Reforma Agrária - Questão de Consciência


Secção III

A Questão de Consciência

Qual o alcance, para a vida religiosa do povo brasileiro, da implantação de uma "Reforma Agrária"?

À primeira vista, pareceria ao mesmo tempo muito grande e muito pequeno.

Muito grande, pois uma lei do Estado que violasse tão frontalmente o 7º mandamento constituiria um pecado mortal coletivo, capaz de atrair sobre o País não só as punições temporais e de que dentro em pouco falaremos (290), como também e principalmente uma retração das graças de Deus. Essa retração teria efeito nocivo sobre toda a vida religiosa do Brasil.

Ao mesmo tempo, o alcance de uma "Reforma Agrária" poderia parecer de algum modo bastante pequeno. As igrejas permaneceriam abertas, o culto divino não seria impedido, o Clero teria sempre franqueadas diante de si todas as suas atuais possibilidades de ação, as organizações católicas continuariam a vicejar como agora. Dentro em breve, ninguém mais pensaria no pecado coletivo. A Santa Igreja poderia, pois, trabalhar numa sociedade igualitária nova com o mesmo êxito com que trabalha nos quadros sociais atualmente vigentes.

Em suma, a "Reforma Agrária" teria uma influência bem pequena na vida religiosa da Nação.

É esta a versão, em termos brasileiros, do sonho da coexistência pacífica entre a Igreja e o regime socialista.

A impressão de primeira vista, que acabamos de enunciar, não resiste ao menor exame.

Com efeito, esse sonho é impossível por várias razões, das quais mencionaremos algumas.

Sendo da missão da Igreja velar por que os indivíduos, as famílias e os Estados observem a lei de Deus, toda a sua influência sobre as almas tenderá necessariamente a eliminar o regime socialista, seja ele radical ou "moderado".

A sede de igualdade, que devora em nossa época tantos espíritos, constitui uma paixão desordenada e tem algo de veemente e radical. Ela não se sentirá saciada senão quando tiver levado os erros do igualitarismo coletivista às últimas conseqüências. Neste sentido, ela é totalitária.

Em princípio, as concessões que se fazem às paixões desordenadas não lhes diminuem o ímpeto. Pelo contrário, o alimentam. É por isto que se vê que o igualitarismo, ao qual tantas concessões vêm sendo feitas há muito mais de um século, se mostra hoje mais desabrido e dinâmico do que nunca.

A implantação de uma "Reforma Agrária" daria novo e terrível incremento à paixão igualitária, que tenderia sempre mais impetuosamente ao que, como já vimos (291) constitui seu termo último: a abolição da família e da Igreja.

Na justificação que demos (292) da propriedade privada e da família, ficou patente que uma e outra se baseiam no fato de o homem ter uma alma espiritual dotada de inteligência e vontade. Em uma sociedade sem propriedade individual ou sem família, a alma humana fica como que em estado de violência. A inteligência tende a se embotar, e a vontade a se desfibrar. O homem de muita personalidade é, no regime socialista, como um automóvel que anda pelas ruas contra a mão. O socialismo só se realiza inteiramente com "robots". E o homem "robot" é o fruto típico e lógico do ambiente socialista, da educação socialista, das instituições socialistas, e de todo o sistema socialista de vida.

Por esta forma, o socialismo tende a produzir no homem um efeito diametralmente oposto ao da Igreja. A graça divina, da qual esta é dispensadora, muito longe de amesquinhar a natureza humana a ponto de a reduzir a um autômato, tem por efeito próprio elevá-la e santificá-la. Nada mais diferente de um "robot" do que um mártir que derrama seu sangue no Coliseu, um cruzado que luta pela libertação do Santo Sepulcro, um missionário que desbrava as selvas para conquistar almas para Jesus Cristo, ou uma vítima expiatória que oferece sua vida em holocausto voluntário e sublime, pela salvação dos ímpios e dos pecadores.

Todo regime socialista, ainda que reconheça à Igreja plena liberdade para existir e agir, solapa a fundo a obra desta por isto mesmo que forma "robots". Como a Igreja solapa a fundo o regime socialista por isto mesmo que forma católicos. Ora, esta tensão profunda, necessária, inevitável, é bem exatamente o contrário da coexistência pacífica.

 

Favorecer a "Reforma Agrária" é violar o 1º mandamento

Para todo católico se delineia, em virtude destas razões, a seguinte verdade: favorecer a "Reforma Agrária", aprovar ou aplicar uma lei que a implante entre nós, constitui, em tese, violação do 1º mandamento do Decálogo.

É fácil ver, a esta luz, que a "Reforma Agrária" não é só uma questão econômica, mas importa em uma questão de consciência.

E a revisão agrária?

A expressão "revisão agrária" vem sendo empregada nos últimos meses para indicar uma "Reforma Agrária" menos radical. Neste sentido, foi escolhida para designar o recente projeto de lei no. 154/60 do governo do Estado de São Paulo.

A "Reforma Agrária" menos radical, ou revisão agrária, é contrária à doutrina católica?

Sendo a "Reforma Agrária" a introdução do socialismo na estrutura agropecuária, deve-se dizer de suas várias modalidades mais ou menos radicais, o mesmo que se diz (293) dos vários matizes do socialismo: dissentem fundamentalmente, em medidas diversas embora, da doutrina católica.

 

Questão de consciência por antonomásia

O que ficou dito concerne ao 1º mandamento. Entretanto, não é só ele que a "Reforma Agrária" atingiria. Há ainda, e mais diretamente atingido, também o 7º mandamento, e a questão de consciência daí decorrente é bem mais delicada e importante, pelo número incalculável de pessoas que ela envolverá eventualmente. E, por assim dizer, no tocante à "Reforma Agrária", a questão de consciência por antonomásia.

Vimos que a lei do Estado que mutila ou suprime o direito de propriedade é contrária a lei de Deus.

Este fato cria um problema que é inútil não considerar de frente. O problema é o seguinte:

a) Não há quem ignore que a Igreja, com fundamento em princípios santíssimos, sempre ensinou aos povos o dever da obediência às autoridades legítimas, e em determinadas circunstâncias até às ilegítimas; sempre empenhou seus esforços por que todos os fiéis cumprissem esse dever, e jamais recusou ao poder público sua cooperação para a manutenção da ordem na sociedade. Ela reivindica para si este título de glória: o de ser a coluna de toda ordem temporal perfeita; e com freqüência os chefes das nações, fazendo até mesmo, por vezes, abstração de seu caráter divino, têm timbrado em Lhe reconhecer a benemerência neste campo.

Vários dos documentos pontifícios citados no presente trabalho põem em evidência a posição da Igreja a este respeito.

b) Entretanto, quando a lei do Estado é certamente contrária à lei de Deus, a quem deve o fiel obedecer? Ao Estado? A Deus?

Qual, nesta matéria, a doutrina dos Vigários de Jesus Cristo? Leiamos alguns textos dos Papas mais recentes, que são o eco fiel e imutável de um ensinamento que vem de São Pedro (294) até nossos dias:

Desobedecer à lei civil é desobedecer ao próprio Deus

"Inculcai ao povo cristão a obediência e sujeição devidas aos príncipes e poderes constituídos, ensinando, conforme doutrinava o Apóstolo (Rom. 12, 1-2), que todo poder vem de Deus e que os que não obedecem ao poder constituído resistem à ordem de Deus e se condenam a si próprios; e igualmente o preceito de obedecer a esse poder não pode ser violado impunemente por ninguém, a não ser que seja ordenado algo contra a lei de Deus e da Igreja" (295).

Única razão válida para desobedecer

"Existe uma única razão válida para recusar a obediência: é o caso de um preceito manifestante contrário ao direito natural ou divino, pois onde quer que se tratasse de infringir ou a lei natural ou a vontade de Deus, o mandamento e a execução seriam igualmente criminosos. Se, pois, nos achássemos reduzidos à alternativa de violar ou as ordens de Deus ou as dos governantes, forçoso seria o preceito de Jesus Cristo que quer que "se dê a César o que é de César e a Deus o que é de Deus" (Mt. 22, 21), e, a exemplo dos Apóstolos, deveríamos responder: "Devemos obedecer a Deus antes que aos homens" (At. 5, 29). E não seria justo acusar os que assim agem de desconhecerem o dever da submissão; porquanto os príncipes cuja vontade está em oposição com a vontade e as leis de Deus excedem nisso os limites do seu poder e subvertem a ordem da justiça; desde então sua autoridade perde a força, pois onde não há mais justiça também não há mais autoridade" (296).

"... se as leis dos homens alguma coisa mandarem contra a eterna lei de Deus, o justo é não obedecer" (297).

Obedecer à lei civil por amor de Deus – não porém quando ela é contra Cristo

A esse respeito o Papa Gregório XVI, na Encíclica "Mirari Vos" (298) faz suas as seguintes palavras de Santo Agostinho: "Os soldados cristãos serviram fielmente aos imperadores infiéis, mas, quando se tratava da causa de Cristo, outro imperador não reconheceram que o dos Céus. Distinguiam o Senhor eterno do senhor temporal; e não obstante, pelo primeiro obedeciam ao segundo" (299).

Não é lícito desobedecer a Deus para obedecer aos homens

"Se a vontade dos legisladores e dos príncipes sancionar ou ordenar alguma coisa que esteja em oposição com a lei divina ou natural, a dignidade e o dever do nome cristão, assim como o preceito apostólico, prescrevem que devemos "obedecer a Deus antes que aos homens"(At. 5, 29)" (300).

Sobre o mesmo assunto, Leão XIII corrobora, na Encíclica "Rerum Novarum" (301) esta afirmação de São Tomás de Aquino: "uma lei não merece obediência, senão enquanto é conforme à reta razão e à lei eterna de Deus" (302).

"Seria crime negar obediência a Deus para dá-la aos homens; seria delito infringir as leis de Jesus Cristo para obedecer aos magistrados, ou violar os direitos da Igreja sob pretexto de guardar as leis de ordem civil. "Importa obedecer mais a Deus do que aos homens" (At. 5, 29). Esta resposta que outrora costumavam dar Pedro e os mais Apóstolos aos magistrados, quando lhes ordenavam coisas ilícitas, cumpre repeti-la todos os dias, muito resolutamente, em circunstâncias iguais. Não há melhor cidadão, quer na paz, quer na guerra, do que o cristão que o é deveras; mas por isso mesmo que o é, deve estar resolvido a sofrer tudo e a mesma morte, antes do que desertar a causa de Deus e da Igreja" (303).

Falta de patriotismo: obedecer às leis contrárias a Deus

"... se as leis do Estado se puserem em aberta contradição com a de Deus, se forem injuriosas para a Igreja ou contrárias aos deveres religiosos, se violarem no Sumo Pontífice a autoridade de Jesus Cristo, então resistir é obrigação, e obedecer seria um crime, e crime até contra a pátria, porque pecar contra a Religião é fazer mal ao próprio Estado" (304).

Importando a "Reforma Agrária" numa transferência forçada de imóveis, de seus legítimos proprietários para terceiros, feita sem motivo justo – sem indenização, mediante indenização insuficiente, ou mesmo com indenização suficiente – constituirá uma clara violação do 7º mandamento da lei de Deus. Isto posto, em numerosos casos concretos ela apresentará dolorosos problemas de consciência a muitos brasileiros.

Com efeito, os moralistas católicos unanimemente qualificam de roubo essa ação. Portanto, em princípio, e salvo circunstâncias concretas eventualmente ligadas a determinadas situações, o católico não terá direito de receber tais terras. E, recebendo-as, terá de renunciar a elas (305). Pois a ninguém é lícito aceitar o que não pertence a quem vende ou doa; nem ficar na posse de coisa que sabe pertencer legitimamente a outrem.

Este dever obriga a tal ponto, que um católico que aceitasse tais terras não poderia receber a absolvição sem ter feito a devida restituição, ou pelo menos sem o propósito de a fazer logo que possível. Se, depois da absolvição, retardar a restituição por negligência ou apego ao bem alheio, pecará novamente.

Mencionamos só uma hipótese. Mas os mesmos princípios se aplicam, mutatis mutandis, às situações análogas.

Desses problemas, tampouco o confessor, qualquer que seja sua bondade e sua compaixão, poderia fazer abstração. Pois o confessor e o moralista bem sabem que não lhes toca transigir com direitos de terceiros, isto é, dos proprietários lesados, e que a injustiça que autorizassem ou deixassem subsistir recairia sobre seus ombros ante o tribunal de Deus, com a conseqüente obrigação de reparar o dano causado.

* * *

A fim de evitar qualquer dúvida, julgamos conveniente repetir que a partilha de terras perderia seu caráter revolucionário e injusto, se se demonstrasse que a atual estrutura agrária nacional é responsável por uma situação econômica tão grave, que a coisa pública está ameaçada de ruína; e que só com a reforma dessa estrutura, feita sem detrimento das normas da justiça, é possível remediar o mal. Pois o direito de sobrevivência da sociedade tem, neste ponto, precedência sobre o direito dos proprietários médios e grandes.

A Parte II põe em evidência que não há provas de que nossa estrutura agrária seja responsável pela presente crise econômica, nem de que esta possa ser resolvida pela "Reforma Agrária". Há até provas do contrário.

Não cabe pois no caso a distinção conhecida: em tese a "Reforma Agrária" seria um mal; na hipótese concreta, não.

O direito de propriedade é sagrado. A propriedade privada é uma instituição essencial ao bem comum. Sem provas claras, positivas, certas, não se pode violar esse direito, nem interferir nessa instituição.

Mas, objetará talvez alguém, o caráter imoral da "Reforma Agrária" repousa sobre duplo fundamento:

a) doutrinário: ao Estado, em princípio, não é lícito apropriar-se do que é de particulares, sem razão suficiente e indenização adequada. Só as circunstâncias especialíssimas em que a salvação do bem comum exija podem constituir razão suficiente para uma desapropriação sem indenização adequada.

b) concreto: ora, destas circunstâncias algumas são inexistentes e de outras não há provas.

Quanto à primeira razão, a Igreja é mestra. Mas a segunda parece de alçada do Estado. Pois a ele e só a ele compete dizer em que condições concretas está o País. À Igreja, a quaisquer grupos sociais, aos particulares, cabe acreditar no Estado.

Esse argumento seria muito certo, por sua vez, se pudessem admitir dois pressupostos:

a) o Estado nunca se engana;

b) o Estado nunca engana a outrem.

O Estado infalível em sua esfera e indefectivelmente veraz poderia exigir que o tratassem assim. E neste caso teríamos mais uma vez chegado ao totalitarismo: o ditador (indivíduo ou multidão) que nunca erra e nunca engana tem evidentemente o direito de pronunciar a última palavra sobre a moralidade de seus próprios atos.

No passado, houve mais de um conflito entre a Igreja e soberanos, porque estes acabrunhavam o povo com tributos excessivos. A Igreja ouviu o clamor da multidão faminta, e intercedeu eficazmente por ela. É um dos seus muitos títulos de glória, no capítulo de suas relações com o poder temporal.

Se um soberano se tivesse recusado a atende-la dizendo que ao Estado, e não à Igreja nem ao povo, caberia saber se os impostos eram exagerados ou não, deveria a Igreja ter acolhido comodamente esta alegação, deixando o povo entregue à fome?

Hoje não são mais reis, mas em geral repúblicas que ela tem em sua presença. Do momento em que alguma destas intentar operar uma espoliação em proporções tais como quiçá nunca um rei praticou, isto é, se procurar apropriar-se da generalidade das terras de um país, e os gemidos dos espoliados subirem até a Igreja, deverá esta agir de outra maneira?

A esta pergunta, qualquer consciência cristã responderá pela negativa.

Se se concedesse, para argumentar, que na atual situação brasileira é necessária uma redistribuição de terras de maneira a abolir as propriedades grandes e médias, e que o poder público não tem recursos para pagar as indenizações respectivas, a redistribuição deveria ter o caráter de medida excepcionalíssima, e a este título transitória.

Dizemos "transitória" no sentido de que não deveria ser mantido no Brasil, decorrente da "Reforma Agrária", um regime crônico e perpétuo só de pequenas propriedades, mas que logo que possível deveriam os particulares ser reintegrados em seu direito natural de dispor de seus bens, acumulá-los e, pois, reconstituir uma justa e proporcionada desigualdade.

É curioso que muito se fala de dar o grande passo que seria a "Reforma Agrária". Mas o preconceito socialista que impera neste assunto parece tão grande, que poucos se lembram deste outro problema que desde já deveria ser em certa medida previsto: feita a "Reforma Agrária", como sair dela?

No fundo, o que muitos almejam não é uma medida de emergência, mas um ideal social fixo e estável: o ideal socialista.

 

"Odiai o erro; amai os que erram"

"Odiai o erro; amai os que erram", é máxima atribuída a Santo Agostinho. Premunindo o leitor contra a "Reforma Agrária", não têm os autores a menor animadversão pessoal em relação a quem quer que seja.

Desligados de qualquer compromisso político, também não tiveram em vista tomar atitude em face dos problemas político-partidários do momento. Não cogitam de situação nem de oposição. Têm seus olhos postos apenas na Igreja e no Brasil.

Folgam os autores em reconhecer que entre os propugnadores mais notórios da "Reforma Agrária" há muitos homens de uma reputação profissional excelente, pertencentes a um meio distinto, e notáveis pela probidade com que se conduzem na vida de família, na gestão de seus negócios, ou dos cargos públicos que eventualmente ocupem ou tenham ocupado.

Qualificar a "Reforma Agrária" por eles almejada de violação do 7º mandamento não importa em negar esses predicados. Como dizer que a eutanásia infringe o 5º mandamento não implica em negar que os que propugnam essa medida possam ser homens de trato pacífico e afetivo, de costumes ordeiros e tranqüilos, dos quais não é de se recear, nem de longe, que maltratem ou firam as pessoas com quem têm contato corrente na vida quotidiana.

 

A quem interessa a questão de consciência?

A questão de consciência de que tratamos interessa, no momento, antes de tudo, aos que, por sua autoridade em razão de cargo oficial, ou de sua influência sobre a opinião pública, podem cooperar para a adoção ou rejeição da "Reforma Agrária". E isto ainda que não se trate de católicos.

Com efeito, o legislador criterioso – ou quem, a qualquer título, influi sobre a elaboração das leis – deve ter em vista as condições concretas de toda ordem, não só políticas, sociais e econômicas, como também ideológicas, do país para o qual legisla. E isto quer aprove ou censure essas circunstâncias ideológicas, quer lhes seja indiferente. Um católico, por exemplo, que legislasse para um Estado maometano não poderia ser alheio à circunstância de que toda a população teria mentalidade, tradições, costumes, marcados pelo espírito do islamismo. Reciprocamente, qualquer que seja a opinião de um legislador brasileiro sobre a civilização cristã, baseada nos princípios da liberdade do homem para o bem, da família e da propriedade privada, deverá ele tomar em conta que nosso povo é católico, e que, pois, sua atitude em face da lei será inspirada pelos ditames morais da Igreja, corroborados concretamente pela ação profunda de nossa tradição cristã. Nenhum legislador pátrio pode ser indiferente, portanto, aos problemas de consciência graves e generalizados que criaria para o brasileiro a lei da "Reforma Agrária", ainda que sob a forma, algum tanto mitigada, de uma revisão agrária. A não ter presente esta consideração, melhor seria que a lei contivesse um artigo dispondo que fica proibido ao nosso povo ser católico.

Nestes termos, a "Reforma Agrária" prepararia todas as condições para uma questão religiosa. Pois, sempre que da lei do Estado se originam circunstâncias nas quais a prática da Religião se torna sobremaneira difícil para grande número de pessoas, é à Igreja que se fere no cumprimento de sua missão.

O católico, iluminado pela fé, deve atribuir ao assunto um interesse ainda maior, quer enquanto brasileiro, quer enquanto fiel. Enquanto brasileiro porque, sabendo que a civilização cristã é a condição fundamental da ordem temporal perfeita – dizem-no todos os Papas – deve querer para seu País esse benefício inestimável.

E, pois, tudo quanto abale ou perturbe a consciência cristã do Brasil deve-se afigurar a ele como altamente nocivo ao bem comum.

Como fiel, o católico – que o seja realmente, e não apenas de boca – crê firmemente que lhe cumpre obedecer ao Decálogo, e deve reconhecer a maior importância ao confronto de sua conduta, em todos os assuntos, o da "Reforma Agrária’ inclusive, com as normas infinitamente sábias e amorosas que Deus lhe traçou.

Se tal obrigação existe para qualquer fiel, a fortiori ela se refere aos que, por razão do ofício que exercem na sociedade temporal – jornalistas, oradores, pais, mestres etc. – têm o encargo de formar e orientar pessoas, concorrendo assim para imprimir rumo a toda a opinião pública.

Portanto, para todos os brasileiros importa conhecer a doutrina da Igreja sobre a moralidade dos atos relacionados com a "Reforma Agrária".

 

Vários aspectos da questão de consciência

Expondo a doutrina católica sobre o assunto, fazemo-lo com o anelo muito cordial de esclarecer nesse particular todos os brasileiros.

A forma sucinta e quase diríamos esquemática da exposição corresponde ao desejo de tratar a matéria com toda a clareza possível.

Como vimos, a eventual implantação da "Reforma Agrária" importaria em uma lesão do direito de propriedade. Este fato criaria um problema de consciência não só para os que fossem responsáveis por tal lesão, mas ainda para os que dela se beneficiassem. Beneficiários da lei seriam os que recebessem do Estado, por doação ou compra, mediante preço justo ou não, terras ilicitamente subtraídas aos seus legítimos donos. Seriam também beneficiários os que comprassem, por valor inferior ao real, as terras vendidas pelos legítimos proprietários que se achassem impossibilitados de as conservar por motivo de uma taxação injusta.

Exporemos os princípios que regem a matéria, sem considerar, em suas peculiaridades, os casos concretos que eventualmente comportem alguma solução mais matizada. Deles tratará a casuística.

Consideraremos, preliminarmente, os princípios comuns que se relacionam mais proximamente com o assunto deste trabalho, tendo em vista as várias modalidades de "Reforma Agrária", inclusive a revisão agrária.

De si, contribuir, por ação ou omissão, para uma medida que fere gravemente a Igreja no exercício da missão que lhe foi confiada por Nosso Senhor Jesus Cristo, constitui pecado mortal. É o caso da "Reforma Agrária". Quem concorre para a aprovação ou aplicação de uma lei criando condições econômico-sociais que deformam as almas, suscita obstáculos à ação da Igreja que consiste em formá-las. Acresce que se alguém, além de favorecer em sua atuação a "Reforma Agrária", aplicando, por exemplo, a lei que a tenha implantado, também faz apologia dela, baseando-se em princípios falsos (como o da igualdade absoluta entre os homens) atenta igualmente contra o 1º mandamento, porque se opões ao Magistério eclesiástico.

Uma pessoa que haja praticado uma dessas ações terá necessidade, para voltar à graça de Deus e à prática dos Sacramentos, de apresentar as disposições requeridas para a absolvição dos pecadores: a) pesar sincero pelo pecado cometido; b) firme propósito de não recair; c caso o pecado tenha sido público, disposição de o reparar publicamente. Essa reparação, para os que tenham sustentado doutrina contrária à da Igreja, deve consistir, via de regra, em professar notoriamente os princípios opostos aos que sustentou. Sem a disposição séria de cumprir tal obrigação, o pecador não estará em condições de receber absolvição.

É compreensível. Quem prejudicou o próximo, ensinando doutrina contrária à da Igreja, deve ter a disposição séria de reparar o mal que fez, afirmando a doutrina verdadeira. É um princípio de justiça, e uma prova de honestidade intelectual e de sinceridade no arrependimento.

Quanto à responsabilidade dos homens públicos no tocante à "Reforma Agrária", é oportuno lembrar que nenhuma conveniência pessoal, nenhuma razão de amizade ou de disciplina partidária poderia justificar que um deputado ou senador votasse a favor de uma lei visando implantá-la. Em princípio, um representante do poder executivo ou do poder judiciário também não poderia aplicar essa lei injusta, pois dessa forma se acumpliciaria com o mal. Este último princípio, embora comporte exceções em sua aplicação concreta (306) pode dar lugar a muitas e dolorosas questões de consciência, como é fácil de ver-se.

Tais questões ainda seriam suscitadas, em muito maior número, no que diz respeito ao 7º mandamento. Dado que em princípio constitui pecado grave o fato de alguém se apoderar de um imóvel alheio, que situação de consciência seria criada pela "Reforma Agrária", não só para aqueles que se encontrem nas categorias acima enumeradas, mas ainda para os compradores ou cessionários das terras injustamente expropriadas?

Uns e outros deveriam apresentar as condições já acima especificadas, para recobrar a graça de Deus e voltar à prática dos Sacramentos. Entretanto, as violações do 7º mandamento têm isto de peculiar que quem as praticou fica na obrigação de restituir o que subtraiu a terceiro, e de ressarcir-lhe os danos causados.

"Res clamat ad dominum", "res fructificat domino", "nemo ex re aliena iniuste locupletari potest"- "a coisa clama por seu senhor", "a coisa frutifica em benefício de seu senhor", "ninguém pode se locupletar injustamente com coisa alheia" – são axiomas multisseculares que servem de base para as regras de restituição de coisas injustamente detidas, axiomas aliás fundados no próprio Direito Natural.

Abstração feita da "Reforma Agrária", todos reconhecem que essas normas são básicas na vida dos povos civilizados, quer nas relações entre indivíduos, quer nas do Estado com estes, quer dos indivíduos com o Estado, quer por fim dos Estados entre si. Se, por exemplo, o Estado tivesse o direito de se apoderar arbitrariamente do que é dos particulares, sem indenização, ter-se-ia chegado ao mais negro totalitarismo. Se os indivíduos pudessem reter o que tirassem do Estado ou de outros particulares, a ordem civil se desagregaria.

Excetuada a hipótese – que a Parte II prova não ocorrer no Brasil – de estar uma estrutura agrária comprometendo de modo gravíssimo o bem comum, a "Reforma Agrária" não se pode aprovar. E, portanto, não se compreende como uma lei que a implantasse poderia dispensar daquelas normas fundamentais da Moral cristã e de toda a ordem civil.

Em conseqüência, e considerado o problema em princípio, o Estado, bem como os que concorressem de modo decisivo para implantar a lei da "Reforma Agrária", ou a pusessem em prática, deveriam indenizar os legítimos proprietários pelo prejuízo que lhes infligissem.

Quanto àqueles a quem, em virtude da "Reforma Agrária", fossem oferecidas, por cessão ou venda, as terras pertencentes a terceiros, poderiam eles aceitá-las? Em princípio, não. E, pois, tendo-as aceito, deveriam restituí-las: a ninguém é lícito aceitar ou conservar em seu poder bens alheios sem consentimento do dono.

E no caso de partilha de terras forçada mediante pressão tributária? O proprietário premido por impostos insustentáveis teria diante de si dois caminhos: ou entregar parte de suas terras ao Estado, ou vende-las a particulares.

Na primeira hipótese, o Estado seria moralmente obrigado, não só a revogar a lei espoliadora, como a restituir as terras que assim houvesse recebido. Caso o proprietário preferisse a venda a terceiros para evitar as conseqüências da lei, o Estado continuaria responsável pelos danos que houvesse assim infligido. Quanto às pessoas que comprassem terras nestas condições, estariam na obrigação de não abusar da situação crítica do proprietário, impondo-lhe um preço vil.

* * *

Como se vê, um sem número de casos de consciência complexos, dolorosos, por vezes até cruciantes, surgiria assim em nosso País, no qual já hoje a freqüência dos Sacramentos é tantas vezes obstada pelas práticas ilícitas tendentes à limitação da natalidade e por outros pecados infelizmente correntes na vida moderna.

A imposição de uma lei anticatólica a um país católico nos arrastaria assim a um mare magnum de problemas que faria da "Reforma Agrária", ainda que sob a modalidade de mera revisão agrária, ponto de partida para uma grave convulsão da consciência cristã do Brasil.

Toda lei injusta é de si um convite, não só a cometer o pecado, mas a permanecer nele. Quanto maior o número de pessoas a que a lei diz respeito, e quanto mais grave o pecado a que convida, tanto mais nociva ela é sob o ponto de vista da consciência.

Uma lei que convida à prática do pecado e à permanência nele, faz tudo quanto está em si para criar uma questão religiosa. Tratando-se de uma lei de efeitos tão profundos e alcance tão generalizado, como seria a da "Reforma Agrária", tudo leva a recear que ela venha a ser lamentavelmente eficaz nesse sentido.

 

Perspectivas de uma questão religiosa

Vivemos em uma época conturbada, e os fermentos da crise em que o mundo se encontra trabalham de modo muito ativo no País. Uma das garantias mais seguras de que o Brasil supere uma crise universal tão difícil está em nossa tradicional fidelidade aos princípios da civilização cristã. Uma "Reforma Agrária" teria, de si, o efeito de abalar os próprios fundamentos da civilização cristã entre nós. Ademais, iria criar no Brasil um gênero de questão que todos os estadistas e homens de pensamento reputam particularmente delicada, isto é, uma questão religiosa.

Ora, tudo isto para quê? Para, com manifesta violação do preceito divino que diz "não roubarás", impor ao Brasil uma reforma que, na ordem prática das coisas, não resolveria qualquer problema, agravaria muitos dos que existem, e criaria problemas novos.

Textos Pontifícios

Procedimento dos juizes católicos em face de leis injustas

"Os contrastes irredutíveis entre o elevado conceito do homem e do direito segundo os princípios cristãos que procuramos expor brevemente, e o positivismo jurídico, podem ser na vida profissional fontes de amargura íntima. Bem sabemos, diletos filhos, como não raramente na alma do jurista católico que deseje ter fé no conceito cristão do direito, surgem conflitos de consciência, particularmente quando ele se acha no caso de dever aplicar uma lei que a sua própria consciência condena como injusta. Graças a Deus, vosso dever é aqui notavelmente aliviado pelo fato de que na Itália o divórcio (causa de tantas angústias interiores também para o magistrado que deve executar a lei) não tem direito de cidadania. Em verdade, porém, desde o fim do século XVIII multiplicaram-se os casos – especialmente nas regiões onde recrudescia a perseguição contra a Igreja – em que os magistrados católicos vieram a achar-se diante do angustioso problema da aplicação de leis injustas. Por isto aproveitamos a ocasião desta vossa reunião ao redor de Nós, para iluminar a consciência dos juristas católicos mediante o enunciado de algumas normas fundamentais.

1 – Para toda sentença vale o princípio de que o juiz não pode pura e simplesmente repelir de si a responsabilidade da sua decisão, para faze-la recair por inteiro sobre a lei e os seus autores. Estes últimos são certamente os principais responsáveis pelos efeitos da própria lei. Mas o juiz que com sua sentença a aplica ao caso particular é co-causador e portanto co-responsável daqueles efeitos.

2 – O juiz não pode nunca com sua decisão obrigar alguém a qualquer ato intrinsecamente imoral, o que eqüivale a dizer contrário por natureza à lei de Deus ou da Igreja.

3 – Ele não pode, em caso algum, reconhecer e aprovar expressamente a lei injusta (que, de resto, não constituiria nunca o fundamento de um juízo válido em consciência e diante de Deus). Por isto não pode ele pronunciar uma sentença penal que eqüivalha a tal aprovação. Sua responsabilidade seria ainda mais grave se sua sentença provocasse escândalo público.

4 – Todavia, nem toda aplicação de uma lei injusta eqüivale a reconhecê-la ou a aprová-la. Neste caso o juiz pode – quiçá por vezes deve – deixar que a lei injusta siga o seu curso, sempre que seja esse o único meio de impedir um mal muito maior. Pode ele infligir uma pena à transgressão de uma lei iníqua, se essa pena for de tal natureza que a pessoa visada esteja razoavelmente disposta a suportá-la, a fim de evitar aquele mal ou assegurar um bem de muito maior importância, e se o juiz sabe ou pode prudentemente supor que tal sanção será, por motivos superiores, aceita de boa vontade pelo transgressor.

... Naturalmente, quanto mais grave por suas conseqüências é a sentença judicial, tanto mais importante e geral deve ser também o bem a tutelar ou o dano a evitar. Há casos, porém, em que a idéia da compensação mediante a obtenção de bens superiores ou o afastamento de males maiores não pode ter aplicação, como na condenação à morte" (307).


Notas:

(290) Cfr. "Considerações Finais".

(291) Secção I, Título II, Capítulo II.

(292) Idem.

(293) Cfr. Secção I, Título II, Capítulo III.

(294) Atos 5, 29.

(295) Pio IX, "Qui Pluribus", de 9 de novembro de 1846 – "Editora Vozes Ltda.", Petrópolis, pág. 13.

(296) Leão XIII, Encíclica "Diuturnum Illud", de 29 de junho de 1881 – "Editora Vozes Ltda.", Petrópolis, págs. 10-11.

(297) Leão XIII, Encíclica "Sapientiae Christianae", de 10 de janeiro de 1890 – "Editora Vozes Ltda.", Petrópolis, pág. 9.

(298) De 15 de agosto de 1832 – "Editora Vozes Ltda.", Petrópolis, pág. 13.

(299) In PS. 124, n. 7.

(300) Leão XIII, Encíclica "Quod Apostolici Muneris", de 28 de dezembro de 1878 – "Editora Vozes Ltda.", Petrópolis, pág. 10.

(301) De 15 de maio de 1891 – "Editora Vozes Ltda.", pág. 36.

(302) Suma Teológica, I a. II ae., q. 9 , a . 3, ad 2.

(303) Leão XIII, Encíclica "Sapientiae Christianae", de 10 de janeiro de 1890 – "Editora Vozes Ltda.", Petrópolis, págs. 7-8.

(304) Idem, págs. 8-9.

(305) Cfr. Suma Teológica, II a . II ae, q. 66, a. 8, ad 3.

(306) Cfr., p. ex., Pio XII, Discurso de 6 de novembro de 1949 aos juristas católicos citado nos Textos Pontifícios desta Secção.

(307) Pio XII, Discurso de 6 de novembro de 1949 ao I Congresso Nacional da União dos Juristas Católicos Italianos – "Discorsi e Radiomessaggi", v. XI, págs. 264-265.


Índice  Adiante Atrás Página principal