Capítulo VII

 

 

Como se perde a tranquilidade

 

 

 

 

 

 

O prazer devora quem a ele se entrega, desde que fora da medida razoável (Plinio Corrêa de Oliveira)69

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Neste capítulo

Como se perde a calma? Entre as causas mais frequentes estão a pretensão e a intemperança.70

Que é propriamente a pretensão? A palavra vem do verbo pretender. É pretender ter tal qualidade ou desejar parecer ter tal qualidade, sem possuí-la. Uma má vontade para com os outros; tristeza pelo bem que lhes sucede; alegria pelo mal que lhes acontece; e uma indiferença completa pelos que estão fora do circuito da pretensão, ou seja, fora de seu próprio teatrinho.71

A intemperança é a falta de moderação na busca do prazer. São formas de intemperança a sexualidade e a futrica (a “politicagem” permanente com seus próximos), entre outras.

Quem é despretensioso é estável, não se agita, tem serenidade. A serenidade não é simplesmente a calma, é o oposto da inquietação.

O significado de pretensão

O que é propriamente a pretensão? A palavra vem do verbo pretender. Alguém pode achar ou pretender que tem tal qualidade. Acha, presume, imagina, entende, afirma perante si, para consigo mesmo, e quer que os outros também considerem que possui tal qualidade.

duas espécies de pretensões: a fundada e a infundada. Um indivíduo pode pretender, por exemplo, que é um grande pintor. Se ele o é de fato, diz-se que a pretensão dele é justificada, ou seja, razoável. Pode pretender um cargo para o qual tem capacidade, e se diz que a sua pretensão de ocupar tal cargo é justificada, razoável.

A palavra pretensão, considerada em si mesma, pode ter um sentido legítimo, até elogioso, mas habitualmente tomou significado pejorativo. Não designa um estado de espírito em sua faceta mais legítima, mas em seu mau aspecto. E então se diz que um indivíduo é pretensioso quando, do fato de pretender algo, mesmo legitimamente, põe nisso apego, arrogância, petulância, tendência a exagerar o valor daquilo que tem. Embora tenha o que alega ter, ele exorbita o valor disso a seus olhos ou diante dos outros. Entra, portanto, certa desordem dentro da pretensão.

Características da despretensão

Uma característica da despretensão é a estabilidade. Quem é despretensioso é estável, não se agita, tem serenidade. A serenidade não é simplesmente a calma, é o oposto da inquietação. Nos imponderáveis da língua portuguesa, serenidade é mais do que calma. É uma forma de calma requintada, prolongada e com bem-estar. A despretensão propicia isto. O indivíduo não pretende ser mais do que é. Sabe também que não é menos, e se apresenta tal como é.

A despretensão leva à afabilidade. O despretensioso é afável, normalmente acolhedor. Quando procurado, tende a atender bem, e quando se lhe pede alguma coisa, é propenso a dar. É propenso a concordar, a combinar com os outros, sem ser um cretino ou um “Sr. Ligação” idiota. Não é um bobo, mas no que é razoável concordar, é propenso a fazê-lo.

Por oposição à desconfiança, o despretensioso  é perspicaz sem sobressaltos. Qual a diferença entre ser desconfiado e ser perspicaz? O desconfiado é agitado. Já o perspicaz é calmo, tranquilo, analisa as coisas com frieza. Tem uma forma de lucidez sem sobressaltos, sem sustos. Vai vendo com calma, com normalidade.

Além disso ele é propenso à confiança na Providência, que é o contrário da “torcida”. Ele pensa: Deus me dará, e o que for das vias de Nossa Senhora eu receberei. Não há razão para torcer.

O disfarçado e o ridículo

A desordem da pretensão pode ser dupla: ou o indivíduo exagera o valor do que tem ou se apega a um valor que não tem. Esta última seria a pretensão pior. Uma vez que é agradável imaginar que tem, mente para si mesmo ou para os outros, toma atitudes, ares, modos de quem teria aquilo, para incutir no espírito dos outros uma superioridade inexistente. Neste caso, é a desordem levada ao auge. Não é apenas um exagero, mas a desordem transformada em mentira.

Por esse mundo afora, havia um rapaz do interior, de uma cidade aonde iam poucas pessoas da capital. Contava que era filho de um fazendeiro, cuja fazenda era muito grande. Gabava-se, enquanto dizia: “Tenho pena de meu pai, com aquele fazendão enorme para carregar. É duro ser dono de uma fazendona dessas, é muita responsabilidade. Nas férias eu o ajudo. Estou preocupado, porque não sei o que será de nós, quando herdarmos uma fazenda tão grande. Ainda somos tão moços...”. Ele disfarçava a própria gabolice, atribuindo ao pai a qualidade que desejava que os outros vissem nele.

Quando se tirou a limpo as coisas, o pai dele tinha uma modesta e pequena farmácia no local, e nem tinha fazenda. A fazenda talvez existisse na imaginação dele. Blefes assim uma pessoa pode fazer, mas a maioria não vai tão longe, por falta de coragem para aventuras dessa natureza.

O calmo repouso da temperança72

Analisando mais a fundo, verificamos que as coisas capazes de nos pôr em desordem, por causa do pecado original, são desejadas de um modo desregrado e mais intenso do que a razão mandaria desejar.

Circunstâncias da história de cada um, do ambiente em que vive, por vezes fazem com que esse apetite desregrado se acentue ainda mais. Então vêm a ebulição, as agitações, os medos, as dúvidas, a timidez, as ousadias, as investidas diretas. Vem tudo aquilo que é o tumultuar de uma paixão dentro do homem. São os pontos doloridos. Uma pessoa exprimiu isso de modo muito engraçado: “Certa gente tem uma espécie de calo na cabeça, um ponto dolorido. Se uma ideia passa e raspa naquele calo, ela estremece”.

Ao lado disso, em outros pontos cada pessoa é muito equilibrada. Isto varia dentro de cada um de nós. Portanto, a natureza de cada um de nós tem muitos apetites errados, mas ao mesmo tempo desejos equilibrados e corretos. Em alguns desses pontos somos temperantes, gostamos da coisa na medida em que é correto, podendo deixá-la na medida em que não o é, e não temos a ela nenhum apego extraordinário, nenhum apego irregular. Pode mesmo ser um apego grande, mas não irregular, não há vibração doentia. De outro lado existe a intemperança, que é o gosto destemperado, agitado, vivo, febril.

Daí tiramos uma filosofia do prazer. Existem na vida dois modos de ter prazer: um procede das coisas de que se gosta temperantemente; outro, das coisas que nos agradam intemperantemente. Existem, por exemplo, tipos extraordinariamente gananciosos, cujo maior prazer na vida é ter dinheiro. Falam em cinco telefones ao mesmo tempo, mergulham em toda essa agitação econômica moderna. Mas pode ser que tenham ao mesmo tempo certos prazeres temperantes: gosto de um bom jardim, agrado em passear, etc.

Poderíamos estabelecer algumas categorias de homens quanto à temperança: em primeiro lugar, os que dominaram a intemperança, não consentem em nenhum prazer intemperante, e por isso são capazes de encontrar prazer nas coisas temperantes que a vida nos oferece. Por exemplo, um homem que era dominado pelo desejo do dinheiro controlou esse desejo e o tem moderadamente, divertindo-se com coisas que não lhe dão aquela agitação e falta de fôlego.

Outra categoria de homens tem prazeres intemperantes, mas ainda conserva certo gosto das coisas temperantes. Há um estadista que suponho estar dentro desta linha [não mencionou o nome]. Tenho a impressão de que, além de algumas pavorosas intemperanças, como ele tem uma natureza muito rica, ainda gosta prodigiosamente de coisas temperantes. Tem toda espécie de prazeres e tem horas horrorosas, mas depois pinta a sala e vai ver uma conchinha do mar. Tudo aquilo para ele é um prazer para sua natureza rica, excepcionalmente bem dotada.

Outro tipo mais fraco tem mentalidade mais pobre, personalidade mais débil. Cede ao prazer intemperante, e o que não for esse tipo de prazer não tem graça, só gosta do prazer intemperante. Vamos dizer que este prazer intemperante seja o dinheiro. Ele acaba sendo desses avarentos horrorosos, cujas histórias lemos ou vimos em pinturas: casa cheia de teias de aranha, ratos correndo, pendurada na janela uma cortina corroída e rasgada. Ele já não cuida de si, tem as unhas aduncas, cabelos compridos e ar delirante, olhando para os baús cheios de ouro.

O que essas histórias e desenhos querem exprimir? O fracasso de um homem, cuja natureza não  é suficientemente rica para ele gostar de entesourar dinheiro e ao mesmo tempo apreciar outras coisas. Para ele a vida é só a dinheirama. Ele é sujo, está cheio de pulgas e de vermes, a casa dele está um horror, mas nem repara naquilo, pois tem dinheiro.

A “futrica” e a sexualidade

Há pessoas para as quais o prazer do sexo é o único que interessa. No fundo, só as diverte aquilo que é sexo ou pequena politicagem. A “futrica” - no esporte, na política, em qualquer outro tema - é a única coisa para elas além do sexo. Essas pessoas não encontram graça em mais nada. Panoramas, gosto da vida, nada lhes interessa. Nas horas vagas, passam como toxicômanos a digerir o efeito de seus tóxicos, até o momento em que, tomados por uma agitação de macaco, se metem numa dança de carnaval.

Há também o homem dado a ficar longamente pensando em coisas vácuas, inconsistentes e imaginativas. É propenso aos sonhos de olhos abertos a respeito daquilo de que mais gosta: divagações, langores, longos silêncios, e depois o palavreado desordenado. Inclina-se a fazer daquela exacerbação, daquele nervosismo, daquela procura, o centro afetivo de sua existência. Geralmente a saúde das pessoas assim decai rapidamente, perdem o equilíbrio psíquico e facilmente se tornam apáticas.

Pessoas assim são intemperantes, com todas as exaltações, todas as irregularidades, todas as fraquezas que a intemperança traz consigo. É próprio ao intemperante achar tedioso o que não esteja na linha da sua intemperança. É tedioso tudo que não seja vibrátil de acordo com a vibração dele, ou que seja equilibrado, calmo. Os livros se tornam tediosos, mesmo sendo muito interessantes, pois a cobra que ele tem dentro de si o leva para o outro lado. A conversa mais agradável pode ser muito interessante enquanto não desperta dentro dele a mosca azul73 e não o pica com seu veneno. Tudo que está fora da linha de sua intemperança é tédio. Considera tédio a posição de calma e tranquilidade, em que se goza sadiamente das coisas, se fazem coisas sérias, com luta, sofrimento e oração.

Essa intemperança é susceptível de crescer com o homem. Quem era intemperante aos dez anos vai sê-lo ainda mais aos quinze, mais aos vinte, e aos cinquenta estará no máximo da intemperança. Aos sessenta já vai ser velho, pois o intemperante envelhece depressa. Dir-se-ia que aos sessenta já acabou a intemperança. Não acabou, foi ele que acabou. É como o câncer ou a lepra, quando tomam conta do corpo inteiro e a pessoa morre. Acabou a lepra? Não, acabou o homem, pois a lepra venceu.

Qual é o cúmulo da intemperança? Basta imaginar um velho com bochechas chupadas, olhar bambo, pernas bambas, um resto de lubricidade para as meninas de quinze anos que passam. Já não entende o jornal que lê, nem percebe mais a letra que tem diante dos olhos, mas lhe resta ainda um pouco de vida para ligar um rádio entre duas sonecas, ouvir uma canção de carnaval e pensar: aquele povo do Rio ainda sabe gozar a vida.

A intemperança de um povo

O fenômeno de crescimento da intemperança dá-se também no povo. Assim como a intemperança pode ir tomando conta de um homem e acabar por consumi-lo, tudo isso que dissemos da psicologia de um homem pode dizer-se da psicologia de um povo. Mas se a decadência do homem se passa ao longo dos anos ou décadas de sua vida, a decadência psicológica e moral de um povo se faz ao longo de séculos.

O povo tem seu ponto principal de intemperança, que vai crescendo nele ao longo das gerações. Cada geração vai sendo mais intemperante que a anterior, e o povo acaba sendo destruído pela intemperança na sua velhice. O homem fica velho quando tem muitos anos, mas o povo só envelhece pela intemperança. Para um povo, tornar-se intemperante é envelhecer.

Quando um povo fica velho, pode-se dizer que está no auge de sua intemperança. Não há outra forma de velhice para os povos, a não ser a intemperança. De excitação em excitação, é possível guiar as intemperanças de um povo, como quem guia um burro faminto mostrando-lhe o capim, mas avançando adiante dele com o capim na mão. O burro vai atrás do capim, e assim se traça o itinerário dele.74

Notas:

69. 28-3-1972.

70. Intemperança: falta de temperança (vide nota 72).

71. 12-3-1969.

72. A temperança é uma das quatro virtudes cardeais. É “uma virtude moral sobrenatural que modera a atração para o prazer sensível, sobretudo para os prazeres do gosto e do tato, e o contém nos limites da honestidade” (Ad. Tanquerey, Compêndio de Teologia Ascética e Mística, Livraria Apostolado da Imprensa, Porto, 1961, nº 1099).

73. Mosca azul: referência a uma antiga lenda. Diz-se que a picada da mosca azul inocula nas pessoas doses concentradas de ambição e vaidade.

74. Conferência sem data, feita em 1954.

Adiante

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