulheres, como também Cristo amou a Igreja'.

"Vede, então; o discípulo prega que se deve amar a mulher, sendo que o Mestre diz: "Quem não aborrece... a sua mulher, não pode ser meu discípulo'. Será que o Juiz anuncia uma coisa e o Evangelizador difunde outra diferente? Ou será que podemos amar e aborrecer ao mesmo tempo?

Um ódio que não procede da malevolência, mas da caridade

"Mas, se examinamos com perspicácia o sentido do preceito, podemos fazer uma e outra coisa à vontade e com prudência, de maneira que amemos a esposa e os que nos estão unidos por parentesco carnal e também a quantos reconhecemos como próximos, e ao mesmo tempo não reconheçamos como tais, aqueles que percebemos serem adversários no caminho de Deus, tendo aversão e fugindo deles; pois diríamos que acaba por ser amado, por meio desse ódio, quem não é atendido, quando, pensando carnalmente, nos induz ao mal. O Senhor, para demonstrar que esse ódio para com o próximo não procede de malevolência, mas sim de caridade, acrescenta em seguida: "E até a própria vida'. Logo ordena-se-nos ter aversão aos próximos e ter aversão a nossa própria vida; é certo, pois, que cumpre o dever de odiar ao próximo, amando-o, aquele que o odeia como a si mesmo; porque nós odiamos bem a nossa vida quando não consentimos em seus desejos carnais, quando mortificamos suas concupiscências e nos opomos com constância a seus prazeres, de maneira que, uma vez desprezadas estas coisas, se encaminha para o melhor, e assim vem a ser como que amada pelo ódio.

Como se deve amar e odiar ao mesmo tempo

"É assim que devemos mostrar ódio à esposa e aos nossos próximos, amando o que são e ao mesmo tempo odiando aquilo em que nos estorvam no caminho de Deus.

"Com efeito, quando São Paulo se encaminhava a Jerusalém, o profeta Agabo tomou seu cinturão e atou seus pés, dizendo (Act. XXI, 11):

"Assim atarão em Jerusalém ao varão a quem pertence este cinto'. Mas este, que odiava perfeitamente a sua vida, o que dizia? "Eu não só estou disposto a ser atado, mas também a morrer em Jerusalém pelo nome do Senhor Jesus' (Act. XXI, 13); "nem tenho a minha vida por mais preciosa que eu' (Act. XX, 24). Eis aí como, amando-a, odiava a sua vida, a qual desejava entregar à morte por Jesus, para que, morrendo para o pecado, ressuscitasse para a vida.

"Portanto, copiemos deste modo de nos odiarmos o modo de odiar ao próximo; ame-se neste mundo a todos, ainda que seja ao inimigo; mas odei-se ao que se nos opõe no caminho de Deus, ainda que seja parente; porque quem aspira ao eterno, nesse caminho que empreendeu pela causa de Deus deve tornar-se estranho ao pai, à mãe, aos filhos, aos parentes e até a si mesmo, para conhecer a Deus tanto melhor quanto que, por Ele, não conhece a ninguém, pois muito fustigam a alma e ofuscam a sua perspicácia os afetos carnais, os quais, sem embargo, nunca nos farão mal se os dominamos, reprimindo-os.

"Devemos, pois, amar os próximos; devemos ter caridade para com todos, parentes e estranhos, mas sem nos afastarmos do amor de Deus pelo amor deles" (São GREGRIO MAGNO, Obras de San Gregorio Magno, BAC, Madrid, 1958, pp. 741 a 743 / Imprimatur: Juan, Obispo aux. y vic. gen., Madrid, 21-2-1958).

148. Não se deve renunciar à estima para com os pais, mas é preciso dar a Deus o primeiro lugar

Do Tratado sobre o Evangelho de São Lucas, de Santo Ambrósio (340-397):

* "Julgais que vim trazer paz à terra? Não, vos digo eu, mas separação; porque, de hoje em diante, haverá numa casa cinco pessoas, divididas três contra duas, e duas contra três. Estarão divididos o pai contra o filho, e o filho contra seu pai; a mãe contra a filha, e a filha contra a mãe; a sogra contra a sua nora, e a nora contra a sua sogra' (Lc. XII, 51 a 53). (...)

"Como explicar esta afirmação (de Nosso Senhor) "Eu vos deixo a paz, Eu vos dou a minha paz' (Jo. XIV, 27), se Ele veio separar os filhos de seus pais e estes de seus filhos, desfazendo assim seus laços? Como coordenar aquele "Maldito quem não honra seu pai' (Deut. XXVII, 16) com a afirmação de que quem abandona seu pai pratica a virtude da religião?

"Basta nos darmos conta de que a religião ocupa o primeiro lugar em importância e a piedade (filial) o segundo, e veremos que este paradoxo se esclarece bastante; porque certamente é necessário pospor as coisas humanas às divinas. Pois se é preciso dar aos pais a honra correspondente, quanto mais ao Criador dos pais, a quem tu deves dar graças por teus mesmos pais! E se eles não O reconhecem em absoluto como seu Pai, como podes tu reconhecer a eles?

"Na realidade, Ele não diz que se deve renunciar a toda a estima, mas que é preciso dar a Deus o primeiro lugar. E por isso lês em outro livro: "O que ama a seu pai ou a sua mãe mais do que a Mim, não é digno de Mim' (Mt. X, 37). Não se te proíbe de amar a teus pais, mas sim de antepô-los a Deus; porque as coisas boas da natureza são dons do Senhor, e ninguém deve amar mais o benefício que recebeu, que a Deus, que é Quem conserva o benefício dEle recebido" (Obras de San Ambrosio, BAC, Madrid, 1966, pp. 413 a 415 / Imprimatur: Angel, Obispo Aux. y Vic. Gen., Madrid, junho de 1966).

149. "Só ama perfeitamente a seu pai, mãe, irmãos, a todos os homens, quem ama verdadeiramente a Jesus Cristo"

De um sermão pregado por São Pedro Julião Eymard (1811-1868):

"O amor de Jesus Cristo domina todos os outros amores; quer que todas as outras afeições Lhe sejam submetidas, quer ser o Rei: só por esse preço pode viver.

"Jesus Cristo não admite rival; é um Deus zeloso (Ex. XXXIV, 14 et alibi pluries); oferecer-Lhe um coração dividido, é fazer injúria a seus benefícios e à sua divina Pessoa.

Deve-se ter amor à família, mas subordinado ao amor de Jesus Cristo

"Aliás, o amor é um, como o coração; a divisão causa a sua morte. Assim, bem o disse Nosso Senhor: "Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de odiar um e amar o outro, ou há de afeiçoar-se a um e desprezar o outro' (Mt. VI, 24). Portanto, quando o amor de Jesus Cristo se acha em concorrência com um amor natural, até com o amor filial ou o conjugal e – o que é mais forte – com o materno, Jesus Cristo assume um tom de Senhor, Ele que no entanto é tão bom, tão condescendente para com a fraqueza humana e profere a divina sentença: "O que ama o pai ou a mãe ou o filho mais do que a Mim, não é digno de Mim' (Mt. X, 37).

"Que quer dizer Jesus Cristo? Que não se deve mais amar nem ao pai, nem à mãe, nem aos filhos? Decerto que não. Ele ensina que esses amores devem ser subordinados ao Seu.

Há pais que se tornam perseguidores e corruptores do amor de Jesus Cristo

"Ah! quantos pais, inimigos de Jesus Cristo, deveriam compreender bem essa palavra e não se tornarem os perseguidores, os corruptores do amor de Jesus Cristo no coração de seus filhos! Desgraçados, que tomam o lugar de Deus e se colocam acima dos Mandamentos!

"Jesus Cristo vai mais longe. Quando o amor de família ou o amor de amizade é contrário ao seu amor, diz: "Se algum vem a Mim, e não aborrece seu pai, e mãe, e mulher e filhos, e irmãos e irmãs... não pode ser meu discípulo' (Lc. XIV, 26).

"Portanto, prega Jesus Cristo o desprezo, a rebelião, a guerra contra o que há de mais sagrado no mundo? Não, não. Mas Ele sabe que há parentes infiéis às vocações, e que se tornam os mais terríveis perseguidores de seu amor no seio da família.

"Então, Ele os despoja da autoridade que lhes deu, os depõe da dignidade divina à qual os elevou. Não é mais um pai, nem mãe, nem amigo; é apenas um perigoso sedutor. Então se deixa, se preciso, a casa paterna, como o fez São Francisco de Assis, para permanecer fiel ao Pai que está nos céus. E, se não é possível subtrair-se à autoridade paterna, fica-se a título de filho, mas vive-se como cristão, sofre-se como confessor dos direitos de Deus.

"Quantos mártires no lar doméstico!

"O amor soberano de Jesus Cristo revelará um dia – no grande dia – virtudes sublimes que só tiveram por testemunhas aqueles que lhes deveriam ser o amparo e não os carrascos.

O amor de Jesus Cristo sobrenaturaliza e santifica o amor ao próximo

"O amor de Jesus Cristo dirige como senhor todas as outras afeições. Esta ação divina sobre o coração de seus discípulos é o que mais revolta o mundo. Por que tal aversão? Não tem um pai o primeiro direito sobre o filho, um esposo sobre a esposa? É absolutamente verdadeiro, aí está a vida da sociedade. Mas o amor soberano de Jesus Cristo paralisa os esforços do mundo, seus desejos; este não pode fazer mais vítimas e comprar escravos para si, porque a alma que se deu totalmente ao amor de Jesus Cristo não quer mais nenhum outro; ele lhe basta.

"Significa isto que o coração, amando soberanamente a Jesus Cristo, não amará a mais ninguém, será incapaz de outro amor? Então não haveria mais família, nem amizade, nem sociedade possível. – Oh! não. O amor de Jesus Cristo dirige apenas o amor do próximo fixando-lhe os direitos; santifica esse amor dando-lhe um motivo sobrenatural, diviniza-o fazendo deste amor o complemento, a perfeição do amor que se deve a Ele próprio. De modo que se pode enunciar o princípio incontestável: só ama perfeitamente a seu pai, mãe, irmãos, a todos os homens, quem ama verdadeiramente a Jesus Cristo.

"Vou mais longe: só possui o segredo da verdadeira ternura e dos mais nobres sentimentos no amor do próximo quem ama de todo coração a Jesus Cristo, porque é neste Coração que aprende a conhecê-los e praticá-los.

"Parece-vos talvez que me deixo levar pelo idealismo do amor perfeito. Não, não. Rejeito de toda a minha alma a acusação, corrente no mundo, de que um homem, amando a Deus, não sabe mais amar o próximo.

"Pois bem! que me achem homens mais amorosos que os Santos, mais afetuosos que um São Francisco de Sales, um São Vicente de Paulo, um São Francisco de Assis, um São Paulo Apóstolo!" (São PEDRO JULIÃO EYMARD, A Santíssima Eucaristia, Vozes, 1955, vol. V, pp. 202 a 205 / Imprimatur: Por comissão especial do Exmo. e Revmo. Sr. D. Manuel Pedro da Cunha Cintra, Bispo de Petrópolis, Frei Lauro Ostermann OFM, Petrópolis, 5-4-1955).

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