Capítulo III
A tranquilidade e a proeza
É nos grandes perigos que se vê uma grande coragem (provérbio francês) |
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Neste capítulo Se proeza é uma ação de valor ou uma façanha, a verdadeira calma não é o contrário, como pode parecer, mas uma condição dela. A autêntica proeza deve ser inteiramente racional, e a racionalidade supõe a calma. O simples risco de vida não caracteriza a proeza. Na verdadeira proeza há valentia e uma espécie de euforia, que não é vaidade nem orgulho. O espírito de proeza é uma das mais altas posições da alma humana, e não se alcança apenas por meio da calma, mas lhe é correlata.
Estatua de Cid o Campeador, Burgos (Espanha) Exemplos de proeza Proeza é uma ação insigne para um fim proporcionado, comportando esforço insigne e por vezes um grande risco. Pode absorver ou ameaçar a existência, pois põe em risco a vida da pessoa, que pode morrer de repente, ou então levar até a vida inteira realizando determinada obra. A proeza consiste em correr um risco que está nos confins da temeridade, quando a pessoa arrisca tudo com meios apenas suficientes. Ao dar tudo, de tal maneira desdobra sua personalidade, que fica como que imersa na atmosfera do ideal pelo qual está se entregando. É uma das mais altas posições da alma humana. Na força do termo, viver é ser um homem de proeza. Nesta vida, ou se vai atrás de um ideal que justifique a proeza, ou não se viveu. Sendo isto verdade, o mais alto bem-estar na Terra está na proeza. Daí o dito dos paraquedistas franceses: Mais vale a pena ser águia um minuto do que sapo a vida inteira. Se um deles se joga com paraquedas num salto de sublime coragem, para realizar uma ação decisiva, pode chegar ao chão e se estatelar, mas terá feito sua proeza. A vida dele estará realizada, ainda que fique o resto da existência paralítico numa cama.34 Um estudioso pode passar trinta anos da vida fazendo um estudo qualquer, para chegar à comprovação de um princípio científico novo que ninguém achava admissível, e cuja realidade ele acaba provando. É uma proeza, pois descobriu com esforço algo que todo mundo negava. Percebeu que era assim, e dedicou a isso um esforço insigne. Conseguida a prova, com isso alterou e aprimorou completamente o conhecimento humano em determinado sentido. Ele justificou sua vida. Na verdadeira proeza há uma espécie de euforia, que não é vaidade nem orgulho. A proeza de um bandido não tem beleza, a não ser por uma vaga e espúria analogia, e não conduz à felicidade.
Santa Teresinha do Menino Jesus Proezas de caráter religioso Falei até aqui propositalmente em termos leigos, inteiramente leigos, mas vou agora aplicar o mesmo conceito para aspectos religiosos. Imaginemos um sacerdote novo, que recebe a confissão de um criminoso e fica atado ao sigilo sacramental. Depois de algum tempo, ele mesmo é acusado desse crime, do qual poderia se defender revelando o segredo da confissão. Recusa-se a revelá-lo, e como consequência passa o resto da vida cumprindo pena numa prisão. Enquanto isso, o criminoso permanece livre. Suportar isso é uma verdadeira proeza. Num certo momento morre o criminoso, mas antes de morrer encarrega outro confessor de contar que foi ele o autor do crime, do qual dá todas as provas. Quando vão tirar o padre da cadeia, ele já é um velho, cuja vida sacerdotal foi toda estragada. Mas ele terá respeitado o sigilo sacramental. Quem ousaria negar que essa vida foi uma proeza? Uma santa proeza como essa foi a do Padre Damião, que decidiu fazer apostolado com os leprosos na ilha de Molocai (Havaí)35 e tornou-se leproso. Realizou também uma proeza Santa Mônica, que levou muitos anos rezando confiantemente para a conversão de seu filho Santo Agostinho. Ela ficou célebre por essa proeza. Assim, há mil formas de proeza na vida.36 A proeza de nossa vida Toda vida deve ter uma proeza, e eu devo procurar viver para a minha proeza. Qual é a proeza de minha vida? Ela terá seu sentido na hora em que eu encontrar a proeza que a deve marcar. A proeza de Nosso Senhor Jesus Cristo foi a Cruz. Quando lhe apresentaram a Cruz, Ele a osculou com muito afeto, tomou-a sobre os ombros com ânimo e a levou ao alto do Calvário. Não como uma coisa detestável e inevitável. É assim que devemos encontrar e realizar a proeza de nossa vida. Quem não vive para gozar a vida, mas para fazer algo que lhe exige abnegação, tem grande tranquilidade quando o consegue, na medida de felicidade possível na Terra. Ele tem a consciência de que procurou fazer o que devia, e o fez com toda força.37 34. 2-10-1972. 35. O Padre Damião de Veuster (1840-1889) foi beatificado em 1995. 36. 2-10-1972. 37. 2-10-1972. |