Capítulo I
Falsa calma que resulta de uma heresia
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Posso expor em poucas palavras a ligação desta concepção fria diante da vida com a heresia da gnose.14 Ela equivale à ideia gnóstica de que a Criação foi um mal, e o homem não deveria ter sido criado. Os gnósticos não aceitam a ideia da Criação, julgam que o homem é uma partícula que se desprendeu de Deus, resultante de um desastre que houve em Deus. E concluem que, “uma vez que nasci de um erro de Deus, devo querer manter-me numa espécie de nirvana15 ou de nada, até o momento feliz em que possa me reincorporar em Deus. O resto desse tempo eu fico boudeur”. Reincorporar-se em Deus quer dizer deixar de existir, e aí está inteira a perversidade da gnose.16
Se imaginarmos um despojamento gradual de tudo aquilo em que as pessoas puseram o prazer de sua vida, teríamos algo como o que há na Rússia contemporânea,17 onde existe a impossibilidade completa de reagir. Resignam-se com a inutilidade de fazer outra coisa e ficam gemendo estupidamente. Não têm mais nada que dê alegria, a alegria desapareceu. Ao longo do caminhar da vida, essas pessoas ficam completamente surradas e perdem a reatividade. Como vão ser os filhos delas? E os netos? Que resulta disso na mentalidade coletiva dos homens? É uma espécie de ponto vazio, ponto morto, em que uma sensação interna pseudo-prazenteira ainda é um raio de luz que penetra. 14. Gnose: Sistema de filosofia religiosa, cujos adeptos pretendem ter a ciência completa da natureza e dos atributos de Deus e da natureza. Os gnósticos existiram na Antiguidade, e se distribuem por cerca de setenta seitas. 15. Nirvana: contemplação budista, com a extinção da individualidade e sua absorção no supremo espírito do universo. 16. 25-9-1986. 17. Esta conferência foi pronunciada em 1986. |