1. Como os homens de minha época viam os índios e o progresso
Antes de tratar de nossa manifestação no centro de
São Paulo a propósito do V Centenário dos Descobrimentos, comemorado em
1992, faço uma reminiscência histórica.
Quando em minha remota infância eu ouvia falar de
índios, a versão que deles me chegava era ambivalente.
De um lado, eram eles mencionados como sendo uma raça
digna de simpatia, pelo fato de terem sido os primeiros ocupantes do solo
brasileiro. Portanto, se se quiser, seriam os nossos compatriotas mais
antigos, a quem deveríamos votar um sentimento de solidariedade nacional.
Desse ponto de vista, cumpria considerá-los com benevolência especial.
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A
evangelização dos índios levada a cabo pelos jesuítas procurou mitigar
os costumes bárbaros que praticavam. Na foto o Pe. Nóbrega e
companheiros resgatam o cadáver de um índio que estava prestes a ser
devorado em um ritual pelos tupinambá. Tela de Manoel Joaquim de Melo
Corte Real da Academia Imperial de Belas Artes , datada de 1843 |
De outro lado, porém, ao examinar a vida dos
indígenas em seu estado primitivo, errando por nossos campos e nossas
matas, e ao se tomar em conta seus costumes, sua moral, o sistema pelo
qual obtinham o que precisavam para viver — produto mais bem de sua inação
do que de seu trabalho, pois que eram avessos a toda atividade metódica —
a generalidade das opiniões era rotundamente desfavorável.
Tal quadro contrastava com outro, incondicionalmente
elogioso, que certas máquinas de fabricar opinião difundiam acerca do
progresso moderno. Esse progresso era o grande mito dominante da época
hollywoodiana, que despontava em minha infância, quando o mundo
ocidental, especialmente a Europa e a América do Norte, era apresentado da
maneira mais favorável e otimista, como gerador de um estado de ascensão
contínua que haveria de melhorar indefinidamente a vida dos homens.
E — vaticinavam alguns — esta se aperfeiçoaria de tal
maneira que, com os progressos da medicina, antes do fim do século ou no
decurso do século XXI, surgiria um meio de restituir a “saúde” — até lá
chegava esse otimismo! — aos homens que tivessem morrido. E,
consequentemente, ser “ressuscitados”.
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Câmaras
Criônicas reais, na Alcor, uma das instituições que realiza este
procedimento nos dias de hoje. |
Desse modo ocorreram — sobretudo nos Estados Unidos —
casos de milionários ou pessoas que levavam vida fácil e agradável e que,
ao morrer, deixaram legados especiais para despesas com sua eventual
"ressurreição". Tais legados incluíam cláusulas específicas sobre como
deveriam ser guardados seus corpos em câmaras frigoríficas, por empresas
constituídas ad hoc desde os anos 60, para que estivessem em
condições de serem trazidos novamente à vida.
Este exemplo extremo ilustra até que ponto chegou a
euforia do progresso, e o desejo otimista de viver indefinidamente esta
vida que, hollywoodianamente falando, era apresentada como
deliciosa.
Isso induzia incontáveis pessoas a se entusiasmarem
com o progresso e a se esforçarem em levar adiante o sonho do crescimento
científico e tecnológico indefinido.
Para tal ótica, a situação dos índios, como também
das tribos primitivas da África, Ásia e Oceania, que permaneciam em estado
selvagem, representava o grau zero de progresso, em comparação com a
situação dos homens que viviam segundo Hollywood, a qual seria,
digamos, o grau mil.
Assim, durante várias décadas, falava-se de vez em
quando de massacres perpetrados pelos índios, de assassinatos, de
canibalismo, de como sua vida errante era perigosa, do risco que haveria
em encontrar-se com eles nas selvas etc.
2. Depois de uma fase de silêncio, uma reviravolta completa
Sem embargo, em certo momento, o tema índios
começou a sair da atenção geral, e gradualmente foi-se tratando cada vez
menos dele.
Ao cabo de um intervalo em que o assunto permaneceu
submerso em um mar de silêncio e de olvido, ele começou a ressurgir, mas
já então sob um prisma completamente diferente. Para as mesmas correntes
ideológicas que, com o objetivo de demolir a civilização cristã,
interessara em certo momento promover o mito neopagão de Hollywood,
passou a convir a demolição do mesmo mito, e da civilização com base nele
edificada, a fim de dar um salto adiante no processo revolucionário, rumo
à anarquia neotribal.
Para este novo objetivo, era preciso então apresentar
as condições de vida dos índios do modo mais favorável possível.
Disso fui testemunha. Começaram a surgir menções a
tal autor, que asseverava ser exagerada a versão de que todos os índios
fossem canibais; ou a tal outro, que sustentava nunca ter havido
canibalismo entre eles, e, pelo contrário, exaltava que possuíssem estas
ou aquelas qualidades. Assim, elogios à arte, cultura e civilização dos
índios foram se tornando cada vez mais freqüentes, e caminhando para o
hiperbólico.
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Los Arcángeles
arcabuceros - séc. XVII - Escuela Cusqueña - Exemplo de arte
indígena pós conversão à Fé Católica |
De fato, pode-se francamente falar de uma arte e de
uma civilização indígenas, se consideramos, por exemplo, os incas e os
astecas, que tiveram impérios organizados, uma verdadeira arte e elementos
culturais dignos de menção.
Sobretudo é verdade que, em toda a América, depois de
convertidos à verdadeira Fé, os índios manifestaram um talento que os
capacitou a produzir coisas boas e até relevantes. Era neles uma
capacidade natural latente, que, como fruto do batismo e da civilização, e
como resultado do contato com os eclesiásticos e com o elemento civil de
Portugal e da Espanha, se transformou em qualidade patente.
Falar-se porém de arte indígena pré-colombiana fora
dos astecas e dos incas, e de alguma outra exceção, é extremamente
questionável do ponto de vista historiográfico.
Essa retomada do tema indígena culminou com a virtual
glorificação do índio, e de suas condições de vida milenar, promovida
pelas esquerdas.
* *
*
A ECO’92, por exemplo, foi uma manifestação muito
curiosa, muito aguda e muito sistemática dessa glorificação que, por sua
vez, o movimento contrário à celebração dos 500 anos do Descobrimento da
América estava levando até o paroxismo
[41].
3. Principais teses dos opositores ao Descobrimento e à Evangelização
da América
De fato, para surpresa de muitos, o ensejo dos 500
anos do Descobrimento da América não foi motivo indiscutido de festejos.
Em certas publicações da esquerda católica, os
conquistadores, de heróis, passaram a vilões. Punham elas em realce suas
crueldades, não a sua coragem e sua obra civilizadora. E os abnegados e
beneméritos missionários, que converteram índios à Fé católica, eram
apontados pelos adeptos dessa mesma Teologia da Libertação como fautores
de um empreendimento nefasto.
Eu considerava que a corrente inspirada pela Teologia
da Libertação errava na apreciação histórica a partir dos erros que ela
cometia na apreciação teológica. Ou seja, era a partir dos seus erros
teológicos que ela caía em erros históricos.
* *
*
A Teologia da Libertação tem, a respeito da natureza
humana e do rumo que deve seguir a História, um modo de ver inteiramente
diverso daquele que tem o verdadeiro católico.
Para este, o homem deve progredir continuamente, mas
este progresso consiste em sujeitar a terra ao serviço do homem. E, por
sua vez, o homem deve sujeitar-se ao serviço de Deus, de maneira que Deus
reine sobre toda a Criação.
Se o homem proceder virtuosamente, fa-lo-á com o
equilíbrio adequado, que impedirá a destruição da natureza. Mais ainda,
ele a aperfeiçoará para o seu próprio benefício.
Já segundo a doutrina da Teologia da Libertação,
muito vizinha, nesse ponto, do ecologismo exacerbado que se difundiu pelo
mundo, o homem é quem deve estar a serviço da natureza. De maneira tal
que, em vez de essa natureza ser vergada e domesticada pelo e para o
homem, é o homem que deve viver para conservar incólume a natureza.
Ele seria o guardião da natureza, tocando-a o mínimo,
e vivendo modestamente, na maior medida possível, só do que a natureza lhe
proporcionasse. E isto num estado verdadeiramente primitivo, selvagem.
Segundo essa concepção eco-teológica, chega-se à
conclusão de que o estado selvagem é o estado ideal para o homem.
Enquanto, segundo a doutrina católica, o estado perfeito para ele é o de
ser civilizado.
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D. Pedro
Casaldáliga no dia em que foi sagrado como bispo. Foto: arquivo da
Prelazia de São Félix |
Em tal concepção, é claro que os índios, por terem
sido civilizados, foram prejudicados.
A partir daí — concluem os eco-teólogos — é claro que
a América não deveria ter sido descoberta, que ela nada lucrou em ter sido
descoberta por europeus, e que estes erraram querendo adaptar àquela
civilização as “maravilhas” do Novo Mundo. Tese esta que é uma verdadeira
aberração.
Para esses adeptos da Teologia da Libertação ou dessa
“ecologia”, a obra dos descobridores e colonizadores tinha sido funesta
[42].
* *
*
O mais característico desses novos intérpretes foi,
uma vez mais, o espanhol Dom Pedro Casaldáliga. Ele considerava que a
vinda dos missionários brancos foi nociva para os índios, e chegou a dizer
que o Deus branco não convinha para homens de pele-vermelha.
Eu achava que o Deus de pele branca, Nosso Senhor
Jesus Cristo, convinha a todos os homens. O problema não se punha nesses
termos.
4. Papel heróico dos Descobridores e dos Evangelizadores na História
do Brasil
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Desembarque de Colombo nas costas do Novo Mundo em 12 de outubro de
1492
John Vanderlyn - Rotunda do
Capitólio - Washington - 1847 |
Diferentemente da Teologia da Libertação, eu via no V
Centenário do Descobrimento da América um fato de uma importância
transcendental para a História do mundo.
Era de uma importância tão transcendental que, se
fôssemos enumerar todas as conseqüências dele, seria literalmente
impossível.
Eu me concentro, com simpatia, em considerar os
efeitos na História da Espanha. É preciso notar que a Espanha de 1492
acabava de consolidar a sua unidade com a expulsão dos últimos mouros de
Granada e iniciava um outro grande ciclo de atividades que haveriam de
consagrá-la como uma das primeiras nações da História do Ocidente.
A Espanha havia se voltado para a luta contra os
mouros no Oriente - ela que tinha
feito a luta contra os mouros no Ocidente
- e ganhava a notabilíssima
vitória de Lepanto que firmou as barreiras ao poder muçulmano*.
* Presenciamos hoje
o ressurgimento ameaçador do poder muçulmano, representado em sua ponta
mais extremada pelo Estado Islâmico. Tal ressurgimento foi previsto por
Plinio Corrêa de Oliveira nas páginas do Legionário ainda na década
de 1940, e depois em Catolicismo, no início da década de 1950.
Dizia ele, no
artigo
A Questão Libanesa, estampado no Legionário de
5/12/43:
“O perigo
muçulmano é imenso. O Ocidente parece fechar-lhe os olhos, como os tem
ainda semi-cerrados ao imenso perigo amarelo. [...] Nos dias de hoje, com
homens, armas e dinheiro, tudo se faz. Dinheiro e homens, o mundo
muçulmano os possui à vontade.
“Adquirir armas,
não será difícil... e, com isto, ficará uma potência imensa em todo o
Oriente, ativa, aguerrida, cônscia de suas tradições, inimiga do Ocidente,
tão armada quanto ele, que dentro de algum tempo poderá ser absolutamente
tão influente quanto o mundo amarelo, e colocada em situação geográfica e
econômica incomparavelmente melhor!”
A este propósito,
ver a excelente obra de Juan Gonzalo Larrain Campbell,
Plinio Corrêa de
Oliveira: Previsões e denúncias em defesa da Igreja e da Civilização
Cristã (Artpress, São Paulo, 2001), na qual é transcrito o seguinte e
expressivo testemunho do
Padre jesuíta João B. Libânio, um dos expoentes
da Teologia da Libertação:
“Plinio Corrêa
de Oliveira (fundador da TFP — Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição,
Família e Propriedade) fez uma palestra para os jesuítas em 1940, permeada
de uma idéia toda messiânica [sic!], dizendo que o grande problema
do cristianismo era o islamismo. Há 50 anos, foi profético, ou a História
foi, por outras razões, caminhando nesse sentido. O fato é que se confirma
o que ele intuiu”.
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São José de
Anchieta - "maior apóstolo dos índios do Brasil" |
De outro lado, houve o ciclo de navegações, que não
se resumiu apenas ao Descobrimento da América, e que levou até às
Filipinas.
Tinha sido também a Espanha que dera o apoio decisivo
ao movimento de caráter religioso-cultural, no sentido mais amplo do
termo: a Contra-Reforma. Esta também pôs diques à Reforma, que soava como
uma verdadeira revolução.
Tudo isso pôde fazê-lo com os recursos que recebia do
Novo Mundo, e com grande vantagem para a civilização cristã e para a
humanidade em geral.
Por exemplo, José de Anchieta, grande missionário
jesuíta nascido nas Ilhas Canárias, portanto espanhol, foi o maior
apóstolo dos índios no Brasil. Homem que merecia ser mundialmente célebre,
e que João Paulo II beatificou numa das visitas que fez ao Brasil*.
* Como já ficou
dito, foi canonizado pelo atual Pontífice.
Foi um jesuíta característico do século XVI
- século áureo da Companhia de
Jesus - no sentido mais pleno da
palavra
[43].
5. A “Caminhada da Fidelidade” promovida pela TFP
Diante dessas vozes
que se levantavam para afirmar que o Descobrimento havia sido um desastre
para as populações nativas da América, um desastre para a história do
mundo, não poderia deixar de ser que a Sociedade Brasileira de Defesa da
Tradição, Família e Propriedade levantasse um protesto contra essa
tendência que ia ao arrepio de todo o curso da História.
E que afirmasse num
ato solene, em que estivessem presentes representantes dos mais variados
países da América e de diversos países da Europa, a sua solidariedade
entusiasmada e convicta à obra missionária realizada pela Igreja Católica
no Brasil, como em todo território das Américas, ao longo desse tempo. E
ao mesmo tempo proclamasse a segurança de que o futuro da América só tinha
um sentido: o futuro da civilização cristã.
Com efeito, essa
caminhada poderia chamar-se a Caminhada da Fidelidade*.
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O Desfile da
Fidelidade em sua passagem pelo Vale do Anhangabaú na capital
paulista |
* Aproveitando o
afluxo a São Paulo de grande número de pessoas para o VIII Encontro de
Correspondentes e Simpatizantes, a TFP organizou a que ficou conhecida
como a Caminhada da Fidelidade ou Desfile da Fidelidade
(cfr.
Catolicismo
n° 494, fevereiro de 1992).
Esse desfile
realizou-se numa tarde de sexta-feira, dia 3 de janeiro, para prestar a
homenagem das TFPs de toda a América aos Papas, aos Monarcas, aos
Descobridores e aos Missionários propulsores do esforço evangelizador e
civilizador.
Foi a caminhada de uma fidelidade que teve início no
Pátio do Colégio, naquela primeira célula-mater de São Paulo, quando a
cidade era apenas uma aldeola, habitada por portugueses e por índios que
os missionários acabavam de introduzir para luz do Evangelho.
E esse roteiro, nós simbolicamente percorremos.
Porque deixamos o Pátio do Colégio e seguimos através de várias vias do
centro antigo de São Paulo, onde se encontravam prédios construídos em
várias épocas da história paulista, e bem simbólicos de todos esses
séculos que São Paulo tinha vivido de lá até aquele momento. Era,
portanto, o caminho da fidelidade à tradição.
6. Passos que repercutem no Céu
Ao planejar aquele desfile, eu estava bem certo de
que os passos dos homens na terra repercutem no Céu. E portanto estava bem
certo de que tudo quanto ali se fizesse repercutiria no Céu e ficaria
inscrito no Livro da Vida.
E foi nesta certeza que se abriu, no dia 3 de janeiro
de 1992, o VIII Encontro de Correspondentes da TFP.
Durante o desfile, eu vi com simpatia pessoas vindas
do norte de nosso continente, das margens do rio Hudson que banha Nova
York. Vi pessoas vindas das margens do Amazonas tão nosso, tão
caracteristicamente brasileiro, tão distante pela geografia, mas tão
próximo pelo afeto. E também os que vieram das margens do Rio da Prata, e
de além dos Andes.
Vi também os espanhóis, os quais vieram de junto do
rio Manzanares, que banha a histórica e legendária Madri, para participar
do nosso entusiasmo.
Sim, no Livro da Vida ficará inscrito que, na aurora
desse ano de 1992, em que certo falso progressismo se prometia a si
próprio tantas realizações no seu programa de renovações, que eram no
fundo deteriorações, houve também passos que repercutiram firme na terra
dizendo: “Nós também avançaremos! Nós também caminharemos!”
[44].
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