Capítulo VI

 

 

A “distância psíquica”

 

 

 

 

 

 

 

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Neste capítulo

É preciso termos distância em relação às coisas. Não ir correndo atrás delas, nem gostar que elas venham correndo atrás de nós. Pensar antes de agir, numa atmosfera calma, recolhida e tranquila.

É o que se pode chamar de distância psíquica – grau de distanciamento emocional mantido em relação a uma pessoa, um bem ou grupo de pessoas. É uma distância interior, análoga mas diversa da distância física. Pode-se estar junto de um objeto, mas conservar a distância psíquica em relação a ele.50

É necessário pensar de modo prático e concreto, para que aquilo que se faz seja bem feito. Mas, ao mesmo tempo, isso deve ser acompanhado de um pensamento elevado, pois toda coisa prática, vista no fundo, se relaciona com problemas gerais de ordem universal, que têm uma beleza própria incomparável. 

Animam suam in manibus suis semper tenens, placide obdormivit in Domino - Conservando sempre sua alma entre suas mãos, adormeceu placidamente no Senhor (lápide do túmulo de São Frei Galvão)

O remanso51

É preciso aproximar-se das coisas que compõem a vida quotidiana, mas com a majestade com que um grande couraçado atraca num cais, não como qualquer lanchinha. O grande couraçado faz um movimento lento e digno ao se aproximar do porto, e assim devemos nos acercar da realidade. Nada de corre-corre nem de frenesi.52 A sabedoria prescreve que se faça sem excitação o que for necessário; com distância psíquica,53 isto é, numa atmosfera calma, recolhida e tranquila, na qual seja possível pensar antes de agir.

Na visão católica, sempre que se aprofunda alguma matéria, não se encontra um precipício, mas o Céu. No fundo de cada perspectiva está uma estrela, não um abismo, uma cobra ou um dragão. É questão de saber aprofundar bem.54

Há ocasiões em que toda a sensação de perigo se afasta, o homem se distende inteiro, e nessa distensão as coisas retornam à sua verdadeira hierarquia. É propriamente o que chamo de remanso. Na atividade febricitante, pelo contrário, isso não acontece.

Um comerciante pode passar o dia inteiro trabalhando no seu comércio. Quando as atividades comerciais estão encerradas, ele chega à noite em casa e entra num ambiente tão diferente da sua casa comercial, que fica como que forçado a não pensar mais nos negócios. A agitação comercial cai, a hierarquia de valores se restabelece, e então ele é capaz de distância psíquica. Não tem distância psíquica quem não tem recolhimento, quem não tem remansos.55

Clemenceau e a distância psíquica na vitória

No fim da Primeira Guerra Mundial, quando chegou a Paris a notícia de que o armistício com os alemães tinha sido assinado, e que portanto a França, a Inglaterra e os Estados Unidos estavam vitoriosos sobre os impérios centrais, um graduado militar francês foi dar a notícia a Clemenceau, presidente do Conselho de Ministros e considerado um dos principais artífices da vitória.

Clemenceau residia numa casa cercada por um jardinzinho. Por volta das cinco horas, o oficial entrou em seu quarto e lhe comunicou a vitória. Ele comentou o acontecimento, e estava muito satisfeito. Em seguida se vestiu, e pouco tempo depois estava fazendo o que fazia todos os dias de manhã: arranjar as flores de seu jardinzinho. Só depois disso ele foi para o Ministério. A notável distância psíquica desse homem indica enorme domínio de si. Ele sabia que o dia seria para ele uma jornada de glória, e de fato foi aplaudido pelas multidões. Era o grande dia da vida dele, mas como a cidade ainda dormia, e não havia manifestação nenhuma, foi calmamente tratar do jardinzinho.

Acho este um exemplo de distância psíquica simplesmente notável, muito diferente do que se poderia imaginar de outro grande homem qualquer quando recebesse a grande notícia de sua vida.

Para um católico, seria aquele o modo ideal de agir em semelhantes circunstâncias? Não, o modo ideal é levantar-se, dar graças a Nossa Senhora, ficar bastante tempo em oração, em seguida ir comungar. Seria esta a posição religiosa correta, evidentemente. Mas o que eu quero mostrar aqui é a distância psíquica de que esse revolucionário deu prova. Como tal, é interessante.56

No Santo Sepulcro, São João dá precedência a São Pedro

“E chegou primeiro ao sepulcro. Inclinando-se, viu os lençóis postos no chão, mas não entrou”.57 Note-se que o amor levou São João a ir depressa, e o mesmo amor levou-o a dar precedência àquele a quem Nosso Senhor tinha concedido a precedência. Não entrou, esperou que São Pedro entrasse primeiro. Bem no seu início, está aqui o espírito hierárquico da Igreja. São João havia corrido para chegar ao sepulcro, mas não era um correr sem distância psíquica. Era um correr cheio de ordem, uma pressa cheia de falta de pressa. Ele era tão equilibrado, tão santo, que parou na hora de chegar, segurando a própria alma nas mãos – animam suam in manibus suis semper tenebat.58 Parou e esperou São Pedro chegar. Quanto respeito, quanta reverência!59

 

A visão de São Pio V sobre o triunfo em Lepanto

São Pio V e a batalha de Lepanto60

São Pio V estava no Vaticano, a grande distância dos inimigos e dos acontecimentos, numa situação que as gerações mais novas facilmente reputariam aflitiva. Para essas novas gerações, um Papa envolvido numa batalha, que está transcorrendo longe, deve ficar excitado. Se não ficar, é porque é meio apalermado e não compreendeu a situação. Deveria estar arrancando os cabelos, excitando-se pelos corredores do Vaticano e mandando vários emissários atrás das notícias, protestando porque estas não chegavam.

São Pio V estava sumamente empenhado em que a batalha fosse ganha, mas mantinha-se sereno. O que fazia ele na hora em que deveria se dar a batalha? Examinando a prestação de contas do Vaticano. Enquanto a luta se travava, ele via com atenção as contas, porque era matéria de pecado mortal se não o fizesse. Se alguém roubasse algo da Igreja devido a alguma falta de atenção, ele seria conivente com o ladrão, mas um santo nunca brinca com matéria de pecado mortal.

O Papa portanto dava àquele assunto todo o interesse necessário, mas de repente, como que tocado por um anjo, tem noção de que Nossa Senhora lhe quer dizer algo. Vai para diante de uma janela e tem um êxtase. Depois volta com a mesma simplicidade e dá a notícia: “Dom João61 venceu em Lepanto”.62

Reunião do conselho da Ordem de Malta

Nesta gravura, pode-se observar a calma do Grão Mestre, sua distância psíquica e seu olhar meio oblíquo. Não está olhando para ninguém, mas tem a difusa desconfiança de quem examina esse grupo que está aí. Desconfiança difusa, pois trata-se da desconfiança do chefe preocupado com a possibilidade de que em algum lugar da muralha surja de repente um adversário. A fisionomia dele está dizendo: Tu quoque?63 O domínio que ele exerce sobre todos é feito dessa distância psíquica.

O Grão Mestre é um tipo esplêndido. Há nesse velho uma magnífica teoria do mando, e do mando numa ordem militar e sacral. Ele é inteiramente um militar, não há dúvida, pode-se imaginá-lo combatendo a qualquer hora. O corpo dele é de militar, a fisionomia é de um general, mas o olhar é de um homem de pensamento, de ação, de um diplomata. Nada descreve melhor um Grão Mestre da Ordem de Malta do que este quadro.64

 

O leão como símbolo da serenidade

Não consegui encontrar uma definição da palavra serenidade que me agradasse inteiramente, por isso não vou dar uma definição, mas fazer uma descrição. Uma imagem inteiramente adequada dessa qualidade é o leão. Quando ele ruge, até as águias e as formigas fogem, as cobras se encolhem e ele domina a natureza. Mas depois que rugiu o necessário, ele se deita, cruza as patas e fica olhando. É muito interessante que ele repousa com as patas cruzadas uma sobre a outra. Nas fotografias de leão repousando, pode-se notar que ele se entretém e se distrai agradavelmente. O curioso é que, sendo o leão um bicho, não tem pensamento, mas o jeito dele quando repousa é como se estivesse pensando, ao modo do homem quando repousa.

No que pensa o homem quando repousa? Não pensa nas coisas fatigantes. Aspectos vários da vida passam diante dele, ele olha e reflete um pouco. No leão em repouso, a “memória” de tudo o que ficou para trás desapareceu. A única coisa que fica é certo instinto adequado para reagir quando houver algo esquisito. Se isso ocorre, o olhar dele torna-se atento. E se na mata em torno algo se move de modo suspeito, sua atitude é de vigilância, mas passa da inércia para a vigilância com naturalidade. Ele inteiro estava inerte, mas se algo de esquisito ou de apetitoso se move no meio do mato, ele olha para aquilo, e em certo momento se mobiliza todo, mas ainda não se move.

Num terceiro momento, pula sobre a presa. Não se atrasa, nem tem preguiça de fazer isso. Não tinha perdido a distância psíquica no repouso, como se dissesse eu agora não vou me levantar, vou deixar passar aquela coisa apetitosa. Não! É apetitoso, e para isso ele é leão. Salta, depois acaba de triturar um gato-do-mato qualquer que ele caçou, e volta para o repouso. É uma imagem da serenidade pensativa, cogitativa, sem cansaço.65

 

Nossa Senhora na Anunciação

Diz o texto do Evangelho: “Entrando o Anjo onde ela estava”.66 A frase dá a impressão de que era um lugar recolhido, isolado; a ação de entrar indica muito a ideia de recolhimento, de clausura, de algo que não se viola.

Nossa Senhora estava sozinha, e isso é o cúmulo do que o mundo detesta: a pessoa sozinha, isolada, desconhecida; considerada decadente, o que é pior ainda; e rezando no seu isolamento. É para essa pessoa que vem a mensagem.

Pode-se pensar no anjo que paira nos mais altos paramos celestes, que recebe uma enorme missão, e que vai para onde menos se poderia imaginar: um lugarejo, um casalzinho, uma mulher que está trancada no seu quarto; e para ali ele leva a mais importante mensagem da História. Tudo isso fica indicado na linguagem do Evangelho, e é muito bonito ver como o texto sugere essas informações.

Imagina-se que o anjo desce inteiramente tranquilizador, inteiramente afável, pacífico, mas não foi assim. Em todas as visões de Nossa Senhora que tenho lido, repete-se isso: há algo de terrível no aparecimento da visão, que incute medo. A ideia da afabilidade e bondade vem, mas a que fica é a de medo. Os meninos de Fátima sentiram medo, as crianças de La Salette também. O mesmo se deu com Santa Bernardette Soubirous. A desproporção de duas naturezas diferentes é tão fabulosamente majestosa, que produz medo. Depois da saudação do anjo, a reação. Qualquer outra pessoa poderia pensar: “Agora compreendem o valor que tenho, e afinal me fazem justiça”. O Evangelho diz que Nossa Senhora, “tendo ouvido essas palavras, turbou-se, e discorria pensativa sobre que saudação seria essa”.67 É uma manifestação de distância psíquica maravilhosa. Turbou-se com essas palavras, ou seja, conservou atenção suficiente para entender o conteúdo do que era dito, e isto a perturbou.

“E discorria pensativa” – Eis uma bonita expressão para indicar a análise ponto por ponto. Ela analisou pensativa a mensagem, perguntando a si mesma que saudação seria essa, o que significava aquilo. O espírito de Nossa Senhora é que algo tão elevado, e com todas as características de vir de Deus, exige uma análise racional, palavra por palavra, do conteúdo daquilo que lhe era dito.

Devemos ser assim também. Não perder a cabeça, mesmo diante da coisa mais pasmosa, mais inesperada, mais maravilhosa: discorrer pensativo sobre aquilo.68

Notas:

50. Do inglês psychic distance.

51. Remanso é uma espécie de enseada que o rio faz. Suas águas continuam a correr, mas ali andam mais devagar.

52. 19-11-1971.

53. Ver definição na introdução a este capítulo.

54. 3-11-1968.

55. 29-4-1967.

56. 9-1-1969.

57. Jo. 20, 5.

58. Frase tumular de Santo Antonio de Sant’Ana Galvão, no Convento da Luz (São Paulo).

59. 5-4-1969.

60. A batalha naval de Lepanto, entre católicos e muçulmanos, deu-se em 7 de outubro de 1571.

61. Dom João d’Áustria era o condestável das forças cristãs, e foi o vencedor da batalha de Lepanto, com a qual entrou em declínio o poder maometano.

62. 24-5-1971.

63. Tu quoque, Brute, fili mi? (Tu também, Brutus, meu filho?) Frase atribuída a Júlio César, no momento de ser assassinado por Marcus Junius Brutus.

64. 27-9-1967.

65. 5-7-1986.

66. Lc. I, 28.

67. Lc 1, 29.

68. 25-3-1965.

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