Prefácio à
obra
Nobreza e elites tradicionais análogas nas alocuções de
Pio XII ao Patriciado e à Nobreza romana
Para se compreender inteiramente a
presente obra de Plinio Corrêa de Oliveira, é necessário ter em vista as
principais facetas da sua vida de homem público: escritor, homem de acção, mas,
principalmente, pensador.
Pensador menos voltado para a mera
especulação doutrinária do que para a análise do século no qual vive, dos
problemas que atormentam a este e, conforme sejam as soluções dadas a tais problemas,
dos rumos pelos quais está a ser conduzido o caudal da história humana.
Este caudal apresenta-se efervescente e
tumultuário na nossa centúria, em grande parte contraditória e estranha. Com
efeito, foi o seu início assinalado pelas alegrias e prazeres da Belle Époque e
também pela magnificência da Exposição Universal de Paris, em 1900. Entretanto
ruma ela agora para o seu termo final no meio de incertezas e apreensões, na
previsão de acontecimentos que conduzirão talvez a um caos universal ou até a
uma hecatombe atómica.
Podemos considerar, pois, sob este ponto
de vista, duas fases bem distintas, no nosso século.
A primeira é francamente optimista. Nela
os homens, herdeiros remotos do Século das Luzes, acreditavam no êxito
indefinido de todos os seus esforços para o alto. O movimento geral dos povos,
das instituições e dos costumes era impulsionado, habitualmente, por algumas
convicções que constituem património do senso comum, mas que a antecedente era
do Iluminismo considerara de modo hipertrofiado e exclusivista. Entre tais
convicções, estava a de que a razão humana – como que infalível quando usada
devidamente – era guia auto-suficiente para indicar no que consistia a
felicidade terrena e quais os meios para obtê-la.
Além disso, o intelecto humano já
acumulara um imponente conjunto de conhecimentos, das mais variadas ordens,
próprio a assegurar no século XX, e mais ainda nos séculos vindouros, um grau
de justiça, de bem-estar, de melhoria multiforme das condições de vida e,
consequentemente, uma felicidade terrena perfeita.
Esta marcha ascensional era chamada
progresso, e o conjunto de métodos de acção mediante os quais se operaria a
gloriosa e intérmina ascensão do progresso chamava-se técnica.
Graças a esse progresso, a Humanidade
encontrava-se num ápice de civilização jamais conhecido, no qual não se
apresentavam os sintomas de ignorância, rudeza e crueldade, característicos de
antigos tempos.
Como apoio potentíssimo do progresso,
deveria o homem contar com a evolução: força imanente em todos os seres, ainda
misteriosa, e que proporcionava uma ascensão contínua, cujo píncaro supremo era
impossível alcançar.
Exemplo característico das ambiciosas esperanças
suscitadas pela colaboração destes factores foi a deliberação, exarada em
diversas disposições testamentárias deste século, segundo a qual o testador
determinava que o seu cadáver fosse conservado intacto, em câmaras frigoríficas
especiais, à espera de que, pela sua acção conjunta, a evolução e o progresso
proporcionassem à razão o descobrimento dos meios para operar a ressurreição
dos mortos...
É certo que, em meio século de júbilo
universal, duas tragédias de grande envergadura haveriam de opor ao
incondicionalismo de tantas esperanças um cruel desmentido: as guerras
mundiais. Mas a força de impulso para a felicidade terrena absoluta era tão
grande que, apenas terminadas as mesmas, a festiva atmosfera de júbilo haveria
de retomar obstinadamente o seu curso.
Depois da conflagração mundial de
1914-1918 surgiu o alegre período denominado geralmente "entre deux
guerres", que só se interromperia com a nova guerra mundial de 1939-1945.
E se bem que esta última, terminada de facto com as explosões atómicas de
Hiroshima e Nagasaki, tivesse sido ainda mais universal, mortífera, devastadora
e prolongada do que a primeira, o obstinado optimismo progressista haveria de
retomar o seu curso.
Eis como a Constituição Gaudium et Spes,
do Concílio Vaticano II, descreveu as condições de vida em que lhe parecia ver
imersa a sociedade contemporânea, e abriu os braços a esta, a fim de juntas
participarem da alegria universal:
"Modificaram-se profundamente as
condições de vida do homem moderno, do ponto de vista social e cultural, de tal
modo que é lícito falar de uma idade nova da história humana. Por isso abrem-se
novos caminhos para o aperfeiçoamento e a difusão mais ampla da cultura. ....
As ciências chamadas exactas desenvolvem notavelmente o juízo crítico. Os
recentes estudos psicológicos explicam mais profundamente a actividade humana.
As disciplinas históricas contribuem muito para que a realidade seja observada
sob o seu aspecto de mudança e evolução. Os hábitos e costumes de vida
tornam-se cada dia mais uniformes. A industrialização, a urbanização e outras
causas que promovem a vida comunitária, criam novas formas de cultura (cultura
de massa), das quais surgem maneiras novas de sentir, e de agir e de utilizar o
tempo livre. Ao mesmo tempo o crescente intercâmbio entre as várias nações e
grupos sociais abre mais largamente os tesouros das diversas formas de cultura a
todos e a cada um, e assim prepara-se aos poucos um tipo de civilização mais
universal que tanto mais promove e exprime a unidade do género humano, quanto
melhor respeita as particularidades das diversas culturas. ....
"Os teólogos, observados os métodos
próprios e as exigências da ciência teológica, são convidados sem cessar a
descobrir a maneira mais adaptada de comunicar a doutrina aos homens do seu
tempo. ....
"Na pastoral sejam suficientemente
conhecidos e usados não somente os princípios teológicos, mas também as
descobertas das ciências profanas, sobretudo da psicologia e da sociologia.
....
"Os fiéis .... unam os
conhecimentos das novas ciências e doutrinas e das últimas descobertas com a
moral e os ensinamentos da doutrina cristã para que a cultura religiosa e a
rectidão moral caminhem, junto dos mesmos homens, no mesmo passo do
conhecimento das ciências e da técnica em progresso incessante" (Gaudium
et Spes, 54 e 62).
Era este o modo pelo qual a grande
maioria dos homens – modelados espiritual e culturalmente pela civilização
ocidental – via o futuro. Desta visão participavam intelectuais de renome
universal, estadistas e homens de acção da maior envergadura.
Mas... em que situação histórica não se
esgueira um "mas"? Aos poucos o "paraíso" do progresso
também ia fazendo descontentes.
Outros modos de ver, de sentir e de agir
iam-se formando na penumbra e no silêncio paralelamente ao unanimismo
optimista. Porém, enquanto para este se encontravam abertas, de par em par, as
portas do mecanismo publicitário mundial, para aqueles os mass media não
concediam de bom grado os seus espaços. Eles achavam-se reduzidos a subsistir
nas nesgas da sociedade de então, dentro das quais o liberalismo reinante não
encontrava pretexto para persegui-los.
Este pequeno mundo – mantido assim na
obscuridade – constituído por um público heterogéneo e activo, era formado
pelos elementos mais diversos.
Convém mencionar, antes de tudo, os que
contestavam o valor da razão humana, questionando todo o edifício grandioso,
mas prenhe de frustrações, da cultura e da civilização ocidentais.
No pensamento deles não era difícil
discernir a influência dos filósofos germânicos, anteriores até à Revolução
Francesa.
De Kant, por exemplo, para quem o
conceito formado pela razão não seria exacto, mas influenciado por factores
subjectivos que lhe falseariam a objectividade. Da crítica da razão e do
conhecimento, resvalou ele para o subjectivismo e para um tal ou qual
imanentismo. Nos seus seguidores – Fichte, Schelling, Hegel e outros – tal
imanentismo foi desdobrado em teorias panteístas.
Era o antigo panteísmo, de origem
hinduísta e budista, que se espraiara em largas extensões da =sia e que
despontava então na história do Ocidente.
Este subjectivismo e este panteísmo
tomaram notas de pessimismo em Schopenhaeur e de desespero em Nietzsche. A
apologia da angústia feita pelos pais do existencialismo moderno (Kierkgaard,
Heidegger) não parece desligada destas tendências gerais.
Tal pensamento foi conquistando terreno
em circunscritas mas altas esferas intelectuais europeias ao longo dos séculos
XIX e XX.
A par disto, o "american way of
life" – difundido universalmente por Hollywood e visto por incontáveis
contemporâneos como o estilo de vida coerente, por excelência, com o triunfo
conjunto da razão, do progresso e da evolução – começava a ser questionado com
base nos inconvenientes do próprio sistema capitalista.
Realmente, o entusiasmo pela velocidade
nas comunicações e nos transportes, pelo entrelaçamento de todas as esferas de
actividade do homem com outras congéneres, em qualquer parte do mundo, trouxe
como consequência um febricitar geral. Febricitar das mentalidades, das
apetências, das sensações, das ambições, das actividades, dos business... dos
delírios, que acabou por produzir tantos e tão variados distúrbios físicos e
mentais, que se avolumam dia a dia e pressagiam a crise geral do Estado, da
sociedade, da cultura e da família. Sobre esta crise não é necessário dissertar
longamente pois salta aos olhos que desfechará numa crise global muito mais
terrível: a crise do homem.
Outra classe de descontentes – aliás bem
diversa – era formada por aqueles que foram contemporâneos da festiva aprovação
da Constituição conciliar Gaudium et Spes, e testemunharam o nascer e o
espraiar da gigantesca crise que começou a manifestar-se em toda a Igreja
depois do encerramento do Concílio Vaticano II.
Crise que se agravou com o aparecimento
da Teologia da Libertação, o alastrar-se de certo ecologismo e de certo
sub-consumismo pauperista e pseudo-evangélico, o qual vê nas condições de vida
tribais a organização perfeita da sociedade humana!
O presente que se ergue ante nós o
cândido optimismo dos Padres Conciliares de 1965 não o previu.
Este cândido optimismo leva-me aos
lábios um sorriso entristecido e reverente, o qual certos católicos
estranharão, não compreendendo a fidelidade filial para com a Santa Igreja e o
Papado que faz vibrar a minha alma no momento mesmo em que escrevo estas
linhas.
Esta reverência leva-me a aceitar com
todas as veras que o Divino Fundador da Igreja A queira regida por um Papa
infalível, em todas as matérias e condições em que Ele o quis infalível. E
falível em todas as matérias e condições em que Ele o quis falível, ou seja p.
ex., na apreciação de circunstâncias concretas em que estejam envolvidos estes
ou aqueles homens, estas ou aquelas situações.
* * *
O descontentamento que, nos bordos do
triunfalismo festivo do pós-II Guerra Mundial e do pós-Concílio Vaticano II, se
desenvolvia em obscuridades cada vez mais ténues, e numa proporção cada vez
menos corpuscular, explodiu de repente em 1968. Deu-se isto na sublevação da
Sorbonne, cujas sequelas abriram para o mundo horizontes de insensatez, de
corrupção moral e de caos até então insuspeitados pela grande massa.
Pouco adiantou que um monumental
protesto contra a rebelião da Sorbonne se realizasse nas ruas de Paris com a
famosa caminhada de um milhão de pessoas, movidas pelo entusiasmo forte e
sereno da idade madura. Ou que se levantassem em todos os quadrantes vozes de
protesto, muitas das quais ressonantes do merecido prestígio de grandes
personalidades.
Da sublevação da Sorbonne para cá
registaram-se, em múltiplas esferas do pensar e do proceder humano,
modificações sensíveis. Quase sempre, estas fizeram-se de maneira a tornar o
mundo de 1992 consideravelmente mais semelhante às metas da revolução da
Sorbonne.
O caos vai-se difundindo por toda a
parte. E demonstrá-lo aqui seria supérfluo e impossível. Supérfluo, porque nos
nossos dias só não percebe o caos quem foi cegado por ele e perdeu em
consequência os meios de o ver. Impossível, porque o caos é tão geral que seria
impraticável levantar no simples prefácio de um livro o rol de tudo o que ele
faz, ou em que ele existe. Aliás, se a isto se dedicasse este prefácio,
tornar-se-ia mais volumoso do que a obra que ele visa apresentar aos leitores.
* * *
O que até aqui expus não teve senão o
objectivo de delinear, tão resumidamente quanto possível, o quadro geral da
época em que Plinio Corrêa de Oliveira tem estendido a sua acção de pensador, de
escritor, de mestre e de líder católico conservador, com renome universal.
Nasceu ele de duas notáveis estirpes
brasileiras. Do lado paterno a nobre família Corrêa de Oliveira, de senhores de
Engenho, em Pernambuco, descendente de heróis da guerra contra o herege
holandês. Entre os membros desta, que tiveram destacada participação na vida
pública, cabe especial realce ao Conselheiro João Alfredo Corrêa de Oliveira,
Senador vitalício do Império e membro, também vitalício, do Conselho de Estado.
Conferiu-lhe verdadeira celebridade o facto de, como Primeiro-Ministro, haver
promulgado, com minha bisavó a Princesa Isabel – na ocasião Regente do Império
– a Lei de libertação dos escravos, cognominada "Lei Áurea", de 13 de
Maio de 1888. Proclamada a república por um golpe militar em 1889, João Alfredo
presidiu por longos anos, como pessoa de confiança da Princesa
"Redentora", então exilada em França, o Directório Monárquico. Este
homem de Estado – um dos mais célebres do Brasil – teve por irmão o senhor do
engenho de Uruaé, Leodegário Corrêa de Oliveira, do qual é neto o autor do
presente livro.
Sua mãe, Lucília Ribeiro dos Santos,
pertencia à tradicional classe dos paulistas ditos de "quatrocentos
anos" – isto é provenientes dos fundadores ou primeiros moradores da
cidade de São Paulo –, contando-se, entre os seus ascendentes, vários famosos
bandeirantes. Entre os antepassados maternos de Plinio Corrêa de Oliveira
destacou-se, durante o reinado do Imperador D. Pedro II, o Professor Gabriel
José Rodrigues dos Santos, catedrático da já então famosa Faculdade de Direito
de São Paulo, advogado, orador de grandes dotes e deputado, primeiramente a
nível provincial e mais tarde a nível nacional. Nestas funções, logo adquiriu
ele merecido realce. A morte arrebatou-o prematuramente.
Numa e noutra família, os debates
ideológicos que marcaram o Império (1822-1889) e as primeiras décadas da
República (1889-1930) ecoaram profundamente, produzindo as divisões bem
conhecidas: no campo religioso, uns mantinham-se firmemente fiéis à Religião
católica, e outros aderiam ao positivismo, o último grito da moda ideológica
daqueles tempos. Em matéria política, uns permaneciam fiéis ao regime extinto,
enquanto outros aderiam à República, em cujas lides políticas tomaram parte
saliente.
Plinio Corrêa de Oliveira presenciou no
ambiente familiar esse entrechoque de opiniões, o qual, à maneira brasileira,
era habitualmente enfático e ao mesmo tempo cordial.
Nestas importantes matérias foi ele
tomando posição, modelada segundo a inocência e a piedade do seu espírito ainda
infantil mas já notavelmente precoce e lúcido. Esta posição haveria de ser
confirmada ao longo dos anos pela reflexão, pela análise imparcial dos factos,
e pelo estudo, ao qual se afeiçoou desde cedo, com preferência marcada pelos
temas históricos.
Foi nesta linha de pensamento – ao mesmo
tempo como católico praticante e desassombrado, e como monarquista declarado –
que Plinio Corrêa de Oliveira se tornou um dos líderes mais em vista, nos meios
académicos do seu tempo.
Não é minha intenção acrescentar aqui
dados biográficos concernentes a este notável brasileiro. Já figuram eles, com
merecido destaque, noutra parte do presente volume. Tenho em vista, isto sim,
analisar o sentido profundo da sua obra intelectual, que pode ser estudada nos
livros de que é autor, e nos numerosos artigos de imprensa que tem escrito.
Sempre houve no Brasil, ao longo da
trajectória de Plinio Corrêa de Oliveira, católicos e monárquicos. Os
primeiros, crescendo em número e fervor, até que o progressismo veio abrir
entre eles inevitáveis divisões, estrepitosas polémicas, e a consequente
dispersão e minguamento de forças.
Os monárquicos, pelo contrário – com a
sua liberdade de pensamento e de acção tiranicamente suprimida pelo decreto nº
85-A, de 23 de Dezembro de 1889, confirmado pelo artº 90 da primeira
Constituição republicana de 1891 (a "cláusula pétrea") e pelas
diversas Constituições que se lhe seguiram ao longo da agitada vida do novo
regime -, foram decrescendo em número até que, em 1988, a 6ª Constituição
republicana suprimiu a malfadada "cláusula pétrea", reconhecendo
finalmente aos monárquicos uma liberdade política que a República a ninguém
negava, nem sequer aos comunistas!
Desde então, produziu-se um fenómeno
ideológico e político inesperado para muitos brasileiros. Ou seja, nos mais
diversos Estados, em todas as classes sociais, foram despontando monárquicos,
os quais – reunidos em valorosos agrupamentos, como o Conselho Pró-Brasil
Monárquico, os Círculos Monárquicos, a Acção Monárquica Feminina e a Juventude
Monárquica do Brasil, intimamente ligados a mim como legítimo sucessor de D.
Pedro II – progridem notoriamente na acção pacífica mas denodada que conduzo
com a brilhante e eficiente ajuda do Príncipe Dom Bertrand, meu irmão e
eventual sucessor.
Estes monárquicos têm os olhos
admirativamente voltados para o intrépido líder anticomunista, Plinio Corrêa de
Oliveira, o qual soube ser, como intelectual, um monárquico declarado, mesmo no
período em que mais dura foi o que poderia chamar a recessão monárquica. E cujo
pensamento fornece à polémica monárquica – tradicionalista por essência – um
manancial intelectual precioso.
Admiradores e amigos da monarquia também
se encontram em considerável número na Sociedade Brasileira de Defesa da
Tradição, Família e Propriedade – TFP, a maior organização anticomunista de
inspiração católica dos dias de hoje, fundada por Plinio Corrêa de Oliveira, e
da qual meu irmão Dom Bertrand e eu fazemos parte, desde a primeira juventude,
com merecido entusiasmo.
Entre os católicos que se intitulam de
esquerda e entre os adversários da tradição dos mais variados matizes – desde
os socialistas moderados até aos comunistas radicais e aos
"ecologistas", no sentido militantemente político do termo, sem
omitir certos centristas que na realidade não são senão adeptos camuflados do
socialismo – Plinio Corrêa de Oliveira é um alvo continuamente visado.
Por outro lado, é ele reconhecido como
um líder incontestado dos católicos que tomam no plano estritamente filosófico
e cultural uma posição, a qual, por analogia, é conhecida como de direita
católica.
* * *
Até hoje, a obra mestra de Plinio Corrêa
de Oliveira é Revolução e Contra-Revolução. Estou persuadido de que ao
lado desta inscrever-se-á no conceito geral Nobreza e elites tradicionais
análogas nas alocuções de Pio XII ao Patriciado e à Nobreza romana.
Revolução e Contra-Revolução, publicada em 1959, tem contado sucessivas edições
em vários países da Europa e das Américas. Constitui ela o livro de cabeceira
de todos os sócios e cooperadores das TFPs e Bureaux-TFP em 24 países dos cinco
continentes.
Essa obra é uma análise teológica,
filosófica e sociológica da crise do Ocidente, desde a sua génese no século XIV
até aos nossos dias. O essencial do pensamento de Revolução e Contra-Revolução
– a R-CR, como muitos a chamam por abreviação – consiste em que o
esmorecimento religioso e a decadência dos costumes característicos daquele
século difundiram na Europa uma sede imoderada dos prazeres da vida, e portanto
uma gravíssima crise de carácter moral, que afectou a fundo o Humanismo e a
Renascença. Pela sua natureza, ela constituía muito mais uma crise nas
tendências, do que nas convicções doutrinárias. Porém não haveria de tardar que
se alastrasse também ao campo intelectual, dada a fundamental unidade do homem.
A crise moral conduz próxima ou
remotamente a uma oposição a toda a lei e a todo o freio. Esta oposição, de
início, pode não ser senão uma antipatia. Porém, sugere a tendência a levantar
objecções de carácter doutrinário – ora mais radicais, ora menos – contra o
próprio facto de existirem autoridades às quais incumbe, pela mesma natureza
das coisas, a repressão das várias formas de mal. Daí haver nos espíritos
predispostos a isso pelas más tendências uma oposição também doutrinária a toda
a lei e a todo o freio. O termo final deste processo é a anarquia nos factos e
a anarquia nas doutrinas.
Está assim descrito o liberalismo
iluminista, cuja expressão última e mais radical é o anarquismo. E é na
anarquia que vai afundando o mundo contemporâneo.
O aparecimento do liberalismo, que
qualificaria de "anarcogénico", traz consigo outro fruto, que é a
oposição a todas as desigualdades. O liberalismo é igualitário. Onde se rejeita
com indignada ênfase toda e qualquer autoridade, é-se igualmente oposto a toda
e qualquer desigualdade. Pois qualquer superioridade, seja qual for o campo em
que se manifeste, constitui algum género de poder ou de influência directiva de
quem é mais sobre quem é menos. Daí o igualitarismo, cuja última consequência
consiste em reforçar o anarquismo.
Por fim, o aniquilamento de qualquer
distinção entre verdade e erro, bem e mal, cria a ilusão de reforçar a paz
entre os homens, pela interpenetração, pelo nivelamento de todas as religiões,
todas as filosofias, todas as escolas de pensamento e de cultura. Tudo equivale
a tudo: modo indirecto de dizer que tudo é nada. É o caos implantado nas raízes
mais profundas do pensamento humano, portanto a desordem mais completa no
existir do homem.
Isto que poderia ser qualificado como uma
genealogia de erros e de catástrofes – "abyssus abyssum invocat" –
não se faz ver apenas no terreno especulativo, mas também no dos factos.
Mostra a R-CR que este processo
libertário, igualitário e "fraterno" – pois é sob o pretexto da
fraternidade que se realiza nos nossos dias o festival mundial do ecumenismo em
todos os campos e matérias – teve a sua primeira explosão na apocalíptica
revolução protestante, que negou a autoridade suprema e universal dos Papas; em
várias das suas seitas negou ela também a autoridade dos Bispos, e noutras mais
radicais a autoridade dos presbíteros; e proclamou o princípio perfeitamente
anárquico do livre exame.
Passando da esfera religiosa para a
política, vê-se que este mesmo pensamento esteve na própria raiz da Revolução
Francesa, a qual visou modelar o Estado e a sociedade conforme os princípios de
Liberdade, Igualdade e Fraternidade, inerentes ao protestantismo. Ela negou o
rei, como o protestantismo havia negado o Papa; negou a nobreza, como certas
seitas protestantes diminuíram fortemente os poderes do clero (o qual é a
nobreza da Igreja) e outras até o eliminaram completamente; e proclamou, em
nome do livre pensamento, o princípio da soberania popular, como o
Protestantismo proclamara o princípio do livre exame.
Os revolucionários de 1789 só deixaram
de pé a propriedade privada, com o consequente senhorio do proprietário sobre
quem para ele trabalha e, por analogia, do intelectual sobre o trabalhador
manual. Mesmo assim, nos seus derradeiros estertores, pela pena do comunista
Babeuf, a Revolução Francesa chegou a negar até estas últimas desigualdades
residuais.
Por sua vez, em 1848, Marx proclamou a
igualdade sócio-económica completa e Lenine aplicou-a na Rússia a partir de
1917.
Três revoluções, três hecatombes, cada uma
gerada pela outra, têm como resultado, neste final de milénio, a 4ª Revolução,
auto-gestionária e tribal, como afirma Plinio Corrêa de Oliveira nas mais
recentes edições de Revolução e Contra-Revolução.
Livro para cuja edição francesa de 1960
o meu falecido pai, o Príncipe Dom Pedro Henrique, elaborou um substancioso e
belo prefácio, precisamente no sentido que acabo de enunciar, e que faz ver o
feitio intelectual da obra de Plinio Corrêa de Oliveira.
Foi a R-CR visivelmente escrita para
alertar a burguesia do Ocidente, cuja vigilância adormecera nos prazeres e nos
negócios, para o risco supremo em direcção ao qual caminhava. Não era apenas um
livro especulativo, mas também uma denúncia, feita com a esperança de que dela
nascesse um movimento, e desse movimento um contra-ataque. A fundação da TFP no
Brasil, o seu espraiar-se pelo vasto território do meu país e a propagação dos
seus ideais pelos cinco continentes são o fruto obtido pela acção pessoal e
concreta deste pensador que, na ordem da acção, actuava e actua no âmago da
realidade contemporânea.
Ora, Nobreza e elites tradicionais
análogas nas alocuções de Pio XII ao Patriciado e à Nobreza Romana tem
precisamente este carácter de uma obra de pensamento destinada a influenciar,
em profundidade, os factos.
* * *
Como um rochedo na ponta de um
promontório batido pelas ondas, a nobreza tem sofrido, a partir da Revolução
Francesa, sucessivos ataques. Quase por toda a parte, tiraram-lhe o poder
político. Em geral as leis negam-lhe qualquer direito específico, que não seja
o mero uso da titulatura e do nome tradicionais. O movimento geral da economia
e das finanças fez convergir para outras mãos a riqueza torrencial que ergueu
ao pináculo o capitalismo e com a qual a jet set procura deitar as suas luzes –
ou antes fazer brilhar as suas lantejoulas – por toda a parte.
O que, então, da nobreza sobrevive?
Reduzida ao que é, tem ela o direito de existir? Com que proveito para si mesma
e para o bem comum? Deve ela confinar-se irredutivelmente ao círculo dos
"bem-nascidos"? Ou, a perdurar a nobreza, deve a qualidade
nobiliárquica estender-se também a novas elites com características análogas às
dela se bem que não idênticas?
Plinio Corrêa de Oliveira, cujo espírito
é marcado por uma coerência modelar, vê na nobreza um desses rochedos imóveis
sem cuja resistência épica, às vezes até trágica, aos vagalhões das três
Revoluções, as terras do promontório – isto é, as civilizações e culturas –
teriam perdido a sua coesão e se teriam dissolvido nas ondas revoltas.
Não é raro encontrar membros da nobreza
conscientes dos deveres individuais que a sua condição de nobre lhes acarreta –
como o bom exemplo às demais classes, pelo procedimento moral irrepreensível ou
pela assistência aos desvalidos – mas os quais não possuem sobre as questões
acima enumeradas, senão noções vagas, quando tanto.
Aliás, facto análogo ocorre com as
outras classes. Antes de tudo com a mais favorecida delas na estrutura social
vigente, isto é, a burguesia. O direito de propriedade é o seu mais firme ponto
de apoio, porém são raros os burgueses conhecedores dos fundamentos morais e
religiosos da propriedade privada, dos direitos que esta proporciona e dos
encargos que traz consigo.
A ambas estas classes a obra de Plinio
Corrêa de Oliveira proporciona proveito inestimável, publicando o texto
integral das alocuções de Pio XII ao Patriciado e à Nobreza romana,
acrescentando-lhes comentários explicativos e exemplos históricos muito
eloquentes.
Plinio Corrêa de Oliveira, profundamente
imbuído dos princípios ensinados pelos Pontífices, é totalmente oposto ao
espírito da luta de classes.
Ele não vê na linha demarcatória entre
nobreza e povo uma zona de conflito. Muito pelo contrário, mostra-nos a nobreza
histórica, militar e agrícola como alto e puro cume da organização social, não,
porém, como um cume inacessível. Apenas como um píncaro habitualmente difícil
de alcançar, por estar na natureza das coisas que tal ascensão só se obtenha
pelo mérito.
Para Plinio Corrêa de Oliveira, a
perspectiva de uma árdua ascensão do elemento burguês para a condição de nobre
deve ser vista como um convite amigo para que adquira méritos e obtenha para
estes uma glorificação autêntica. Mais ainda. Na nossa época, na qual uma
profunda penetração da técnica no trabalho manual e um nível não subestimável
de instrução na classe operária a matiza com tantas diferenciações, há muitas
possibilidades de promoção social e profissional meritórias, que seria injusto
não levar em conta.
Amigo da hierarquia harmoniosa e
equilibrada em todos os domínios do agir humano, Plinio Corrêa de Oliveira
expende, por uma lúcida interpretação, os princípios de Pio XII a todas as
classes sociais, sem fundi-las e menos ainda sem confundi-las umas com as
outras.
Mas é fácil perceber que os seus
melhores desvelos voltam-se especialmente para os dois extremos da hierarquia
social, de onde os seus brilhantes comentários sobre opção preferencial pelos
nobres e opção preferencial pelos pobres.
No que me diz respeito, participo de
coração dessa dupla opção, fácil de notar e ser notada no espírito e na obra de
vários monarcas da Casa de Bragança, em Portugal e no Brasil. Neste livro –
baseado nas alocuções Pontifícias que ele reproduz e comenta – a atenção do
autor volta-se especialmente para a opção preferencial pelos nobres, sem
qualquer prejuízo da opção preferencial pelos pobres.
É missão especial da nobreza actuar em
defesa dos reis, quer eles estejam de posse do poder, na plenitude das
respectivas prerrogativas, quer tenham apenas "de jure" aquele poder
que lhes veio dos seus maiores e que nenhum golpe de força ou de demagogia pode
legitimamente suprimir.
Reciprocamente
é obrigação dos monarcas amar, respeitar e apoiar a sua nobreza, exercendo
assim a favor dela uma opção preferencial efectiva, que não se limita apenas a
mesuras e cortesias. É neste espírito que, ao encerrar estas linhas, volto o
meu pensamento, cheio de amizade, para as nobrezas e elites análogas de
Portugal – terra dilecta e gloriosa dos meus antepassados – e do meu querido
Brasil, grande por tantos feitos e sobretudo por tantas esperanças que a
Providência lhe deixa ver para o futuro.
Esse futuro que – nos quadros da realeza
constitucional, única forma de monarquia concebível para os dias que correm –
do fundo da alma, anseio cristão, forte e entrelaçado numa como que
Commonwealth toda ideal, feita de Fé católica, de sentimentos e de cultura,
constituída por todos os povos, de tão diversas raças e nações, que amam
deveras Portugal e falam português.
Por isto, como Chefe do ramo brasileiro
da Casa de Bragança e amigo enlevado e afectuoso da tradição e cultura lusas,
tenho a satisfação de apresentar e recomendar largamente, ao público português,
a leitura deste livro de Plinio Corrêa de Oliveira. Auguro para ele o aplauso
de quantos sabem e sentem o que é uma verdadeira nobreza, que ajude o povo a
ser sempre o que Pio XII recomenda, isto é, um verdadeiro povo animado por um
pensamento digno de ser chamado cristão. E que não capitule ante o risco de se
tornar uma massa anorgânica e inerte, soprada nas mais variadas direcções pela
psico-ditadura dos grandes cartéis publicitários.
São Paulo, 25 de março de
1993
Luíz de Orleans e Bragança