1. Finalidade primeira: contatos com setores diretivos da Santa Sé
No ano de 1950 fiz uma primeira viagem à Europa [1]
que durou três meses [2].
Viajei em companhia do Dr. Pacheco Sales.
Dr. Paulo Barros e Dr. Adolpho tinham me antecedido [3].
Dom Mayer nos alcançou em Paris e foi conosco depois para Roma [4].
Nessa viagem de 1950, não nos acompanharam os da
geração nova (ou seja, do grupo da Martim). Já na segunda viagem, de 1952,
alguns desses mais jovens estavam mais amadurecidos, e ela foi feita com
alguns deles.
Quais os principais objetivos dessas viagens?
Estava em nosso espírito a idéia de que Pio XII, como
seus antecessores, havia publicado encíclicas que freavam a Revolução em
vários pontos.
Nós, sentindo no Brasil toda a situação dramática
descrita no
Em defesa da Ação Católica, tínhamos visto que a Santa
Sé nos dera aval pela nomeação de Dom Sigaud e de Dom Mayer como Bispos, e
pela
carta de louvor que eu recebera de Pio XII [5].
Naquela época eu imaginava haver no Vaticano um ninho
de contra-revolucionários colocado nos píncaros da humanidade [6].
A idéia era aproveitar alguns contatos epistolares
que tínhamos travado na Europa a partir das indicações do Padre Mariaux
nos anos 1940. E ver se nos era possível aproximar dos setores diretivos
do Vaticano e conseguir da Santa Sé, para o mundo e para o Brasil, uma
política mais definidamente contra-revolucionária, quer do ponto de vista
da ortodoxia (para prevenir o progressismo que vinha nascendo), quer do
ponto de vista da luta da direita contra a esquerda (para fazer avançar a
Contra-Revolução no terreno temporal).
De todos os objetivos, o que nos parecia mais
concreto, mais palpável era o dos contatos com a Santa Sé. E nossas idas à
Europa foram preparadas na intenção de fazermos de Roma — a Roma eterna
dos mártires e dos santos — o pináculo de nossa viagem e, propriamente, o
objetivo sumo [7].
Lá deveríamos procurar conhecer os
contra-revolucionários do Vaticano, para colocá-los a par dos erros das
correntes perniciosas que se haviam infiltrado no movimento católico no
Brasil. E obter deles medidas pertinentes, conservando-me depois em
contato com eles para a articulação de um movimento contra-revolucionário
universal [8].
2. Finalidade segunda: estreitar os laços com os movimentos
contra-revolucionários da Europa
Mas, para que fôssemos tomados a sério em Roma e
nossa presença tivesse peso, pareceu-nos que deveríamos aparecer em Roma
não só com as cartas do Padre Mariaux, mas com cartas de apresentação de
todas as direitas européias que não tivessem sido nazistas nem fascistas [9].
A este cálculo somava-se uma razão mais profunda.
Como boa parte das minhas convicções eu devia à
tradição que a minha família recebera de fontes européias, eu pensava ser
natural encontrar ali o foco dessas tradições ainda aceso, em pessoas
capazes de ter o mesmo espírito que o nosso. E eu imaginava que o nosso
grupo poderia se expandir muito mais na Europa do que no Brasil.
Daí a minha segunda meta de encontrar no Velho
Continente movimentos católicos, movimentos direitistas (excluídos
naturalmente os nazistas e os fascistas) fiéis à tradição européia, e que
pudessem concordar conosco.
E, dentro desses movimentos, ver se havia líderes de
grande vôo, de grande inteligência, de grande capacidade, com o mesmo
pensamento que nós e com os quais pudéssemos articular uma coligação
mundial das direitas, sob a direção desses líderes. Pois me parecia
natural que na Europa estivessem os luzeiros capazes de dirigir o
movimento contra-revolucionário universal. Então, eu procurava também
esses líderes [10].
Resolvemos então começar a nossa viagem pela Espanha,
tomando em consideração ser o mais católico dos países da Europa.
Depois de tomar contato com os círculos espanhóis,
passaríamos por Portugal, visitaríamos Fátima e depois iríamos à França
para análogo trabalho.
Como aqui no Brasil eu havia recebido um convite do
Príncipe Alberto da Baviera para ir à Alemanha, teríamos contato também
com os meios tradicionalistas alemães, inclusive com o pretendente ao
trono da Áustria, o Arquiduque Otto de Habsburgo, que morava naquele tempo
em Paris.
Isto, antes de penetrarmos na Itália, de maneira a
nos apresentarmos em Roma com a seleção dos contatos que fizéssemos, e
todo o nosso jogo de xadrez guarnecido com todas as peças para travar a
batalha final, que era a batalha romana [11].
Foram portanto viagens de apostolado e comportavam
muito trabalho e muita preocupação. Tudo foi muito pensado, muito
refletido, e eu tomava notas meticulosas para depois não me esquecer [12].
3. Vassalo à procura de suserano
Notem bem: eu não fui à Europa à procura de bases
para liderar.
Pelo contrário, se a minha viagem tivesse dado
resultado, eu teria vindo tendo por cima de nossas cabeças líderes.
Líderes civis na esfera temporal, e líderes de alta categoria eclesiástica
que pudessem nos dar uma diretriz.
Isto foi o que fui procurar.
Eu estava, portanto, como um vassalo à procura de
suserano. E não como um suserano à procura de vassalos [13].
Fui como um peregrino à procura dos restos da Cristandade.
Infelizmente, a nossa peregrinação deu resultados os
mais pungentes, os mais desapontadores que se possa imaginar [14].
1. Carlistas, alfonsistas, movimentos católicos e personalidades
Na Espanha, mantivemos contatos com próceres do
movimento carlista e de algum modo também com os círculos alfonsistas.
Os carlistas e os alfonsistas eram os que dividiam
entre si o público monarquista da Espanha, público ainda muito forte.
O pretendente carlista ao trono espanhol era o
Príncipe Xavier de Bourbon-Parma. Morava em Paris (creio que ele era
proibido pela legislação franquista de ir à Espanha), e tinha como
lugar-tenente um homem que nos meios tradicionalistas da América Latina
era famoso: Don Manuel Fal Conde, um advogado da cidade de Sevilha.
Depois, entramos em contato também com o público
católico das associações religiosas.
2. Madri e San Sebastián
Também tomei contato com Don Elias de Tejada Spínola,
professor da Universidade de Salamanca, o qual eu havia conhecido no
Brasil.
Eu tinha ouvido falar também de Cristiandad,
revista católica tradicionalista, que ficava a meio caminho entre o
carlismo e o movimento especificamente católico [15].
* *
*
Quando Dom Sigaud veio de volta da Navarra, no navio
ele travou amizade com um coronel do exército espanhol, chamado Manuel
Barrera de Aguilar.
Eu o procurei e mantive contato com ele em Madri.
Fomos juntos a San Sebastián e ali participamos de
uma reunião de carlistas.
3. Sevilha
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La Giralda de Sevilla
- Litografía hacia 1844 del artista Genaro Pérez de Villa-Amil.
Procede de su obra, España Ártistica y Monumental |
Fui também a Sevilha.
Há um velho provérbio, creio que português: “Quem
não viu Sevilha, não viu maravilha”. É a própria e literal expressão
da verdade. Sevilha é monumental! [16]
Dois monumentos muito importantes da cidade são a
Catedral, com a famosa Torre da Giralda (uma torre ainda mourisca, de uma
beleza extraordinária), e o Alcácer de Sevilha com seus jardins espantosos
que, infelizmente, não tive tempo de visitar.
A Giralda é uma torre colossal, muito alta, se não me
engano tem mais de 80 metros de altura. Não é em escada, mas em rampa.
Do lado de fora, a Giralda seria um paredão uniforme
e monótono, sem graça, se os mouros não tivessem arranjado um jeito de
abrir ali umas tantas janelinhas com desenhos em relevo, criando a
impressão de tapete.
Do lado de dentro a torre é feia. O que é bonito são
as sucessivas visões da Catedral a alturas diversas, à medida que se sobe.
Eu visitei tanto a Giralda como a Catedral, e andei
pelo bairro velho de Sevilha onde morava Don Manuel Fal Conde.
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La Torre del Oro - Sevilla
- Litografía hacia 1844 del artista Genaro Pérez de Villa-Amil.
Procede de su obra, España Artística y Monumental |
E no contato com esses monumentos, vi uma torre que
toda a vida, desde menino, tive vontade de ver: a Torre do Ouro.
É uma torre octogonal, tão bonita quanto esperava,
refletindo-se dignamente no rio Guadalquivir.
A cidade, apesar dos aspectos mouriscos, tem qualquer
coisa de profundamente católica, fazendo uma síntese entre o católico e o
mourisco. Mas, vendo-se a coisa mourisca, não se sente o mouro, mas o
sevilhano. A cidade é “batizada” até onde pode ser, e católica mesmo no
seu passado.
Andando pelo bairro velho sentia-se alguma coisa do
encanto do tempo antigo: junto com uma forma de pobreza-riqueza, um certo
modo de ser da classe alta que também me pareceu encantador e que abria
para mim horizontes novos.
* *
*
Em Sevilha visitei Don Manuel Fal Conde, um
homem grisalho, beirando os 60 anos, de estatura afidalgada, muito teso,
muito ereto, cabelo cortado à escovinha, com olhos de andaluz, redondos e
pretos, cor de pele um pouco dada ao moreno. No total, uma fisionomia
atraente, um homem simpático, um pouco reservado, muito acolhedor, muito
vivo, muito digno, muito amável. Uma amabilidade que não tinha nada
daquele tipo de sorriso idiota e comercial de quem quer vender uma
Electrolux, mas um sorriso de batalhador. Olhando de frente, fixando-me
nos olhos, muito cavalheiresco, como quem diz: eu o respeito, me respeite.
Eu apertei a mão dele com prazer [17].
Conversamos longamente [18],
disse a ele que ia a Paris e que talvez ali encontrasse o Príncipe Xavier
de Bourbon-Parma, então pretendente ao trono espanhol. E pedi uma
apresentação para ele. Ele me respondeu que com todo o gosto, e me deu uma
apresentação calorosa.
Deu-me ainda uma apresentação para o Arquiduque Otto
de Habsburgo.
Fomos depois a Barcelona [19].
Em uma Missa na igreja dos jesuítas, vi num altar um
estojo muito bonito, com uma espada. Perguntei o que era, e a pessoa me
respondeu com toda a simplicidade: “É a espada de Santo Inácio de
Loyola quando ele era fidalgo”.
Era, portanto, a famosa espada que ele tinha
consagrado a Nossa Senhora no Santuário de Montserrat e que depois os
jesuítas tinham conseguido.
* *
*
A catedral de Barcelona é uma bonita catedral gótica.
Iluminada de dentro durante a noite, de fora se vêem os vitrais todos
coloridos. É uma beleza.
|
Santo Cristo
de Lepanto - Catedral de Santa Eulália - Barcelona |
Na catedral de Barcelona há também um velho
crucifixo, logo à direita de quem entra. Um Cristo até não muito bonito,
mas de grande tamanho e meio torto.
Perguntei:
— Que Cristo é este?
— É o Cristo que estava na nau capitania de Dom
João d’Áustria na Batalha de Lepanto. O movimento que o senhor o vê fazer
foi devido ao seguinte, segundo uma piedosa tradição: na hora da batalha,
uma bala ia atingir o Crucifixo; a imagem então se moveu, desviando da
bala. Milagre que entusiasmou muitos combatentes.
— Oooooooooooh!
Outra coisa que é um encanto é uma casa que eles
chamam Ayuntamiento, hoje ocupada pela Prefeitura. Toda construída
de mármore branco, com pátios e perspectivas que dão a impressão de se
estar imerso em plena feeria. Não estive em lugar nenhum em que a presença
da Idade Média fosse mais carregada do que lá [20].
Conheci em Barcelona um prato também maravilhoso:
paella. É um prato com uma quantidade indefinida de arroz, azeite e
toda espécie de frutos do mar. Como gosto muito de arroz, meu entusiasmo
pela paella foi sem limites.
Depois me levaram para ver, no cais, a reprodução
fac-similar do Santa Maria, Pinta e Niña, os três
naviozinhos com que Cristóvão Colombo descobriu a América: umas cascas de
noz, sem conforto, sem tamanho, dir-se-ia sem estofo para enfrentar o mar!
É a homenagem que se presta ali à coragem dos tripulantes, realmente
extraordinária.
Visitamos também a sede da revista Cristiandad,
que era editada em Barcelona por um grupo que tinha uma orientação bem
parecida com a nossa.
Ali tive contato com o Padre Ramón Orlandis i
Despuig, jesuíta, aglutinador e diretor espiritual do grupo, um sacerdote
bem idoso, alquebrado, curvo, mas com o olhar perfeitamente jovem, vivaz,
prestando atenção em tudo [21],
inteligente, capaz, astuto, um bom padre [22].
Ele era das ilhas Baleares, de uma família muito
nobre, a tal ponto que um ramo da família se chamava Orlandis e Habsburgo,
do tempo ainda em que os Habsburgos reinavam sobre a Espanha. Ele tinha
sido contra-revolucionário a vida inteira [23].
Ele foi logo falando de Teilhard de Chardin, e disse
que falava contra porque é jesuíta. Cristiandad servia de
instrumento ao Padre Orlandis para exercer uma ação profundamente sadia
nas fileiras jesuíticas [24].
Confraternizamo-nos muito. Mas infelizmente
dois ou três anos depois ele morreu.
Eu queria ter contato com um alfonsista — os quais
desejam a restauração da linha de Alfonso XIII e não da linha de Don
Carlos de Bourbon, príncipe das Astúrias — para conhecer a mentalidade que
os movia.
Apresentaram-me então um senhor cujo nome era Bultó,
íntimo amigo de Don Juan de Borbon y Battenberg, pai do rei Juan Carlos.
Homem muito fino, muito agradável, ele convidou-me
para almoçar num clube de muita categoria, e via-se que tinha relações
nesse clube. Dava-me a impressão de um gentil-homem realmente.
Então, falamos longamente sobre os espanhóis da linha
legitimista e do legitimismo espanhol [25].
Na Espanha, apontaram-me como pessoa muito
contra-revolucionária o Cardeal Pedro Segura y Sáenz*, Arcebispo de
Sevilha. Disseram-me que era um homem
comme il faut. E eu quis
visitá-lo.
*
O Cardeal Segura
nasceu em Carazo, Província de Burgos, no antigo reino de Castela, no dia
4 de dezembro de 1880 e faleceu no dia 8 de abril de 1957, em Madri, aos
76 anos.
Eu tinha uma carta de apresentação. Telefonei e me
disseram que ele estava na cidade de Cuenca, que ficava a três ou quatro
horas de Madri, e que me receberia às tantas horas.
Tomei um automóvel de praça velho, com pára-lamas
periclitantes. E fui sozinho a Cuenca, onde vi coisas encantadoras. Isto
foi num sábado, dia 29 de julho de 1950.
Cheguei mais ou menos às quatro horas da tarde.
Tratava-se de saber onde era a casa do Cardeal.
Desci e entrei em uma confeitaria para perguntar. E
fiquei diante de um quadro como nunca imaginei.
Em plena hora de trabalho, uma orquestra tocando a
todo pano! E a confeitaria com grande número de homens jogando dominó,
cada qual com a fisionomia de general dirigindo uma batalha:
ocupadíssimos, entretenidíssimos e muito sérios.
Perguntei sobre a casa do Cardeal e um homem me
disse:
— Suba aqui, desça lá.
Chamei o meu chofer e lhe disse: “Tome nota desse
caminho, porque não me cabe na cabeça”.
Eles se entenderam e cheguei à casa do Cardeal.
* *
*
O Cardeal mantinha todos os protocolos de
antigamente.
Fizeram-me entrar numa salinha de espera.
Passados uns quinze minutos, tempo necessário para
manter o visitante a uma respeitosa distância, ouço passos que descem a
escada. E entra o Cardeal, homem já velho, devendo ter perto de 70 anos [26].
Ele era o tipo característico do espanhol. Parecia
mais moço do que era. Não era anêmico, mas tinha uma tez pálida, na qual
não se percebia o rubor do rosto. Olhos grandes, rosto um tanto comprido [27],
alto, seco, com um solidéu vermelho, vestido com toda a roupa própria de
um Cardeal, portando um anel com um rubi lindíssimo. Eu gosto de admirar
pedras e devorei o rubi com os olhos quando ele me estendeu a mão para
cumprimentá-lo [28].
Sua voz não era de trovão, mas muito modulada, cheia
de inflexões. Cortês, mas desses homens que diz o que quer e que vai
falando logo [29].
Sentamo-nos e eu disse:
— Tenho uma carta de Dom Geraldo de Proença Sigaud
me apresentando a Vossa Eminência.
Ele disse: “A ver” [30].
Ele passou então a falar dos problemas da Espanha
diretamente [31].
Daí a pouco estávamos em conversa solta e em grande intimidade. Ele
percebeu que eu era ultra antiprogressista e antimodernista. E começou a
se abrir [32].
Seu programa era, evidentemente, de me abrir os olhos a respeito de mitos
eclesiásticos e hierarcas. Ele do princípio ao fim não fez outra coisa
senão procurar abrir-me os olhos [33].
Contou-me a longa história da perseguição que sofreu,
pois fora expulso da Espanha pelos rojos (vermelhos). E
contou-me também como ele teve de entestar com o Caudillo
(Francisco Franco). Era bem o meu programa: nada de rojos, nada de
caudilhos! [34]
* *
*
O enfrentamento com os rojos havia se dado no
dia seguinte ao da proclamação da República em 1931.
|
O cardeal Pedro Segura y Sáenz a
caminho do desterro, decretado pelas autoridades republicanas. Junho
de 1931 |
Ele estava em visita pastoral, quando um piquete de
cavalaria o detém na estrada, o prende por 24 horas e o expulsa da Espanha
sem dinheiro, sem breviário nem remédios.
Começa então um ano de exílio na França: ele, sem
dinheiro, rolando de diocese em diocese, sofrendo do mundo eclesiástico
francês copiosas humilhações.
Nas casas religiosas cobravam hospedagem dele,
Cardeal da Santa Igreja Romana, Arcebispo de Toledo e Primaz da Espanha!
Ele contou-me que esse ano de exílio nessas condições
deveu-se a Pio XI.
Logo que foi expulso, ele foi para Lourdes e pediu
ordens ao Papa. Não recebeu resposta. Um mês depois, nova carta pedindo
pelo menos auxílio financeiro, igualmente sem resposta.
A certa altura, Monsenhor Maglione, Núncio em Paris,
foi ter com ele para dizer que sua situação se normalizaria caso ele
pedisse demissão da Sé de Toledo.
Durante um ano ele resistiu.
Ao cabo desse ano, estava ele em Sept-Fons, a famosa
abadia trapista, e esteve mal à morte. Ali tiveram pena dele*.
*
O abade de Sept-Fons, nessa época, era Dom Jean-Baptiste Chautard (1858-1935), o
célebre autor do livro A alma de todo apostolado, cuja leitura,
como vimos, marcou profundamente a vida de Dr. Plinio.
O médico diagnosticou a causa da doença: traumatismo
moral. E escreveu pessoalmente a Pio XI, responsabilizando-o pela situação
do Cardeal.
Pio XI então se comoveu, pelo medo do escândalo, e
convidou-o para ser Cardeal de Cúria.
Restava um problema: como Cardeal de Cúria, ele
deixava Toledo, mas por iniciativa própria. E o coitado, levado pela fome,
concordou em princípio deixar Toledo, porque para ser Cardeal de Cúria não
podia ser Arcebispo de uma diocese.
Em Roma, ele é recebido na estação pelo Cardeal
Pacelli e dois outros dignitários do Vaticano, que o acompanharam ao
edifício de apartamentos dos Cardeais.
E ali, logo na chegada, disseram-lhe que Pio XI lhe
mandava dizer que desse uma entrevista à imprensa declarando que
abandonara de espontânea vontade a arquidiocese de Toledo e o território
espanhol.
Resposta dele:
— Cumprirei todas as ordens lícitas que o Papa me
der, mas ele não pode me obrigar a pecar. O Papa sabe que isso é mentira,
porque tem informação perfeita do ocorrido e não espere de mim que eu
minta.
* *
*
De vez em quando, o Papa se reunia com o Sacro
Colégio e passavam juntos em revista os acontecimentos eclesiásticos e
mundiais do tempo.
Ele me contou que, numa dessas reuniões, Pio XI
pronunciou um discurso contendo um magnífico elogio a ele, dizendo que era
a jóia do Sacro Colégio. Mas acrescentou que fora por livre vontade que o
Cardeal pedira demissão da Arquidiocese de Toledo... [35]
Terminado o discurso, era do protocolo desfilar
diante do Papa, Cardeal por Cardeal, para prestar homenagem. Quando o
Cardeal Segura passou por Pio XI, o Papa lhe perguntou:
— Eminência, gostou do discurso?
Respondeu ele:
— Exceto no ponto em que Vossa Santidade mentiu!
— Eu menti?
— Mentiu! Vossa Santidade declarou que pedi
demissão, e Vossa Santidade sabe que eu não pedi demissão [36].
Pio XI deu uma risada e disse:
— Vossa Eminência é sempre irredutível.
* *
*
Em sua estada na Cúria, ele foi nomeado para todas as
comissões cardinalícias, excetuadas as políticas.
Começou então o regime de franqueza dele com Pio XI.
Um exemplo.
Na Congregação dos Ritos, ou dos Sacramentos, houve
um caso gravíssimo a decidir. Pio XI mandou recado à Congregação de que
queria que ela votasse de certo modo. Ele se levantou e formulou o
protesto:
— O Papa pode decidir sem nos consultar e pode
fazer o contrário do que aconselhamos. O que ele não pode é forçar-nos a
dar um mau conselho.
Ele propôs então uma solução oposta à de Pio XI.
Um Cardeal objetou: “A tese de Vossa Eminência
seria válida no tempo de Pio X, não no tempo de Pio XI”.
Resposta do Cardeal Segura: “Voto por Pio X”,
que não estava canonizado.
No dia seguinte, audiência com Pio XI: todos os
Cardeais têm que prestar contas do voto decidido. Ele pede demissão da
Púrpura por ver que estava prevalecendo o regime das conciliações.
Pio XI recusa. Ele pede demissão da presidência da
comissão, Pio XI recusa também.
* *
*
Pio XI gabou-se diante dele de que nunca na vida
estivera doente.
O Cardeal Segura lhe disse, diante de outros:
— Lamento profundamente. Vossa Santidade não tem a
marca dos predestinados.
Pio XI diz: “Não, é uma proteção de Santa
Teresinha do Menino Jesus”.
O Cardeal Segura:
— Com ela ou sem ela, ninguém muda a Teologia, e
aqueles a quem Deus ama dá cedo ou tarde os sofrimentos físicos.
Algum tempo depois, durante um retiro do Papa,
ouve-se um estrondo por trás da cortina. O Papa cai desmaiado. Havia tido
um enfarte de coração fortíssimo.
O cardeal Segura então lhe manda um recado:
“Parabéns a Vossa Santidade, porque agora tem o sinal dos predestinados”.
O Papa mandou agradecer [37].
* *
*
Ele comentou que Pio XI tinha um gênio muito ruim,
mas de um lado sentindo a morte chegar, e de outro lado com tirocínio,
disse uma vez ao Cardeal Segura que ele era a única pessoa que lhe dizia a
verdade.
* *
*
O Geral dos Mercedários tinha um privilégio, dado por
vários Papas, de conceder condecorações. Pio XI queria reservar só para o
Vaticano o direito de condecorar.
Instaurado o processo, o Cardeal Segura previne Pio
XI que votaria contra.
Pio XI disse:
— Não faz mal, Vossa Eminência cumpra seu dever
votando contra e eu cumprirei o meu, não tomando em consideração o seu
voto.
O Cardeal vota contra, apresentando uma tese de cem
folhas datilografadas, provando efetivamente que os Papas haviam dado esse
direito.
Depois, houve uma audiência para explicar o voto
vencido.
Pio XI: “Vossa Eminência não me abalou com seu
relatório, e não pense que estou disposto a mudar de orientação:
suprimirei o direito”.
O Cardeal: “Vossa Santidade pode fazer isto, mas
lembre-se de que dará contas a Jesus Cristo, de quem é Vigário, sobre o
acerto ou desacerto de sua medida. E aí, Santidade, não há apelação”.
* *
*
Quando Mussolini fez um discurso no Senado, reduzindo
a frangalhos o Tratado de Latrão, o Cardeal Segura disse a Pio XI que não
havia remédio senão a ruptura completa com o fascismo e o nazismo.
Pio XI: “Vossa Eminência é muito moço e não sabe
que é preciso conciliar”.
Mais tarde, Pio XI resolveu fazer a condenação do
nazismo [38].
Nos seus últimos dias, como estava muito mal, pediu
aos médicos mais 12 horas de vida para pronunciar um discurso que
arrasaria com Mussolini. Os médicos disseram então que não dava mais tempo
para isto*.
*
Pio XI veio a
falecer na noite de 10 de fevereiro de 1939. Ele havia convocado a Roma
todos os Bispos italianos, por ocasião do 10º aniversário da
"reconciliação" com o Estado italiano. Estava programado para esses dias
um importante discurso, preparado há meses, que seria o seu testamento
espiritual e onde ele denunciava a violação dos Pactos de Latrão pelo
governo fascista e a perseguição racial na Alemanha. Esse documento não
foi divulgado.
* *
*
Palavras do Cardeal Segura na conversa comigo:
“Quando fui transferido para Sevilha, Pio XI disse-me que, enquanto eu
estava em Roma, ele não precisava se preocupar, porque sabia que eu sempre
defenderia os interesses da Igreja. Depois de minha saída, não ficaria
ninguém que se interessasse pela Igreja”. E, disse o Cardeal Segura, o
Papa acentuou muito: “ninguém”.
No total, ficou bem claro para mim que, apesar do
“fraco” de Pio XI por ele, ele achava Pio XI um mau Papa, dizendo
expressamente que foi o contrário de São Pio X. Ao longo da conversa ele
me disse que era interessante saber tudo isso para se conhecer bem o
Vaticano [39].
* *
*
Na época em que ele era Arcebispo de Sevilha, Franco
mandou dizer, creio que na festa de São Fernando de Castela, que iria à
catedral participar das comemorações. E queria ser tratado com o mesmo
protocolo dos reis da Espanha, portanto que o recebessem no pórtico da
igreja com o pálio, para ele entrar junto com o Cardeal.
Isso equivalia ao Cardeal reconhecer Franco como uma
espécie de rei de Espanha. E o Cardeal Segura disse que não.
Se não me engano, Franco mandou recado de que se ele,
Cardeal, não estivesse lá com o pálio, ele mandaria prendê-lo.
O Cardeal disse: “É o que nós haveremos de ver”.
Na hora da cerimônia, chega Franco com todos os
batedores, automóveis, e aquela solenidade toda. Desce, vai falar com o
Cardeal que o espera sem pálio e o cumprimenta.
Ele pergunta:
— Eminência, onde está o pálio para eu entrar?
— Está guardado.
— Mas eu disse a Vossa Eminência que só entro na
igreja debaixo do pálio.
— Então a conclusão é normal: não entre. Se só
entra assim, não entre.
— Mas a questão é que eu tenho direito.
— Vossa Excelência não tem direito a não ser às
honras de um Chefe de Estado interino. Vossa Excelência não é rei, nem lhe
reconheço como rei. De maneira que, ou entra sem nada, apenas na minha
companhia, ou não entra na catedral.
Então Franco, que era galego, disse: “Esses
castelhanos (o Cardeal era de Castela) são insuportáveis. Mas não
tem remédio, vamos entrar”. E entrou comportadamente com o Cardeal [40].
* *
*
Depois de uma longa conversa, eu me despedi do
Cardeal. Se não me trai a memória, duas horas inteiras de conversa. Saímos
muito amigos.
Alguns anos depois, veio a notícia da morte dele [41].
Durante a Guerra Civil espanhola (1936 a 1939), o
Alcácer de Toledo era uma fortaleza ocupada por espanhóis verdadeiramente
heróicos que, junto com suas famílias, resistiram e não se entregaram. Os
comunistas fizeram galerias subterrâneas por debaixo do Alcácer para
fazê-lo explodir, e deram prazo: “Se até tantas horas vocês não saírem,
nós amanhã explodimos com o Alcácer”.
|
O Alcácer
durante o assédio republicano |
E os que estavam no Alcácer ouviam embaixo, no
subsolo, o barulho das picaretas e de outros instrumentos cavando o
subsolo.
Visitei este Alcácer, e mostraram-me o lugar, no
claustro, onde as pessoas ouviam as pancadas dos comunistas preparando a
explosão, enquanto se celebrava a Missa.
Em determinado momento chegaram as tropas
anticomunistas e salvaram o Alcácer, e os heróis puderam sair avivados e
aclamados por todo o mundo.
Então perguntei [42]
ao Coronel Barrera, que me acompanhava [43]:
— Não há uma associação de membros que pertenceram
a essa epopéia do Alcácer?
— Ah! sim, tem uma associação: uma irmandade que
se reúne uma vez ao ano para celebrar uma Missa nesse lugar [44].
* *
*
Da viagem à Espanha ficou-me uma idéia: este povo é
ainda tão católico, vale tanto e merece tanto que, apesar da decadência
das coisas, o primeiro lugar da Europa onde eu procurarei fundar um grupo
é nesse país.
Foi o resultado da viagem à Espanha [45].
|
Olímpia de Jesus e Manuel Pedro
Marto, pais de Francisco e Jacinta. Foto de autor desconhecido, 1951 |
Da viagem a Portugal, lembro-me de ter conhecido um
homem rústico mas respeitável. Foi num cemiteriozinho de Aljustrel: um
trabalhador manual, que de tanto mexer e remexer a terra a sua pele
parecia de couro. Olhos pequenos, estatura de média para baixa, vivaz
apesar de idoso, apoiado num bordão e muito falante. Não era nada mais
nada menos do que pai de Jacinta e Francisco*.
*
O bom homem
chamava-se Manuel Pedro Marto (1873-1957).
Usava um gorro enorme, do estilo da zona, que descia
até quase a metade do peito. O seu bordão era um pedaço de pau cortado de
alguma árvore.
Esse homem tinha alma! Vi nele uma certa forma de
alegria no enfrentar a vida rude, que é um dos traços de alma do
português. A naturalidade com o rude, a alegria no rude, a saúde dentro do
rude e o tamancão davam um pouco a ideia da grandeza de Vasco de Gama.
Eu fiquei observando o
“ti” Marto conversar.
Eles não dizem “tio”, mas
“ti”. Ele me falava do cemitério,
da hora que fecha, umas coisas dessas. E eu me deleitando com o entusiasmo
com que ele falava dessas pequenas banalidades [46].
2. Irmã Lúcia
Estive com a Irmã Lúcia no Carmelo de Santa Teresa,
em Coimbra. Dela só vi uma parte do rosto.
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Paço Episcopal Bracarense ou
Antigo Paço Episcopal Bracarense - Paço Arquiepiscopal |
Estava presente o Arcebispo de Coimbra, a quem eu
havia pedido licença para visitá-la. Antes de ela aparecer, ele exigiu de
mim um compromisso de nada perguntar sobre as visões. Eu não pude senão
pedir orações, dizer-lhe três ou quatro palavras e tudo ficou encerrado
por aí [47].
3. Braga
Todos nós já ouvimos a expressão:
“Velha como a Sé
de Braga”.
Quando eu estive nesta cidade (lembro-me que fui lá
com o Dr. Paulo Barros e Dr. Adolpho), eu quis ver a Sé de Braga [48].
Na casa do Arcebispo havia umas
chinoiseries
(porcelanas chinesas) trazidas pelos navegantes portugueses, mas tão
bonitas e de uma superior qualidade, que eu quase perguntei a ele se ele
me vendia uma daquelas porcelanas. Mas achei que ficaria muito feio e não
perguntei [49].
1. Segunda pátria de todos os homens
Parti depois para a França.
A viagem que fiz à França era a que me dava mais
esperanças. As razões dessas esperanças se prendiam a vários motivos [50].
Churchill, num trecho das memórias dele, fala a
respeito da França com aquela admiração comovida e fervorosa com que ele
em geral se referia a essa nação. Ele então salienta tratar-se de um país
dividido em dois por um sulco de sangue que não secou, e que é o sangue
vertido na Revolução Francesa. E enquanto esse sangue não secasse, a
França não poderia ser um país unido
[51].
É onde a luta entre revolucionários e
contra-revolucionários ainda é forte. E eu esperava encontrar ali o maior
número de contra-revolucionários de minha viagem.
Eu penso da França o que São Pio X, que não era
francês, escreveu sobre ela: que o povo francês foi galardoado por Deus
com os maiores benefícios, com as maiores graças, com as maiores bênçãos.
E há realmente no gênio francês, na cultura francesa qualquer coisa que
faz da França o ponto de referência do pensamento humano.
Assim como havia entre os povos antigos o povo
judaico, e em função dele é que se desenrolava toda a ação da Providência
na história da Antiguidade, assim também há, depois da Redenção, um povo
predileto. Esse povo é o francês. É o que eu penso da França.
Alguém disse que é a segunda pátria de todos os
homens, a partir do momento em que eles conheçam a cultura francesa e o
papel da França na História* [52].
*
São Pio X, por
exemplo, teve as seguintes palavras, que ele põe nos lábios de Nosso
Senhor dirigindo-se à França:
“Levanta-te, lava as manchas que te desfiguraram, desperta em teu seio os
sentimentos adormecidos e o pacto da nossa aliança, e vai, filha
primogênita da Igreja, nação predestinada, vaso de eleição, vai levar,
como no passado, meu nome diante de todos os povos e de todos os reis da
terra" (Alocução consistorial Vi ringrazio de 29 de novembro de
1911).
Na França, eu possuía várias apresentações, quer para
o mundo eclesiástico, quer para o mundo civil [53].
A primeira pessoa que fui visitar foi o Abbé Luc
Lefebvre.
Ele era o diretor de uma excelente revista
francesa de direita, chamada Pensée Catholique.
Revista muito interessante, altamente
intelectualizada. Trazia artigos de Teologia e de Filosofia muito bem
feitos, atacando de frente o que já era a antecâmara do progressismo. Uma
revista realmente de primeira classe.
Os artigos do Abbé Luc Lefebvre, além de serem muito
sólidos do ponto de vista teológico, eram muito engraçados. Ele tinha uma
qualidade que o francês chama verve [54].
Como já tínhamos certa correspondência com ele,
quando cheguei a Paris eu lhe telefonei. Atendeu uma voz: “Alô, ici
l’Abbé Luc Lefebvre”.
Eu respondi no mesmo tom: “Aqui, Plinio Corrêa de
Oliveira”.
Ele: Oh! bonjour, M. le
professeur. Desde quando o senhor está em Paris?
Combinamos encontro na casa dele, num bairro que
tinha um lindo nome: Neuilly-sur-Seine.
Toco a campainha e abre a porta um padre vestido de
batina, cabelo louro escovinha, com um topetinho próprio ao ataque. Rosto
comprido e, apesar de já velho, ainda bem corado, rosado, com dois olhos
azuis inteligentes. Mas o grande papel na fisionomia dele era o nariz
monumental, não por ser grande mas pela forma, gênero nariz grego, que a
certa altura fazia uma depressão e começava a crescer, formando uma ponta
arredondada: uma coisa totalmente sui generis.
Tinha-se a impressão de que a inteligência escorria
dos olhos ao longo desse nariz, e que derivava para os lábios em palavras
de vibração, de vida e de interesse.
* *
*
Ele recebeu-me em seu escritório, onde havia uma
escrivaninha, uma cadeira giratória e várias estantes com livros.
Eu o estava achando um homem prodigiosamente
interessante. A certa altura ele se levantou para pegar um livro e tomou
uma bengalinha em forma de T, na qual se apoiava: “Isso é por causa de
um ferimento que eu recebi no campo de batalha durante a I Guerra Mundial” [55].
Depois dessa guerra, ele exerceu o seu ministério
sacerdotal, estudou muito e tornou-se um teólogo e escritor
verdadeiramente de mão cheia. Fez muitas relações em todo o alto meio
eclesiástico francês e romano, e uma boa parte de seus estudos teológicos
ele fez em Roma [56].
Almoçamos e jantamos várias vezes juntos. E
verifiquei que o homem era muito conhecido em Paris: em todos os
restaurantes onde ele ia, vinham pessoas cumprimentá-lo e exprimir
solidariedade [57].
Nas conversas ele contava fatos do tempo em que era
seminarista em Roma, histórias de São Pio X, de Pio XI, de Pio XII,
histórias dos bastidores da vida religiosa francesa. Ele falava aos
borbotões e conhecia tudo isso perfeitamente.
* *
*
Ele havia montado uma livraria direitista, chamada
Livraria Lefebvre, próxima ao bairro universitário de Paris. E no
momento em que a direita francesa estava completamente achatada, ele, com
algum risco para si, continuava com a sua bandeira desfraldada. A revista,
a livraria e a organização dele eram as que mais lutavam contra o
progressismo e contra o esquerdismo que ia avançando.
E ele nos fez conhecer algumas relações de fato
interessantes.
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Antoine de Lévis-Mirepoix -(1884-1981) |
Um amigo meu francês, o Conde Regis René de Coniac,
levou-me para visitar um dos mais altos nobres da França, presidente da
Associação dos Nobres, o Duque de Lévis-Mirepoix.
Alto, seco, inteligente, o rosto dele parecia um
castão de bengala. Era membro da Academia Francesa de Letras.
Recebeu-me com aquela grande cortesia antiga e
convidou-me para fazer uma tournée por vários castelos da França.
Mas não pude aceitar e muito amavelmente recusei o convite, que teria sido
interessante [58].
Outro personagem que visitei foi um almirante bretão,
com o qual tive uma longa conversa: o Almirante Gabriel Auphan.
Ele fora Ministro da Marinha de Pétain. Durante a
guerra teve um papel saliente, inclusive no afundamento da esquadra
francesa em Toulon*.
* Por ordem dele,
enquanto Secretário de Estado da Marinha, dois almirantes de Toulon, André
Marquis e Jean de Laborde, fizeram ir a pique, na noite de 26 para 27 de
novembro de 1942, a frota de guerra ali ancorada, diante da notícia de que
os alemães preparavam um golpe de mão para se assenhorear dos vasos de
guerra franceses. Enquanto Ministro da Marinha do governo Vichy fez,
juntamente com o General Weygand, uma oposição tenaz à política de
colaboração com o governo nazista alemão.
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Afundamento
da frota francesa em Toulon (27 de novembro de 1942)
|
A esquadra de guerra francesa era de primeira ordem.
Se ela ficasse do lado dos alemães, eles podiam intentar o desembarque na
Inglaterra. Se, pelo contrário, ela ficasse do lado da Inglaterra, a
Inglaterra teria meios de reforçar o seu desembarque na França e de pôr os
nazistas para fora.
Os chefes da Marinha estavam na maior desorientação,
não sabendo qual seria o dever deles: se aderir a Pétain, que havia tomado
o poder em Paris, ou aderir a um governículo que se formou em Bordeaux.
Então, o Ministério da Marinha, portanto o Almirante
Auphan, ordenou que a Marinha fizesse a destruição de seus vasos de guerra
e os pusesse a pique, caso ameaçados de passar para mãos estrangeiras [59].
Ele era tido como um dos chefes da direita francesa [60].
Entre os contatos que me marcaram mais a memória cito
o Arcebispo Coadjutor de Paris, Monsenhor Roger Beaussart.
O Arcebispo de Paris tinha uma tendência mais para a
esquerda. Este Monsenhor Beaussart era de direita [61]
e amigo do Abbé Luc Lefebvre.
Já entrando na velhice e muito doente, morava perto
da Catedral de Notre Dame, num castelinho de pedra que era a casa
paroquial da catedral. O castelinho do lado de fora era um mimo, e o
arranjo interno um encanto: veludos framboise, lâmpadas de cristal,
tudo muito bem arranjado. Dentro poderia parecer quase uma casa de
bonecas.
Monsenhor Beaussart era um homem alto [62],
combativo [63],
enérgico; era desses franceses possantes, voz de estentor. Usava bengala
por causa da idade, e batia-a no chão quando fazia comentário de alguém
com quem não estivesse de acordo. E rugia todas as verdades a respeito de
toda espécie de coisas [64].
Recebeu-nos de braços abertos, ficou um grande amigo
nosso.
Queria que levássemos até o Papa Pio XII queixas a
respeito do que acontecia no mundo religioso francês. Mas não podíamos
falar sobre assuntos franceses no Vaticano. De maneira que tiramos
amavelmente o corpo, não entramos na questão [65].
O recado que ele nos pediu para dar a Pio XII eu
prefiro não repetir, de tal maneira era um recado ardido. Ele estava muito
em desacordo com as concessões [66].
6. Conde de “X” e o plano da Europa unida
Na sala de espera desse Monsenhor Beaussart conheci
um Conde de “X” [67].
Este senhor era da Nobreza francesa, de uma velha
família de origem protestante, calvinista, mas que com o passar do tempo e
as boas dragonadas de Luís XIV, tomou juízo e voltou para a verdadeira fé.
Ele se apresentava a mim como católico praticante e
como grande amigo de Monsenhor Beaussart. Teria naquele tempo perto de 75
anos e eu 42 anos.
Feitas as apresentações, ele manifestou o desejo de
me conhecer mais de perto e convidou-me para almoçar no Automóvel Clube de
Paris, ambiente muito fino, mas servindo um almoço plutôt medíocre.
Ele, um homem muito agradável de trato.
Como de costume, quando dois homens se encontram por
razões de negócio, ou por razões de doutrina, de ideologia ou política,
depois de se sentarem, observam um pouco o ambiente, encomendam o menu e
os vinhos, e a conversa insensivelmente passa para os assuntos sérios.
Ele me fez elogios de Pio XII (eu ouvira de Monsenhor
Beaussart comentários bem diferentes). E quis contar-me coisas da França e
da Europa.
Fez também muitos elogios genéricos do Arquiduque
Otto de Habsburgo: “Homem muito inteligente, capaz”. Só faltou
dizer-me que Otto era de muito boa família...
A conversa não parecia conduzir a grande coisa,
quando de repente ele me disse [68]:
— Bom, Professor, o senhor com certeza, como líder
católico, quer ganhar o seu tempo.
Eu concordei enfaticamente .
— E quer saber o que vai se passar.
Vinha como numa bandeja. Então respondi:
— Sim, claro.
Ele então me fez uma descrição do que seria a
política de aproximação entre as esquerdas e as direitas nos próximos
decênios, a qual ele descrevia entusiasticamente, apresentando-a como uma
coisa muito boa que deveria se dar.
Foi uma exposição fluente, que durou mais ou menos
uns quarenta e cinco minutos, em que ele pôs todas as cartas sobre a mesa [69].
— Sabe, professor, a Europa está mudando de um
modo como ninguém imagina. Em vez de caminhar para uma dilaceração entre
as correntes que a dividem, ela, pelo contrário, caminha para uma síntese.
Está sendo preparada uma Europa Unida, cujo centro será provavelmente
Estrasburgo, a cidade carolíngea.
E continuou:
— Está também em gestação um Parlamento da Europa;
e, depois do Parlamento, está preparado um governo da Europa. Esse
Parlamento e esse governo farão desaparecer completamente as diversidades
nacionais. Vão ser eliminadas as fronteiras alfandegárias, de maneira que
de um país para outro se poderá fazer exportação de mercadorias
inteiramente à vontade, sem impostos, sem alfândegas nem taxas. A Europa
terá, portanto, um só mercado consumidor, uma só indústria e um só
comércio geral.
Ainda dentro dessa confidência, ele acrescentou:
— No interior dos países entrarão em composição
todas as correntes, desde o partido comunista até os monarquistas, desde
as mais moderadas até as mais radicais e intransigentes [70].
As esquerdas e as direitas vão convergir [71].
E neste Parlamento da Europa Unida haverá representantes de todas as
classes sociais, representantes dos industriais, representantes dos
sindicatos operários, especialistas e sumidades que exprimirão todos os
valores da Europa [72].
E afirmou uma coisa surpreendente:
— Os próprios príncipes das casas reais vão
colaborar para isso. No Conselho da Europa, eles vão representar a
tradição. Outros representarão o dinheiro, e outros ainda representarão a
cultura e assim por diante. E esse Conselho vai levar a Europa à completa
ligação com a Rússia [73].
E concluiu assim:
— Vai assim se abrir uma nova possibilidade para
os componentes das casas imperiais e reais, hoje destituídas. Eles não se
tornarão monarcas, pois essa época histórica cessou. Mas ficarão como
representantes da tradição, enquanto um dos valores da Europa. As casas
reais e a antiga Nobreza vão também elas mandar seus deputados para o
parlamento de Estrasburgo. E o senhor verá sentado, lado a lado, na mesma
bancada, o Arquiduque Otto de Habsburgo e o presidente de um sindicato. E
a Europa inteira, desde a sua mais antiga tradição quase carolíngea, até
sua expressão mais moderna de extrema esquerda, toda reconciliada,
caminhará no mesmo rumo.
Ouvi tudo aquilo sem fazer o menor comentário. Ouvi
com um ar de surpresa que velava o meu espanto e a minha completa falta de
admiração por esse plano [74].
Na hora da partida, eu agradeci o almoço, dizendo que
tinha sido muito interessante, muito instrutivo, mas sem dizer uma palavra
que significasse aprovação àquele plano.
Cumprimentamo-nos e ele saiu-se com esta:
— Bom, Professor, eu sei que o senhor está de
partida para Roma e seria necessário que conhecesse essas coisas antes de
abordar um centro internacional tão importante quanto a Cidade Eterna.
Aqui está meu cartão de visita. Procure-me na volta, porque então será a
outra parte de sua viagem [75].
E inclinando-se para o meu ouvido disse baixinho:
“Vou então acompanhá-lo até as melhores casas de perdição, e aí o senhor
poderá conhecer as verdadeiras ‘filles de Paris’”.
Isto foi dito na hora de apertar a mão para a
despedida.
Soltei a mão dele, disse um “até logo” seco [76]
e amarrei a cara. E ele percebeu que eu havia fechado a cortina [77].
Ele foi para uma direção e eu fui para outra e nunca mais nos vimos.
Esse homem sabia perfeitamente que eu era um católico
praticante, de comunhão diária. Sabia de meu passado católico, de minha
condição de escritor e jornalista católico. Como podia ele imaginar que
pudesse me agradar um oferecimento infame daqueles?
Diante de coisas dessas, e depois de alguns
desapontamentos que eu tivera na Espanha, fiquei com a sensação
desagradável de estar diante de uma parede que eu esperava ser de um probo
granito resistente, e que de repente se transforma em uma parede de
papelão, da qual saíam vermes e podridão. Quem era essa gente? [78]
Eu possuía duas cartas de apresentação para o
Arquiduque Otto: uma do Príncipe Dom Pedro Henrique e outra de Don Manuel
Fal Conde.
Mandei levar essas cartas ao castelo de
Clairefontaine, onde morava o Arquiduque Otto, acompanhadas de um cartão
perguntando quando ele poderia dar-me uma audiência.
|
Château de
Saint-Remy-des-Landes, Clairefontaine-en-Yvelines, que foi
residência do Arquiduque Otto, em foto de 1900-1920 |
Telefonei depois e ele mesmo veio ao telefone,
falando um francês excelente e com um bonito acento. Eu disse que gostaria
muito de conhecê-lo pessoalmente e perguntei quando viria a Paris. Ele
então me convidou para almoçar com ele em Clairefontaine, onde ficaríamos
mais à vontade.
Ele marcou a data, desligamos e eu fui a
Clairefontaine no dia combinado*.
*
A visita se deu no
dia 17 de junho de 1952. Clairefontaine foi residência de exílio dos
Habsbourg, inclusive da Imperatriz Zita, entre 1950 e 1953.
O castelo era todo de pedra, mas não medieval. Sua
construção data do Ancien Régime. Bonito, digno, bem arranjado, possuía
bons móveis, andar térreo com portas-janela em semi-arcos muito altos dando
diretamente para o pátio, e grandes cortinas. Nada era de grande luxo, mas
tudo perfeitamente digno para um príncipe exilado.
Toco a campainha, abrem a porta e eu entro no salão.
Nesse salão havia um grande quadro do Imperador
Carlos da Áustria-Hungria (pai do Arquiduque Otto), vestido com o traje de
coroação, tendo na cabeça a coroa de rei da Hungria e o cetro na mão.
Espero alguns minutos, entra o Arquiduque Otto. Era
um homem esbelto, alto, muito amável, muito agradável, fascinante em todo
o seu modo de ser. Manifestamente uma pessoa da Providência feita para
grandes coisas.
Era formado pela Sorbonne, com vários cursos
superiores e famoso por sua inteligência. Foi um dos homens mais
inteligentes que eu tenha conhecido. Um espírito luminoso, penetrante,
compreendendo facilmente as coisas e sobretudo dotado de muita facilidade
para estabelecer inter-relações entre os vários temas, e percebendo, logo
nas primeiras palavras, aonde o seu interlocutor queria chegar. Um
interlocutor de mão cheia, com quem era agradável conversar.
Muito fino, mas de uma finura que trazia o encanto
incomparável das maneiras transcendentalmente finas da Nobreza. Ao mesmo
tempo simplicíssimo, entretanto sabendo perfeitamente quem ele era.
Nada de mais despretensioso do que ele, nada de mais
afável, colocando a pessoa à vontade, sem que aparecesse o desejo de assim
fazer. Porque esse desejo poderia dar o ar de um ato de compaixão. Ele era
aberto mesmo em seu trato.
Exprimia-se em um francês fluente, muito claro, muito
elegante. Verdadeiramente tinha o physique de rôle do que deveria
ser.
Conversamos a respeito de vários temas, de política e
outros. E ele contando fatos curiosos da vida dele, inclusive dizendo que
tinha conhecido o Churchill.
Perguntei-lhe a impressão que tivera dele.
Ele disse:
— Professor, o senhor imagine encontrar de repente
um rabanete de um tamanho imenso, mas com todas as formas de um rabanete
comum: o senhor diria que é um fenômeno da natureza. Assim é o Churchill.
O Churchill está para o comum dos homens como esse rabanete estaria para
os rabanetes correntes. É um homem colossal, é um fenômeno da natureza,
uma superinteligência, supercultura, e com o dom de fascinar.
Eu o ouvia falar e pensava com meus botões. “É
verdade, mas o senhor não fica atrás, porque tem o dom da tradição, e um
certo encanto indefinido que os charmes dinásticos comunicam às pessoas e
que paira acima de tudo” [79].
A certa altura da conversa, ele me fez os maiores
elogios de Francisco Franco. E me disse que Franco estava dando uma
educação tão esplêndida ao Príncipe das Astúrias, que correspondia
exatamente à educação que ele, Otto, gostaria de dar a seu próprio filho [80].
À força de conversar com ele, acabei percebendo que
ele se reputava o pretendente ao trono da esquerda e da direita européias.
Quer dizer, agradavam a ele os monarquistas de esquerda, que viam a
possibilidade de uma composição, ou seja, de uma monarquia
liberal-democrática representativa, governando sobre uma sociedade
burguesa. E demonstrou também pouca atração pela nobreza enquanto nobreza,
e muita admiração pelo mundo comercial e industrial, que naquele tempo
estava chegando ao seu oitavo ou décimo auge.
Ele todo confluía para a idéia de uma longa época de
paz, na qual tratava-se de ele se inserir, com a nota não tanto de um
líder austríaco, mas de um líder mundial.
E dado que ele era o mais alto representante de uma
Casa que tinha liderado a Europa -
porque o Sacro Império Romano Alemão era a liderança da Europa, e isto no
tempo em que a Europa liderava o mundo -
ele representava algo para os homens conservadores do mundo inteiro e não
apenas os da Áustria, sem esquecer que ele era o pretendente ao trono
austríaco e que tinha na Áustria uma base política séria.
Isto, acrescido ao seu valor pessoal, faria dele um
personagem mundial, representante não se sabe bem onde, mas pelo menos
junto ao setor de opinião pública das direitas do mundo inteiro.
Ele certamente imaginava que, sendo eu do continente
sul-americano, ele deveria apresentar um direitismo temperado com um molho
da América do Norte. Então transmitiu de si a visão de um pretendente que,
se por uma circunstância inesperada fosse eleito presidente da República
ou imperador da América do Norte, conservaria tudo tal qual estava, com
uma lenta deflexão gradual para a esquerda. Foi a impressão que tive nesse
contato.
|
Princesa
Regina de Saxe-Meiningen |
Ele não me perguntou o que eu pensava a respeito do
que ele dizia. E não entrei em discussão com ele. Assim, a conversa correu
cordialmente, agradavelmente, mas sempre com essa nota de ressalva [81].
A certa altura entrou a esposa, a Princesa Regina de
Saxe-Meiningen, pertencente a uma daquelas antigas casas soberanas de
pequenos Estados alemães, e cuja aparência era de pessoa inteiramente
digna de estar casada com ele. Dama muito jovem ainda, e de aspecto régio
magnífico!
Era uma princesa que poderíamos ver descer, num conto
de fadas, de uma carruagem. Uma princesa, enfim, que estaria bem num traje
de princesa medieval. Delicada, muito atenciosa para com ele, embora fosse
sua esposa, tratando-o discretamente como uma imperatriz trata um
imperador.
Em relação a mim ela se mostrou muito amável, muito
gentil.
E passamos para a sala de jantar, onde a conversa
continuou.
Terminado o almoço, voltamos para o salão e
conversamos um pouco mais. Depois levantei-me, ele me acompanhou até o
portão. Estava terminado meu contato com o arquiduque Otto de Habsburgo.
Digo agora uma palavra dos meus dois longos encontros
com o Príncipe Xavier de Bourbon-Parma, tio do Arquiduque Otto, e irmão da
Imperatriz Zita, a qual era viúva do Imperador Carlos da Áustria.
O primeiro encontro com ele foi em Paris*.
*
Ele era Duque de
Parma e Piacenza, por isso chamado Francisco Xavier de Borbón y Parma de
Bragança (1889-1977). Foi o chefe da Casa de Bourbon-Parma e pretendente
carlista ao trono de Espanha entre 1952-1975.
Participou da
Primeira Grande Guerra como oficial de artilharia do exército belga,
combatendo nas frentes belga, francesa e inglesa. Igualmente como coronel
de artilharia belga, lutou contra os nazistas na Segunda Guerra Mundial,
sendo preso na França pela Gestapo por ter participado da Resistência.
Ficou encarcerado em Clermont-Ferrand, sendo depois transferido
sucessivamente para o campo de extermínio Schirmeck-Natzweiler na Alsácia,
depois para Dachau e por fim Prax, no Tirol, onde foi libertado em 1945
pelas tropas norte-americanas.
Após uma série de
vaivéns políticos ligados ao trono da Espanha, foi expulso do país pelo
caudillo Francisco Franco. Em 1975 abdicou em favor de seu filho,
Carlos Hugo de Bourbon-Parma, vindo a falecer na Suíça dois anos depois, à
idade de 87 anos.
Era uma personalidade que tinha passado pelas mais
diversas vicissitudes e eu já tinha lido muito a seu respeito e de seus
dois irmãos, mais célebres do que ele: o Príncipe Sixto de Bourbon-Parma e
a imperatriz Zita, da Áustria.
O Príncipe Sixto, o mais velho, tinha idéias
direitistas e por causa disso era odiado pela esquerda francesa.
Xavier e Sixto haviam participado de uma das jogadas
políticas mais importantes da I Guerra Mundial.
A Áustria era aliada da Alemanha contra a França e a
Inglaterra. E quando a Alemanha começou a perder a guerra, a Imperatriz
Zita julgou necessário salvar o trono dos Habsburgos da destruição.
Ela chamou os seus dois irmãos, Sixto e Xavier, e
incumbiu-os de irem secretamente à França propor ao governo do presidente
Poincaré uma paz em separado. O pivô das negociações era o Príncipe Sixto.
A proposta foi levada a Georges Clemenceau, então
presidente do Conselho de Ministros da França. Era tão vantajosa para a
França, que Clemenceau teve que fingir adesão à proposta e escreveu
encaminhando os dois príncipes para o Rei da Inglaterra, Jorge V.
Eles de fato foram recebidos por Jorge V e pela
Queen Mary, e expuseram a tal proposta. Jorge V gostou muito e o plano
começou a ser realizado nos bastidores.
Mas a certa altura o plano se divulgou. Ondas de
estudantes esquerdistas saíram pelas ruas de Viena vaiando o Príncipe
Sixto com o refrão “Sixtus, das ist du”, quer dizer, “Sixto,
quem é você”, o seu plano foi divulgado.
Hoje os historiadores estão de acordo que foi uma
verdadeira tragédia o fracasso dessa proposta, porque a Europa não teria o
nazismo se o plano dos Príncipes Sixto e Xavier tivesse sido levado a bom
termo.
Morreu o Príncipe Sixto, ficou só o Príncipe Xavier,
e o Príncipe Xavier era o representante de todas as tradições e o
pretendente carlista ao trono da Espanha.
* *
*
Eu tinha uma carta do chefe carlista espanhol, Don
Manuel Fal Conde, apresentando-me a ele. Telefonei e ele mandou dizer-me
que viria me visitar.
Quando ele chegou ao hotel, o porteiro o anunciou com
a maior naturalidade. Desci, levei-o para um salão isolado e iniciamos a
nossa conversa.
Ele me contou fatos da vida dele e eu contei um pouco
da minha. Ele tinha participado de acontecimentos da história universal e
eu tinha uma certa participação na história da Igreja no Brasil.
Um dos fatos pungentes que ele me narrou foi sua
prisão em campos de concentração nazista, onde teve uma inflamação dentro
do ouvido que lhe trazia uma dor terrível e deitava pus. Por causa, disto
foi recolhido na enfermaria.
Então ele me narrou esta cena lancinante.
Ele estava gemendo à noite na enfermaria e não havia
médico alemão que o tratasse, quando se aproximou dele um prisioneiro
judeu e, falando bem baixinho, disse:
— Esta sua inflamação, do jeito que está, pode
resultar em gangrena e o senhor morrer. A saída é lhe fazer um furo com
uma tesourinha, que eu desinfetarei em uma vela às ocultas das
autoridades. É a única possibilidade de viver. Mas não tenho anestésico e
terei que furar fundo. Se Vossa Alteza tem a resistência de não dar um
grito nem gemer até ao fim da noite, então eu faço a operação. Se Vossa
Alteza não me garantir isto, eu não poderei fazer, pois eu não só
morrerei, mas um mundo de pessoas a quem eu faço bem aqui ficará privada
de meu auxílio. Vossa Alteza aceita ou não aceita?
Ele disse: “Aceito, pode fazer”.
Ele: “Não basta, de manhã Vossa Alteza tem que
fingir que passou bem a noite e cumprir o dia normal, porque do contrário
desconfiam de qualquer coisa”.
Ele aceitou. Disse-me que foi uma coisa terrível. Ele
pôs a ponta do travesseiro dentro da boca e a encheu completamente, de
maneira a não escapar um só gemido. E o médico trabalhou dentro do ouvido
dele, extirpando o que era preciso extirpar, e ele lutando contra a dor,
sem gemer, sem anestésico, até a luz começar de manhã a filtrar pela
janela.
* *
*
Quando chegou a minha vez de falar, pensei com meus
botões: “Em vez de falar de meus atos, para ele saber quem eu sou, vou
falar de nossas idéias”.
E desenvolvi para ele aquilo que futuramente seria a
tese do livro Revolução e Contra-Revolução.
Em certo momento da exposição, ele me disse:
— Sou obrigado a interromper, porque tenho um
compromisso para a hora do jantar.
Convidei-o para jantar e ele disse que não, por causa
desse compromisso, e acrescentou:
— Se o senhor permitir, depois do jantar volto,
porque eu queria que o senhor acabasse a sua exposição.
Às horas tantas ele apareceu e continuamos a
conversar. Foi uma conversa de umas cinco-seis horas ao todo.
Ele me ouvia atentamente. E na saída ele me apertou a
mão e disse:
— Que pena eu não ter conhecido o senhor antes!
Muitas coisas se teriam passado de modo diferente.
* *
*
Como ele ia a Roma, marcamos um encontro no
apartamento da Duquesa de Sorrento Bracciano.
Mas tive a oportunidade de dizer a ele o seguinte:
— Príncipe, permita-me dizer-lhe uma coisa. Sou da
América do Sul e portanto não conheço a Europa como Vossa Alteza. Mas
tenho muito receio de que Vossa Alteza, dentro de pouco tempo, seja
sabotado no Vaticano e não consiga mais nenhuma espécie de audiência e de
entrada, por causa do progressismo que vai entrando.
Ele não tinha idéia do problema. E nos despedimos.
* *
*
Viajo pela Alemanha, por uma porção de outros
lugares, e por fim volto a Roma.
Procuro por ele na casa dessa Duquesa e não havia
notícias. Como não sabia onde achá-lo, retomei minha agenda.
Um dia, andando pelas ruas de Roma, encontro-me com
ele, com fisionomia acabrunhada.
— Como vai, Príncipe?
— Como vai, Professor. Olhe, não tive coragem de
marcar encontro com o senhor.
— Mas por que, Príncipe?
— Estou completamente aniquilado. O que o senhor
predisse me aconteceu. Cheguei aqui e encontrei o terreno completamente
minado de progressismo, sem futuro, sem nada. Amanhã vou viajar.
Ele estava realmente acabrunhado.
* *
*
Muitos anos depois, já na década de 1960, esteve um
filho dele aqui no Brasil. Veio procurar Dom Bertrand, porque são primos.
Visitou a sede da rua Pará, conversamos um pouquinho e eu não disse ao
filho que tinha conhecido o pai dele.
A certa altura o filho me diz:
— Papai conhece o senhor.
— É verdade, eu tive o prazer de estar com ele em
Paris em 1950.
— É, e o meu pai tem o seu livro Revolução e
Contra-Revolução na biblioteca.
Era um vago eco daquela conversa que nós havíamos
tido [82].
Ainda na França, estive em Paray-le-Monial.
Paray-le-Monial é o lugar famoso onde está o convento
da Visitação, em que Santa Margarida Maria Alacoque recebeu as revelações
do Sagrado Coração de Jesus.
Durante a Missa, enquanto eu rezava, mecanicamente os
meus olhos foram se pousando na igreja. E eu fui saisi, me senti
tomado pela igreja.
O tamanho, o tipo de pedra, os arcos, não sei que
imponderáveis havia ali que me prendiam a atenção. E eu procurando afastar
a idéia, para prestar atenção na Missa. Mas a impressão me voltava:
“Isto aqui não é uma igreja paroquial qualquer: é um monumento muito
sério, muito importante, uma coisa magnífica”.
Chegamos ao fim da Missa e eu saí com um enlevo
enfático pela igreja.
Recentemente alguém me disse que esta igreja tinha
pertencido a Cluny.
Eu havia esbarrado em Paray-le-Monial e, sem perceber
que era um prédio de Cluny, o que ali havia de resto de Idade Média em mim
palpitou [83].
* *
*
Saindo dessa minha visita ao convento, deparei com
uma pequena livraria com todas as aparências de livraria católica.
Divisei à distância uns cartõezinhos com iluminuras,
muito bem arranjadinhos. Julgando que neles estivessem contidas frases de
Santa Margarida Maria Alacoque para o uso dos fiéis, veio-me a idéia de,
sendo Dª Lucilia fervorosa devota do Sagrado Coração de Jesus, comprar uma
coleção desses cartões e levar para ela.
Qual não foi a minha surpresa quando, aproximando-me
da livraria, vi que esses cartões continham pensamentos de Voltaire, de
Diderot, de D’Alembert. Ou seja, dos mestres da impiedade francesa do
tempo do Iluminismo. E que eram vendidos sob a aparência de santinhos do
Sagrado Coração de Jesus. Eu me retirei horrorizado e não mais pus os pés
lá [84].
Eu havia conhecido no Brasil
o Príncipe Alberto da Baviera e mantinha relações de amizade com ele [85].
|
Castelo de
Berg, ao lado do lago Lago Starnberger em postal do séc. XIX |
Em 1950 ele esteve no Brasil e, sabendo que eu ia à
Europa naquele ano, disse-me:
— Faço questão de que o senhor vá visitar meu
castelo, e vá conhecer a minha esposa e os meus filhos. Eu tenho todo
empenho nisto.
E então fui.
Chegando ao aeroporto de Munique, eu o vi ainda em
ruínas devido à guerra [86].
Eles haviam reconstruído somente a pista de avião, a qual era mais
excelente do que a de antes da guerra. A Alemanha estava exaurida e não
havia possibilidade econômica de reconstruir o prédio do aeroporto [87].
Chegando lá, telefonei para a esposa do Príncipe
Alberto, a Princesa Marita [88].
Ela me recebeu muito bem, jantei lá e pousei uma noite no Castelo de Berg.
O castelo era o próprio lugar onde o Rei Luís II da
Baviera morrera misteriosamente. No lago, uma cruz assinalava o lugar onde
o cadáver dele havia aparecido, não se sabendo se foi assassinato ou
suicídio. Um lugar histórico, portanto [89].
Nesta viagem, alcancei o Vaticano antes da reforma
conciliar. E ia lá com o espírito repassado de emoção e de veneração.
É a postura natural do fiel que vai à colina suprema
do mundo, à colina do Vaticano, no sentido figurativo da palavra
incomparavelmente mais alta do que o Himalaia, mais alta do que as
estrelas e, se se pudesse dizer, a colina cujo píncaro toca no Céu [90].
1. Canonização de Santa Joana de Valois
A primeira canonização a que assisti foi a de Santa
Joana de Valois, filha do Rei Luís XI da França*.
* Ela foi canonizada
no dia 28 de maio de 1950.
|
Vista da
cerimônia de canonização de Santa Joana de Valois assistida pelo
Prof. Plinio |
Vimos chegar os membros da Família Real da França,
hoje destronada, mas gozando ainda de um grande prestígio. Os homens
estavam de casaca e as princesas em grande traje de gala. Tomaram lugar do
lado do Evangelho, que é mais honroso do que o lado da Epístola: é
reservado aos príncipes.
Em certo momento ouço do lado do povo, palmas,
palmas, palmas, e vejo entrar, despertando um interesse visível em todo
mundo, um chefe tribal africano, uma espécie de rei.
O Vaticano, pai de todo o mundo, querendo atribuir a
ele uma honra cabível, tinha reservado, entre os fiéis, um pequeno trono
todo dourado, e com cadeiras para os assessores dele se sentarem também.
De maneira que ele não se confundia com o povo, mas
não se confundia com os príncipes. E estava contentíssimo!
Ele entrou com uma coroa de madeira pintada de ouro.
Mas era uma coisa a ser vista com muita simpatia do ponto de vista da Fé,
porque significava uma penetração da Igreja, um desejo materno de
civilizar, incorporar a si.
Foi uma tempestade de aplausos. Ele sabia se
comportar. Sentou-se dignamente no trono dele.
Tenho a impressão de que esse homem, se não era
católico, caminhou um passo na linha da conversão. Ele se sentiu querido,
amado, não é apesar de ser negro, mas
por ser negro. E
convidado a sentar-se em um lugar condigno, que não era igual ao dos
outros príncipes, mas um lugar muito melhor do que o da maior parte dos
brancos que estavam dentro da Basílica, e usando aquela coroa de madeira
que o deixava dignificado.
É a mão de mãe com que a Igreja toca essas coisas
todas. Acho magnífico! [91]
|
Mons.
Montini junto ao Papa Pio XII, durante os anos que serviu junto à
Secretaria de Estado |
Duas semanas depois de assistir a essa canonização,
tive uma audiência com Monsenhor Montini.
Estávamos em 1950, um ano apenas de distância do
recebimento da carta assinada por Monsenhor Montini, felicitando-me em
nome de Pio XII a respeito do meu livro.
Indo a Roma era normal, era curial que eu fosse
visitá-lo e apresentar minhas homenagens. Dom Mayer estava em Roma e
queria ir também. E fomos juntos.
Monsenhor Montini, junto com Monsenhor Tardini, era
então Substituto da Secretaria de Estado do Papa Pio XII, o maior
dignitário incumbido da política do Vaticano. Pois, após a morte do
Cardeal Maglione, Pio XII não teve mais Secretário de Estado, mas dois
Substitutos de Secretário de Estado: Monsenhor Montini (futuro Paulo VI) e
Monsenhor Tardini* [92].
*
Monsenhor Tardini,
cujo nome completo era Domenico Tardini (1888-1961), fora nomeado
Substituto de Secretário de Estado por Pio XII em 1944. Em 1958, João
XXIII o elevou ao cardinalato e deu-lhe o cargo de Secretário de Estado.
Sobre ele, Dr.
Plinio ouviu de Monsenhor Antonio De Angelis, conselheiro universitário
eclesiástico da Unione Internazionale Pro Deo e de orientação
francamente favorável às inovações, a referência de que era um homem de
direita e monarquista. Já o Monsenhor Montini, dizia o mesmo Monsenhor De
Angelis, era "mais compreensivo diante dos novos problemas".
Monsenhor De Angelis
ainda achava que "a revolução ainda não se fez propriamente: está-se
fazendo. Pois as revoluções na Igreja não se fazem com bombas, de um
momento para outro e com grandes encenações. Não... na Igreja tudo se faz
devagar, aos poucos. Vai-se passo a passo conseguindo isso dessa pessoa,
convencendo aquele de que tal coisa é necessária. É aos poucos, por
conversas... com o tempo..." (Relatório sobre essa conversa, realizada
dia 9/7/52, redigido por um membro do grupo da Martim Francisco que havia
acompanhado Dr. Plinio na viagem à Europa de 1952).
Uma audiência com Monsenhor Montini era muito difícil
de se obter. Mas, nesta ocasião, foi só pedir pelo telefone ao seu
secretário, que ele a concedeu [93].
* *
*
Pode-se dizer que essa visita
a Monsenhor Montini foi o último episódio da história do Em Defesa da
Ação Católica [94].
As audiências do Vaticano vão de nove horas da manhã
até ao meio-dia ou uma hora. A nossa audiência estava marcada para o fim [95].
Eu entreguei ao secretário o meu cartão e ele veio
logo com uma resposta muito amável: “Monsenhor Montini manda dizer que
está atendendo a uma pessoa de fora do país que terá de viajar, e revendo
um material. A audiência vai ser forçosamente grande, mas se o senhor
tiver tempo de esperar, ele ainda o atenderá”.
Eu disse que esperaria, e Dom Mayer junto comigo.
* *
*
Passei por uma dificuldade muito grande nessa espera.
Entrou um Cardeal alto, um pouco magro. Esse Cardeal também pediu para
falar com Monsenhor Montini.
E o secretário disse a ele:
— Doutor Plinio Corrêa de Oliveira, que está aqui,
chegou antes de Vossa Eminência. E em princípio poderá ser recebido antes
de Vossa Eminência. Mas se Doutor Plinio tiver essa gentileza, Vossa
Eminência passa na frente.
Era uma coisa que eu não podia recusar.
Ele, que não me tinha visto ainda, olhou para mim e
disse com um acento português carregadíssimo:
— Mas, então o senhor é “brasilairo”?
— Sim, senhor, sou.
— Eu sou de tal lugar assim (uma das numerosas
colônias que Portugal possuía). Então me dá cá um abraço, porque falamos a
mesma língua.
Eu me levantei, nos abraçamos e ele disse:
— Minha audiência é curta, de maneira que o senhor
vai perder pouco tempo por minha causa. Mas, enquanto não sou atendido,
vamos conversando.
— Oh! Eminência, quanto prazer.
Sentei-me. O homem, muito amável, começou a
conversar. Mas ele tinha um acento português tão carregado, que eu não
conseguia entender o que ele dizia. E ele falava, falava, falava, e eu
tendo que fingir que estava entendendo para não ser indelicado. De fato
não entendia uma palavra [96].
E eu muito mal à vontade, porque de repente ele
poderia me perguntar: “O que é que o senhor diz a respeito de tudo
isso?”.
Afinal, o homem que estava com Monsenhor Montini saiu
e fizeram entrar o Cardeal. Eu respirei [97].
O Cardeal demorou um pouco e eu pensei: “Monsenhor
Montini vai dizer que já bateu a hora do almoço, que eu volte outro dia”.
Mas veio o camareiro [98]
e disse que Monsenhor Montini, sabendo da grande amizade entre Dom Mayer e
eu, propunha nos receber juntos, a não ser que cada um de nós tivesse algo
particular para expor a ele.
Achamos curioso que ele soubesse da grande amizade
que nos ligava. Aliás, encontrei o Vaticano muito mais informado a nosso
respeito do que poderia imaginar. Dissemos que sim e entramos juntos.
* *
*
Monsenhor Montini era uma pessoa ereta como uma
espada. Um prumo de engenharia não seria mais retilíneo do que era ele.
Seco, magro, com um nariz muito avançado, olhos pequenos e penetrantes,
olhando tudo e indagando tudo. Lábios muito finos e cortantes, e muito
desejo de ser afável, de ser amável [99].
E ele nos recebeu muito amavelmente [100].
Dom Mayer disse que tinha ido fazer uma homenagem. Eu
disse mais ou menos a mesma coisa [101].
Depois de cumprimentar o Sr. Bispo, voltou-se para
mim:
— Professor, quero que saiba que a carta que lhe
escrevi não foi mero documento de civilidade. Cada um de seus termos foi
pesado atentamente. Tenho prazer de o declarar aqui, em presença do Sr.
Dom Mayer [102].
Ele então começou a falar das imensas possibilidades
do Brasil, teceu elogios ao Itamaraty, dizendo que era um dos primeiros
ministérios de relações exteriores do mundo e de grande classe, comentou
sobre as saídas diplomáticas de categoria que dava. Ele encheu o tempo
elogiando o Itamaraty [103].
Percebi que ele não estava querendo conversar sobre a
briga contra a Ação Católica, e eu não queria forçá-lo. Mas percebi também
que ele estava querendo ser amável comigo [104].
Nisto, um relojinho colocado na lareira da sala bateu
uma hora. E então fizemos um movimento de ir embora.
Em tese, deveríamos esperar ele nos despedir, porque
ele era a autoridade maior. Mas manda o bom senso que se atenue o
protocolo em certas circunstâncias. E dissemos:
— Excelência, já está muito adiantada sua hora, o
relógio está batendo.
— Não, não, espere mais um pouco.
Afinal de contas, ele deixou a conversa correr um
pouquinho mais, mas a certa altura ele mesmo deu uma entrada de bom
diplomata, como quem diz: “Se vocês agora pedirem para sair, é hora”.
Então pedimos para sair [105].
Por fim, cessada a audiência, deu-nos medalhas
comemorativas do jubileu episcopal de Pio XII [106].
Eu agradeci e aí disse a ele:
— Excelência, antes de ir embora queria lhe pedir
um favor. Vai haver por esses dias uma canonização, a de São Vicente
Strambi, e eu gostaria muito de assistir. E queria pedir um convite, para
mim e para quatro companheiros”.
Dom Mayer não precisava, porque Bispo entra no
cortejo do Papa.
Ele me disse: “Pois não. Em que hotel o senhor
está?”
Eu disse: “Hotel Ambassatori”, hotel muito
conhecido de Roma.
Ele não pediu para escrever meu nome, nem nada:
“Pois não”.
Dois ou três dias depois aparece no meu hotel um
estafeta do Vaticano com cinco convites (honra excepcional) para assistir
à canonização da tribuna do corpo diplomático [107].
No dia da canonização para a qual tínhamos convite,
chegamos bem antes da cerimônia começar [108].
Fomos colocados a uma certa distância de uma dama da aristocracia
espanhola, com seu traje de gala, aquela mantilha presa ao cabelo com um
pente alto de tartaruga.
Julgamo-nos bem instalados e nos dispusemos a
assistir à cerimônia.
De repente, vejo um daqueles nobres da Câmara Papal,
gola de renda ao sistema de Filipe II, roupa de veludo preto e ornamentos
de prata, olhando-me e caminhando em minha direção.
Eu pensei: “Comigo não há de ser essa história. Eu
não conheço este homem e sobretudo ele não me conhece”.
Quando chegou a certa distância, o homem faz uma
vênia, e eu também faço uma vênia para ele. E ele diz:
— Sua Excelência Monsenhor Montini manifestou-se
preocupado pelo fato de o senhor Professor não estar bem colocado para
assistir à canonização como conviria, nem o seu amigo. Então, manda-lhe
oferecer dois lugares embaixo, que estão vagos, na primeira fila”.
Eu disse: “Onde está Monsenhor Montini, para
agradecer?”
Ele disse: “Atrás”.
Olhei para trás, estava ele reto, teso, com dois
olhos em mim. Eu fiz uma reverência, ele fez um pequeno cumprimento e
fomos, o Dr. Adolpho Lindenberg e eu, para a primeira fila.
Ali, do meu lado direito, estava o embaixador do
Egito, com um fez vermelho encimado por um pompom; e à minha esquerda, Dr.
Adolpho.
* *
*
Começa a cerimônia de canonização.
Tocam os sinos da Basílica de São Pedro, sinos de
bronze, com categoria e majestade. Tocam lentamente, mas expelem vibrações
que criam a impressão de que vão mover as estrelas e o mundo. Em certo
momento, todo o carrilhão está tocando.
Quando os sinos param, ouve-se de longe o som das
trombetas. São as duzentas ou trezentas trombetas de prata desenhadas por
Michelangelo, que anunciam o cortejo do Papa que vem chegando. As portas
de bronze da igreja de São Pedro se abrem e começa a entrar o cortejo [109].
O Papa vinha na Sedia Gestatoria, toda de
marfim, com incrustações de prata. E ao seu lado, dignitários carregando
os flabelli, leques de pluma enormes, e a Guarda Nobre com couraça,
a Guarda Suíça, a Guarda Palatina [110].
Era um cortejo lindíssimo, mas também longuíssimo,
porque pelo protocolo da Igreja os inferiores vêm na frente e os
superiores vêm atrás. Primeiro, eclesiásticos de uma ordem menor. Depois,
os superiores gerais das Ordens religiosas. Em seguida o famoso papa
negro, quer dizer, o superior geral dos jesuítas. Encerrando, os
Bispos, Arcebispos, Cardeais [111].
Por fim entrava o Papa, sob uma tempestade de
aplausos na Basílica. O povo se ajoelhava.
Nisto, no alto da cúpula da igreja de São Pedro, onde
há uma frisa, ouve-se um coro majestoso que canta: “Tu es Petrus, et
super hanc petram aedificabo Ecclesiam meam, et portae inferi non
praevalebunt adversus eam” — Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a
minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra Ela”.
Isto, mais os sinos, mais as trombetas, mais o coro,
mais os aplausos do povo, o Papa muito ereto e dando bênção de um lado e
do outro, formava um espetáculo verdadeiramente inesquecível, uma coisa
extraordinária.
Quando o Papa passou pela tribuna do corpo
diplomático, ajoelhamo-nos. Os diplomatas de países não católicos, como o
nosso vizinho egípcio, faziam uma profunda vênia como diante de um monarca
que passa [112].
O Papa — alto, esguio, com mãos muito brancas,
compridas, pareciam feitas de marfim — desce da Sedia Gestatória,
vai de tiara ao seu trono e senta-se.
Começa a Missa, que se desenrola com pompa. Chegado o
momento da Consagração, o Papa levanta-se do trono, vai até ao altar da
Confissão debaixo das colunas de Bernini, depõe a tiara, coloca a mitra,
tira-a em seguida e assiste à consagração de cabeça descoberta.
Na hora da Consagração, da frisa da cúpula de São
Pedro as trombetas de prata tocam. A impressão era de um toque de anjos
tocando no Céu.
Aí notei lágrimas que escorriam dos olhos do
embaixador do Egito. Ele não estava chorando, mas lacrimejava
abundantemente. Eu desviei imediatamente o rosto, para ele se sentir à
vontade e não se sentir observado [113].
Depois da Consagração, silêncio enorme na igreja,
porque o Santíssimo estava presente, seguem-se as orações. O Papa volta
para o trono, depois comunga.
Por fim, volta-se e dá a bênção ao povo.
Aí, nova explosão de alegria e toque de fanfarras [114].
* *
*
Antes de o Papa se levantar para sair, realiza-se um
rito arcaico, datado dos primeiros tempos de Roma após a Igreja sair das
catacumbas.
Dois dignitários eclesiásticos aproximam-se, um
trazendo uma gaiola com três pombinhos vivos, e o outro um saquinho de
pano muito comum, contendo moedas de ouro.
Fizeram uma reverência e foram oferecer o pagamento
dos cônegos da igreja de São Pedro ao Papa, como óbulo da Missa que havia
sido celebrada.
E cantavam: “Pro Missa bene cantata!” —
Reverência. Depois: “Pro Missa bene cantata!” — Reverência. Faziam
isso por uma terceira vez e apresentavam o pagamento.
Tudo terminado, Dr. Adolpho e eu tomamos o automóvel
e fomos para o nosso hotel, com o coração e a cabeça transbordando de
impressões [115].
Antes de ir embora de Roma, impunha-se que eu deveria
fazer a Monsenhor Montini uma visita de despedida. Eu não poderia deixar
de ter para com ele todos os graus e formas de cortesia correspondentes ao
que ele havia tido comigo.
Fui ao Vaticano numa hora em que não havia
expediente, mas que se toleraria a um estrangeiro que não conhece os
horários fosse fazer uma visita.
O Vaticano estava completamente aberto, entrava quem
quisesse. Eram mais ou menos sete horas da noite.
Subi por uma escada mandada construir por Pio IX,
pela qual se chega ao Pátio de São Dâmaso e por onde habitualmente
entravam os visitantes. Era uma escada que tirava o fôlego.
No Pátio de São Dâmaso tomei o elevador e disse ao
ascensorista que queria falar com Monsenhor Montini. Ele me respondeu que
só subindo para ver. Subi.
Lá chegando, encontrei, um pouco cochilando, um velho
porteiro. Perguntei por Monsenhor Montini: “Non è”, não está.
-
Ah! “non è”, que pena etc.
Dei a ele o meu cartão e ainda uma gratificação,
pedindo-lhe para entregar depois a Monsenhor Montini.
Quando saí, começo a ouvir de repente barulho de
água. Eram faxineiros que começavam a lavar uma das galerias do Pátio de
São Dâmaso, toda ela coberta, no teto, com pinturas de Rafael. Qualquer
centímetro daquela galeria era inapreciável.
Mas eu estava pensando em tudo, menos em Rafael...
Havia uma certa penumbra, quase não se via nada.
Com aquela água ensaboada, eu tomando cuidado para
não cair. Ia andando no meio daquele aguaceiro, quando meus olhos se
pousam instintivamente no fundo do corredor.
E o que é que vejo? Um prelado magro, ereto, com um
grande chapéu preto, envolto numa capa e pulando também por cima da água.
Era Monsenhor Montini.
Aproximei-me dele: “Monsenhor, vim exatamente
fazer uma visita de despedida a Vossa Excelência etc. etc.”
Ele cortou:
- Oh!
Professor, que surpresa! Eu não encontro o senhor onde esperava, e
encontro onde não esperava.
- Mas
como, Monsenhor?
Ele disse:
- Houve
agora uma homenagem ao Senhor Cardeal de São Paulo na embaixada do Brasil,
e eu esperava encontrar o senhor nessa homenagem. E não esperava encontrar
o senhor a esta hora aqui, tão deserto o Vaticano!
Respondi:
- Oh!
Monsenhor, imagine! Se eu soubesse que Vossa Excelência estava lá. Não
pude comparecer à homenagem (não expliquei a ele porquê) e vim
empregar bem o meu tempo aqui, despedindo-me de Vossa Excelência.
Mas a água da faxina estava vindo de tal maneira, que
não era mais possível demorarmo-nos ali: o dilúvio vinha de todos os
lados. Trocamos algumas palavra amáveis, ele me desejou boa viagem, e
nunca mais nos vimos na vida.
Esse foi o meu último encontro com Monsenhor Montini,
futuro Paulo VI [116].
5. Conversa com o postulador do processo de canonização de Dom Vital
Em Roma fui visitar os capuchinhos, e disse que
queria falar com o padre promotor da canonização de Dom Vital.
Era um padre alemão, mas falava o português com
extraordinária fluência.
Perguntei a ele:
— Eu queria saber como está esse processo.
— Ah! esse processo... Nos anuários ele está na
lista das canonizações possíveis, mas é desses nomes que colocamos por
formalidade. Todos sabemos que ele nunca será canonizado.
— Mas, Frei, por que não será? É possível saber?
— Muito simples: é que todas as pessoas do tempo
de Dom Vital já morreram, e não há, portanto, possibilidade de colher
testemunhos a respeito da vida dele. E então o processo não pode andar, é
um processo morto.
Era uma explicação inaceitável! Absolutamente não é
verdade que só se canoniza com base em depoimentos de pessoas vivas. Às
vezes canonizam-se pessoas que morreram há séculos. Santa Joana D’Arc foi
uma delas, outra foi Santa Beatriz da Silva*. E quantíssimos outros santos
estão nessas condições também! [117]
*
Santa Beatriz da
Silva (Campo Maior, 1424-1492), nascida D ª Beatriz de Menezes da Silva,
de rara beleza, foi uma nobre portuguesa descendente de reis e neta de Dom
Pedro de Menezes, senhor de grande influência. Com a ajuda da rainha de
Espanha Isabel, a Católica, fundou a Ordem da Imaculada Conceição
(concepcionistas). Foi elevada à honra dos altares somente no século XX,
por Pio XI.
O Padre Mariaux dispunha de
um grupo de amigos jesuítas inteligentes, cultos, muito adversários do
nazismo, que eu tinha muita vontade de conhecer.
Acabei por visitá-los a todos em Roma: Padre Robert
Leiber, Padre Gustav Gundlach [118],
bem como — antes de visitar Pio XII — uma série de Monsenhores muito
chegados ao Papa, aos quais eu entregara um relato dos assuntos atinentes
à Ação Católica [119].
Padre Leiber era um sacerdote de origem austríaca.
Ele tomava ares de um homem comum, mas bastava conversar com ele para se
dar conta do contrário [120].
Ótimo historiador, havia colaborado para a confecção
de um dos volumes de uma das maiores coleções sobre a História da Igreja,
que é a de Ludwig von Pastor [121].
Além disso, era pregador de retiros e diretor espiritual do Papa Pio XII,
tendo muita influência e facilidade de acesso junto ao Pontífice [122].
Eu me lembro de minha emoção
quando procurei o Padre Leiber e me disseram que ele estava pregando
retiro numa casa de freiras no monte tal em Roma.
Fui lá e disse:
— Quero falar com o Padre Leiber.
— Está pregando retiro. Se
o senhor puder esperar, quando ele sair, ele lhe atenderá.
Aguardei e, quando ele entrou
na sala, eu disse:
— Padre Leiber, eu sou Plinio Corrêa de Oliveira.
E fui puxando do bolso uma carta de apresentação.
Ele me disse:
— Oh! Professor, agradeço
a carta de apresentação, mas nos últimos dias tive nada menos de seis
cartas de personagens vários da Europa anunciando-me que o senhor viria me
visitar e me recomendando dar bastante tempo ao senhor. O que o senhor
quer?
Era o céu aberto [123].
A fisionomia dele, pelos imponderáveis, me dizia:
“Eu vou tomar um ar de quem não tem pressa. Mas me entenda, eu estou
apressado”.
Então eu fui direto ao ponto:
— Padre Leiber, tem isso assim, a situação no
Brasil é esta.
Ele ouvia. No fim me disse:
— Veja Professor, tudo isso que o senhor me disse
é muito importante e muito concludente. É natural que, morando há tanto
tempo em Roma, eu conheça a pessoa a quem interessa tomar contato com tudo
isto. Portanto, se o senhor trouxe boa documentação, demonstrando tudo
quanto me disse, é só me entregar, e passado algum tempo faça-me uma
visitinha na Gregoriana*. Aqui está o meu cartão”.
*
A Pontifícia
Universidade Gregoriana, a famosa Gregoriana, é um centro de
estudos teológicos e filosóficos localizado em Roma. É a sucessora do
Colégio Romano, fundado em 1551 por Santo Inácio de Loyola.
E escreveu nesse cartão os seus horários.
Eu agradeci, pedi desculpa por ter tomado o tempo
dele e despedi-me.
Ele: “Mein Professor, até logo”.
* *
*
Depois tive vários outros encontros com o Padre
Leiber, inclusive em minha posterior visita à Europa, em 1952.
Ele, jeitosamente, falando por alto sobre assuntos na
aparência banais, dava a entender uma porção de coisas:
— Conversei com mais de um amigo (certamente
um desses amigos era Pio XII), examinamos seus documentos, foram tidos
como muito importantes para a História da Igreja.
Ele também dizia:
— Não faltarão ocasiões para agir, haverá
oportunidade, contaram-me que o Santo Padre está preocupado, de repente
documentos dele poderão esclarecer.
De fato, Pio XII lançou depois algumas encíclicas
nesse sentido. Mas ele dizia tudo em linguagem por assim dizer
criptografada, que eu devia entender e não tentar furar nenhuma vez [124].
Num desses encontros, ele comentou:
— O Sr. deu-me um material muito rico.
Eu disse:
— Rico demais, não, Padre?
Padre Leiber:
— Mas muito significativo. Haveria naturalmente
muito que dizer do relatório, mas acentuo o lado moral inteiramente
incompatível com a doutrina da Igreja. O relatório apresenta uma imagem
fiel da situação religiosa no Brasil.
E, apontando para o relatório:
— Esta coleção será muito apreciada na Secretaria
de Estado [125].
7. Conversa com o Padre Gundlach
Quando eu ainda estava aqui no Brasil, o Padre
Mariaux havia deixado escapar que o Padre Gundlach [126]
foi quem redigiu as minutas dos famosos discursos de Pio XII à Nobreza
romana, e também de um texto clássico do mesmo Papa a respeito da
sociedade orgânica [127].
A partir dessa informação, resolvi conhecer o Padre
Gundlach quando fosse à Europa. E em 1952 apresentou-se a ocasião.
Imaginando que, como bom alemão, o Padre Gundlach
gostasse de fumar charuto, comprei em São Paulo alguns charutos baianos
muito finos e bons.
Os charutos baianos gozavam então de fama mundial.
Cada charuto era vendido numa espécie de tubo de celulóide transparente e
meio azulado. Para fumar esse charuto, vinha junto uma limazinha com a
qual a pessoa serrava a ponta.
* *
*
O encontro com ele deu-se da seguinte forma.
Estava eu conversando com o Padre Leiber, quando
aproximou-se um outro padre que percebi tratar-se do Padre Gundlach [128].
Era ele um alemão não tão grande como o Padre
Mariaux, mas também de grande estatura [129].
Ele se apresentou, a conversa se generalizou e tomou
animação. Em certo momento eu disse ao Padre Gundlach:
— Diga-me, Padre, o senhor é quem faz as minutas
de certos discursos de Pio XII, não é?
— Fazia até há pouco, porque o Padre Leiber e eu
saímos dessas funções (quer dizer, tinham sido substituídos) [130].
Os discursos de Pio XII minutados pelo Padre Gundlach
têm trechos que são verdadeiras obras-primas.
No fim da conversa eu disse:
— Padre Gundlach, aqui estão uns charutos da
Bahia, o senhor fumará e vai gostar [131].
Ficou muito contente. Estabelecemos muito boas
relações [132].
E fui embora.
Eu estava longe de pensar que iria tirar partido
desses discursos de Pio XII muitos anos depois, no meu livro
Nobreza e
elites tradicionais análogas, baseado justamente nas alocuções de Pio
XII ao Patriciado e à Nobreza romana [133].
Outra personalidade com quem falei durante essas
minhas viagens à Europa na década de 50 foi Monsenhor Valentini,
encarregado dos assuntos brasileiros no Vaticano.
Levei para ele uma série de recortes de jornais
mostrando os erros da Ação Católica. Eram os recortes que tínhamos
fotografado na sede da Martim Francisco, creio que durante um ano, para
depois levar para a Santa Sé [134].
Durante a entrevista, eu manuseava aquele maço de
material documentando os erros e desvios da Ação Católica e do Movimento
Litúrgico, mostrando para ele o que tinham de heterodoxo [135].
Ele se impressionou muito, e deu a acolhida a mais
favorável possível [136].
As viagens de 1950 e 1952 foram muito informativas do
ambiente europeu, abria muito os horizontes, mas infelizmente não abria
caminho. Elas aprofundaram a nossa noção da crise universal na Igreja.
Tínhamos até então uma noção dessa crise circunscrita
ao Brasil. Sabíamos que o foco vinha da Europa. Mas achávamos que eram
apenas algumas congregações religiosas más, que mandavam seus missionários
para os vários países espalhando o erro. E que no Brasil essa má semeadura
havia vingado especialmente. Não tínhamos razão para achar que a crise na
Europa era da proporção do que víamos no Brasil.
Foi na viagem de 1952, sobretudo, que nos
compenetramos de que se tratava de uma crise universal, com raízes em
outras crises mais antigas.
Aquele plano primeiro que eu tinha — de trabalhar
para extinguir esse mal no Brasil e repor a boa ordem como ela era no
começo de nossa ação no apostolado católico — eu vi que não era mais
possível, era preciso cancelar.
Então, impunha-se uma mudança completa de tática, que
teríamos levado pelo menos dez anos para compreender se não fossem essas
viagens de 1950 e 1952. Isto porque a infiltração do progressismo na
Europa era ainda muito mais velada do que no Brasil [137].
Na Europa vimos pessoas de direita, mas não
propriamente gente jovem dessa tendência.
As que encontramos — salvo honrosas exceções — eram
divididas entre si, desanimadas e a maior parte com a idéia de que era
preciso fazer concessões à Revolução para continuar a sobreviver. Nós não
queríamos concessões, por estarmos convictos de que a Revolução deve ser
combatida de frente e de corpo inteiro.
Por outro lado, nessa viagem tivemos todas as portas
abertas, entramos onde quisemos, fomos recebidos com cortesia, amavelmente [138].
Formamos, é verdade, uma rede de bons amigos, de boas
relações em quase todos os países da Europa. Gente que pensava mais ou
menos como nós e que continuou com relações amistosas. Gente a quem nós
devemos grande parte da repercussão das nossas obras no Exterior, porque
as mandávamos para essas pessoas, e elas em geral promoviam traduções.
Isto é o que explica haver tantas traduções em língua
espanhola, italiana, francesa, alemã, das nossas obras. Esta rede de
relações e de simpatias estabelecida em vários países, com o passar do
tempo deu origem ao setor que internamente chamamos a Comissão do
Exterior [139].
Foi também ao longo dessas viagens que fui
compreendendo que o futuro da Contra-Revolução estava mais na América do
que na Europa.
Na Europa havia tanta tradição fanada, tanta coisa
murcha, que era difícil fazer caminhar essa tradição naquele continente.
Pelo contrário, na América ela poderia caminhar.
Essa tarefa de fazer ressurgir o fogo da
Contra-Revolução num continente onde a tradição antiga quase não teve
vigência, deixava bem claro que isto era mais uma obra da graça do que dos
homens, porque se fosse obra dos homens teria nascido na Europa*.
*
Algo de muito
parecido havia sido dito por Santo Antonio Maria Claret, numa carta ao
Padre José Xifré datada de 16 de novembro de 1869 sobre a América Latina:
“Na América há um
campo muito grande e muito fecundo e com o tempo subirão ao céu mais almas
da América do que da Europa. Esta parte do mundo é como uma vinha velha,
que já não dá muito fruto, ao passo que a América é vinha jovem [...]
Eu já estou velho [...]. Se não fosse isto, voaria para lá”
(cfr. Santo Antonio Maria Claret, Escritos Autobiográficos, BAC,
Madri, 1981, edição preparada por Maria Viñas e Jesus Bermejo).
O fato de o espírito das tradições européias renascer
mais vigoroso na América do que na Europa é o paradoxo dos paradoxos. Eu
confio que Nossa Senhora não excluirá as nações européias do ósculo d’Ela.
Mas o bem que Ela fará para a Europa terá nascido a partir da América.
Está sendo esta a história da Contra-Revolução na Europa [140].
NOTAS
“Penso que se trata
de uma Missa celebrada por um outro (certamente algum Cardeal) com o
Sumo Pontífice assistindo. Assim se fazia na grande maioria dos casos,
pois o Pontífice, mesmo celebrando a Missa privada mais ou menos todos
os dias, costumava celebrar a solene somente três vezes por ano,
praticamente no Natal, Páscoa e na festa de São Pedro e São Paulo.
“Neste tipo de
Missa solene (ou Pontifical) à qual assistia o Papa, este último segue
tudo de seu Trono, exceto no momento (grosso modo) da Consagração,
durante a qual vem propriamente colocar-se diante do altar, e se
ajoelha para assistir à Consagração, depois do quê, volta para o trono
para a seqüencia e fim da Missa.
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