Capítulo VII
3. A Revolução, o orgulho e a sensualidade Os valores metafísicos da Revolução
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Duas noções concebidas como valores metafísicos exprimem bem o espírito da Revolução: a igualdade absoluta, liberdade completa. E duas são as paixões que mais a servem: o orgulho e a sensualidade. Referindo-nos às paixões, cumpre esclarecer o sentido em que tomamos o vocábulo neste trabalho. Para maior brevidade, conformando-nos com o uso de vários autores espirituais, sempre que falamos das paixões como fautoras da Revolução, referimo-nos às paixões desordenadas. E, de acordo com a linguagem corrente, incluímos nas paixões desordenadas todos os impulsos ao pecado existentes no homem em conseqüência da tríplice concupiscência: a da carne, a dos olhos e a soberba da vida26. A. Orgulho e Igualitarismo A pessoa orgulhosa, sujeita à autoridade de outra, odeia primeiramente o jugo que em concreto pesa sobre ela. Num segundo grau, o orgulhoso odeia genericamente todas as autoridades e todos os jugos, e mais ainda o próprio princípio de autoridade, considerado em abstrato. E porque odeia toda autoridade, odeia também toda superioridade, de qualquer ordem que seja. E nisto tudo há um verdadeiro ódio a Deus27. Este ódio a qualquer desigualdade tem ido tão longe que, movidas por ele, pessoas colocadas em alta situação a têm posto em grave risco e até perdido, só para não aceitar a superioridade de quem está mais alto. Mais ainda. Num auge de virulência o orgulho poderia levar alguém a lutar pela anarquia, e a recusar o poder supremo que lhe fosse oferecido. Isto porque a simples existência desse poder traz implícita a afirmação do princípio de autoridade, a que todo o homem enquanto tal - e o orgulhoso também - poder ser sujeito. O orgulho pode conduzir, assim, ao igualitarismo mais radical e completo. São vários os aspectos desse igualitarismo radical e metafísico: * a. Igualdade entre os homens e Deus: daí o panteísmo, o imanentismo e todas as formas esotéricas de religião, visando estabelecer um trato de igual a igual entre Deus e os homens, e tendo por objetivo saturar estes últimos de propriedades divinas. O ateu é um igualitário que, querendo evitar o absurdo que há em afirmar que o homem é Deus, cai em outro absurdo, afirmando que Deus não existe. O laicismo é uma forma de ateísmo, e portanto de igualitarismo. Ele afirma a impossibilidade de se ter certeza da existência de Deus. De onde, na esfera temporal, o homem deve agir como se Deus não existisse. Ou seja, como pessoa que destronou a Deus. * b. Igualdade na esfera eclesiástica: supressão do sacerdócio dotado dos poderes de ordem, magistério e governo, ou pelo menos de um sacerdócio com graus hierárquicos. * c. Igualdade entre as diversas religiões: todas as discriminações religiosas são antipáticas porque ofendem a fundamental igualdade entre os homens. Por isto, as diversas religiões devem ter tratamento rigorosamente igual. O pretender-se uma religião verdadeira com exclusão das outras é afirmar uma superioridade, é contrário à mansidão evangélica, e impolítico, pois lhe fecha o acesso aos corações. * d. Igualdade na esfera política: supressão, ou pelo menos atenuação, da desigualdade entre governantes e governados. O poder não vem de Deus, mas da massa, que manda e à qual o governo deve obedecer. Proscrição da monarquia e da aristocracia como regimes intrinsecamente maus, por anti-igualitários. Só a democracia é legítima, justa e evangélica28. * e. Igualdade na estrutura da sociedade: supressão das classes, especialmente das que se perpetuam por via hereditária. Abolição de toda a influência aristocrática na direção da sociedade e no tônus geral da cultura e dos costumes. A hierarquia natural constituída pela superioridade do trabalho intelectual sobre o trabalho manual desaparecerá pela superação da distinção entre um e outro.
* f. Abolição dos corpos intermediários entre os indivíduos e o Estado, bem como dos privilégios que são elementos inerentes a cada corpo social. Por mais que a Revolução odeie o absolutismo régio, odeia mais ainda os corpos intermediários e a monarquia orgânica medieval. É que o absolutismo monárquico tende a pôr os súditos, mesmo os mais categorizados, num nível de recíproca igualdade, numa situação diminuída que já prenuncia a aniquilação do indivíduo e o anonimato que chegam ao auge nas grandes concentrações urbanas da sociedade socialista. Entre os grupos intermediários a serem abolidos, ocupa o primeiro lugar a família. Enquanto não consegue extingui-la, a Revolução procura reduzi-la, mutilá-la e vilipendiá-la de todos os modos. * g. Igualdade econômica: nada pertence a ninguém, tudo pertence à coletividade. Supressão da propriedade privada, do direito de cada qual ao fruto integral de seu próprio trabalho e à escolha de sua profissão. * h. Igualdade nos aspectos exteriores da existência: a variedade redunda facilmente em desigualdade de nível. Por isso, diminuição quanto possível da variedade nos trajes, nas residências, nos móveis, nos hábitos etc. * i. Igualdade de almas: a propaganda como que padroniza todos as almas, tirando-lhes as peculiaridades, e quase a vida própria. Até as diferenças de psicologia e atitude entre sexos tendem a minguar o mais possível. Por tudo isto, desaparece o povo que é essencialmente uma grande família de almas diversas mas harmônicas, reunidas em torno do que lhes é comum. E surge a massa, com sua grande alma vazia, coletiva, escrava29. * j. Igualdade em todo o trato social: como entre mais velhos e mais moços, patrões e empregados, professores e alunos, esposo e esposa, pais e filhos, etc. * k. Igualdade na ordem internacional: o Estado é constituído por um povo independente exercendo domínio pleno sobre um território. A soberania é, assim, no Direito Público, a imagem da propriedade. Admitida a idéia de povo, com características que o diferenciam dos outros, e a de soberania, estamos forçosamente em presença de desigualdades: de capacidade, de virtude, de número etc. Admitida a idéia de território, temos a desigualdade quantitativa e qualitativa dos vários espaços territoriais. Compreende-se, pois, que a Revolução, fundamentalmente igualitária, sonhe em fundir todas as raças, todos os povos e todos os Estados em uma só raça, um só povo e um só Estado30. * l. Igualdade entre as diversas partes do país: pelas mesmas razões, e por um mecanismo análogo, a Revolução tende a abolir no interior das pátrias ora existentes todo o sadio regionalismo político, cultural, etc. * m. Igualitarismo e ódio a Deus: Santo Tomás ensina31 que a diversidade das criaturas e seu escalonamento hierárquico são um bem em si, pois assim melhor resplandecem na criação as perfeições do Criador. E diz que tanto entre os Anjos32 quanto entre os homens, no Paraíso Terrestre como nesta terra de exílio33, a Providência instituiu a desigualdade. Por isso, um universo de criaturas iguais seria um mundo em que se teria eliminado em toda a medida do possível a semelhança entre criaturas e Criador. Odiar, em princípio, toda e qualquer desigualdade é, pois, colocar-se metafisicamente contra os melhores elementos de semelhança entre o Criador e a criação, é odiar a Deus. * n. Os limites da desigualdade: claro está que de toda esta explanação doutrinária não se pode concluir que a desigualdade é sempre e necessariamente um bem. Os homens são todos iguais por natureza, e diversos apenas em seus acidentes. Os direitos que lhes vêm do simples fato de serem homens são iguais para todos: direito à vida, à honra, a condições de existência suficientes, ao trabalho, pois, e à propriedade, à constituição de família, e sobretudo ao conhecimento e prática da verdadeira Religião. E as desigualdades que atentem contra estes direitos são contrárias à ordem da Providência. Porém, dentro destes limites, as desigualdades provenientes de acidentes como a virtude, o talento, a beleza, a força, a família, a tradição, etc., são justas e conformes à ordem do universo34. B. Sensualidade e liberalismo A par do orgulho gerador de todo o igualitarismo, a sensualidade, no mais largo sentido do termo, é causadora do liberalismo. É nestas tristes profundezas que se encontra a junção entre esses dois princípios metafísicos da Revolução, a igualdade e a liberdade, contraditórios em tantos pontos de vista. * a. A hierarquia na alma: Deus, que imprimiu um cunho hierárquico em toda a criação, visível e invisível, fê-lo também na alma humana. A inteligência deve guiar a vontade, e esta deve governar a sensibilidade. Como conseqüência do pecado original, existe no homem um constante atrito entre os apetites sensíveis e a vontade guiada pela razão: “Vejo nos meus membros outra lei, que combate contra a lei da minha razão”35. Mas a vontade, rainha reduzida a governar súditos postos em contínuas tentativas de revolta, tem meios de vencer sempre... desde que não resista à graça de Deus36. * b. O igualitarismo na alma: o processo revolucionário, que visa o nivelamento geral, mas tantas vezes não tem sido senão a usurpação da função retriz por quem deveria obedecer, uma vez transposto para as relações entre as potências da alma haveria de produzir a lamentável tirania de todas as paixões desenfreadas, sobre uma vontade débil e falida e uma inteligência obnubilada. Especialmente o domínio de uma sensualidade abrasada, sobre todos os sentimentos de recato e de pudor. Quando a Revolução proclama a liberdade absoluta como um princípio metafísico, fá-lo unicamente para justificar o livre curso das piores paixões e dos erros mais funestos. * c. Igualitarismo e liberalismo: a inversão de que falamos, isto é, o direito de pensar, sentir e fazer tudo quanto as paixões desenfreadas exigem, é a essência do liberalismo, isto bem se mostra nas formas mais exacerbadas da doutrina liberal. Analisando-as, percebe-se que o liberalismo pouco se importa com a liberdade para o bem. Só lhe interessa a liberdade para o mal. Quando no poder, ele facilmente, e até alegremente, tolhe ao bem a liberdade, em toda a medida do possível. Mas protege, favorece, prestigia, de muitas maneiras, a liberdade para o mal. No que se mostra oposto à civilização católica, que dá ao bem todo o apoio e toda a liberdade, e cerceia quanto possível o mal. Ora, essa liberdade para o mal é precisamente a liberdade para o homem enquanto “revolucionário” em seu interior, isto é, enquanto consente na tirania das paixões sobre sua inteligência e sua vontade. E assim o liberalismo é fruto da mesma árvore que o igualitarismo. Aliás, o orgulho, enquanto gera o ódio a qualquer autoridade37, induz a uma atitude nitidamente liberal. E a este título deve ele ser considerado um fator ativo do liberalismo. Quando, porém, se deu conta de que, se deixarmos livres os homens, desiguais por suas aptidões e sua aplicação, a liberdade engendrará a desigualdade, a Revolução, por ódio a esta, deliberou sacrificar aquela. Daí nasceu sua fase socialista. Esta fase não constitui senão uma etapa. A Revolução espera, em seu termo final, realizar um estado de coisas em que a completa liberdade coexista com a plena igualdade. Assim, historicamente, o movimento socialista é um mero requinte do movimento liberal. O que leva um liberal autêntico a aceitar o socialismo é precisamente que, neste, se proíbem tiranicamente mil coisas boas, ou pelo menos inocentes, mas se favorece a satisfação metódica, e por vezes com aspectos de austeridade, das piores e mais violentas paixões, como a inveja, a preguiça, a luxúria. E de outro lado, o liberal entrevê que a ampliação da autoridade no regime socialista não passa, dentro da lógica do sistema, de meio para chegar à tão almejada anarquia final. Os entrechoques de certos liberais ingênuos ou retardados, com os socialistas, são, pois, meros episódios superficiais no processo revolucionário, inócuos qui pro quo que não perturbam a lógica profunda da Revolução, nem sua marcha inexorável num sentido que, bem vistas as coisas, é ao mesmo tempo socialista e liberal. * d. A geração do “rock and roll”: o processo revolucionário nas almas, assim descrito, produziu nas gerações mais recentes, e especialmente nos adolescentes atuais que se hipnotizam com o “rock and roll”, um feitio de espírito que se caracteriza pela espontaneidade das reações primárias, sem o controle da inteligência nem a participação efetiva da vontade; pelo predomínio da fantasia e das “vivências” sobre a análise metódica da realidade: fruto, tudo, em larga medida, de uma pedagogia que reduz a quase nada o papel da lógica e da verdadeira formação da vontade. * e. Igualitarismo, liberalismo e anarquismo: conforme os itens anteriores (“a” a “d”), a efervescência das paixões desregradas, se desperta de um lado o ódio a qualquer freio e qualquer lei, de outro lado provoca o ódio contra qualquer desigualdade. Tal efervescência conduz assim à concepção utópica do “anarquismo” marxista, segundo a qual uma humanidade evoluída, vivendo numa sociedade sem classes nem governo, poderia gozar da ordem perfeita e da mais inteira liberdade, sem que desta se originasse qualquer desigualdade. Como se vê, o ideal simultaneamente mais liberal e mais igualitário que se possa imaginar. Com efeito, a utopia anárquica do marxismo consiste em um estado de coisas em que a personalidade humana teria alcançado um alto grau de progresso, de tal maneira que lhe seria possível desenvolver-se livremente numa sociedade sem Estado nem governo. Nessa sociedade - que, apesar de não ter governo, viveria em plena ordem - a produção econômica estaria organizada e muito desenvolvida, e a distinção entre trabalho intelectual e manual estaria superada. Um processo seletivo ainda não determinado levaria à direção da economia os mais capazes, sem que daí decorresse a formação de classes. Estes seriam os únicos e insignificantes resíduos de desigualdade. Mas, como essa sociedade comunista anárquica não é o termo final da História, parece legítimo supor que tais resíduos seriam abolidos em ulterior evolução. Notas: 26) Cfr. 1 Jo. 2, 16. 27) Cfr. Item “m” infra. 28) Cfr. São Pio X, Carta Apostólica Notre Charge Apostolique, de 25-VIII-1910 - A. A. S., vol. II, pp. 615 a 619. 29) Cfr. Pio XII, Radiomensagem de Natal de 1944 – Discorsi e Radiomessaggi, vol. VI, p. 239. 30) Cfr. Parte I - Cap. XI, 3. 31) Cfr. Contra os Gentios, II, 45; Suma Teológica, I, q. 47, a. 2. 32) Cfr. Suma Teológica, I, q. 50, a. 4. 33) Cfr. op. cit., I, q. 96, a. 3 e 4. 34) Cfr. Pio XII, Radiomensagem de Natal de 1944 – Discorsi e Radiomessaggi, vol. VI, p. 239. 35) Rom. 7,23. 36) Cfr. Rom. 7,25. 37) Cfr. item “A”, supra. |