Capítulo VIII

 

Considerando que mesmo pais piedosos,
agrilhoados pelos vínculos da carne e do sangue,
muitas vezes não entendem a linguagem
do espírito, Santos e moralistas
chegam a recomendar que em tais casos os filhos
nem sequer lhes peçam conselho,
quando se trata de seguir a vocação religiosa

 

 

 

 

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128. Quase sempre existe perigo de os pais quererem desviar o filho de seguir a vocação religiosa

De uma obra de teologia moral de Santo Afonso Maria de Ligório (1696-1787):

"É certo, como diz o Doutor Angélico (II-II, q. 104, a. 5), que os filhos são livres no que diz respeito à escolha do próprio estado. E embora convenha (como dizem os Doutores) que não partam sem ter antes recebido a bênção paterna, isso entretanto só se deve entender assim quando não há nenhum perigo de o pai querer desviá-los do santo propósito.

"Como esse perigo, porém, quase sempre existe, por isso São Tomás recomenda absolutamente (Opusc. 17, pac. 9, concl. 2) aos filhos que não peçam conselho a seus parentes quando se tratar de vocação religiosa. Desse conselho, diz o Santo, devem ser afastados os próximos, pois nesses assuntos eles não são amigos, mas inimigos.

"Também São Cirilo, citado pelo mesmo São Tomás (II-II, q. 189, a. 10), explicando a frase do Evangelho "aquele que põe a mão no arado e olha para trás não é apto para o reino de Deus' (Lc. IX, 62), diz: olha para trás quem pede uma dilação para conferenciar com os parentes (Lib. 3, n. 68)" (Santo AFONSO MARIA DE LIGÓRIO, Homo Apostolicus, H. Dessain, Summi Pontificis, S. Congregationis de Propaganda Fide et Archiep. Mechl. Typographus, Malines, 1867, pp. 427-428). 

129. Seria grande falta pedir conselho aos pais, e maior ainda pedir-lhes o consentimento para abraçar uma vocação religiosa

Ainda de Santo Afonso Maria de Ligório (1696-1787):

"Genericamente falando, deve-se manter a vocação em segredo e não a comunicar a ninguém, exceto a seu diretor espiritual. Pois, geralmente, os homens do mundo não têm escrúpulo em dizer aos jovens chamados ao estado religioso, que se pode servir a Deus em todos os estados, inclusive no século; e o que há de espantoso, é que tais afirmações algumas vezes saem dos lábios de Padres, e mesmo de Religiosos, mas destes que entraram na vida religiosa sem vocação, ou que ignoram o que esta expressão significa.

"Sim, sem dúvida, pode-se servir a Deus em todos os lugares, quando não se é chamado à vida religiosa; mas não quando se é chamado para esta, e se quer permanecer no mundo segundo a sua fantasia; neste último caso, como o dissemos, é difícil manter uma boa conduta e servir a Deus.

É sempre de se temer a oposição dos pais

"Convém particularmente que aquele que recebe a graça da vocação, não a dê a conhecer de modo algum a seus pais. (...)

"Há os que pretendem que, quando se é chamado por Deus ao estado religioso, e se pode facilmente e com segurança obter o assentimento dos pais, sem que se tenha a temer nenhum obstáculo da parte deles, é conveniente procurar ter a sua bênção.

"Especulativamente esta doutrina poderia passar, mas não na prática; pois, na prática, conforme o que acontece normalmente, a oposição é sempre de se temer. É bom esclarecer inteiramente esta dificuldade, a fim de tirar a alguns certos escrúpulos farisaicos. (...)

"Entretanto, quanto ao estado conjugal, o padre Pinamonti adota com razão a opinião de Sánchez, ç?oning, e de outros teólogos, que consideram que os jovens devem aconselhar-se com seus pais, porque, na matéria, estes podem ter mais experiência, e em tal circunstância um pai recorda-se facilmente de que é pai. Mas quanto à vocação religiosa, acrescenta o mesmo padre Pinamonti com não menos razão, o filho não está de nenhum modo obrigado a consultar seus pais, porque eles nisto não têm nenhuma experiência, e o interesse os transforma geralmente em inimigos.

Os pais preferem ver seus filhos se condenarem com eles, a permitir que se salvem longe deles

"É também essa a observação de São Tomás. Este, falando igualmente da vocação religiosa, diz que nossos amigos segundo a carne opõem-se frequentemente ao nosso progresso espiritual: "Frequenter amici carnales adversanturprofectui spirituali' (II-II, q. 189, a. 10).

 "Com efeito, os pais preferem ver seus filhos se condenarem com eles, a permitir-lhes que se salvem longe deles; tal é a crueldade dos pais e das mães! Brada São Bernardo: "O durum patrem, o saevam matrem, quorum consolatio mors filii est; qui me malunt perire cum eis, quam regnare sine eis'! ("Oh! duro pai, oh! mãe cruel; cuja consolação é a morte do filho, e que preferem que eu pereça com eles a reinar sem eles'!) (Epist. 111).

Para a vida de perfeição é preciso esquecer o pai e toda a família

"Quando Deus, diz Porrecta, chama uma alma à vida perfeita, Ele quer que ela esqueça seu pai e toda sua família, para não estimar nem escutar senão a Ele: "Audi, filia, et vide, et inclina aurem tuam; et obliviscere populum tuum et domum patris tui' (Ps. XLIV, 11).

"Sem dúvida nenhuma, acrescenta, o Senhor nos advertiu por meio destas palavras de que, para seguir a vocação, não se deve pedir conselho a seus pais: "Si Dominus vult animam ad se vocatam oblivisci patrem, domumque patris ejus, suggerit utique per hoc, quod vocatus ab ipso ad religionem non debet suorum carnalium amicorumque domesticorum consilium interponere talis vocationis exsecutioni' (in II-II, q. 189, a. 10).

"São Cirilo, explicando a resposta de Jesus Cristo ao jovem do qual se falou mais acima: "Nemo mittens manum ad aratrum, et respiciens retro, aptus est regno Dei'; diz que a pessoa que pede tempo para conferenciar com os pais sobre a questão de sua vocação, é precisamente aquela que o Senhor declara indigna do céu; ela olha para trás: "Aspicit retro, qui dilationem quaerit occasione redeundi domum et cum propinquis conferendi' ("Olha para trás quem a pretexto de tornar à casa e consultar os parentes, busca uma dilação') (apud. S. Thom. loc. cit.).

São Tomás recomenda que de maneira alguma se consultem os parentes e conhecidos sobre a vocação

"É por isto que São Tomás recomenda de maneira absoluta, a quem quer que se sinta chamado ao estado religioso, não consultar de modo nenhum seus parentes e conhecidos sobre a vocação; porque, diz ele, nesta questão eles devem ser olhados, não como amigos, mas como inimigos, conforme a palavra do Salvador: "Ab hoc consilio, primo quidem, amovendi sunt carnis propinqui; dicitur enim: "Causam tuam tracta cum amico tuo' (Prov. XXV, 9); propinqui autem carnis, in hoc proposito, amici non sunt, sed potius inimici, juxta sententiam Domini: "Inimici hominis, domestici ejus' (Mt. X, 36)' (Contra retr. a rel. c. 9).

Se é grande falta consultá-los, falta maior ainda é esperar o consentimento deles

"Se, portanto, é uma grande falta pedir conselho aos pais para seguir a vocação, seria uma falta maior ainda querer esperar o consentimento deles, e, por conseguinte, pedir-lho, visto que, por esta diligência, se exporia ao perigo evidente de perder a vocação; pois é provável que os pais procurariam colocar obstáculos.

Alguns santos se afastaram da família às ocultas

"Vemos também que os Santos, desde que foram chamados a deixar o mundo, partiram na ignorância completa de suas famílias.

"Assim agiram um São Tomás de Aquino, um São Francisco Xavier, um São Filipe Néri, um São Luís Bertrand. E sabemos até que o Senhor testemunhou por milagres, que Ele aprova estas gloriosas fugas. (...)

"Assim, meu caro irmão, se Deus vos inspira o desejo de renunciar ao mundo, tende bastante cuidado de não o dar a conhecer a vossos parentes; contentai-vos com a bênção do Senhor, e tratai de realizar vossa vocação o quanto antes e sem o conhecimento deles, se não vos quiserdes colocar em grande perigo de perdê-la; pois, geralmente, como dissemos antes, os parentes, sobretudo o pai e a mãe, se opõem à execução de tais projetos.

Mesmo pais piedosos põem às vezes entraves à vocação dos filhos

"Mesmo quando eles são dotados de sentimentos piedosos, o interesse e a paixão os extraviam de tal modo que, sob diversos pretextos, eles não têm escrúpulo de estorvar por todos os meios a vocação de seus filhos.

"Lê-se na vida do Padre Paul Segneri, o Jovem, que sua mãe, apesar de ser uma mulher de muita oração, nada negligenciou para colocar obstáculos à vocação de seu filho, chamado ao estado religioso.

"Vê-se igualmente na vida de monsenhor Cavalieri, bispo de Tróia, que seu pai, não obstante ser um homem de grande piedade, tentou todos os recursos para impedi-lo de entrar na Congregação dos Piedosos-Operários, onde ele ingressou posteriormente, chegando o pai até a tentar um processo formal diante do tribunal eclesiástico.

"E quantos outros pais, se bem que fossem pessoas de devoção e de oração, viram-se inteiramente transformados, em tais casos, e se tornaram como que possessos do demônio! tanto é verdade que em nenhuma circunstância o inferno parece empregar armas mais temíveis do que quando se trata de barrar o caminho aos que são chamados por Deus ao estado religioso!

"Por este mesmo motivo, guardai-vos de revelar vossa vocação a vossos amigos; pois não terão nenhum escrúpulo de procurar desviar-vos dela, ou pelo menos, de apregoar vosso segredo, cujo conhecimento chegaria assim facilmente a vossos pais" (Santo AFONSO MARIA DE LIGÓRIO, Oeuvres Complètes – Oeuvres Ascétiques, Casterman, Tournai, 1881, 5.} ed., t. III, pp. 415 a 420 / Imprimatur: A. P. V. Descamps, vic. gen., Tournai, 15-9-1858).

130. Consultar os que não querem pensar com sabedoria, indica um espírito vacilante e capaz de retroceder

Da Suma Teológica, do Doutor Angélico:

"Art. X – Se é louvável que alguém entre em religião sem ouvir o conselho de muitos e sem diuturna deliberação. (...)

"Resposta à segunda (objeção). – Assim como a carne deseja contra o espírito, no dizer do Apóstolo, assim também frequentemente os amigos carnais são um obstáculo ao progresso espiritual, segundo aquilo da Escritura: "Os inimigos do homem são os seus mesmos domésticos'. Por isso Cirilo, expondo aquilo do Evangelho – "Permite-me que me despeça dos de minha casa'– diz: O querer despedir-se dos de casa mostra estar dividido de certo modo; pois, comunicar ainda com os próximos e consultar os que não querem pensar com sabedoria, indica que quem o faz ainda está vacilante e capaz de retroceder. E por isso ouça as palavras do Senhor: Nenhum que mete a sua mão ao arado e olha para trás é apto para o reino de Deus. Pois, olha para trás quem a pretexto de tornar à casa e consultar os parentes, busca uma dilação" (São TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, II-II, q. 189, a. 10).

131. Injuria a Cristo quem recebe seu convite e não o atende imediatamente

De uma obra apologética de São Tomás de Aquino, intitulada Contra a pestífera doutrina dos que afastam os homens da entrada no estado religioso, escrita em 1270:

" "Pedro e André, chamados pelo Senhor, deixando imediatamente suas redes, O seguiram' (Mt. IV, 18).

"Louva-os São João Crisóstomo nestes termos: "Encontrando-se em pleno trabalho, e ouvindo Aquele que os convidava, eles não demoraram. Não disseram: vamos a nossa casa e falemos sobre isto com nossos amigos. Mas abandonando tudo, eles O seguiram, como fez Eliseu com Elias'.

"Lê-se nos versículos seguintes, a propósito de Tiago e de João, que chamados por Deus abandonaram imediatamente as suas redes e seu pai, e O seguiram.

"Santo Hilário tem razão ao dizer em seu comentário: "Estes, que abandonam sua profissão e a casa paterna, nos ensinam a seguir Jesus e a nos livrar das preocupações da vida mundana como dos costumes da casa de nossa família'.

Nada de humano deve retardar nosso serviço a Deus

"A respeito de sua vocação, o próprio São Mateus (Mt. IX) diz ainda que "ao chamado do Senhor, levantou-se e O seguiu'. Notai – diz a este propósito Crisóstomo – notai a obediência do eleito: ele não opôs a mínima resistência, ele não pediu para voltar à casa, nem para prevenir os seus: "Ele não se preocupou – nota São Remígio, a respeito do mesmo texto – com os aborrecimentos humanos que podia ter com seus chefes pelo fato de deixar inacabadas as contas de seu ofício. Deduzimos daqui legitimamente que nada de humano deve retardar nosso serviço a Deus.

"Segue-Me, e deixa que os mortos enterrem seus mortos"

"Eis além disso o que lemos ao mesmo tempo em São Mateus (VIII, 21) e em São Lucas (IX, 59): "Um outro dos discípulos Lhe disse: Senhor, permite-me primeiro ir enterrar meu pai. Mas Jesus lhe disse: Segue-Me, e deixa que os mortos enterrem seus mortos'. São João Crisóstomo comenta este texto da seguinte maneira: "Se Ele diz isso, não é para nos prescrever o desprezo do amor devido aos pais, mas para nos mostrar que nada deve ser mais importante para nós do que os assuntos celestes, e que nós devemos ocupar-nos deles em toda a medida do possível, sem tardar um minuto, mesmo se aquilo que nos solicita é muito atraente e quase indispensável'. Ora, o que mais necessário do que enterrar o pai? O que também mais fácil? Isso não exigia muito tempo.

"O demônio insiste muito ardorosamente, na sua vontade de encontrar acesso numa alma, e se obtém uma pequena negligência, acaba por produzir uma grande pusilanimidade. Também o Sábio faz esta advertência: "Não difiras de dia para dia' (Eccli. V, 8). (...)

"Em seu tratado sobre as palavras do Senhor, Santo Agostinho faz esta reflexão: "É preciso honrar o pai, mas obedecer a Deus. Eu, diz Ele, chamo-te ao Evangelho, tu Me és necessário para esta obra. E esta é maior do que aquilo que queres fazer; a outros o cuidado de enterrar seus mortos. Colocar em segundo plano o que deve vir primeiro é proibido. Amai vossos pais, mas mais ainda a Deus'.

"Se portanto o Senhor censurou aquele que implorava um curto prazo para coisa tão necessária, qual não é o descaramento daqueles que pretendem que os conselhos de Cristo devem ser acolhidos após se ter longamente refletido!

"Eu seguir-te-ei, Senhor, mas permite que vá primeiro dizer adeus aos de minha casa"

"Prossigamos a leitura de São Lucas (IX, 61). "Um outro disse-lhe: Eu seguir-te-ei, Senhor, mas permite que vá primeiro dizer adeus aos de minha casa'. Referindo-se a este texto, São Cirilo, o eminente doutor grego, exclama (ironicamente): "Promessa a imitar e digna de todo o louvor'.

"No entanto, tomar a decisão de se separar daqueles que estão em casa, indo pedir-lhes tal permissão, mostra bem que, no fundo, a palavra do Senhor o turbou, se bem que ele tenha resolvido, nos recônditos do coração, segui-Lo sem reservas. O querer consultar seus próximos, capazes de desaprovar este projeto, mostra que ele, um pouco mais ou um pouco menos, fraquejou, e foi por esse motivo que o Senhor o censurou.

"Com efeito, o texto prossegue: "Jesus respondeu-lhe: Ninguém que depois de ter metido a sua mão ao arado, olha para trás, é apto para o Reino de Deus' (Lc. IX, 62). Colocou a mão no arado aquele que se pôs cordialmente a segui-Lo, mas ao mesmo tempo olha para trás, aquele que solicita um adiamento para retornar à casa e entrar em negociações com seus próximos.

Injuria a Cristo aquele que, depois de ter ouvido seu conselho, crê ainda dever ouvir a opinião de um mortal

"Nós sabemos bem que não foi assim que fizeram os santos Apóstolos: deixando imediatamente sua barca e seu pai, eles seguiram a Cristo. O próprio São Paulo "renunciou imediatamente a consultar a carne e o sangue' (Gal. I, 16). Assim devemos ser, se queremos seguir a Cristo. (...)

"Injuria portanto a Cristo, "no qual estão encerrados todos os tesouros da sabedoria e da ciência' (Col. II, 3) aquele que, depois de ter ouvido seu conselho, crê ainda dever recorrer à opinião de um homem mortal. (...)

Quem é impulsionado por uma inspiração do Espírito Santo não deve ir se aconselhar com os homens...

"Aquele que é impulsionado, por uma inspiração do Espírito Santo, a entrar na vida religiosa, não deve esperar aconselhar-se com os homens, mas sim abandonar-se imediatamente ao movimento do Espírito Santo. Isto está dito no livro de Ezequiel: "Para onde o espírito ia e para onde o espírito se elevava, as rodas, seguindo-o, também igualmente se elevavam' (Ez. I, 20).

"Esta doutrina, posta em relevo pelos autores sagrados, o é também pela vida dos santos.

"No oitavo livro das suas Confissões, Santo Agostinho (...) se incrimina de ter retardado a própria conversão: "A verdade me subjugava e eu não encontrava nada mais para lhe responder a não ser palavras de moleza e de sonolência: "Logo! Agora mesmo! Ainda um momento!' Mas o "logo!' não acabava mais e o "ainda um momento' se arrastava indefinidamente'.

...como se faz nos casos de dúvida

"Ele diz ainda: "Eu me envergonhava muito, porque percebia ainda os murmúrios das vaidades – a saber: mundanas e carnais – e ficava hesitante, em suspenso'. Longe de ser louvável, é pelo contrário censurável adiar, depois de um chamado interior ou exterior, pela palavra ou pela Escritura e procurar conselho, como se faz nos casos de dúvida.

"Um dos resultados causados pela inspiração interior, é impulsionar imediatamente os que são inspirados a agir melhor. (...)

"Aquele que se esforça por deter o impulso vindo do Espírito Santo, retardando-se para pedir conselho, ou ignora o poder do Espírito Santo, ou Lhe tenta resistir. (...)

"Perguntar-se ainda se a tristeza dos amigos ou algum prejuízo temporal são motivos suficientes para adiar a intenção de entrar na vida religiosa, é uma atitude de uma alma ainda embaraçada no amor carnal.

Uma impressionante carta de São Jerônimo

"São Jerônimo diz na sua Carta a Heliodoro: "O que importa que teu filho se pendure em teu pescoço, que teu neto tenha os cabelos em desordem e rasgue suas vestes, que tua mãe te mostre o seio que te alimentou, que teu pai te barre o caminho atravessando-se no umbral da porta! Pisa aos pés o corpo de teu pai e, sem nenhuma lágrima, corre para o estandarte da Cruz. Em tal circunstância, a única maneira de exercer a piedade, é ser cruel... A espada está nas mãos do inimigo que procura a minha morte, e eu me deixarei tocar pelas lágrimas de uma mãe? Abandonarei a santa milícia por causa de um pai a quem, para seguir a Cristo, não devo nem sequer a sepultura?' (...)

Da consulta, afastar em primeiro lugar os próximos segundo a carne, que não são amigos, mas inimigos

"Eis por fim, os dois últimos pontos de esclarecimento para os que se propõem entrar para a vida religiosa: a maneira de entrar para a vida religiosa e os impedimentos que causam obstáculo a essa entrada, como por exemplo: a condição servil, o estado de casamento etc. (...) Ora, desta consulta, é preciso afastar em primeiro lugar os próximos segundo a carne: "Trata dos teus negócios com teu amigo – diz o livro dos Provérbios (XXV, 9) – e não descubras teu segredo a um estranho'.

"No caso, os próximos segundo a carne não são amigos mas antes inimigos, a julgar por este texto de Miquéias (VII, 6): "Cada um tem por inimigos as pessoas de sua casa'. Encontra-se também em São Mateus uma palavra semelhante do Senhor (X, 36). Em tal circunstância, pois, é preciso evitar os conselhos dos próximos segundo a carne.

Quando o demônio é expulso do coração dos bons, ele os tenta através das pessoas que amam

"Daí vem que São Jerônimo enumere em sua Carta a Heliodoro os obstáculos à vida religiosa que os próximos segundo a carne fazem valer: "Ora é uma irmã viúva que vos estreita em seus braços carinhosos, ora os criados que te viram crescer, te dizem: Tu nos deixas! A quem serviremos? Ora é uma aia já velha, é um marido da ama de leite que vos gritam, eles que a piedade faz vir logo após os pais naturais: esperai até a nossa morte e enterrai-nos'.

"São Gregório diz também no terceiro livro da sua Moral: "Quando nosso astuto adversário se dá conta de que é expulso do coração dos bons, ele se dirige àqueles que eles amam. Na linguagem destes, ele infiltra palavras elogiosas: dizem que eles são mais amados do que os outros! Assim o poder do amor transpassa o coração, e o gládio da persuasão derrota facilmente a muralha das boas disposições.

"É por isso que São Bento, no dizer de São Gregório em seu segundo livro dos Diálogos, abandonando às escondidas sua ama de leite, se retirou para um lugar deserto; lá confidenciou ao monge Romano sua intenção. Este ao mesmo tempo manteve o segredo e facilitou o seu desejo.

Não consultes um injusto sobre a justiça, mas sê assíduo junto a um homem piedoso; a ele é que se deve pedir conselho

"Também é preciso afastar das deliberações os homens carnais, aos olhos de quem a sabedoria de Deus passa por tolice.

"Também o Eclesiástico diz, com uma ponta de ironia (XXXVII, 12): "Não consultes um homem sem religião sobre as coisas santas, um homem injusto sobre a justiça... Nunca te aconselhes com estes sobre tais coisas. Mas sê assíduo junto a um homem piedoso', é a ele que é preciso pedir conselho, se em tal caso, há esclarecimentos desejáveis" (São TOMÁS DE AQUINO, L'Entrée en Religion, Éditions du Cerf, Juvisy, 1935, pp. 79 a 83, 88 a 96 ?Imprimatur: J. Lecouvet, Vic. gen., Tornaci, 1910-1935).

132. "A vocação religiosa deveria ser abraçada ainda que viesse do demônio, porque sempre se deve seguir um bom conselho ainda que nos venha de um inimigo"

De um escrito de São João Bosco (1815-1888), apresentando aos Salesianos suas Regras, que a Santa Sé aprovou em 1874:

"O estado religioso é um estado sublime e verdadeiramente angélico. Os que por amor de Deus e por sua salvação eterna sentem em seu coração o desejo de abraçar esse estado de perfeição e de santidade, podem crer, sem dúvida, que tal desejo vem do Céu, porque é por demais generoso e está muito acima dos sentimentos da natureza.

"E não temam que lhes faltem as forças necessárias para cumprir as obrigações que o estado religioso impõe; tenham pelo contrário grande confiança, porque Deus, que começou a obra, fará com que tenham perfeito cumprimento estas palavras de São Paulo: Quem começou em vós a boa obra, aperfeiçoá-la-á até o dia de Jesus Cristo (Phil. I, 6).

"E note-se – diz o angélico doutor São Tomás – que "as vocações à vida mais perfeita devem seguir-se prontamente'. Em sua Suma Teológica (II-II, q. 189, a. 10) levanta o problema se é bom entrar na vida religiosa sem o consentimento de muitos e sem longa deliberação, e responde que sim, dizendo que o conselho e a deliberação são necessários nas coisas que não se tem certeza que sejam boas, mas não nesta, que é certamente boa, porque a aconselhou o próprio Jesus Cristo em seu Evangelho.

"Coisa singular! os homens do mundo, quando alguém quer entrar para um Instituto religioso para se dar a uma vida mais perfeita e mais segura dos perigos do mundo, dizem que se requer para tais resoluções muito tempo, a fim de assegurar-se de que a vocação vem realmente de Deus e não do demônio. Mas não falam certamente assim quando se trata de aceitar um cargo honorífico no mundo, onde há tantos perigos de perder-se.

"Longe de pensar assim, São Tomás diz que a vocação religiosa deveria ser abraçada ainda que viesse do demônio, porque sempre se deve seguir um bom conselho ainda que nos venha de um inimigo. E São João Crisóstomo assegura que Deus, quando se digna fazer semelhantes chamados, quer que não vacilemos nem um só momento em os executarmos.

"Em outro lugar diz o mesmo Santo que, quando o demônio não pode dissuadir alguém da resolução de consagrar-se a Deus, faz pelo menos todo o possível para que adie sua realização, já tendo grande vitória se consegue que a difira por um só dia e até por uma só hora. Porque depois daquele dia e daquela hora virão novas ocasiões e não lhe será muito difícil obter maior dilação, até que o jovem chamado, achando-se mais débil e menos assistido pela graça, ceda de todo e abandone a vocação" (São JOÃO BOSCO, Obras fundamentales, BAC, Madrid, 1979, 2.} ed., pp. 644-645).

133. "Será melhor não pedir conselho aos pais, quando faltar a estes o necessário conhecimento dessas coisas"

Da renomada Summa Theologiae Moralis, publicada em 1897 pelo Pe. H. Noldin SJ (1838-1922) e revista a partir da 17.} edição pelo Pe. A. Schmitt SJ – ambos professores de Teologia Moral na Universidade de Innsbruck – em edição novamente revista pelo Pe. G. Heinzel SJ, professor de Direito Canônico na mesma Universidade:

" "Sobretudo no que se refere à escolha do estado de vida, quer matrimonial, clerical ou religioso, os filhos, mesmo menores, são livres, por direito natural' (cfr. Pio XI, encíclica Casti Connubii, D. 2276; e Pio XII, Mensagem radiofônica de 24 de dezembro de 1942, D. 2286).

 "Mas estão sub gravi ordinariamente obrigados a consultar os pais tanto sobre o casamento como sobre a pessoa eleita. Mas de si não estão obrigados a seguir seus conselhos. (...)

"Quanto à vocação clerical ou religiosa, será melhor não pedir conselho aos pais, quando faltar a estes o necessário conhecimento dessas coisas. Basta, feita enfim a escolha, pedir-lhes o consentimento, o qual se negarem, então mais se deverá obedecer a Deus que chama do que aos pais que obstam.

"Mais. Se previrem que os pais injustamente procurarão impedir, os filhos a não sabendas deles podem abraçar o estado escolhido.

"Por isso pecam gravemente os pais que forçam os filhos a entrar em religião ou, sem justa razão, a casar-se. Do mesmo modo pecam gravemente se, sem causa justa, impedem seus filhos de entrar em religião ou de contrair matrimônio. Pois é uma grave injúria privar alguém da liberdade que o Autor da natureza deu a cada pessoa a respeito (da escolha) do estado de vida" (NOLDIN-SCHMITT-HEINZEL SJ, Summa Theologiae Moralis, Felizian Rauch, Innsbruck, 1963, 34ª. ed., vol. II, pp. 255-256 / Imprimatur: Administratura Apostolica, Oeniponte, 7-1-1962, N. Weiskopf, Provicarius).

134. Muitas vezes, para vantagem própria, os pais se transformam em inimigos

Da já citada Theologia Moralis, dos Redentoristas Aertnys-Damen:

"Esses mesmos filhos (menores) têm obrigação de, pelo menos, pedir conselho e assentimento aos pais?

"Quanto à escolha do estado religioso não têm obrigação, e nem convém pedir conselho aos pais, porque nesta questão eles não têm experiência, e muitas vezes para vantagem própria se transformam em inimigos. Entretanto, se há previsão de que os pais certamente não se oporão, é justo que os filhos não partam sem sua bênção; diferentemente, se há provável perigo de injustamente impedirem a execução de sua vocação.

"Nota: Em muitos países, segundo as leis civis, os pais podem recorrer ao auxílio do braço secular e forçar a volta de seus filhos menores para junto de si, estejam onde estiverem. Neste particular deve-se pois proceder cautamente com esses filhos" (AERTNYS-DAMEN CSSR, Theologia Moralis, Marietti, 1950, 16.} ed., t. I, p. 438 / Nihil obstat: Taurini, 10-1-1950, Sac. Josephus Rossino, Rev. Deleg.; Imprimatur: C. Aloysius Coccolo, Vic. Gen.).

135. Às vezes é mais prudente ocultar aos pais a vocação, e executar a vontade divina

Do já referido Compêndio de Teologia Moral, dos Jesuítas Padres Gury (1801-1886) e Ferreres (1861-1936):

"Podem os filhos abraçar o estado religioso a não sabendas dos pais?

 "Per se, sim. Mais ainda, o filho age às vezes mais prudentemente se, sentindo-se divinamente chamado para o estado religioso ou clerical, e percebendo que os pais lhe vão injustamente interceptar o caminho, lhes ocultar a decisão e executar a vontade divina. Isto contudo, não é de se aconselhar aos filhos menores, toda vez que o assunto não for assim tão urgente, ou não se estiver suficientemente certo da vocação divina (cfr. S. Alph., l. 4, n. 68)" (GURY-FERRERES SJ, Compendium Theologiae Moralis, Eugenius Subirana Pontificius Editor, Barcelona, 1915, 7.} ed. espanhola, t. I, p. 266 ?De ordinarii licentia).

136. "Deveis temer mais àqueles que talvez vossa carne resista em considerar como inimigos"

Da já citada obra do Pe. José Xifré (1817-1899), amigo de Santo Antonio Maria Claret e co-fundador da Congregação Claretiana:

"O interesse material, como acabais de ver, é para o Missionário um inimigo muito temível (...). Entretanto, estimados irmãos, deveis temer mais àqueles que talvez vossa carne resista em considerar como inimigos, e que não obstante são os que em todo o tempo mais resistência opuseram à vocação religiosa e a muitos fizeram apostatar da própria Religião; tais são os pais.

"Por isso os canonistas e teólogos declararam que os filhos são livres na eleição de estado, e São Ligório com São Tomás acrescenta que, por razão de perigo, tratando-se de vocação religiosa, os filhos não devem consultar os pais.

"Efetivamente, vemos todos os dias que se os filhos escolhem uma profissão ou estado qualquer e mesmo pretendem ou querem ir a países longínquos, com tudo consentem os pais, por mais que disso resultem muitas vezes prejudicados, ou nada possam esperar dos filhos; mas logo os vereis terríveis contra os mesmos filhos, até negar-lhes não poucas vezes o que lhes devem em justiça, se querem entrar para a vida religiosa.

"Por isso o próprio Deus, sempre que chamou alguém à vida perfeita ou apostólica, logo exigiu dele o desprendimento dos parentes, e também do sangue; e para que melhor o vejais, refleti sobre os textos que transcrevo a seguir: "Quem disse a seu pai e a sua mãe: eu não vos conheço; e aos seus irmãos: eu não sei quem vós sois (...), estes observaram a tua palavra e guardaram o teu pacto' (Deut. XXXIII, 9); "Se algum vem a Mim e não aborrece seu pai e mãe e mulher e filhos e irmãos e até a sua vida, não pode ser meu discípulo' (Lc. XIV, 26); "Quem – diz em outro lugar Jesus Cristo – ama o pai ou a mãe mais do que a Mim, não é digno de Mim'; e certamente amaria mais aos pai que a Jesus Cristo aquele que por um amor natural ou carnal por eles, deixasse, ou não seguisse, a divina vocação.

"Vede, irmãos, como falou o próprio Jesus Cristo àquele que – chamado a segui-Lo como discípulo (ou seja como Missionário, o que era o mesmo) – desejava e suplicava alguns dias de dilação para enterrar os pais que haviam morrido. Certamente parece racional o motivo; e não obstante nega-o seriamente e lhe diz que deixe essas coisas para os do mundo.

"Ademais, Ele mesmo quis dar-nos exemplos disso; se bem que tivesse uma Mãe que em nada se Lhe teria oposto, contudo não Lhe disse nada quando por vontade do Pai ficou no Templo, sendo que conhecia muito bem a amargura que isso causaria a Ela. E quando a mesma Mãe que com tanta dor O procurara por três dias O encontrou e Lhe manifestou sua tristeza e a de seu pai, respondeu-Lhe Jesus que não tinha por que procurá-Lo; porque Ele devia dedicar-Se às coisas a que O chamava seu Pai; e é de notar que a Virgem não O encontrou entre os parentes e conhecidos, para que entendêssemos que não encontraremos a Jesus entre os da carne e sangue" (Pe. JOSÉ XIFRÉ, Espíritu de la Congregación de Misioneros Hijos del Inmaculado Corazón de María, Imprenta de la S. E. de S. Francisco de Sales, Madrid, 1892, pp. 95-96).

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