Capítulo V

 

 

A paz é a tranquilidade da ordem

 

 

 

 

 

 

A ordem é um dos elementos do Belo conjugado com a Grandeza (Aristóteles)

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Neste capítulo

Santo Agostinho deu a definição definitiva de paz: “É a tranquilidade da ordem”. E ordem é a disposição dos seres segundo sua natureza e seu fim.

O mundo moderno caiu na desordem. Um dos aspectos da desordem de nossos dias é a inexistência de verdadeira paz – há um lamaçal de paz-guerra, guerra-paz.

A felicidade e infelicidade do mundo em que vivemos se mede pela intensidade de sua tranquilidade ou intranquilidade. O que se estabeleceu hoje em dia é a intranquilidade, que aponta para as atrações e falácias da droga. Infelizmente, não é apenas isso.

Santo Agostinho

A tranquilidade da ordem

Depois que Santo Agostinho definiu a paz como a tranquilidade da ordem, a noção de paz ficou em paz, e não se discutiu mais. Onde há ordem, há tranquilidade. Essa tranquilidade se chama paz. Não é paz, portanto, qualquer tranquilidade. A paz não é tranquilidade indiferente à ordem ou à desordem.

Quando as coisas estão em paz, sente-se a ordem.

Convém analisar em primeiro lugar a noção de ordem. O que significa ordem? É a disposição dos seres segundo sua natureza, em seguida de acordo com seu fim, e depois de acordo com a liberdade e os meios para se moverem rumo a seu fim.

Um microfone como o que tenho diante de mim está em ordem quando todos os seus elementos estão compostos e dispostos de acordo com sua natureza e finalidade.          A finalidade dele é captar o som, as palavras da conferência, e difundi-las pelo salão de maneira que todos possam ouvi-las. Se eu introduzisse  na  estrutura dele uma corda de harpa, por exemplo, ele não funcionaria, pois não estaria ordenado de acordo com sua finalidade. Além disso, é preciso que todos esses elementos estejam voltados, coordenados, imbricados entre si de maneira a realizarem a finalidade do microfone.

Finalmente, é necessária a liberdade de movimentos para que um objeto realize o seu fim. No caso do microfone, isto inclui certa elasticidade para ele poder vibrar com o som. Precisa ter as reatividades e as flexibilidades que o façam captar o som. Precisa, portanto, de certa liberdade de movimento ordenada, pela qual realiza o seu fim. Esta é a ordem verdadeira.

 

São Domingos meditando

Algo que falta, no mundo contemporâneo, é a ordem. Quanto mais a procuramos, mais ela nos foge entre os dedos. E quanto mais vão se transformando em garras esses dedos, para conseguirem reter a ordem, tanto mais ela se vai desfazendo.

Uma vassoura velha e um chapéu ridículo

Podemos imaginar que no começo desta reunião houvesse aqui nesses degraus uma vassoura velha, quebrada, e junto dela um chapéu velho, ridículo. Enquanto alguém não pegasse esses objetos e os retirasse, haveria um mal estar geral na sala. Feito isso, todos quereriam saber quem os deixou aí, e por que o fez, pois não se compreende que tenham ficado nesse lugar objetos assim. Só depois se pediria ao orador que começasse a conferência. Aquela desordem produzia intranquilidade, e o restabelecimento da ordem devolveu a tranquilidade. Essa tranquilidade se chama paz.

A visão de Deus no Paraíso nos mostrará a suma causa, o sumo bem, e nossa vontade repousará em paz n’Ele, na tranquilidade da ordem. No Céu está tudo na sua ordem, porque tudo está em nexo com Ele.39

Tranquilidade e movimento

Há certas formas de imobilidade que nem merecem o nome de tranquilidade, pois não são paz certas formas de atonia, certas formas de inação.

O braço poderoso de um carregador que transporta um volume grande, ou o de um atleta que levanta um peso notável, está realmente em paz, ainda que se note na disposição de seus músculos que ele está fazendo um esforço enorme. Pelo contrário, o braço inerte de um paralítico não está em ordem. Não está fazendo esforço, mas aquela tranquilidade da inércia e da paralisia não é verdadeira paz, pois não nasce da ordem.

Assim, os conceitos de ordem e de paz se entrosam muito exatamente.

A paz do sepulcro

No sepulcro pode-se escrever R.I.P. (requiescat in pace – descanse em paz). Essa paz se refere eventualmente à alma, mas não ao corpo, porque aquela desagregação decorrente da inércia e da putrefação não é a paz. Como a verdadeira paz decorre da ordem, onde há putrefação ou desagregação não há verdadeira ordem – há o contrário, pois a putrefação significa desordem.

No que diz respeito ao ser vivo, ordem, paz e tranquilidade são conceitos eminentemente conectados com o dom da vida que Deus dá. Aquilo que favorece o dom da vida, que o estimula, que o ordena, está de acordo com a paz. O restante, não.

A desordem

Compreendido o significado que enunciamos quando falamos de ordem, podemos compreender melhor agora o que é a desordem.

Há duas formas de desordem: a contra-ordem e o caos. A primeira forma se verifica quando se toma algo e se desfaz a ordem em que estava, mas em seguida coloca-se aquele mesmo material numa ordem errada, numa contra-ordem. Alguém poderia tomar este microfone, por exemplo, e esvaziá-lo. Depois tomaria todas as peças internas e as recolocaria dentro, de tal maneira que tudo estivesse colocado ao contrário. Teríamos assim uma contra-ordem, o contrário de uma ordem. Essa situação contrária a uma ordem ainda teria certa característica em comum com a ordem, pois seria uma ordem ao contrário. A intenção era deformar, mas estava presente uma intenção.

Outra forma de desordem é o caos. Já não se trata de contra-ordem, mas de algo como uma explosão. Por exemplo, se faço explodir uma bomba na base de um edifício, voam pelos ares partes dele. Uma força destrutiva invade tudo, joga as partes umas contra as outras, ao sabor do acaso, e faz com que nem sequer haja uma contra-ordem. Forma-se portanto o caos.

A desordem do mundo moderno

Com essas noções, podemos entender que o mundo contemporâneo está numa profunda desordem. Esta desordem é uma contra-ordem ou um caos? Quando ela tiver chegado a seu termo, o que resultaria daí? Seguiria o plano de uma contra-ordem ou o de uma explosão? Que espécie de desordem teríamos? A resposta que devemos dar é que se caminha para a contra-ordem. O exemplo característico de contra-ordem é o comunismo. O regime com características comunistas é um contra-regime, porque é planejado (há portanto uma intenção) para inverter a ordem natural das coisas.

A ordem sócio-econômica de regimes assim é uma contra-ordem, porque põe todas as coisas como não devem estar. A cultura é uma contra-cultura, a civilização é uma contra-civilização, embora por vezes dentro de Estados estáveis. Policialescamente estáveis, pois é por força da polícia que eles se mantêm, mas não se pode negar que tenham certa estabilidade.40

A paz é impossível com os adversários da ordem

Desde Adão e Eva até o fim do mundo haverá Cains e haverá Abéis. E os Cains vão perseguir e matar os Abéis. Isto é indiscutível, e a prova mais provada que se tem é a vida de Nosso Senhor Jesus Cristo. Maior santidade, maior virtude, melhor doutrina, maiores milagres, maiores dons de atração e de enlevo pessoal, nunca ninguém possuiu nem sequer pôde imaginar como eram as características que adornavam a pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo. No entanto, o que fizeram com Ele? Crucificaram-no.

A bondade dos bons não desarma a maldade dos maus. Os maus lutam para acabar com os bons, e lutam até o fim, porque os odeiam. Portanto, a ideia de paz entre os bons e os maus é completamente errada. A paz não é uma tranquilidade qualquer. Se na definição de Santo Agostinho a paz é a tranquilidade da ordem, podemos concluir que nos lugares onde há ordem, dela decorre tranquilidade, e ali há paz. Sendo assim, para se conseguir a paz, o certo não é entrar em concórdia com os adversários da ordem ou com os propagadores da desordem, mas consiste em promover a ordem. Promova-se a ordem, e a paz nascerá naturalmente. Não defenda a ordem, permita que ela seja calcada aos pés, e nascerá a desordem.

Tranquilidade da ordem na harmonia musical

Uma imagem da tranquilidade da ordem é uma bela música sacra executada no órgão ou cantada. Ou mesmo uma música não sacra, mas bonita e harmoniosa. Aquilo é tranquilidade da ordem. Nessa música, a tranquilidade viva da ordem chama-se harmonia.41 Bem ao contrário de barulhos e dissonâncias musicais modernos.

Os ouvidos e as mentes estão deformados pelo espírito moderno. A tal ponto que, quando se fala de tranquilidade, tem-se a impressão de um repouso que não comporta nenhum movimento, nenhum som, reduzindo a tranquilidade a uma situação toda feita de inação, e quase de vácuo.

 

Monumento que o Bem-aventurado Papa Pio IX erigiu em homenagem aos zuavos pontifícios que morreram pelo Papado, erigido no cemitério do Verano (Roma)

A guerra e a paz

Antigamente havia um limite claro entre a paz e a guerra. Esta era declarada oficialmente, e só depois começavam as operações militares. Os conceitos de guerra e de paz se poluíram, mesclaram e borraram, de tal modo que a paz inteira não existe mais, tornou-se um aspecto velado da guerra.

Hoje há um misto de paz-guerra, guerra-paz – uma espécie de pântano ou charco lamacento, onde todos brigam continuamente com todos, todos sorriem continuamente para todos, mas não há mais tranquilidade, não há mais ordem, não há mais guerra formal. É uma espécie de poluição da paz pela guerra e da guerra pela paz.

Quando há um misto de paz e de guerra, não existe paz, existe guerra. Mas trata-se de guerra sem a dignidade da guerra, porque é o embate do truque, da falácia, do roubo das mentes. É a guerra da imundície, e é dentro dela que estamos.42

O conceito pacifista de paz é a confusão e a desordem. Não é verdadeira paz, mas seu contrário. Por isso se aplicam a Nosso Senhor essas palavras do Antigo Testamento: “Eis na paz a minha amargura muito amarga”.43 No auge da amargura, numa amargura amaríssima, havia a paz.

Seria um exagero dizer que não se devem apreciar as épocas de tranquilidade, e que elas não devam ser pedidas a Nosso Senhor. Em certos momentos Ele permite que não tenhamos sofrimentos e não tenhamos luta. Podemos e devemos apreciar que a misericórdia divina nos consiga e nos conceda tais épocas na vida, mas não devemos fazer dessa perspectiva o ideal da paz. São momentos de consolação e de distensão, como o próprio Nosso Senhor tinha em casa de Lázaro, Maria e Marta, mas a verdadeira paz está na tranquilidade da ordem. É com essa perspectiva em mente que devemos rezar a Nossa Senhora da Paz.

Felicidade e infelicidade no grau de tranquilidade ou intranquilidade

É evidente que o grau de felicidade ou infelicidade se mede pela intensidade da tranquilidade ou da intranquilidade. Quem tem tudo de que necessita está tranquilo, e se não está tranquilo é porque algo lhe falta. Os que encontram supremo prazer no apego a si mesmos são sempre os mais intranquilos, logo são os mais infelizes. Concede-se que eles gozam mais, mas a necessidade ilimitada e insaciável de gozar é fonte de suprema infelicidade.

Quem é insaciável tem que arranjar um jeito de controlar-se, ou então está perdido. O desejo insaciável de beber água, por exemplo, é característico de um doente. Quando ele bebe água, sente mais bem-estar do que uma pessoa de saúde normal. Isso é certo, mas no fundo ele é infeliz, pois as apetências insaciáveis de gozo são fontes de infelicidade.

Nosso gozo no Céu será insaciável? Não, pois se trata de um gozo sem fim, mas também saciado. Se fosse insaciável, no Céu se seria infeliz.44

“Otium cum dignitate”

É uma espécie de bem-aventurança na Terra ter tranquilidade com elevação. Os romanos definiam essa situação de modo muito interessante: otium cum dignitate.45 A fórmula é muito feliz. O sentido da palavra ócio, para os romanos, era diverso do que tem na língua portuguesa, que é intrinsecamente culposo: era um lazer com dignidade. Seria para eles o zênite da alma humana nesta vida. Para nós, a palavra dignidade é muito mais expressiva do que para eles, pois pode ter relação com o sobrenatural.

A imagem mais bela disso, para mim, é Deus passeando com Adão no Paraíso.46 Para mim, é a mais bela das imagens.47

A droga e as doenças nervosas

Acabei percebendo que há uma série de prazeres tranquilos na vida, e também uma série de prazeres intranquilos. Os prazeres intranquilos são muito mais saborosos, e contêm todas as atrações e as falácias da droga. O indivíduo que os deseja torna-se culposamente nervoso, e tende a caminhar no final para o uso das drogas. Eles se apresentam como algo muito mais saboroso, muito mais delicioso do que o prazer tranquilo, que parece enfadonho para quem se habitua aos prazeres da “torcida”. Sendo inebriantes os momentos da “torcida”, todo o resto do tempo fica sem graça. Para quem se entrega a eles, a vida tem ilhotas paradisíacas, e o resto são mares sujos e desagradáveis de atravessar.

Podemos então perguntar o que proporciona melhor felicidade para o homem, nesta Terra: os prazeres tranquilos ou os intranquilos?

O prazer tranquilo, despreocupado, o da consciência em paz, tem deleites que não trazem consigo nenhuma forma de sofrimento. Resulta do esforço, mas não acarreta nenhuma dor, apesar de não conter algo muito mais agradável que o prazer intranquilo. São duas escolas de felicidade, duas escolas de prazer, duas escolas de Revolução e Contra-Revolução. Portanto, dois sistemas de educar.

É preciso não fazer da vida um campo de batalha em que se evita a cruz ou a batalha. Pelo contrário, é necessário enfrentá-la de cheio, buscando essa tranquilidade dentro da cruz e dentro da batalha. Chegando até o fundo do mar, se for preciso, mas com esse deleite, essa tranquilidade, e nada de “torcida”. É muito melhor do que uma vida habitual de “torcida”, que deixa a pessoa em pandarecos e nunca lhe dá uma felicidade real.

Trata-se de duas escolas e dois sistemas. É preciso escolher uma ou a outra, não há alternativa.48

Nossa Senhora da Paz

Nossa Senhora da Paz é Nossa Senhora da Ordem, é Nossa Senhora enquanto promovendo e favorecendo que as coisas estejam em ordem. Sendo a paz fundamentalmente a tranquilidade da ordem, isto significa em última análise estar de acordo com a vontade de Deus, com a Lei de Deus, realizar os planos de Deus.49

O que devemos pedir a Nossa Senhora da Paz, quando estamos diante de uma imagem dessa invocação? Devemos pedir que Ela nos infunda bem vivo na alma o conceito de paz, o amor da paz verdadeira, que é simplesmente a tranquilidade da ordem, e não a ausência da dor e da luta. Como complemento, podemos pedir a Nossa Senhora que nos dê alguma tranquilidade e alguma distensão decorrentes de circunstâncias propícias a essa ordem, as quais nos permitam respirar um pouco.

Notas:

39. 18-2-1981.

40. 21-6-1984.

41. 16-1-1981.

42. Sem data.

43. Is. 38, 17.

44. 22-1-1966.

45. Expressão de Cícero, significando ócio com dignidade.

46. “... o Senhor Deus, que passeava pelo paraíso, à hora da brisa, depois do meio-dia...” (Gn, 3, 8).

47. 6-1-74.

48. 17-3-95.

49. 10-7-65.

Adiante

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