Capítulo II
Pequena história da calma
O sol chega à Terra sem pressa, sem fadiga, sem “torcida” (Plinio Corrêa de Oliveira) 18 |
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Neste capítulo Em matéria de calma, foi a humanidade sempre deficiente como é hoje? A gradual perda da calma como fenômeno moderno foi um processo que se iniciou antes da Primeira Guerra Mundial, intensificou-se muito com a influência de Hollywood nos anos 20 e desfechou no corre-corre da segunda metade do século XX e do começo do novo milênio. Temos hoje a idolatria da pressa, triste característica de nossos dias. Em sentido contrário, Dr. Plinio faz interessantes considerações sobre a calma e a reflexão. O pensamento bem apanhado e não livresco, que se pode apreciar sobretudo em momentos de calma, é o suco da vida, e não algo fora dela.
São José (Giuseppe) Moscati (Benevento, 7-25-1880 – Nápoles, 4-12-1927), o terceiro da esquerda sentado, jovem e brilhante médico professor junto a seus primeiros alunos. Ele se consagrou a Nossa Senhora do Bom Conselho, distinguindo-se sobretudo por suas virtudes, mas também pelas qualidades humanas que desenvolveu. A seriedade e a calma Tudo é sério. Devemos compreender que cada ação nossa, por pequena que seja, acarreta consequências enormes na ordem verdadeira e profunda das coisas. Ou seja, na presença de Deus. Dizendo-se presença de Deus, está tudo dito, pois tudo que fazemos se faz na presença de Deus e tem relação com Deus. Portanto, toma uma gravidade e uma importância sem fim. A visão beatífica19 nos ajuda a ter esse pensamento. Devemos ter bem em mente que nosso fim, nossa única e verdadeira razão de ser é contemplar Deus face a face por toda a eternidade. Em aulas de catecismo, para tornar acessível o conceito de eternidade, costuma-se usar esta imagem: Se alguém toma um pedaço de granito e passa o dedo sobre ele, uma partícula pode desprender-se, por pequena que ela seja, e o mais provável mesmo é que se desprenda. Outra imagem seria a de uma andorinha que passasse pelo Pão de Açúcar de mil em mil anos, e roçasse nele apenas a ponta do bico. Quanto tempo levaria a pessoa que tem o granito, ou a andorinha que sobrevoa o Pão de Açúcar, para concluir sua obra? Em relação à eternidade, seria como se a obra estivesse no seu começo. As duas singelas imagens nos fazem sentir melhor o conceito de eternidade, e o que significa ver Deus face a face por toda a eternidade. Compreende-se assim quanto é sério aquilo que pode nos aproximar da visão beatífica, e quanto é sério e grave aquilo que dela pode nos afastar. Ora, de modo geral, qualquer coisa pode nos afastar como também nos aproximar da visão beatífica. Não quer dizer que não haja ações moralmente neutras, porque as há, mas são ações que, conforme a ordenação com que o homem as pratica, podem aproximar ou distanciar de Deus.20
Os “anos loucos” (1920-1930) Há uma reflexão colateral que entra a propósito dessas considerações. Durante os chamados anos 20,21 produziu-se no Brasil um choque de influências, sendo uma parte favorável à permanência das tradições e dos contatos com a Europa, e a outra pela entrada da influência hollywoodiana.22 Se imaginarmos um rio pequeno no qual desembocam dois rios maiores, podemos ter nesse caos geográfico uma imagem do caos cultural que isso criaria. O Brasil pequeno daquele tempo recebia simultaneamente as grandes águas da tradição europeia e a catarata da corrente hollywoodiana.23 É fácil imaginar o encontro e o desencontro de influências que isso produzia. Uma das notas que diferenciavam a influência hollywoodiana da europeia era que a Europa tinha seu passado calcado numa cultura de quase dois milênios. Em algum sentido, mais até do que isso, se remontarmos aos romanos e gregos, que de um modo ou outro receberam a influência da Igreja Católica e acabaram gerando a Idade Média. Foram séculos de estudo e de reflexão, e as pessoas tomaram o hábito de ler, pensar, estudar, nos ritmos de vida de antigamente. Era uma vida calma, sem os atuais instrumentos de ação rápidos e avassaladores de hoje. A vida humana corria muito devagar, tranquila, cheia de interstícios. Meu bisavô, sendo deputado no Parlamento do Império, levava um mês para ir de São Paulo ao Rio de Janeiro, a fim de assumir sua cadeira no Parlamento. Talvez ele fosse fazendo alguma propaganda eleitoral pelo caminho, mas hoje nem se consegue imaginar como pode um deputado sair de São Paulo no dia primeiro de janeiro para chegar à corte do Império, no Rio, no dia primeiro de fevereiro. Às vezes partiam de São Paulo para o Rio famílias inteiras, em verdadeiras caravanas. O grupo parava, quando chegava perto do Rio. Então as senhoras se arranjavam, ajeitavam-se as liteiras, os homens se compunham para entrar na corte, como se chamava antigamente a capital do Império. Havia portanto um interstício enorme, em que ele não recebia notícias e quase não tinha como mandá-las. As coisas em que ele pensava durante a viagem, queira-se ou não, resultavam numa vida refletida. Se eram boas ou não as reflexões, é outra questão, mas o certo é que ele refletia.24
Charles-Maurice Talleyrand-Périgord No tempo de Talleyrand Li num livro sobre Talleyrand25 o seguinte episódio. Quando ele foi ao Congresso de Viena,26 tinha uma sobrinha que morava na embaixada francesa em Viena. Ele ia executar durante o Congresso uma jogada extremamente importante, que interessava também a essa sobrinha. Combinou então com ela o seguinte: quando você ouvir o ruído de minha carruagem, chegue à janela ou à porta e observe se estou com o lenço na mão. Se estiver, quer dizer que tudo deu certo; mas se não aparecer o lenço, quer dizer que não deu em nada. Note-se inicialmente como a rua tinha de ser tranquila, para ela poder discernir o ruído da carruagem de Talleyrand. E uma simples informação, que hoje se transmitiria com um telefonema, só seria recebida após todo o tempo necessário para concluir a sessão, ele se despedir de todos, descer a escada ajudado por alguém - pois ele era manco - e entrar na carruagem. O lacaio tinha de abrir a porta e baixar uma escada na qual ele subia. Ele se sentava, sentava-se o secretário e o lacaio fechava a porta. Ele ainda tirava o bicórneo para cumprimentar algumas pessoas. O cocheiro subia na boleia, que era na frente, e os outros lacaios de libré iam atrás. Os cavalos começavam a puxar o carro pelo calçamento de Viena, e Talleyrand lá ia chacoalhando até a embaixada. Muito antes de tudo isso ter-se realizado, por um telefonema do secretário para a sobrinha ela teria recebido a informação. Esse era o tempo que levava uma notícia para chegar dentro da própria cidade. É fácil imaginar a ansiedade da sobrinha. Ela queria saber tão depressa o resultado, que recorreram a um lenço na mão para encurtar o tempo da espera! Ela tinha que esperar, mas enquanto esperava ia pensando em outra coisa, porque a ansiedade sozinha é cansativa. Havia assim tempo para aprofundar os assuntos, refletir a respeito das questões. Esse é um processo natural, e gera um teor de vida do qual hoje não se tem mais ideia. Por quê? Porque a pressa hollywoodiana tomou conta da vida e lhe conferiu outros ritmos, em que a reflexão não entra. Se Talleyrand estivesse nos dias de hoje, teria combinado com a sobrinha: Meu secretário lhe transmite a informação logo que a sessão esteja encerrada; você telefona daí para as nossas embaixadas, para o ministro do exterior em Paris e para nossas embaixadas em Roma, Berlim, Londres, Madri, Lisboa e Washington, contando o que houve! Quando eu chegar em casa, já quero ter as reações de todos esses ministérios. Isso hoje seria o normal. Ela era uma mulher inteligentíssima, e daria conta do recado. Ele já chegaria arfando, e indagaria o que disse o ministério do exterior, como foi recebido o que conseguira, qual foi a repercussão em Washington. Na calma da vida de antigamente, enquanto se movimentava a carruagem entrava a reflexão. O resultado é que nos quadros representando aquelas pessoas, todas têm fisionomia de quem está refletindo. Havia tempo para isso.27 Há certos tipos de espíritos que têm não só o hábito da reflexão, têm também sede de fazê-la. A Idade Média foi a era da reflexão, a época mais profundamente meditativa que houve na História. É preciso ter não só a sede da reflexão, mas uma profunda compenetração de seu primado.28 A calma e o seu oposto no século XX Nas fotografias de pessoas a partir da Primeira Guerra Mundial, as fisionomias são cada vez mais irrefletidas. A foto é um instantâneo, porque o indivíduo não sabe mais fazer pose. Para se fazer pose, é preciso refletir um pouco, e nem se sabe mais refletir um pouco. A pessoa está sempre correndo, na disparada. O instantâneo é a lembrança que deixa atrás de si o homem do corre-corre. Sem me perder em pormenores, para mim a vida que se levava antigamente começou a acabar nos anos 30. Quando digo antigamente, quero referir-me a antes dos anos 20, e cada vez menos durante os anos 20. Nas casas de uma burguesia média – e às vezes menos que isso, portanto, a fortiori nas classes mais altas – os quartos de dormir eram espaçosos. Sobretudo os quartos de homens, tinham em geral um mobiliário sumário – um sofá e algumas cadeiras, por exemplo, além do necessário para dormir. Conversas muito reservadas se faziam no quarto de dormir. Ia-se para o mais interno da casa, e ali se conversava. Durante o dia, às vezes a pessoa se recolhia ao quarto de dormir, para pensar bem. Não se deitava na cama, o que só fazia quando doente, ou então para dormir à noite. Instalava-se no sofá e ficava pensando, meio recostado, mas isolado de todos. Um famoso quadro representa madame Récamier,29 que era pessoa de grande autoridade social na França do Diretório e da Restauração. Ela era visitada, por exemplo, por homens como Chateaubriand e o Duque de Montmorency, ministro de Estado. Era na prosa que eles se distraíam. No quadro famoso, ela está como que meditando, pensando. Entretanto, era uma mulher de vida social intensa. Se hoje uma senhora tem vida social, é tal a movimentação que quase nem há tempo para baixar as pálpebras! O corre-corre invadiu tudo.30 Sob a ditadura do corre-corre Atualmente a ação não tem o fundo de contemplação que deveria ter. O corre-corre é muito nocivo, porque tira o hábito de pensar. Ele traz a convicção muito nociva de que o homem deve fazer tanto quanto possa e pensar pouco. Por conexão, também a senhora, o moço ou a moça, e isso necessariamente se transmite à criança. Predomina a concepção de que pensar é perda de tempo, numa vida que não é digna de chamar-se vida. É preciso fazer, fazer, fazer. Quanto mais se fizer, melhor. O resto é perda de tempo. Nessa espécie de embriaguez de fazer, fazer, fazer, o indivíduo julga que perde tempo pensando. Para certa mentalidade executiva, quem vive para doutrina e princípios vive no sonho. Deve-se viver para o ganho, para o dinheiro, e o que não for isso não é verdadeiramente viver. Daí o desagrado, o desprezo, ou pelo menos o menosprezo da reflexão, imposto pela pressa e pelo gosto do indivíduo. O executivo que tem a mentalidade inerente à sua própria atividade pode ser visto como um símbolo da não reflexão. Executivo é o que executa, mas executar é fazer o que outro pensou ou simplesmente mandou. Velocidade, velocidade, velocidade – isso vicia no agir, da mesma forma que alguém pode viciar-se em drogas.31 O homem-máquina Sabemos que alguns dos grandes filósofos da Grécia antiga eram escravos. Mas se eram também filósofos, é porque tinham tempo para filosofar. Qual o patrão de hoje - já não digo o operário - que tem tempo para filosofar? Fala-se muito em dignidade humana, mas a pergunta que se impõe é esta: Qual dos dois é mais escravo? Quanto ao homem-máquina, pode-se perfeitamente afirmar que é um escravo. O Sol não se atrasa nem se adianta – ele faz a hora! Quando chega à terra, é sem pressa, sem fadiga, sem “torcida”.32 Sem preguiça, mas também sem corre-corre. Ele transpôs não sei que distâncias para chegar ali, onde pousa e brilha, executando plenamente sua função. Assim deve ser o homem calmo. Direito humano, da forma como é concebido e manipulado atualmente, é uma arma psicológica instrumentalizada contra toda forma de autoridade – o patrão, o pai, o Estado. Em matéria de direitos humanos, há um assunto do qual não se fala nem um pouco: quantas pessoas a idolatria da pressa já matou? As cogitações possíveis apenas na calma Tomar um assunto doutrinário e examiná-lo com interesse, deve transformar-se para nós numa segunda natureza. Mais do que com interesse, com paixão, pois a teoria verdadeira, bem apanhada e não apenas livresca, é o suco da vida, não algo fossilizado e fora dela. É só por esse meio que se atinge uma vivência dupla: primeiro, a de que nada é mais real do que a teoria; segundo, a de que nada é mais prático do que ela. A posição errada, diferente desta, consiste em julgar que para conhecer a realidade o homem precisa deixar a solidão, abandonar o livro e começar a tratar com inúmeras outras pessoas. Afirma-se que a prática é feita de experiência, a experiência é feita de fazer, portanto a reflexão não adianta para a experiência, o que adianta é fazer. Para esses, a reflexão é até o contrário da experiência, é o não fazer. Entra pelos olhos que a experiência se obtém com o fazer. Mas não há experiência verdadeira sem que, além do fazer, haja uma reflexão. A experiência não é só fazer, é também uma reflexão sobre aquilo que se fez. Para quem não quer proceder como um animal, isto ainda é mais evidente. Pode-se entender isso imaginando um laboratório onde trabalham um cientista e um servente. O chão do laboratório vai-se sujando à medida que o cientista trabalha nas suas pesquisas, e o servente é encarregado de limpá-lo. Para ser bom servente, ele deve fazer reflexões sobre seu minúsculo métier. Deve procurar o melhor modo de pegar a vassoura, deve cogitar por onde é melhor começar a limpeza da sala, deve indagar qual detergente é melhor para tirar tal mancha, etc. Enfim, se for um bom servente, terá mil pequenas reflexões que podem tornar a limpeza dele uma limpeza ideal. O cientista que está fazendo a pesquisa também experimenta. Mas o mais importante no trabalho dele é a reflexão sobre a experiência, muito mais do que a pura experiência.
Quadro de Velásquez mostra o Marquês de Espinola recebendo a rendição de Breda Inteligência e reflexão O importante para um homem não é ser muito inteligente, e sim que ele ame refletir. O homem que ama a reflexão, feita à luz do sobrenatural, ama o que a Teologia define como oração: a oração é a elevação da mente a Deus. Muitas vezes a reflexão dos menos inteligentes é mais abençoada e traz mais luzes que a dos mais inteligentes. Santo Tomás de Aquino, para elaborar a Suma Teológica, fez muito mais sendo santo do que sendo inteligente. Um quadro de Velásquez mostra o Marquês de Espinola recebendo a rendição de Breda. Gosto de pensar no modo como ele recebe o burguês e como os dois se cumprimentam. Rejeito a ideia de que os pequenos deleites devem ser rejeitados, e a cena com esse pequeno episódio me oferece um pequeno deleite agradável, de muita categoria. Não se deve viver à procura exclusivamente dos auges de deleites, porque isso escapa à ordem natural. Deus criou uma gama enorme de coisas deleitáveis, e quer que nossa alma esteja aberta para todas elas. Portanto, deleitemo-nos também com as pequenas impressões agradáveis, miúdas. Enquanto estou aqui trabalhando, posso levantar-me, abrir a porta e debruçar-me um pouco no balcão do terraço. Se ficar apreciando uma criança que está brincando com uma bola ali fora, alguém poderia lançar-me uma advertência: Isso é uma insignificância, procure uma grande sensação. Sem a menor relutância, eu colocaria as coisas nos devidos termos: agindo assim eu sou feliz, porque nas horas adequadas encontro em coisas pequenas o deleite adequado.33 Notas: 18. Conferência em 30-1-1981. 19. Visão beatífica: visão de Deus no paraíso celeste. 20. 30-1-1981. 21. Essa década é conhecida em francês como les années folles, em inglês como the roaring twenties. 22. 30-1-1981. 23. Referente a Hollywood, capital do cinema nos Estados Unidos. 24. 30-1-1981. 25. Charles-Maurice Talleyrand-Périgord (1754-1838), diplomata, homem de ação durante a Revolução Francesa e a Restauração, bispo de Autun. 26. Congresso de Viena: teve como finalidade redesenhar o mapa político do Velho Continente, após a derrota de Napoleão (1814-1815). 27. 30-1-1981. 28. 2-12-1969. 29. Jeanne-Françoise-Julie-Adelaide (1777-1849). O quadro é do pintor David. 30. 30-1-1981. 31. 30-1-1981. 32. Ver nota 11. 33. 2-12-1969. |