Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Minha

 

Vida Pública

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Parte XII

Livros e Campanhas de grande repercussão na década de 1990

 

Capítulo IV

Contra o Tratado de Maastricht: Europa cristã ou Europa laica e revolucionária? (1992)

Campanha da TFP francesa diante do Parlamento europeu

1. Grandes blocos nacionais, caminho para uma ditadura burocrática universal

De um modo geral, a TFP não vê com simpatia [45] uma forte corrente de opinião que tende para a unificação de grandes blocos de nações [46]. Isto porque a formação de tais blocos e a extinção das pátrias locais caminham para uma ditadura burocrática universal. E eu sou contra isto [47].

A mesma razão que impele grupos de povos a se unificarem em um só bloco supranacional conduz, mais cedo ou mais tarde, a que formem uma só nação internacional, uma única nação mundial.

Chegaremos, então, à abolição de todas as pátrias e de todas as nações, sob um conjunto que me parece absolutamente antinatural e indesejável.

Esta era a razão pela qual eu me opus a agrupamentos do tipo do Tratado de Maastricht para a França e para os demais países da Europa, como também me opus a agrupamentos análogos para os países da América do Sul.

Se se transformasse cada continente em um só bloco, nós teríamos chegado à formação de um governo mundial [48].

*   *   *

Na década de 1950, havia sido dado um primeiro passo neste sentido.

Os representantes da Alemanha Ocidental, França, Itália, Bélgica, Holanda e Luxemburgo se reuniram em Roma e fizeram um primeiro tratado constitutivo da “Europa dos Seis”, em que os primeiros lineamentos, as primeiras concessões mútuas, os primeiros balbucios da futura União Européia começaram a aparecer* [49].

* Foram os famosos Tratados de Roma. O primeiro instituiu a Comunidade Econômica Européia (CEE) e o segundo a Comunidade Européia da Energia Atômica, mais conhecida sob a designação de Euratom. Ambos assinados em 25 de março de 1957, entraram em vigor em 1° de janeiro de 1958.

2. A importância do Tratado de Maastricht na construção da República Universal

E mais recentemente em Maastricht eles chegaram a constituir um tratado geral, o qual tratado constitui de fato a “Europa dos Doze”*.

* A União Européia nasceu desse Tratado, assinado a 7 de fevereiro 1992 por doze países-membros: Alemanha Federal, França, Reino Unido, Itália, Espanha, Portugal, Bélgica, Holanda, Dinamarca, Irlanda, Luxemburgo e Grécia. Daí a denominação “Europa dos Doze”. Sucederam-se uma série de outros tratados, e hoje a União Européia é constituída por 28 Estados-membros.

Esse Tratado foi introduzido muito velhacamente. Porque os representantes de todos os governos da “Europa dos Doze” - com exceção da Inglaterra que não aceitou entrar na zona do euro - perceberam que era um verdadeiro perigo consultar o povo sobre o que opinava de suas cláusulas. E que mais valia a pena utilizarem-se do apoio que contavam nos respectivos parlamentos, para fazer passar o Tratado depressa.

Quando a Europa acordasse, as nações européias teriam perdido o melhor de sua soberania em virtude das condições desse Tratado [50].

*   *   *

Mas a Dinamarca quis fazer um plebiscito. Parece que a constituição dinamarquesa o exigia,

Os meios oficiais daquele país resolveram antes publicar como seria a estrutura da Europa pelo Tratado de Maastricht. E os dinamarqueses puderam ler essas explicações antes de votar.

Lendo-as, viram que, em primeiro lugar, era um texto ininteligível (falarei mais adiante sobre essa ininteligibilidade). Em segundo lugar, que era em todo o caso uma coleira passada no pescoço de todas as nações da Europa.

Na hora de votar, ante a pergunta que no fundo era se queriam continuar independentes ou não, a resposta foi: "Queremos continuar independentes, não queremos saber desse Tratado". Uma derrota para Maastricht, portanto [51].

*   *   *

Diante desse resultado na Dinamarca, em vários países os opositores de Maastricht começaram a dizer: "Nós queremos plebiscito".

Isso provocou a epidemia de um pânico.

Pois, para que essa Europa dos Doze não tivesse o ar de uma ditadura, era preciso que ela simulasse ter sido aprovada segundo os cânones do mais rigoroso democratismo.

Onde isto se verificou mais energicamente foi na França*.

* No dia 9 de abril 1992, o Conselho constitucional da França sinalizou que, sem uma revisão da Constituição, seria impossível a ratificação do Tratado de Maastricht.

Para sair do impasse, o Parlamento francês reuniu-se em congresso a 23 de junho de 1992, introduzindo modificações na Constituição que viabilizavam tal ratificação.

O governo de Mitterrand resolveu então — com risco para todo esse castelo de cartas de baralho que era Maastricht — fazer um referendo, o qual foi marcado para o dia 20 de setembro de 1992.

*   *   *

Diante desse referendo, nasceu um imperativo para a TFP francesa: ela tinha que se pronunciar.

Como se pronunciar? Só havia uma possibilidade: era denunciando. Ou seja, tomando o Tratado de Maastricht e mostrando, pela análise de artigos do Tratado, que ele liquidava com a independência da França. E perguntando aos franceses: "O Tratado é este: vocês o querem?" [52].

3. Telefonema da TFP francesa e sugestão para intervir

Em telefonema com os dirigentes da TFP francesa, eu disse a eles que, julgando as coisas de longe, no meu parecer, conviria entrar no debate. Pois, mesmo se os contra-Maastricht não obtivessem a maioria, e os pró-Maastricht tivessem uma maioria, mas muito pequena, ficaria para eles malaisé, ficaria embaraçoso aos propugnadores do tratado impor Maastricht.

Uma vitória dos pró-Maastricht muito apertada, muito de raspão, equivaleria, no fundo, a uma derrota. Isto porque, impor à metade ou a um pouco menos da metade de uma nação a aceitação de uma espécie de renúncia à soberania, era uma coisa muito bruta e de resultados muito incertos.

O assunto deveria ser visto, portanto, não apenas em termos de números, mas de números analisados politicamente [53]. E fazer um esforço, em toda a medida do possível, para que os franceses votassem pelo “não”. Uma pequena diferença poderia pesar no final das contas [54].

Além do mais, deixar passar esse Tratado sem uma palavra da TFP seria uma verdadeira tristeza [55]. Dever-se-ia fazer alguma coisa, ainda que fosse para depois ficar constando: “Nós avisamos” [56].

4. Sorte da Europa e do mundo pendente do plebiscito francês

Outra coisa que pesava muito era o seguinte: dado o papel da França na Europa e no mundo, se o plebiscito francês decidisse largamente pró-Maastricht, seria a vitória de Maastricht na Europa. E se decidisse contra Maastricht, seria a derrota de Maastricht na Europa.

Era, portanto, o destino da Europa que se jogava ali.

E, jogando-se o destino da Europa, jogava-se o destino daquilo que é a parte mais culturalizada e mais carregada de tradições do mundo: a parte onde existiu, como em nenhum outro lugar e numa como que plenitude, a civilização cristã. Aquele solo havia sido ensopado das bênçãos do precioso Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo. Tudo isto estava sendo jogado naquele instante.

Ganhando o “não”, por muito tempo o plano da unificação da Europa, ou seja, o plano de um supergoverno mundial, estaria impedido [57]. Aliás, os próprios jornais reconheciam: o destino do mundo estava sendo resolvido nesse plebiscito francês [58].

Consequentemente, era muito importante a TFP francesa tentar galvanizar ao menos uma parcela grande dos partidários do “não” [59].

5. Um tratado confuso e quase ilegível. A campanha da TFP francesa

Acontece que o texto do Tratado era a coisa a mais estúpida, a mais maluca, a mais anárquica, a mais confusa que se pudesse imaginar [60]. Vários franceses eminentes chegaram a declarar que o Tratado era de fato ininteligível. E isto foi reconhecido até por certos partidários do Tratado.

Campanha diante de Notre Dame de Paris, contra Maastricht

Então resolvemos oferecer aos nossos amigos franceses uma sugestão de texto, que naturalmente eles depois verteram para o francês, e fizeram — como eu tive todo o empenho em que fizessem — várias modificações [61].

Tive de fazer um esforço intelectual muito grande para ordenar e compreender aquele emaranhado de peças que se metiam desordenadamente — em francês se diz enfouir — umas dentro das outras no Tratado de Maastricht [62]. Não se pode fazer uma idéia do quanto me cansou a elaboração dessa sugestão de texto [63].

Aquilo era uma confusão infernal. Tirar do ilegível peçazinhas de contornos definidos para constituir um manifesto claro, era um trabalho de Hércules.

E me comprazo muito de que vários da TFP colaboraram expressivamente, na época, para a montagem desse manifesto, lendo muita coisa, resumindo.

Depois, os membros da TFP francesa trabalharam sobre o texto sugerido, fizeram os retoques necessários [64], dando-lhe a redação definitiva.

E o manifesto foi afinal publicado em Le Quotidien de Paris* [N.S.: uma síntese do manifesto, em português, pode ser lida aqui. O texto integral, em francês, pode ser lido aqui]

* Tal publicação deu-se no 25 de agosto de 1992, vinte e seis dias antes da consulta popular. A TFP francesa iniciou, então, uma pujante campanha de distribuição do texto nas vias públicas de Paris e de várias cidades do interior da França. Promoveu também o envio em massa, por correio, do mesmo manifesto.

6. Episcopado: neutro antes, pró-Maastricht depois do manifesto

No dia seguinte à publicação do manifesto, o Episcopado francês - que havia anteriormente emitido uma nota manifestando-se neutro, sob a alegação de ser o referendo uma questão toda temporal - publicou às pressas um manifesto a favor de Maastricht. Quer dizer, procurou arrastar a favor de Maastricht uma parte da opinião católica que eles tinham medo que passasse para o outro lado [65].

A Hierarquia francesa ajudava assim a iludir muitos entre os bons. Muitos dos que iriam votar pró-Maastricht não votariam nessa direção se não fosse a atuação da Hierarquia [66].

Campanha da TFP em Strasbourg (França), de difusão do manifesto contra Maastricht 

7. Sinal amarelo: governo vence “avec un petit oui”

No começo, as intenções de votos nas pesquisas davam muito mais pró-Maastricht do que contra Maastricht. Aos poucos foram subindo os contra Maastricht e se igualaram.

Quando se aproximou o dia do referendo, a questão estava num tal pé que um, dois ou três por cento dos votos poderiam decidir a votação [67].

Houve na mídia francesa uma inundação de propaganda a favor do "sim".

Afinal, no dia 20 de setembro, os pró-Maastricht venceram com apenas a pequena margem de 2,1%.

Uma maioria de 2,1 por cento era um palito [68], uma vitória de Pirro [69].

O número de jornais e de pessoas que declararam tratar-se de uma vitória pequena e de pouco alcance foi muito muito grande na França*.

* “O governo vence ‘avec un petit OUI et un puissant NON’”, ou seja, “com um pequeno SIM e um possante NÃO”, comentou Jean Valleix, senador pelo RPR (cfr. Sénat — Première session extraordinaire de 1993-1994).

A opinião pública manifestou-se lúcida o bastante para resistir contra uma tentativa de embuste grosseiro, como o de apresentar a vitoriazinha de ninharia como uma vitória verdadeira do Tratado de Maastricht.

O que significava um embaraço muito grande para o governo Mitterrand [70].

Se o governo sabia de antemão que 48,9% dos franceses não queriam esse resultado, ele não tinha o direito de entregar a soberania francesa ao estrangeiro com base numa tão exígua maioria.

Também o mecanismo político francês não havia interpretado o país. A votação na Câmara a favor do Tratado de Maastricht não correspondia nem um pouco à votação da Nação. Não havia uma fração que, democraticamente falando, estivesse em condições de impor à outra, servindo-se de uma maioria tão exígua, a entrega da soberania nacional [71].

Um Ministro de Estado chegou a declarar: “Para o governo, não foi um sinal vermelho, mas também não foi um sinal verde: foi um sinal amarelo”. Com espírito francês, ele disse bem a coisa certa. Quer dizer, pare, não ande, não avance, não faça bobagem, porque a situação agora é delicada.

Em vista da pressão dos meios de comunicação social em favor do “sim”, para quem tem um pouco de idéia do peso da propaganda sobre o espírito de qualquer povo, ficou posta a pergunta: de fato foram eles que ganharam? [72]

Pode-se bem dizer que os pró-Maastricht tiveram uma pequena vitória. E nós, os contra Maastricht, tivemos uma derrota gloriosa.

O fato é que, neste lance, a irradiação da TFP francesa cresceu [73].

E por muito tempo o plano da unificação da Europa, ou seja, o plano de um super-governo mundial, estava comprometido [74].

Na Espanha, a TFP espanhola fez uma brilhante campanha contra Maastricht. Em Portugal também [75].

*   *   *

Depois de Maastricht, e a propósito de Maastricht, houve novas combinações, novos tratados, tendo como ponto de apoio Bruxelas, que foi transformada gradualmente na capital burocrática da Europa*.

* Bruxelas é realmente a capital de facto da União Européia, apesar da inexistência de qualquer capital oficial declarada pela UE. A cidade acolhe a Comissão Européia e o Conselho Europeu. Cerca de 75% do trabalho do Parlamento Europeu tem lugar nesta cidade, apesar de sua instituição oficial ser em Estrasburgo.

Depois de estabelecido o Parlamento Europeu, votaram-se algumas leis “imperativas”, embora não tivessem o direito de legislar, mas apenas de fazer recomendações. Aos poucos esse Parlamento começou a querer impor essa legislação, como era evidente que tenderia para isto, para todos os países da Europa pertencentes à União Européia [76].

 


NOTAS

[47] Entrevista a Zero Hora (gravação), 21/1/93.

[49] RR 12/9/92.

[50] — Repleto de imprecisões e complexidades em seu confuso texto, o Tratado invadia em pontos capitais a área específica das soberanias nacionais, e sob ele os países-membros, em boa medida, deixariam praticamente de existir como nações livres e soberanas, passando a ser governados por um supergoverno com sede em Bruxelas, impessoal, anônimo e tirânico. Sua aprovação levaria a França e os demais países da Europa a renunciar, entre outras coisas, à maneira de dispor de seu potencial militar e, de futuro, a uma política exterior independente. Teriam também de submeter suas contas e orçamentos ao supergoverno da União Européia (UE).

Essa estrutura política rígida, resultante da eventual aplicação do Tratado de Maastricht, poderia facilmente transformar-se numa nomenklatura de tecnocratas, tal como a que existiu na extinta URSS. Os franceses e os demais signatários do tratado estariam, então, sujeitos ao mesmo processo de massificação que arruinou as nações da ex-União Soviética.

A forma velhaca de tentar fazer passar esse Tratado pode ser sentida nas declarações da ministra delegada dos negócios europeus, Elizabeth Guigou: "Por muito tempo construímos a Europa em surdina, às escondidas".

Também Jacques Delors, presidente do mais alto órgão executivo da Comissão Européia, reconheceu: "A construção européia não começou enunciando claramente o que deverá ser, no fim de seu processo de formação, a repartição dos poderes".

E o socialista Jean-Pierre Chevènement constatou: "Longe de construir a Europa dos povos, construiremos a Europa sem o povo. Os super-altos funcionários, que formam a Comissão das Comunidades Européias, promulgam textos sem se preocupar em obter o consentimento democrático” (cfr. A TFP diz NÃO a Maastricht, Catolicismo n° 503, novembro 1992).

[51] — Neste referendo de 1992, o Tratado foi rejeitado por 50,7% dos eleitores. Essa derrota levou as cúpulas européias a costurarem o acordo de Edimburgo, que definiu exceções, para a Dinamarca, ao Tratado de Maastricht. Somente assim foi possível, no ano seguinte (1993), realizar um segundo referendo que permitiu a aceitação do Tratado e a entrada da Dinamarca na União Européia.

[52] RR 12/9/92.

[53] Telefonema TFP francesa 26/8/92.

[54] Despacho França 17/7/92.

[55] Despacho França 28/7/92.

[56] Despacho França 22/7/92.

[57] RR 29/8/92.

[58] Jantar EANS 15/9/92.

[59] Almoço 26/8/92.

[60] CSN 1/8/92.

[61] RR 12/9/92.

[62] RR 29/8/92.

[63] RR 12/9/92.

[64] Jantar EANS 15/9/92.

[65] RR 12/9/92.

[66] Almoço 20/9/92.

[67] RR 12/9/92.

[68] RR 21/9/92.

[69] Almoço 20/9/92 — O “sim” obteve 13.165.475 (51,04 %). E o “não” 12.626.700 votos (48,96 %). A participação de 69,7 % dos eleitores (26.696.626 de votantes, num corpo eleitoral de 38.299.794) foi considerada particularmente alta para um referendo na França (cfr. http://www.interieur.gouv.fr).

[70] RR 21/9/92.

[71] Almoço 20/9/92.

[72] RR 21/9/92.

[73] Almoço 20/9/92.

[74] RR 29/8/92.

[76] RR 12/9/92.

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