Reforma Agrária - Questão de Consciência


Secção II

Capítulo V

Quadro sintético das proposições impugnadas e afirmadas

 

Impugnadas

O atual regime agrário do Brasil se caracteriza:

a ) pela coexistência de propriedades rurais grandes, médias e pequenas;

b ) pela vigência do salariado, em que o trabalhador braçal, sob as ordens do proprietário, cultiva terras que não são suas, e não se beneficia senão de uma pequena parte do produto delas.

 

 

 

 

 

 

 

 

Este regime é injusto, retrógrado e contrário ao interesse nacional.

A lei pode e deve, pois, substitui-lo por outro, justo, moderno e conforme aos interesses do País.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1 . - É necessário que se proceda à partilha das propriedades em todo o território nacional.

2 . – O regime do salariado rural será abolido. O trabalhador braçal será proprietário da gleba que cultiva. Assim, ficará livre da autoridade do atual patrão, e poderá beneficiar-se integralmente do produto da terra.

3 . – A lei pode e deve empreender desde logo a partilha das propriedades. Tal partilha, medida de humanidade que será o 13 de maio dos trabalhadores do campo, deverá ser feita, preferivelmente, de uma só vez e sem indenização aos proprietários.

4 . – Se porém, no juízo das pessoas entendidas, o ambiente brasileiro não se mostrar bastante evoluído para apoiar com vigor passo tão grande, será urgente prepará-lo para a "Reforma Agrária" por uma intensa propaganda, bem como por impostos progressivos e outras medidas graduais que tendam para a abolição das desigualdades na estrutura rural.

5 . – Para apressar essa transformação, talvez seja hábil também atenuar a oposição dos proprietários atuais:

a ) sugerindo medidas que pareçam atingir só as terras incultas;

b ) prometendo-lhes uma pequena indenização;

c ) fazendo-os recear que, se opuserem agora resistência à divisão das terras mediante indenização, tenham de aceitá-la mais tarde pela força, e sem indenização alguma.

Afirmadas

O atual regime agrário do Brasil se caracteriza:

a ) pela coexistência de propriedades rurais grandes, médias e pequenas;

b ) pela existência de uma imensa reserva de terras úteis e ainda incultas, suscetíveis de irem sendo apropriadas gradualmente pelos particulares;

c ) pelo regime do salariado, sistema justo e honesto em si, conjugado com vantagem, em muitos casos, com o da parceria. Esse regime, desde que realizado segundo os princípios sociais católicos, é capaz de assegurar aos assalariados subsistência suficiente e digna, como a experiência demonstra.

Estas características são justas e correspondem à ordem natural das coisas; resultam da aplicação de princípios perenes às circunstâncias concretas do Brasil atual, e por isso, são, de um lado, sadiamente tradicionais, e de outro genuinamente modernas.

Elas são conformes ao interesse nacional. Não se pode acusar a estrutura agrária atual – vista em suas linhas gerais e básicas – como responsável pelas dificuldades econômicas e financeiras do País, pela carestia da vida e pela condição sub-humana de muitos trabalhadores agrícolas. Esses fatos têm outras causas, que não a estrutura agrária atual.

 

1 . – Conservando essas características que constituem as grandes linhas gerais de nosso regime agrário, não negamos que em alguns aspectos esse regime pode e deve ser urgentemente melhorado, para obedecer aos ditames da justiça e satisfazer às exigências do bem comum. Assim, por exemplo, lugares há em que as condições de vida do homem do campo estão a clamar por uma grande melhoria. Em várias zonas, é conveniente substituir propriedades grandes por outras médias, ou até pequenas, facilitando-se deste modo o acesso do trabalhador à condição de proprietário.

2 . – A lei pode e deve favorecer, com toda a diligência e por todos os meios ao seu alcance, uma e outra dessas transformações. Mas cumpre ao legislador tomar em consideração que nem tudo depende da lei, na consecução destes objetivos. Em muito boa medida, o fracionamento das propriedades se vai fazendo espontaneamente nos lugares onde ele se mostra necessário. Quanto à melhoria das condições do trabalhador agrícola, não pode ela ser levada a cabo integralmente sem a formação necessariamente paulatina de todo um clima psicológico na vida rural, para a qual é mister recorrer à ação da Igreja e das grandes forças sociais do País.

3 . – O fato de tais transformações serem urgentes não importa em que sejam empreendidas sem o necessário estudo, e com uma precipitação contraproducente.

4 . – Sobretudo, cumpre que a lei não viole direitos adquiridos, cujo respeito é uma das bases de toda a ordem legal nos países civilizados. Por exemplo, pode e deve o Estado conceder terras devolutas, das quais é proprietário, a trabalhadores rurais. Mas não pode decretar a transferência de propriedades particulares para as mãos de terceiros, a não ser que se demonstre haver para isto, em uma ou outra zona, justa e grave causa, fundada no bem comum. Ainda assim, é mister que cada proprietário possa fazer valer em juízo os seus direitos. E a desapropriação só será justa se for feita mediante indenização exatamente igual ao valor da propriedade.

5 . – Defendendo com todos os meios lícitos a terra de que é dono, o agricultor, além de merecer o respeito devido a todo homem que se bate pelo legítimo interesse seu e de sua família, ainda presta ao Brasil o serviço de lutar por um alto princípio da moral cristã, que é o da propriedade privada, expresso no Decálogo, e de conservar as bases da ordem jurídica e da civilização em nosso País. Com efeito, se se atribui ao Estado a faculdade de dispor a seu talante de todos os direitos, de violar impunemente a lei de Deus e a ordem natural das coisas, então é o totalitarismo vermelho ou pardo, pouco importa, que se erige como base da vida do País. E o brasileiro passará a ser tão escravo do Estado quanto o é diante do cacique o mais desprotegido dos silvícolas.

Comentário

Este quadro sintético põe em evidência sumariamente as teses e os argumentos de grande número de partidários e adversários da "Reforma Agrária".

O contraste entre as proposições impugnadas e as afirmadas reflete a oposição entre a mentalidade pré-socialista ou socialista, e a cristã.

Para a pessoa picada pela mosca do igualitarismo, com efeito, toda desigualdade é injusta, contrária ao espírito de caridade evangélica, retrógrada e nociva ao interesse público. Ela confia inteiramente na ação da lei. Bastará decretar a "Reforma Agrária", impondo a igual partilha das terras, para abrir um caminho ao longo do qual todos os problemas do campo se resolverão.

Para o socialista:

1 . – Essas opiniões igualitárias são verdadeiras;

2 . – O Estado é o guia onisciente e onipotente que levará certamente a bom termo tudo quanto for necessário para que o País se beneficie da grande panacéia da "Reforma Agrária".

3 . – Quanto às terras devolutas, a mentalidade socialista não se ocupa delas de bom grado, quando se trata da "Reforma Agrária". Místico a seu modo, o socialista, declarado ou larvado, consciente ou não, deseja a solução do problema agrário apenas na medida em que possa ser alcançada por intermédio da igual partilha das terras, pois esta constitui o ideal supremo de sua alma igualitária. A transferência de terras devolutas para o particular pode concorrer para resolver a questão agrária. Mas repugna ao socialismo, que procura a passagem das terras do particular para o Estado. Além disto, nos quadros do presente regime rural, ainda que as glebas concedidas sejam iguais, em breve se terá introduzido entre elas a desigualdade.

4 . – Enquanto evolucionista, ele considera, via de regra pelo menos, que o passado é inferior ao presente, e este o é em relação ao futuro. Tudo deve mudar constantemente, e essa mudança é sempre para melhor. A propriedade privada e a família são para ele instituições mutáveis e perecíveis como tudo que é humano. Assim, é normal que se transformem e desapareçam com vistas a aumentar cada vez mais a igualdade entre os homens, ponto de mira supremo da evolução em sua etapa atual.

Segundo a doutrina católica:

1 . – A ordem natural das coisas, instituída por Deus no universo, se bem que comporte muitos elementos mutáveis, se baseia em princípios imutáveis. Há pois instituições que, firmadas inteiramente nos princípios perenes que regem a natureza do homem e a moralidade dos atos humanos, jamais poderão ser legitimamente abolidas. Estas instituições podem variar em aspectos secundários. Mas em seus aspectos essenciais não mudarão jamais. É o caso, por exemplo, da família e da propriedade, fundadas no Decálogo, que contém os princípios básicos e imutáveis da ordem humana. No 6º e no 9º mandamentos está escrito, respectivamente, "Não pecarás contra a castidade" e "Não desejarás a mulher do próximo": são a base da família santificada por Jesus Cristo, de modo todo particular, pela instituição do Sacramento do Matrimônio. O 7º mandamento reza: "Não roubarás", e o 10º, "Não cobiçarás as coisas alheias". São a base da propriedade. Se, pois, há abusos na propriedade, como na família, é preciso reformá-los; não porém eliminar, por retrógradas, essas instituições.

2 . – Havendo terras incultas do Estado cuja doação a trabalhadores é capaz de atenuar o problema agrário, não se compreende como possa ele não distribuir o que lhe sobra, e ao mesmo tempo lançar mão do que pertence legitimamente aos particulares. É realmente, segundo antiga expressão, fazer cumprimento com chapéu alheio.

3 . – Ademais, Deus não organizou o universo segundo o princípio da igualdade completa, mas antes o dispôs em uma bem ponderada e harmoniosa hierarquia de seres, de atributos, de movimentos etc. É o que se vê em toda a criação. Uma estrutura econômica e social ferreamente igualitária é, pois, antinatural.

4 . – As questões econômicas e sociais, como todas as outras, não comportam panacéias. Elas se resolvem principalmente pela formação religiosa e moral de um povo, por seus costumes, por suas instituições sociais e econômicas. A lei pode concorrer em boa medida para o mesmo fim. Mas sem a cooperação de tais fatores, ela nada alcançará.

5 . – Uma lei igual para um país vasto como o nosso, raras vezes é útil. As diferenças regionais são imensas, e é preciso tomá-las em conta, o que é o oposto da padronização socialista.

6 . – O Estado não é onipotente nem onisciente. Sem dúvida lhe cabe grande parte na direção de um povo. Mas sua ação, que é falível como tudo quanto é humano, em toda a medida do possível deve ser supletiva.

Em resumo, é na diversidade desses pressupostos que se explica a oposição entre as teses igualitárias e reformistas, e a doutrina católica.

 

Textos Pontifícios

Resumindo o pensamento social de Leão XIII, São Pio X formulou algumas proposições em seu "Motu Proprio" sobre a Ação Popular Católica. Delas destacamos as seguintes, que ilustram de modo magnífico o quadro sintético das proposições afirmadas:

I – A sociedade humana, tal qual Deus a estabeleceu, é formada de elementos desiguais, como desiguais são os membros do corpo humano; torná-los todos iguais é impossível; resultaria disso a própria destruição da sociedade humana. (Encíclica Quod Apostolici Muneris).

II – A igualdade dos diversos membros sociais consiste somente no fato de todos os homens terem a sua origem em Deus Criador; foram resgatados por Jesus Cristo e devem, segundo a regra exata dos seus méritos, ser julgados por Deus e por Ele recompensados ou punidos. (Encíclica Quod Apostolici Muneris).

III – Disto resulta que, segundo a ordem estabelecida por Deus, deve haver na sociedade príncipes e vassalos, patrões e proletários, ricos e pobres, sábios e ignorantes, nobres e plebeus, os quais todos, unidos por um laço comum de amor, se ajudam mutuamente para alcançarem o seu fim último no Céu e o seu bem-estar moral e material na terra. (Encíclica Quod Apostolici Muneris).

IV – O homem tem sobre os bens da terra, não somente o simples uso, como os brutos, mas também o direito de propriedade, tanto a respeito das coisas que se consomem com o uso, como das que o uso não consome. (Encíclica Rerum Novarum).

V – A propriedade particular, fruto do trabalho ou da indústria, de cessão ou de doação, é um direito indiscutível na natureza, e cada um pode dispor dele a seu arbítrio. (Encíclica Rerum Novarum).

VI- Para resolver a desarmonia entre os ricos e os proletários é preciso distinguir a justiça da caridade. Só há direito de reivindicação, quando a justiça for lesada. (Encíclica Rerum Novarum).

VII – O proletário e o operário têm as seguintes obrigações de justiça: fornecer por inteiro e fielmente todo o trabalho contratado livremente e segundo a equidade; não lesar os bens nem ofender as pessoas dos patrões; abster-se de atos violentos na defesa dos seus direitos e não transformar as reivindicações em motins. (Encíclica Rerum Novarum).

VIII – Os capitalistas e os patrões têm as seguintes obrigações de justiça: pagar o justo salário aos operários; não causar prejuízo às suas justas economias, nem por violências, nem por fraudes, nem por usuras evidentes ou dissimuladas; dar-lhes liberdade de cumprir os deveres religiosos; não os expor às seduções corruptoras e aos perigos do escândalo; não os desviar do espírito de família e do amor da economia; não lhes impor trabalhos desproporcionados às suas forças ou pouco convenientes para a idade ou para o sexo. (Encíclica Rerum Novarum).

IX – Os ricos e os que possuem têm obrigação de caridade de socorrer os pobres e indigentes, segundo o preceito evangélico. Este preceito obriga tão gravemente que dele serão exigidas contas de maneira especial no dia do Juízo, como disse o próprio Jesus Cristo (Mt. 25). (Encíclica Rerum Novarum).

X – Os pobres, por conseqüência, não se devem envergonhar da indigência, nem desprezar a caridade dos ricos, olhando para Jesus Redentor, que, podendo nascer entre as riquezas, Se fez pobre para enobrecer a pobreza e enriquece-la de méritos incomparáveis para o Céu. (Encíclica Rerum Novarum).

XI – Para a solução da questão operária muito podem contribuir os capitalistas e os operários com instituições destinadas a socorrer as necessidades e a aproximar e reunir as duas classes. Tais as sociedades de socorros mútuos e de seguros particulares, os patronatos para crianças e, sobretudo, as corporações de artes e ofícios. (Encíclica Rerum Novarum).

XII – A este fim visa especialmente a ação popular cristã ou democracia cristã, com as suas obras múltiplas e variadas. Mas esta democracia cristã deve ser compreendida no sentido já fixado pela autoridade, o qual está muito afastado do sentido da democracia social, e tem por base os princípios da fé e da moral católica e sobretudo o princípio de não prejudicar de maneira nenhuma o direito inviolável da propriedade particular. (Encíclica Graves de Communi)"(289).


Nota:

(289) São Pio X, Motu Proprio sobre a Ação Popular Católica, de 18 de dezembro de 1903 – "Editora Vozes Ltda.", Petrópolis, págs. 22-24.


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