Capítulo VIII

 

A calma, o nervosismo e o entretenimento

 

 

 

 

 

 

 

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O melhor serviço que os nervos podem nos prestar é não deixar que tenhamos ideia de que eles existem. (Plinio Corrêa de Oliveira)75

Neste capítulo

A placidez supõe um mínimo de entretenimento. A única coisa verdadeiramente entretida na vida é tomar contato com um valor superior, o que dá uma impressão ao mesmo tempo empolgante, atraente e difícil de exprimir.

Dir-se-ia que um copista medieval exercia uma ocupação monótona e apagada. Mas numa ilustração da época se nota que aos poucos, por esse trabalho tão despretensioso, na pena do mestre vão aparecendo os valores superiores que dão à vida seu verdadeiro entretenimento.

Em comparação com a santa e entretida placidez medieval, o mundo de hoje é um “nervosário”, ou seja, um celeiro de nervosos. Pôr-se a vibrar, a ouvir o som dos seus próprios nervos, é um instrumento de diversão cheio de masoquismo. É o contrário do copista, que tem a delícia de viver com os nervos em estado tal, que nem percebe que eles existem. E o melhor serviço que os nervos podem prestar é de não termos ideia de que eles existem.

Saber remeter a um valor superior as menores coisas da existência, eis a fórmula para escapar do “nervosário” de nossos dias.

Por trás do verdadeiro entretenimento, um valor absoluto

Queira-se ou não, o homem é um animal racional. Por mais que se deseje degradá-lo até a animalidade, por mais animalidade que ele admita, é um animal racional. De maneira que há sempre meios de estimular nele o que é racional e contrariar tendências exclusivamente temperamentais.

O divertimento só é adequado à proporção humana, só é verdadeiro entretenimento quando possibilita certo contato com um valor superior, que lhe dá uma impressão ao mesmo tempo empolgante, atraente e difícil de exprimir. Quando alguém entra em contato com coisas superiores, olha, fixa a atenção e se sente atraído, de algum modo é tomado por aquela realidade superior. Sem perceber, no fundo se reporta a Deus e encontra nisto uma forma de atração, de atenção, de agrado, que constitui o verdadeiro entretenimento da vida.

As iluminuras medievais oferecem um aprendizado sem fim, constituem habitualmente um modelo de entretenimento.

Nelas se vê todo um mundo entretido dentro da inocência. Por exemplo, numa iluminura representando um homem copiando um livro.

Havia na época muitos calígrafos profissionais, dos quais alguns eram verdadeiros artistas. O iluminista na gravura está sentado numa mesa junto a uma janela, vestido com uma roupa entre marrom e preto, ampla, na qual podia se mover completamente à vontade, e que o agasalhava bem. Ele está sentado com o rosto plácido, copiando algo com uma grande pena de pato. A mesa de trabalho ficava numa espécie de saliência, dando para a rua – ou para o jardim, não se sabe bem - que tornava o quartinho autônomo. À sua direita uma janela com vidros de fundo de garrafa, de cor verde claro, cuja luz penetrava da direita para a esquerda, portanto iluminando o trabalho corretamente. O chão desse quartinho era um estrado de madeira, um pouco acima do nível do chão, formando portanto uma espécie de península à margem da vida da casa.

Aquela luz verde também não era a do resto da sala, mas projetava o copista numa fantasia e no irreal. Junto à janela um parapeito, com um pequeno vaso e uma florzinha olhando para ele. Florzinha delicada, miúda, mimosa, de cor viva, atraente, aliciante, parecendo quase um passarinho cantando para distraí-lo. No centro do desenho está esse homem fazendo tranquilamente seu trabalho. Um trabalho bonito, vê-se que tinha jeito para ele. Sem pressa, fome, angústia ou cansaço, ele estava sumamente entretido. Ganhando a vida e entretido. Mas entretido com o quê? Não era só com a letra bonita que fazia, mas também com aquele ambiente que exprimia determinados valores morais. Esses valores morais podem ser concebidos como valores absolutos, sem uma identificação necessária com aquilo que os rodeia.

O conjunto do quadro pode ser resumido, de acordo com esse valor moral, como placidez operosa.

A placidez operosa

A placidez é em si mesma um valor moral. Quando mantida no modo de operar, reúne duas perfeições contrárias e harmônicas, com uma nota de equilíbrio muito bonita unindo a placidez e a operosidade. Todo o ambiente do copista é impregnado de placidez operosa, da qual Deus é o modelo supremo e incriado, o motor imóvel. Ao mesmo tempo que desce do mais alto dos céus, o bem estar desse homem nasce do mais profundo da sua personalidade. Ele não está se divertindo, está trabalhando, mas não trabalha como a aeromoça de certos anúncios, não é aquela alegria artificial.

Na sua naturalidade, fluindo como um rio, ele se empenha numa ação para a qual todo ele está feito. Sente dentro de si mil aspirações de seu temperamento, que se encontram com valores morais, e tudo isso o eleva até Deus. Ele se sente bem, fazendo o que faz. Não tem a noção de que passou um dia extraordinariamente bom, mas considera-o um dia normal. Essa normalidade que não foi deliciosa, mas apenas deleitável, é o verdadeiro entretenimento.

O entretenimento da normalidade

A diversão e o prazer são exceção na vida. O normal é encontrar alguma deleitabilidade em cada ação diária. Quantos e quantos, terminado o período de trabalho, ficam lado a lado uns com os outros, conversando ou zombando um pouco, mas no bom sentido da palavra. Desse entretenimento pode sair o homem combativo, dinâmico, verdadeiramente ativo. É desse modo que me entretenho. Distraio-me contemplando um abatjour aceso, lendo um livro de História. Estou lendo atualmente a vida de uma czarina contada pela filha. Isso me entretém placidamente, tranquilamente, é muito distensivo.

Esse entretenimento plácido, tranquilo, constitui o gosto da vida. Dele saio com forças para lutar. Se não tivesse esse tipo de entretenimento, porém tivesse repouso ao modo moderno, eu estaria neurótico. Numa vida assim, pega-se um bom livro e se vai transcendendo o estado de analfabetismo secundário, que é o do homem que não tem o hábito de ler. Para este analfabeto secundário, pegar um livro é um sacrifício, uma evasão dolorosa da realidade.

Diversão e masoquismo

A pintura do copista plácido tem um fundo não explícito, mas que fica insinuado. Mostra que a pessoa não se entretém estimulando os próprios nervos, mas deixando-os ficar em paz. Esse é o ponto que choca mais o conceito moderno de entretenimento, que consiste em gozar mais seu estado temperamental do que a própria coisa deleitável. Situação muito comum, neste caso, é a do sujeito que faz uma viagem, mas se delicia menos com o que vê do que com as emoções que fabricou em si enquanto viajava.

Pôr-se a vibrar e a ouvir o som dos seus próprios nervos é um instrumento masoquístico de diversão. É o contrário do copista, que tem a delícia de viver com os nervos em estado tal, que nem percebe que eles existem. O melhor serviço que os nervos prestam, é quando não temos ideia de que eles existem. A pessoa sem problemas nervosos é a que não sabe o que são problemas nervosos. Esta é a situação perfeita, e nisso as iluminuras medievais são exímias, pois não está presente nenhum nervosismo.

Santo Cristo que esteve em Lepanto

Ninguém pode escapar à escolha: usufruir uma viagem é não pensar em si nem pensar nos nervos, mas pensar no que se está vendo. Se vou para a catedral de Barcelona rezar diante do Santo Cristo que esteve em Lepanto na proa da nau capitânia de Dom João d’Áustria, posso fabricar meu nervosismo pela torcida; por exemplo, imaginar-me lutando em Lepanto. E quando der conta de mim, já estarei substituindo Dom João d’Austria... Este não viu o crucifixo, viu a si mesmo e sentiu seus nervos.

Correto é o contrário: olhar aquilo de tal maneira que nem nos lembramos de que temos nervos. Para este efeito, os nervos devem ser inexistentes, como fios de eletricidade, encanamentos e coisas assim. Prestam-nos serviços, mas nós nem nos lembramos de que existem. Ficam embutidos, a gente acende ou apaga, abre a torneira ou fecha. Existem para servir, e o serviço que prestam é não dar notícia de si. O problema começa quando a gente percebe que eles existem, quando estão funcionando mal. Assim devem ser os nervos. E quem age diferente disso renuncia ao verdadeiro entretenimento.

Entre o mundo dos nervos e o mundo da santa e entretida placidez medieval há a mesma incompatibilidade que há entre o mundo da desordem e o da santa tranquilidade. A sociedade humana de hoje, baseada no temperamento e não nas ideias, sob certo ponto de vista é uma espécie de grande nervosário que vibra em comum.76

Notas:

75. 23-12-1974.

76. 23-12-1974.

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