Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Minha

 

Vida Pública

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Parte XII

Livros e Campanhas de grande repercussão na década de 1990

 

Capítulo III

No V Centenário dos Descobrimentos, uma opção crucial: Cristandade autêntica ou revolução comuno-tribalista (1992)

1. Como os homens de minha época viam os índios e o progresso

Antes de tratar de nossa manifestação no centro de São Paulo a propósito do V Centenário dos Descobrimentos, comemorado em 1992, faço uma reminiscência histórica.

Quando em minha remota infância eu ouvia falar de índios, a versão que deles me chegava era ambivalente.

De um lado, eram eles mencionados como sendo uma raça digna de simpatia, pelo fato de terem sido os primeiros ocupantes do solo brasileiro. Portanto, se se quiser, seriam os nossos compatriotas mais antigos, a quem deveríamos votar um sentimento de solidariedade nacional. Desse ponto de vista, cumpria considerá-los com benevolência especial.

A evangelização dos índios levada a cabo pelos jesuítas procurou mitigar os costumes bárbaros que praticavam. Na foto o Pe. Nóbrega e companheiros resgatam o cadáver de um índio que estava prestes a ser devorado em um ritual pelos tupinambá. Tela de Manoel Joaquim de Melo Corte Real da Academia Imperial de Belas Artes , datada de 1843

De outro lado, porém, ao examinar a vida dos indígenas em seu estado primitivo, errando por nossos campos e nossas matas, e ao se tomar em conta seus costumes, sua moral, o sistema pelo qual obtinham o que precisavam para viver — produto mais bem de sua inação do que de seu trabalho, pois que eram avessos a toda atividade metódica — a generalidade das opiniões era rotundamente desfavorável.

Tal quadro contrastava com outro, incondicionalmente elogioso, que certas máquinas de fabricar opinião difundiam acerca do progresso moderno. Esse progresso era o grande mito dominante da época hollywoodiana, que despontava em minha infância, quando o mundo ocidental, especialmente a Europa e a América do Norte, era apresentado da maneira mais favorável e otimista, como gerador de um estado de ascensão contínua que haveria de melhorar indefinidamente a vida dos homens.

E — vaticinavam alguns — esta se aperfeiçoaria de tal maneira que, com os progressos da medicina, antes do fim do século ou no decurso do século XXI, surgiria um meio de restituir a “saúde” — até lá chegava esse otimismo! — aos homens que tivessem morrido. E, consequentemente, ser “ressuscitados”.

Câmaras Criônicas reais, na Alcor, uma das instituições que realiza este procedimento nos dias de hoje.

Desse modo ocorreram — sobretudo nos Estados Unidos — casos de milionários ou pessoas que levavam vida fácil e agradável e que, ao morrer, deixaram legados especiais para despesas com sua eventual "ressurreição". Tais legados incluíam cláusulas específicas sobre como deveriam ser guardados seus corpos em câmaras frigoríficas, por empresas constituídas ad hoc desde os anos 60, para que estivessem em condições de serem trazidos novamente à vida.

Este exemplo extremo ilustra até que ponto chegou a euforia do progresso, e o desejo otimista de viver indefinidamente esta vida que, hollywoodianamente falando, era apresentada como deliciosa.

Isso induzia incontáveis pessoas a se entusiasmarem com o progresso e a se esforçarem em levar adiante o sonho do crescimento científico e tecnológico indefinido.

Para tal ótica, a situação dos índios, como também das tribos primitivas da África, Ásia e Oceania, que permaneciam em estado selvagem, representava o grau zero de progresso, em comparação com a situação dos homens que viviam segundo Hollywood, a qual seria, digamos, o grau mil.

Assim, durante várias décadas, falava-se de vez em quando de massacres perpetrados pelos índios, de assassinatos, de canibalismo, de como sua vida errante era perigosa, do risco que haveria em encontrar-se com eles nas selvas etc.

2. Depois de uma fase de silêncio, uma reviravolta completa

Sem embargo, em certo momento, o tema índios começou a sair da atenção geral, e gradualmente foi-se tratando cada vez menos dele.

Ao cabo de um intervalo em que o assunto permaneceu submerso em um mar de silêncio e de olvido, ele começou a ressurgir, mas já então sob um prisma completamente diferente. Para as mesmas correntes ideológicas que, com o objetivo de demolir a civilização cristã, interessara em certo momento promover o mito neopagão de Hollywood, passou a convir a demolição do mesmo mito, e da civilização com base nele edificada, a fim de dar um salto adiante no processo revolucionário, rumo à anarquia neotribal.

Para este novo objetivo, era preciso então apresentar as condições de vida dos índios do modo mais favorável possível.

Disso fui testemunha. Começaram a surgir menções a tal autor, que asseverava ser exagerada a versão de que todos os índios fossem canibais; ou a tal outro, que sustentava nunca ter havido canibalismo entre eles, e, pelo contrário, exaltava que possuíssem estas ou aquelas qualidades. Assim, elogios à arte, cultura e civilização dos índios foram se tornando cada vez mais freqüentes, e caminhando para o hiperbólico.

Los Arcángeles arcabuceros -  séc. XVII - Escuela Cusqueña - Exemplo de arte indígena pós conversão à Fé Católica

De fato, pode-se francamente falar de uma arte e de uma civilização indígenas, se consideramos, por exemplo, os incas e os astecas, que tiveram impérios organizados, uma verdadeira arte e elementos culturais dignos de menção.

Sobretudo é verdade que, em toda a América, depois de convertidos à verdadeira Fé, os índios manifestaram um talento que os capacitou a produzir coisas boas e até relevantes. Era neles uma capacidade natural latente, que, como fruto do batismo e da civilização, e como resultado do contato com os eclesiásticos e com o elemento civil de Portugal e da Espanha, se transformou em qualidade patente.

Falar-se porém de arte indígena pré-colombiana fora dos astecas e dos incas, e de alguma outra exceção, é extremamente questionável do ponto de vista historiográfico.

Essa retomada do tema indígena culminou com a virtual glorificação do índio, e de suas condições de vida milenar, promovida pelas esquerdas.

*   *   *

A ECO’92, por exemplo, foi uma manifestação muito curiosa, muito aguda e muito sistemática dessa glorificação que, por sua vez, o movimento contrário à celebração dos 500 anos do Descobrimento da América estava levando até o paroxismo [41].

3. Principais teses dos opositores ao Descobrimento e à Evangelização da América

De fato, para surpresa de muitos, o ensejo dos 500 anos do Descobrimento da América não foi motivo indiscutido de festejos.

Em certas publicações da esquerda católica, os conquistadores, de heróis, passaram a vilões. Punham elas em realce suas crueldades, não a sua coragem e sua obra civilizadora. E os abnegados e beneméritos missionários, que converteram índios à Fé católica, eram apontados pelos adeptos dessa mesma Teologia da Libertação como fautores de um empreendimento nefasto.

Eu considerava que a corrente inspirada pela Teologia da Libertação errava na apreciação histórica a partir dos erros que ela cometia na apreciação teológica. Ou seja, era a partir dos seus erros teológicos que ela caía em erros históricos.

*   *   *

A Teologia da Libertação tem, a respeito da natureza humana e do rumo que deve seguir a História, um modo de ver inteiramente diverso daquele que tem o verdadeiro católico.

Para este, o homem deve progredir continuamente, mas este progresso consiste em sujeitar a terra ao serviço do homem. E, por sua vez, o homem deve sujeitar-se ao serviço de Deus, de maneira que Deus reine sobre toda a Criação.

Se o homem proceder virtuosamente, fa-lo-á com o equilíbrio adequado, que impedirá a destruição da natureza. Mais ainda, ele a aperfeiçoará para o seu próprio benefício.

Já segundo a doutrina da Teologia da Libertação, muito vizinha, nesse ponto, do ecologismo exacerbado que se difundiu pelo mundo, o homem é quem deve estar a serviço da natureza. De maneira tal que, em vez de essa natureza ser vergada e domesticada pelo e para o homem, é o homem que deve viver para conservar incólume a natureza.

Ele seria o guardião da natureza, tocando-a o mínimo, e vivendo modestamente, na maior medida possível, só do que a natureza lhe proporcionasse. E isto num estado verdadeiramente primitivo, selvagem.

Segundo essa concepção eco-teológica, chega-se à conclusão de que o estado selvagem é o estado ideal para o homem. Enquanto, segundo a doutrina católica, o estado perfeito para ele é o de ser civilizado.

D. Pedro Casaldáliga no dia em que foi sagrado como bispo. Foto: arquivo da Prelazia de São Félix

Em tal concepção, é claro que os índios, por terem sido civilizados, foram prejudicados.

A partir daí — concluem os eco-teólogos — é claro que a América não deveria ter sido descoberta, que ela nada lucrou em ter sido descoberta por europeus, e que estes erraram querendo adaptar àquela civilização as “maravilhas” do Novo Mundo. Tese esta que é uma verdadeira aberração.

Para esses adeptos da Teologia da Libertação ou dessa “ecologia”, a obra dos descobridores e colonizadores tinha sido funesta [42].

*   *   *

O mais característico desses novos intérpretes foi, uma vez mais, o espanhol Dom Pedro Casaldáliga. Ele considerava que a vinda dos missionários brancos foi nociva para os índios, e chegou a dizer que o Deus branco não convinha para homens de pele-vermelha.

Eu achava que o Deus de pele branca, Nosso Senhor Jesus Cristo, convinha a todos os homens. O problema não se punha nesses termos.

4. Papel heróico dos Descobridores e dos Evangelizadores na História do Brasil

Desembarque de Colombo nas costas do Novo Mundo em 12 de outubro de 1492

John Vanderlyn - Rotunda do Capitólio - Washington - 1847

Diferentemente da Teologia da Libertação, eu via no V Centenário do Descobrimento da América um fato de uma importância transcendental para a História do mundo.

Era de uma importância tão transcendental que, se fôssemos enumerar todas as conseqüências dele, seria literalmente impossível.

Eu me concentro, com simpatia, em considerar os efeitos na História da Espanha. É preciso notar que a Espanha de 1492 acabava de consolidar a sua unidade com a expulsão dos últimos mouros de Granada e iniciava um outro grande ciclo de atividades que haveriam de consagrá-la como uma das primeiras nações da História do Ocidente.

A Espanha havia se voltado para a luta contra os mouros no Oriente - ela que tinha feito a luta contra os mouros no Ocidente - e ganhava a notabilíssima vitória de Lepanto que firmou as barreiras ao poder muçulmano*.

* Presenciamos hoje o ressurgimento ameaçador do poder muçulmano, representado em sua ponta mais extremada pelo Estado Islâmico. Tal ressurgimento foi previsto por Plinio Corrêa de Oliveira nas páginas do Legionário ainda na década de 1940, e depois em Catolicismo, no início da década de 1950.

Dizia ele, no artigo A Questão Libanesa, estampado no Legionário de 5/12/43:

“O perigo muçulmano é imenso. O Ocidente parece fechar-lhe os olhos, como os tem ainda semi-cerrados ao imenso perigo amarelo. [...] Nos dias de hoje, com homens, armas e dinheiro, tudo se faz. Dinheiro e homens, o mundo muçulmano os possui à vontade.

“Adquirir armas, não será difícil... e, com isto, ficará uma potência imensa em todo o Oriente, ativa, aguerrida, cônscia de suas tradições, inimiga do Ocidente, tão armada quanto ele, que dentro de algum tempo poderá ser absolutamente tão influente quanto o mundo amarelo, e colocada em situação geográfica e econômica incomparavelmente melhor!”

A este propósito, ver a excelente obra de Juan Gonzalo Larrain Campbell, Plinio Corrêa de Oliveira: Previsões e denúncias em defesa da Igreja e da Civilização Cristã (Artpress, São Paulo, 2001), na qual é transcrito o seguinte e expressivo testemunho do Padre jesuíta João B. Libânio, um dos expoentes da Teologia da Libertação:

“Plinio Corrêa de Oliveira (fundador da TFP — Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade) fez uma palestra para os jesuítas em 1940, permeada de uma idéia toda messiânica [sic!], dizendo que o grande problema do cristianismo era o islamismo. Há 50 anos, foi profético, ou a História foi, por outras razões, caminhando nesse sentido. O fato é que se confirma o que ele intuiu”.

São José de Anchieta - "maior apóstolo dos índios do Brasil"

De outro lado, houve o ciclo de navegações, que não se resumiu apenas ao Descobrimento da América, e que levou até às Filipinas.

Tinha sido também a Espanha que dera o apoio decisivo ao movimento de caráter religioso-cultural, no sentido mais amplo do termo: a Contra-Reforma. Esta também pôs diques à Reforma, que soava como uma verdadeira revolução.

Tudo isso pôde fazê-lo com os recursos que recebia do Novo Mundo, e com grande vantagem para a civilização cristã e para a humanidade em geral.

Por exemplo, José de Anchieta, grande missionário jesuíta nascido nas Ilhas Canárias, portanto espanhol, foi o maior apóstolo dos índios no Brasil. Homem que merecia ser mundialmente célebre, e que João Paulo II beatificou numa das visitas que fez ao Brasil*.

* Como já ficou dito, foi canonizado pelo atual Pontífice.

Foi um jesuíta característico do século XVI - século áureo da Companhia de Jesus - no sentido mais pleno da palavra [43].

5. A “Caminhada da Fidelidade” promovida pela TFP

Diante dessas vozes que se levantavam para afirmar que o Descobrimento havia sido um desastre para as populações nativas da América, um desastre para a história do mundo, não poderia deixar de ser que a Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade levantasse um protesto contra essa tendência que ia ao arrepio de todo o curso da História.

E que afirmasse num ato solene, em que estivessem presentes representantes dos mais variados países da América e de diversos países da Europa, a sua solidariedade entusiasmada e convicta à obra missionária realizada pela Igreja Católica no Brasil, como em todo território das Américas, ao longo desse tempo. E ao mesmo tempo proclamasse a segurança de que o futuro da América só tinha um sentido: o futuro da civilização cristã.

Com efeito, essa caminhada poderia chamar-se a Caminhada da Fidelidade*.

O Desfile da Fidelidade em sua passagem pelo Vale do Anhangabaú na capital paulista

* Aproveitando o afluxo a São Paulo de grande número de pessoas para o VIII Encontro de Correspondentes e Simpatizantes, a TFP organizou a que ficou conhecida como a Caminhada da Fidelidade ou Desfile da Fidelidade (cfr. Catolicismo n° 494, fevereiro de 1992).

Esse desfile realizou-se numa tarde de sexta-feira, dia 3 de janeiro, para prestar a homenagem das TFPs de toda a América aos Papas, aos Monarcas, aos Descobridores e aos Missionários propulsores do esforço evangelizador e civiliza­dor.

O Prof. Plinio Corrêa de Oliveira discursando no encerramento do Desfile da Fidelidade [excertos do discurso podem ser ouvidos aqui]

Foi a caminhada de uma fidelidade que teve início no Pátio do Colégio, naquela primeira célula-mater de São Paulo, quando a cidade era apenas uma aldeola, habitada por portugueses e por índios que os missionários acabavam de introduzir para luz do Evangelho.

E esse roteiro, nós simbolicamente percorremos. Porque deixamos o Pátio do Colégio e seguimos através de várias vias do centro antigo de São Paulo, onde se encontravam prédios construídos em várias épocas da história paulista, e bem simbólicos de todos esses séculos que São Paulo tinha vivido de lá até aquele momento. Era, portanto, o caminho da fidelidade à tradição.

6. Passos que repercutem no Céu

Ao planejar aquele desfile, eu estava bem certo de que os passos dos homens na terra repercutem no Céu. E portanto estava bem certo de que tudo quanto ali se fizesse repercutiria no Céu e ficaria inscrito no Livro da Vida.

E foi nesta certeza que se abriu, no dia 3 de janeiro de 1992, o VIII Encontro de Correspondentes da TFP.

Durante o desfile, eu vi com simpatia pessoas vindas do norte de nosso continente, das margens do rio Hudson que banha Nova York. Vi pessoas vindas das margens do Amazonas tão nosso, tão caracteristicamente brasileiro, tão distante pela geografia, mas tão próximo pelo afeto. E também os que vieram das margens do Rio da Prata, e de além dos Andes.

Vi também os espanhóis, os quais vieram de junto do rio Manzanares, que banha a histórica e legendária Madri, para participar do nosso entusiasmo.

Sim, no Livro da Vida ficará inscrito que, na aurora desse ano de 1992, em que certo falso progressismo se prometia a si próprio tantas realizações no seu programa de renovações, que eram no fundo deteriorações, houve também passos que repercutiram firme na terra dizendo: Nós também avançaremos! Nós também caminharemos! [44].

 


NOTAS

[41] Prefácio ao livro O V Centenário face ao século XXI, Comissão Inter-TFPs de Estudos Hispano-Americanos, Artpress, São Paulo, 1993.

[43] Entrevista à TVE da Espanha (gravação), 3/2/90.

[44] Discurso durante o Desfile da Fidelidade, Catolicismo n° 494, fevereiro de 1992 [N.Site: uma audição de excertos do discurso pode ser encontrado aqui, bem como o link para o texto completo do mesmo].

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