1. “Dias duros nos esperam”
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"...quando eu me aproximava com o pessoal do
Legionário, ele tomava um ar tristonho, distante e cerimonioso..." |
Quanto a nós, do Legionário, estávamos muito
esperançados na eleição de um Arcebispo que corrigisse os desvios na
liturgia, os erros na Ação Católica e restaurasse as Congregações
Marianas.
Estávamos nessa esperança, quando recebo um
telefonema de um membro da Ação Católica comunicando-me, radiante, que Dom
José havia sido eleito Arcebispo de São Paulo.
De nossa parte, prestamos a Dom José todas as
homenagens, todas as atenções, todas as cortesias. Mas senti que toda a
nossa situação estava precária e abalada com a vinda dele para São Paulo [1].
Evidentemente, a tal roda de moças da Ação Católica
ficou esfuziante de alegria.
Ele estava em Itanhaém
passando férias. E essas moças seguiram imediatamente para lá, para
felicitá-lo.
Eu também resolvi descer até
Itanhaém para felicitar o Arcebispo. Ele me acolheu muito bem, muito
amavelmente, mas notei que toda a simpatia ia para o outro lado.
Quando elas chegavam perto, ele se tornava vivaz,
alegre, divertido. E quando eu me aproximava com o pessoal do Legionário, ele tomava um ar tristonho, distante e cerimonioso.
Eu pensei: “Dias duros nos
esperam” [2].
* *
*
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Posse de D.
José Gaspar noticiada pela "Folha da Manhã" de 19 de setembro de
1939 |
Dom José veio para São Paulo e nós fizemos parte da
comissão de recepção. A cerimônia de posse foi no dia 17 de setembro de
1939.
Eu me lembro que a Praça da Sé estava cheia de gente
para festejá-lo, para homenageá-lo. As moças da Ação Católica se
destacavam com umas boinas brancas, gritando: “Viva o nosso Arcebispo!
Viva o nosso Arcebispo!”
Ao vê-las, ele desviou-se do trajeto, chegou até
elas, deu uma bênção e prosseguiu. Foi um entusiasmo, um delírio da parte
delas.
Quando houve aquela bênção, avaliei novamente o que é
que vinha [3].
* *
*
Também por esse tempo eu
notei que o presidente da Ação Católica Brasileira, Tristão de Athayde,
com quem eu me correspondia -
era meu fraternal amigo: quando ele vinha a São Paulo, almoçava ou jantava
na minha casa; e quando eu ia ao Rio eu jantava em casa dele; e nossas
famílias acabaram fazendo relações -
começava a mudar também e a adotar as diretrizes novas.
E pensei comigo:
“Preciso arranjar um jeito de conservar junto ao novo Arcebispo uma
situação que me permita lentamente ir abrindo os olhos do Arcebispo, para
que ele veja que espécie de coisas ele está apoiando involuntariamente” [4].
2. “Recado” para Dom José
Dias antes de Dom José tomar
posse, eu tinha ido à Cúria [5].
Lá estava o secretário dele, Padre Paulo Rolim
Loureiro, que depois se tornou Bispo de Mogi das Cruzes [6],
o qual, vendo-me lá, veio sentar-se ao meu lado e me disse:
— Então, Dr. Plinio, o Sr.
está contente com a nomeação de Dom José?
— Estou e não estou. Eu
tenho no fundo muita queixa de Dom José. Eu não digo a ninguém, mas ao
senhor que é tão amigo dele, eu devo dizer: eu tenho muita queixa de Dom
José.
— Mas não diga! Qual é a queixa que o senhor tem
dele?
— Dom José não me compreende. Dom José é um homem
de um temperamento muito diferente do meu e por causa disso ele vive
preocupado com os adversários da Igreja e não cuida dos melhores amigos da
Igreja. Nós, que somos fiéis a ele, nós que o estimamos, nós que somos
verdadeiros católicos, ele nos põe constantemente de lado, enquanto aos
adversários da Igreja, ele favorece constantemente. Com isso o Movimento
Católico de São Paulo está ficando praticamente um feudo dos adversários
da Igreja [7].
E continuei:
— Ele tem a impressão de que o mundo todo se
conquista com um sorriso, e que todos os adversários da Igreja, à força de
bons agrados, passam a ser amigos. Quem tem a respeito dos adversários da
Igreja essa posição, deve achar que um jornal combativo como o Legionário,
e um homem combativo como eu, estragamos tudo, porque exatamente azedamos
aqueles que, por meio de um sorriso, poderiam ser conquistados. De maneira
que eu compreendo que ele tenha a respeito de nós a mesma impressão de um
homem que está recebendo visitantes e que tem um cachorro buldogue solto
no jardim: para que a festa dê bom resultado, a primeira coisa é pôr
focinheira no cachorro. Então a primeira preocupação dele deve ser acabar
com a nossa combatividade. E acabando com a nossa
combatividade, acabar conosco. Quer dizer, em última análise, eu tenho a
impressão de que nós não temos mais nada que fazer debaixo do governo
arquidiocesano dele [8].
O Padre Loureiro ficou muito
incomodado e disse:
— Meu amigo, meu amigo, não pense assim! Isso é
uma coisa errada! Eu vou falar com ele [9].
* *
*
Outra coisa que fiz foi
procurar um jovem padre chamado Antonio de Castro Mayer, que era íntimo
amigo do Arcebispo. Em conversa, chamei a atenção dele a respeito das
tendências da Ação Católica e das simpatias do novo Arcebispo para com
esse movimento.
Quer o Padre Mayer, quer o
Padre Rolim Loureiro falaram com o Arcebispo [10].
3. Presidente da Junta Arquidiocesana da Ação Católica
O fato é que, quando depois
eu fui falar com Dom José, ele estava açúcar e mel, querendo adocicar a
situação [11].
Daí a pouco o Arcebispo mandou-me um convite para ir
ter com ele:
— Dr. Plinio, eu queria
constituir a Ação Católica aqui em São Paulo, e que o senhor fosse
presidente e me indicasse os membros da diretoria. (Chamava-se
Junta Arquidiocesana da Ação Católica).
— Como não, Senhor
Arcebispo. Com todo gosto. Eu estou aqui para servi-lo.
Indiquei então para os cargos
de direção da Junta pessoas do grupo do Legionário [12]:
O presidente, eu, por escolha do Arcebispo; primeiro-secretário, José
Gonzaga de Arruda; segundo-secretário, Fernando Furquim de Almeida;
tesoureiro, José Benedito Pacheco Sales.
Dom José convidou o Cônego Mayer para ser Assistente
Geral da Ação Católica de São Paulo e Padre Geraldo de Proença Sigaud para
Assistente Geral da JEC [13].
De maneira que, de um modo inteiramente inesperado,
nós ficamos colocados na direção da Ação Católica. E eu levei a sério os
encargos dessa nomeação [14].
Hoje, com o recuo do tempo, percebo que, tanto Dom
José como eu, tínhamos cada um a intenção de converter o outro: eu ia com
a esperança de mostrar a ele como aquele grupo progressista andava mal; e
ele com a esperança de me virar a cabeça para o outro lado.
Como presidente da Junta Arquidiocesana da Ação
Católica, eu dirigia a Ação Católica masculina e feminina. O Cônego Mayer
estava acima de mim, era o assistente eclesiástico.
Começam então as reuniões da diretoria [15].
Tive com Dom José Gaspar várias conversas sobre os
rumos da Ação Católica. Ele manifestava sempre uma tendência
contemporizadora, não me desautorando, mas também não querendo desautorar
a outra parte [16].
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Palácio São Luís, residência do
Arcebispo de São Paulo - 1938. Localizava-se na atual Praça Dom José
Gaspar, junto a Av. São Luís. Demolido para construção da Biblioteca
Municipal Mário de Andrade. |
Íamos ao Palácio São Luís,
que era então o Palácio do Arcebispo. Era uma grande casa senhorial, muito
bonita.
O Arcebispo nos recebia na saletinha dele:
— Então, que novidades
trazem, que idéias trazem?
— Senhor Arcebispo, nós
viemos aqui trazer a V. Excia. um projeto de regulamento para a Ação
Católica.
— Ah! sei.
— No projeto tem isso, tem
aquilo, aquilo outro.
E entramos no assunto modas:
— As saias têm que ser
abaixo do joelho e as moças não podem deixar de andar com meias.
— É verdade...
Nossa Senhora, entretanto, não usava meias [17]...
Dr. José Gonzaga de Arruda,
que estava presente por ser secretário da Junta Arquidiocesana da Ação
Católica, com seu timbre de voz característico, replicou:
— Senhor Arcebispo, é verdade. Mas Ela usava a
túnica até embaixo nos pés [18].
Ele: suspiro profundo.
Essas eram mais ou menos
todas as reuniões: desinteligências e dúvidas [19].
* *
*
No ano de 1940, o Cônego Mayer e eu levamos a ele uma
declaração de princípios a respeito da Ação Católica, pedindo a ele
aprovar.
Esta declaração definia, entre outros, o seguinte
ponto: que a Ação Católica deveria tratar de valorizar as Congregações
Marianas em vez de romper com elas. E fazer delas uma espécie de núcleo
interno de seleção dentro do Movimento Católico.
Eu me lembro de que nós lemos esse documento para Dom
José numa reunião da Junta, em ambiente de muita cortesia, mas pesado de
cortar com faca.
Depois de fazermos esta proposta, Dom José, com o
olhar perdido no vago, disse para Dom Mayer, na época Monsenhor por ser o
Vigário-Geral da Arquidiocese:
— O senhor quer mesmo publicar isto aí?
Monsenhor Mayer respondeu:
— Isto me parece uma coisa verdadeira.
— Se isto lhe parece assim, publique então em seu
nome.
“Em seu nome” queria dizer: agüente com as
conseqüências, eu não tenho nada com isto. É um modo de tirar o corpo e de
fazer cair sobre nós toda a responsabilidade.
Monsenhor
Mayer disse: “Está bem”.
No dia seguinte sai pelos jornais: “De ordem do
Senhor Arcebispo Metropolitano...”
5. Aproximação do Padre Mariaux
Seis anos depois de ter sido deputado [20],
numa certa noite de 1940 [21],
houve uma conferência do Padre Roberto Sabóia de Medeiros, um jesuíta
célebre [22],
na Escola de Comércio Álvares Penteado, um prédio no Largo de São
Francisco, à direita de quem sai da Faculdade de Direito.
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Pe. Walter
Mariaux S.J. |
Como era para o público em geral, achei que havia
conveniência em comparecer, e fui com os nossos amigos para assistir à
conferência.
Chegando lá, eu vejo, do meio para o fim do
anfiteatro, uma bancada de uns cinco jesuítas sentados juntos. Entrei,
cumprimentei-os, pois eu era conhecido de quase todos eles.
Cumprimentaram-me amavelmente.
Entre eles, bem no centro, destacava-se um gigantão [23]
que transbordava da cadeira por todos os lados. Era alto, mocetão ainda,
com um nariz pontudo, os olhos azuis, dir-se-ia um dos primeiros germanos
que invadiram o Império Romano do Ocidente [24],
e que me cumprimentava efusivamente.
Eu vi desde logo que não era brasileiro e tinha muita
possibilidade de ser alemão. Nunca tinha visto aquele homem.
Quando terminou a reunião, vi os jesuítas que se
aproximavam em fila para falar comigo. Não era comum. E me apresentaram o
Padre Walter Mariaux, dizendo: “É um jesuíta que está vindo de Roma, e
era até há pouco o diretor do Secretariado Mundial das Congregações
Marianas. Está passando um tempo no Brasil”.
O Padre Mariaux me disse em francês [25]:
— Eu vim a São Paulo só para falar com o senhor.
Procurei o seu endereço por todo lado e não havia meio de encontrar.
Afinal de contas, telefonei para o lugar “x” e o telefone não respondia. E
vim aqui com a esperança de encontrar o senhor, porque me disseram que o
senhor talvez viesse a esta conferência. Não era possível eu ter um
encontro com o senhor em um desses dias? [26]
— O senhor quantos dias fica em São Paulo?
— Quantos dias for preciso para conseguir falar
com o senhor.
Ele me disse uma coisa que me chamou a atenção: “Eu sou um entusiasta dos artigos do senhor no Legionário” [27].
E referiu-se muito a um artigo intitulado
Medalhões [28],
que descrevia o tipo de homem vazio, inútil, pomposo, que ocupa posições e
não adianta para nada.
Ele disse que deu risadas com o artigo, que era isso
mesmo no mundo inteiro: medalhões que não prestavam para nada [29].
E comentou:
— Com certeza o senhor viu que eu tenho
reproduzido muitos artigos do senhor no nosso boletim mundial.
Eu nem sabia que eles tinham um boletim mundial. Mas
quando ouvi isto (este secretariado era em Roma) [30],
minhas orelhas se levantaram [31].
Louro, muito alto, hercúleo, exuberante de saúde,
gestos largos, mãos de feld-marschall, ele causava sempre uma
primeira impressão de robustez e determinação, que aos poucos se ia
completando com elementos psicológicos novos. Não conheci personalidade
mais rica em aspectos contrastantes e todavia harmônicos [32].
Marcamos um encontro, não sei bem onde, e começamos a
conversar. E vi que ele tinha muita afinidade conosco em uma porção de
pontos. Enfim, foi uma conversa cordialíssima.
Ele me contou que tinha sido diretor de Congregações
Marianas na Alemanha, obtivera tais e tais resultados e queria fazer uma
organização de jovens aqui.
6. Consolidação da amizade com o Padre Mariaux
Como trabalhávamos em muita conexão com o Cônego
Mayer, que naquele tempo era Assistente Geral da Ação Católica, eu quis
que ele o conhecesse.
Ele era um personagem extremamente pitoresco, tinha
gestos categóricos: “Ach!”
“Ach!” é uma exclamação alemã equivalente ao
nosso “Ah!” [33].
Ele me interrompeu [34]:
“Ach nein!” [35]
As maneiras dele não eram as mais suaves do mundo. “Não”, um mãozão
enorme, “não!”
— Mas, “não” por que, Padre Mariaux?
— Essas figuras importantes do Clero eu não gosto.
Em geral são “medalhões” como o senhor escreveu. O senhor vai me fazer
perder tempo falando com esse homem.
Eu insisti e ele acabou aceitando:
— Olha, é só porque o senhor está insistindo. Onde
será esse encontro? [36]
Não quero que seja em nenhum lugar eclesiástico.
— Está bom, Padre Mariaux, em minha casa.
Ele não era de levantar tarde como eu, era ultra
madrugador. Afinal, com certo jeito eu consegui que o encontro fosse às 10
horas em casa [37].
* *
*
Minha casa era, nesse tempo, na rua Itacolomi. Hoje
está demolida. Eu morava ali com minha mãe.
A casa, alugada, era pequena, mas primorosamente
arranjada [38],
com acabamentos esplêndidos: papéis de parede de primeira ordem, cristal
nos vidros separando as portas, maçanetas também de primeira ordem. Minha
irmã havia montado nossa sala de visitas e tinha ficado realmente muito
bem. Muitíssimo agradável a sala, mas era pequena, e nela cabiam poucos
móveis [39].
Aparece o nosso homem em casa. Cumprimentos [40],
e entra o alemãozão enorme, bem mais alto do que eu, na minha sala
cor-de-rosa [41].
Ele por assim dizer encheu a sala.
Ele comprometia um pouco a solidez dos móveis, mas eu
não olhei para isso, eu estava olhando só para as relações romanas dele [42].
E ele me disse, num francês, assim: “Vous habitez
bien”.
Eu disse: “Está à disposição, Padre Mariaux” [43].
Entra o Cônego Mayer. O contraste não poderia ser
maior. Cônego Mayer moreninho, pequenino, transbordante de vida, mas muito
pouco parecido com um alemão. E o Padre Mariaux personificando a Alemanha
a cem por cento. Na primeira conversa ficaram logo amigos [44].
Eu mandei a empregada trazer, numa bandeja de prata,
cálices e uma garrafa de vinho do Porto, o que para nós é banal.
Ele: “Ach! Portugal, hein?”
Ele gostou muito do vinho do Porto. Mas em dose
correta, nem de longe em excesso, mas enfim, largamente.
Acendeu um charuto, começou a fumar e aí teve início
uma conversa sobre a situação geral da Igreja, sobre o nazismo e vários
assuntos do gênero.
No que diz respeito à crise da Igreja, em alguns
pontos ele foi mais longe do que eu. E contou várias coisas passadas em
Roma [45].
A crise dentro da Igreja ele percebia bem. Entendíamo-nos vigorosamente
nesse ponto [46].
Falamos contra Jacques Maritain, que era um filósofo
da esquerda católica com enorme voga no mundo inteiro. Nós aqui
escrevíamos muitos artigos contra esse filósofo, e ele acompanhava todos [47].
Entendemo-nos totalmente sobre o nazismo. Ele tinha
lançado um livro contra o nazismo, de umas 700 ou 800 páginas,
superdocumentado, provando que o nazismo havia perseguido a Igreja
Católica de um modo brutal. O livro se chamava [48]:
Testis Fidelis — La
Iglesia en el III Reich Alemán
[49].
É a melhor obra que eu conheço a respeito do nazismo:
as perseguições religiosas, todo o mal que o nazismo fez, argumentação
muito séria e muito sólida; parte doutrinária límpida [50].
À vista dessa concórdia, sendo ele jesuíta e eu
ex-aluno dos jesuítas, e admirador até hoje, a perder de vista, de Santo
Inácio de Loyola e da Companhia de Jesus como ela foi e como ela deveria
ser; e gostando muito das coisas alemãs, mas muito, não tardei em formar
uma simpatia enorme para com o homem. E depois, com o tempo, uma
verdadeira amizade.
Não oculto que a condição de alemão do Padre Mariaux
me dava muito gosto no trato com ele. Aquele categórico, certa
truculência, certa ênfase oratória, eu gostava muito.
Nós o convidávamos frequentemente para as nossas
coisas, íamos jantar em restaurantes, uma coisa e outra. E ele era um
parceiro para um almoço ou para um jantar, interessantíssimo. Tinha muito
boa prosa, era engraçado, inteligente. E comia de maneira a dar apetite a
uma estátua de pedra ou de bronze. Ele era engraçado até nos erros de
português que cometia [51].
7. Razões da vinda para o Brasil do Padre Mariaux
Por que razão o Padre Mariaux tinha vindo da Europa
para o Brasil? [52]
Ele não me contou, mas deixava escapar pequenas
coisas por onde eu percebia que ele estava sendo perseguido [53].
Contaram-me depois que, em certo momento, ele fez não sei que
imprudência [54],
talvez alguma pirueta política [55],
tornando-se necessário que saísse correndo de Roma.
Então, o Geral da Companhia, um polonês, Conde
Wlodimir Ledochowski, deu-lhe a liberdade de escolher o país para onde
quisesse ir. Ele foi à Argentina e de lá [56]
veio para o Brasil, atraído pelo Legionário.
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Pe. Mariaux
com a Congregação Mariana por ele fundada, semente do "grupo da
Martin" |
E eu me pus inteiramente à disposição dele, para o
que ele quisesse.
Ele disse que ia visitar o Rio. Mais do que
compreensível.
Foi ao Rio, passou um tempo lá, e de lá ele me
telefonou um dia:
— Queria que o senhor me dissesse, com toda
franqueza, o que o senhor pensa: para o meu apostolado no Brasil, é melhor
eu me fixar em São Paulo ou no Rio?
Então dei a ele uma resposta imediata [57]:
— Padre Mariaux, o senhor querendo, fique no Rio.
Acho que o senhor pode fazer um grande bem no Rio. Agora, preciso lhe
dizer que o Rio é capital do País, mas o centro econômico é São Paulo. E
acontece que a sociedade de São Paulo é organizada de modo cônico. São
Paulo, no fundo, economicamente, comanda o Brasil. E há umas 200 ou 300
famílias que comandam São Paulo. Os filhos dessas famílias estudam no
Colégio São Luís, onde o senhor pode formar um grupo. Se esse seu grupo
for dessas famílias, o senhor, através desse grupo, toma impulso no Brasil [58].
Ele bateu-se então para São Paulo, fixou-se no
Colégio São Luís e começou a trabalhar junto aos alunos. Tudo muito
normal.
Essa foi a semente do “grupo da Martim”, constituído
na década de 50, de que falarei mais adiante [59].
1. Padres novos: polvorosa na cidade, escândalos
Entrementes, um fato rumoroso acontecido na Diocese
de Taubaté, interior de São Paulo, abriu os olhos de muitos a respeito dos
extremos de virulência a que podia chegar a corrente nova que ia surgindo.
A Diocese foi governada, como já dissemos, até 1935
por um excelente Bispo, Dom Epaminondas Nunes D’Ávila e Silva, ao qual
sucedeu, em 1936, o Bispo Dom André Arcoverde de Albuquerque Cavalcanti [60].
Nesta Diocese formou-se um grupo de sacerdotes moços,
os quais entraram freneticamente para o movimento litúrgico: Padre Ramón
de Oliveira Ortiz, Padre Carlos Ortiz (que depois apostatou [61]
e publicou, sob a forma de romance, a história de sua apostasia e ligação
pecaminosa com uma jovem da Ação Católica “moderna” [62],
tornando-se cineasta e propagandista comunista), Padre Benedito Mário
Calazans, Padre Jairo de Moura, Padre Carlos Gomes e mais alguns outros.
Esses padres ficaram logo e imediatamente liturgicistas quando o movimento
apareceu. E constituíram uma célula liturgicista que teve muita
repercussão no Brasil [63].
Esse grupo de padres litúrgicos levou a sarabanda a
tal ponto que chegaram a fazer os atos de culto de modo quase comunista.
Eles não rezavam mais a Missa nos altares, mas tomavam uma mesa de copa e
a colocavam no centro da nave, com todos os bancos afastados e cadeiras em
volta, como em uma refeição. E ali celebravam a Missa com as pessoas
sentadas em torno, para dar idéia de um banquete.
Nenhuma imagem sobre a mesa, a não ser um pequeno
crucifixo, e isto porque o Código de Direito Canônico obrigava.
A idéia era a da comunidade cristã reunida em torno
do padre, visto enquanto deputado da comunidade para oferecer o
sacrifício. Na hora da oferenda, todos os que iam comungar levavam uma
partícula na mão para que o padre a consagrasse. E faziam disto um cavalo
de batalha.
Essa conduta pôs Taubaté em polvorosa. As idéias dos
padres litúrgicos repercutiram aí como uma verdadeira explosão.
Outro motivo de escândalo eram os namoros de alguns
daqueles padres com moças da Ação Católica. Depois, ditos incríveis dos
membros da Ação Católica, como a idéia de que todos eles deveriam
freqüentar lugares não recomendados pela moral católica para aí "levar o
Cristo", e outras loucuras de todo o tamanho.
2. Reação de Monsenhor João de Azevedo e de Monsenhor Ascânio Brandão
O pobre Bispo Diocesano, Dom André Arcoverde de
Albuquerque Cavalcanti, havia sofrido um desfalque financeiro da parte de
um padre, que fugiu com o dinheiro do Bispo. Tudo isto obrigou-o a
renunciar. Ele propriamente teve que fugir: partiu para a Nunciatura e
deixou uma carta na Cúria.
Reuniram-se os conselheiros da Diocese e foi eleito
Vigário Capitular um sacerdote, que era amigo meu, Monsenhor João José de
Azevedo [64],
vigário de Pindamonhangaba.
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Monsenhor
Ascânio Brandão |
Monsenhor João de Azevedo era um homem de grande
estatura, já naquele tempo com os cabelos grisalhos, de óculos, traços do
rosto regulares e um todo de homem decidido, perspicaz, inteligente.
O braço direito de Monsenhor João era um padre de São
José dos Campos, Monsenhor Ascânio Brandão. Homem também alto, lógico e
decidido.
Foi essa dupla — Monsenhor Ascânio e Monsenhor João —
que deu o primeiro golpe frontal no liturgismo no Brasil. Eles têm essa
glória que é preciso que lhes seja reconhecida por justiça.
O caso passou-se assim:
Monsenhor Ascânio era capelão de uma congregação
religiosa feminina, as Pequenas Missionárias de Maria Imaculada, de São
José dos Campos (então pertencente à Diocese de Taubaté). Esta congregação
religiosa havia sido fundada por uma prima minha que conheci pouco: Madre
Maria Teresa de Jesus Eucarístico [65].
Era pessoa inteligente e com muita ascendência sobre Monsenhor Ascânio.
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Dulce e sua
mãe Helena Herold - Dulce passou a ser chamar Me. Maria Teresa de
Jesus Eucarístico |
Madre Maria Teresa chamou Monsenhor Ascânio e
perguntou a ele se não estava percebendo alguma coisa esquisita no grupo
do Padre Carlos Ortiz e naquela farândola toda. E pediu a Monsenhor
Ascânio que analisasse a questão.
Monsenhor Ascânio atendeu ao pedido, e teve um
primeiro lampejo sobre aqueles desvios. Homem de consciência reta,
espírito tradicional, em desacordo com os abusos que estavam sendo
praticados, começou a intervir e a falar com um e com outro daqueles
padres, dizendo: “Vocês estão errados nisto, naquilo”.
Os padres retrucavam dizendo que não, que era assim
que se deveria fazer.
Em dado momento ele diz a um desses padres o
seguinte:
— A prova de que vocês estão errados é que
Monsenhor Ramón Ortiz (que tinha esse título por ser Vigário Geral)
é muito mais moderado do que vocês.
Respondeu o padre:
— Ora, Ascânio! Você não vê o que é? Monsenhor
Ramón tem a tarefa de se fazer de moderado, pois assim ele é elevado a
Bispo. Os outros, pelo contrário, fazem o jogo franco. Ele, uma vez Bispo,
fará depois os outros subirem”.
Fiat lux na cabeça de Monsenhor Ascânio, o
qual imediatamente escreveu ao Sr. Arcebispo de São Paulo, Dom José,
mandando pouco depois carta semelhante (18/11/41) ao Sr. Núncio Dom Aloisi
Masella, contando o caso*.
* Pouco depois, em
30 de novembro de 1941, Monsenhor Ascânio escreveu carta ao Padre Carlos
Ortiz, da qual destacamos os seguintes trechos:
"Meu caro, desde
há algum tempo para cá, diante de certos fatos e atitudes suas e do Padre
Calazans, Padre Jairo e dos dois moços da A.C. em Taubaté, o Benedito
Ortiz e o Quintanilha, fatos e atitudes bem conhecidos, estou e continuo
em desacordo com vocês quanto a alguns métodos e ideias. [...]
Desde que o vi aprovar e sustentar o estilo do Padre Carlos Gomes na 'Agonia
do cristianismo' e o vejo discípulo fervoroso de Leon Bloy e Bernanos, nesta matéria, senti que não podia e não devia em
consciência apoiá-lo e incentivá-lo, como o fiz até ainda há pouco,
julgando não chegasse suas ideias àquele extremismo irreverente e
perigoso. [...] Só lhe pediria um favor: não use esta linguagem nem
no púlpito nem na imprensa. Ela escandaliza e faz mal. É chocante. Não
aprecio o seu modo de encarar a vocação religiosa da A.C. no século. [...]
"Quanto à
formação sentimental, tive queixas de pessoas que ouviram seus círculos de
estudos e estranharam a linguagem. [...]
"Sempre censurei
e comigo bispos, sacerdotes, religiosos e fiéis, a linguagem irreverente
que usam vocês no púlpito, em círculos de estudos, em palestras, sobre os
altares, imagens, e tradições sagradas do povo. Não imagina a repercussão
de certas expressões de vocês nesta matéria! [...]
"A sua frase: -
A Igreja não é nenhum feudo da autoridade eclesiástica, é ousada.
Não admito leigos da A.C. fazendo policiamento litúrgico nas igrejas e
chamando a atenção de vigários. Os fatos, meu caro, são por demais
conhecidos. A idéia de propagar Missa versus populum, casula gótica
substituir paramento romano por gótico etc., e a linguagem: altares
prateleiras, santos horrendos etc. perante o povo, tudo isto é
chocante e escandalizante. Não sou pela piedade exclusivamente litúrgica
com menosprezo da extra-litúrgica. Não gosto dessas ironias sobre
Congregações marianas e Associações pias, escapulários, medalhas e o
terço. [...]
" A maneira de
falar e de criticar as procissões extra-litúrgicas, de vocês, é quase a
dos protestantes... [...]
"A respeito da
Autoridade, dos Bispos etc., não use expressões de comunistas: Clero
burguês e amigo da burguesia [...].
"Os métodos para
reforma do mundo são os da Igreja e nesta hora os da A.C. Não encontro
porém nos documentos pontifícios a linguagem que vocês usam às vezes... A
reforma do mundo virá não pela revolução mas pela santidade"
[Todos os grifos são do original].
3. Denúncia e panos quentes na reunião do Episcopado paulista
Na reunião seguinte do Episcopado paulista, Monsenhor
João de Azevedo compareceu como Vigário Capitular de Taubaté e disse que
tinha um caso do Movimento Litúrgico na Diocese de Taubaté a relatar.
Tomou a carta em que Monsenhor Ascânio contava esses fatos todos, e também
uma série de outros documentos, e leu na reunião.
Como em Taubaté já tinha havido um escândalo com a
saída do Bispo Dom André, o Episcopado paulista resolveu não agravar as
coisas e apenas fazer uma circular reservada ao Clero da Província
contando os abusos litúrgicos ali ocorridos, mas recomendando que nada
fosse dito aos leigos [66].
Com isso punham uma pedra no assunto para evitar
novos escândalos.
* *
*
Nós, nas conversas com Dom José Gaspar, sempre
lembrávamos esse documento:
— Senhor Arcebispo, veja como foi bom V. Excia.
ter conseguido atalhar isso na Arquidiocese, com as medidas que nos
permitiu tomar na Ação Católica. Isso foi uma uma coisa excelente.
Ele não dizia nada.
Esses fatos também concorreram para deixar o Núncio
de sobreaviso, e ajudou-o a compreender a gravidade do problema diante do
qual estávamos.
4. Dom José Gaspar impede punição e acolhe os padres escandalosos
Dom José Gaspar não esperava que estourasse esse
caso.
E vendo que Monsenhor João estava resolvido a tomar
medidas enérgicas contra aqueles padres, interveio dizendo que achava
perigoso que esses padres chegassem à apostasia. E que era melhor
mandá-los para São Paulo, que ele iria tratar de lhes mudar a orientação.
Todos esses padres então levantaram vôo de Taubaté e
desceram em São Paulo.
Naturalmente foi evitado o pior para os padres
liturgicistas, pois Monsenhor João de Azevedo acabou não lançando um
decreto contra eles na Diocese de Taubaté.
E foi muito bom para o liturgismo, pois, chegando
aqui em São Paulo, esses padres começaram a prestar serviços ao pessoal da
Ação Católica que se reunia no Centro Leão XIII e em outras organizações
do mesmo gênero.
Mas foi muito ruim para Dom José, pois muita gente
ficou vendo que ele de fato estava protegendo essa corrente.
Tanto mais que ele fez uma coisa ainda mais grave:
tomou o Monsenhor Ramón Ortiz e o fez morar no próprio Palácio,
incumbindo-o de uma tarefa de suma importância e responsabilidade, que era
secretariar e redigir o futuro sínodo diocesano de São Paulo.
Ora, o sínodo era uma assembléia de padres presidida
pelo Bispo, e convocado para tomar as medidas necessárias para a
organização da Diocese, o que só pode ser planejado por um padre muito
bom, observante e competente. Dar ao Monsenhor Ramón Ortiz essa tarefa era
uma bofetada em Monsenhor João e um ato de apoio à corrente nova.
Ademais, nomeou a outro desses padres para o cargo de
Inspetor de Ensino Religioso, o que causou muito escândalo*.
*Nessa ocasião,
Monsenhor Ascânio Brandão escreveu carta a Monsenhor Mayer (em 31 de
dezembro de 1942) desabafando:
"A campanha
surda contra mim e Monsenhor Azevedo continua terrível e sorrateira. E...
se fazem de vítimas! [...] Porém (e aqui permita que eu fale
com franqueza), o que mais me abateu e chocou é a atitude do Sr.
Arcebispo [de São Paulo]. [...] S. Exª não vê bem a
Monsenhor Azevedo, sei que me trata com desconfiança e... tem lá no
Palácio o líder do Movimento de Taubaté, o responsável,
o defensor nato de toda a Revolução litúrgica do caso de
Taubaté! Sei que lá no Palácio de São Luís se cochicha em favor das 'vítimas'
(!) contra os 'carrascos'... Percebo tudo. Vejo e ouço os
despautérios e os boatos do "Inspetor do Ensino religioso" que se
gaba e afronta a todos nós com a petulância que o distingue. Sei de muita
coisa, Monsenhor Mayer, muita atitude dúbia, indecisa, da Autoridade. [...]
Julgo que S. Exª está nas doces ilusões de Dom André [Arcoverde]... o despertar poderá ser muito triste... Sei que os
líderes da célebre A.C. [Ação Católica] se carteiam, tramam,
organizam-se em segredo e... se orgulham de andar conquistando o Arcebispo! Esperam depor o Vigário Capitular de Taubaté e me
desterrar após um processo canônico com que me ameaçam. [...] As atitudes do Sr. Arcebispo me desconcertam..." (grifos do
original).
Isso tudo produziu, em muitos meios católicos de São
Paulo, uma crepitação contra Dom José* [67].
* O Cônego Mayer,
escrevendo ao Cardeal Leme, comentava de Dom José Gaspar:
“A maneira com
que ele [Dom José Gaspar] tem agido nestes dois últimos anos mostra
esta sua intenção, intenção que, a julgar pelas coisas que aparecem, não
fruto de uma inadvertência, de uma tolerância mal compreendida [para]
com elementos perniciosos, mas fruto de um plano premeditado e aplicado
com muita inteligência e argúcia. O exame atento da maneira como tem ele
procedido com o chamado caso de Taubaté demonstra-o com a evidência
possível [...] Sem que esses padres mudassem de opinião, ou dessem
a menor demonstração de reprovarem os erros que professavam antes, o Sr.
Arcebispo começou uma campanha desmoralizadora do Exmo. Sr. Vigário
Capitular de Taubaté [Monsenhor João de Azevedo], porque este padre
não era favorável às doutrinas dos anteriores. [...] Acusou-o de
violar o sigilo a que estão obrigados os que tomam parte nas reuniões dos
Srs. Bispos, quando Monsenhor Vigário Geral limitou-se a comunicar ao seu
Clero as resoluções tomadas. [...] Acusou-o de violência e
arbitrariedades [...]. Não contente com esta ação à distância, foi
a Taubaté com o fim de desautorar a Monsenhor Vigário Capitular, pois foi
para inaugurar um centro de higiene e puericultura confiado a um grupo de
moças que tinham tomado e ainda tomam atitude francamente contrárias à
orientação de Monsenhor Vigário Capitular [...]. Mas, como disse,
tudo isso é feito com muita inteligência. Assim, por escrito ele não
fornece documento nenhum sobre nenhum desses pontos. Há até documentos em
que ele diz o contrário. Mas em conversa com padres que ele sabe que
espalharão suas idéias, ele se abre, com leigos ávidos de maior liberdade
na Moral Católica, também ele se abre”.
1. Desvios e doutrinas esotéricas: relato verbal ao Arcebispo
Em vista de todas essas circunstâncias, no ano de
1941, o Cônego Mayer e eu — ele enquanto assistente eclesiástico e eu
enquanto presidente da Junta Arquidiocesana da Ação Católica — começamos a
chamar os dirigentes dos diversos setores já existentes, para tomarmos
conhecimento do que estava se passando dentro da Ação Católica.
Falamos na ocasião com os altos dirigentes, mas
também com as diretorias de nível médio, para ter esse contato rico,
vital, que se deve ter entre pessoas que são irmãs de apostolado.
E nessas conversas veio à tona a doutrina esotérica
dessa gente, não dita pelos chefes, mas pelo pessoal de 2°
grau que nos contou algumas coisas reveladoras.
Fizemos então um relato verbal para Dom José,
mostrando que estava pegando fogo na casa. E dissemos a ele:
— Dom José, a Ação Católica está toda infectada,
está com gente que pensa assim, tem tais erros assim. Nós temos
informações tais e tais.
E contamos tudo quanto ouvimos, e que era muito grave [68].
A certa altura o Cônego Mayer disse a Dom José:
— Excelência, a situação é muito grave. E eu só
terei condições de governar a Ação Católica, se V. Excia. me der a
autorização de depor todas as diretorias e nomear diretorias novas. Se V.
Excia. não der, eu não saberei como continuar. De maneira que V. Excia.
veja o que quer fazer.
2. Dom José entre a espada e a parede
Diante da gravidade da denúncia, se Dom José
mantivesse essas diretorias e nos pusesse fora, ele tomaria partido
oficial pelo lado errado. E isto absolutamente não convinha a ele.
Então, entre suspiros, ele disse a Dom Mayer que
poderia depor essas diretorias, mas que esperasse ele estar fora de São
Paulo para fazê-lo. E saiu para uma viagem de vinte dias a uma estação de
águas [69].
Em outubro de 1941, Dom Mayer e eu, devidamente
habilitados, reunimos, ele as diretorias femininas e eu as masculinas, e
comunicamos a destituição de todas as diretorias. Depois publicamos que,
com a autorização de Dom José, tinham sido nomeadas tais outras diretorias [70].
As novas diretorias eram
constituídas todas por moças que tinham aberto os olhos a respeito dos
desvios da Ação Católica. Elas assumiram a doutrina católica séria,
veiculada pelo Legionário, e forneceram ao Cônego Mayer relatórios
do que se passava entre elas, o que foi decisivo para nós.
A líder dessa ala sadia era Dª Adalgisa Giordano. As
outras eram Dª Estela Dourado, Dª Aurora Ruiz, Dª Angélica Ruiz, Dª
Caetaninha (Angelina Caetano), Dª Iraci Ribeiro e mais um certo número de
moças, que assumiram a direção da Ação Católica [71].
3. Saída hábil de Dom José
As antigas diretorias foram depois queixar-se a Dom
José quando este voltou.
Com uma perícia incomparável, ele disse o seguinte:
— Vocês estão depostas. Mas, debaixo de minha
autorização, vocês fundam uma associação chamada Centro Social Leão XIII.
E continuem na mesma orientação, que eu não deixarei o Padre Mayer mexer
com vocês. Vocês têm toda a minha simpatia [72].
Poucos dias depois, elas promoveram uma homenagem a
Dom José, com notícia publicada em todos os jornais, e ele dando mostras
de que as recebia carinhosamente.
Era, portanto, a nossa desautorização indireta. Mas
resolvemos não dizer nada [73].
* *
*
Quando vi que a situação
estava azedando, dei-me conta de que deveria procurar a Nunciatura
Apostólica no Rio, para ver o que o Núncio pensava a respeito de todos
esses desvios.
1. Aparecimento providencial do Padre Dainese
E aqui se situa um dos
episódios mais rocambolescos de todo esse caso [74].
Lembro-me que, uma noite [75],
eu estava na sede da Ação Católica atendendo ao expediente, quando entrou
um sacerdote de estatura baixa [76],
com uma maletinha na mão [77].
Pela roupa, por certo modo de cortar o colarinho, eu percebi logo que se
tratava de um jesuíta [78].
Era o Padre César Dainese, italiano da região do
Vêneto [79],
no físico muito parecido com Santo Inácio de Loyola [80].
Homem de seus sessenta e tantos anos, portanto bem
mais velho do que eu, mas ainda na força do trabalho [81].
Era de fato muito inteligente, muito vibrátil, de uma vibratilidade
informativa, de tal maneira que, em qualquer lugar que ele entrasse, as
vibrações dele o informavam de tudo o que se passava ali dentro [82].
Todo feito de sutilezas [83],
dava a impressão do jesuíta da escola clássica do tempo de Santo Inácio de
Loyola [84].
De outro lado, sabia muito bem como tratar com as
pessoas, dizendo coisas acertadas no momento acertado: um homem muito
capaz [85].
Eu me aproximei dele e o cumprimentei [86].
Ele agiu como se me conhecesse.
— Ah! Padre, como vai o senhor?
— Dr. Plinio, como vai? Sou o Padre Dainese [87].
Passamos para a minha sala e eu disse:
— Padre, estou às suas ordens,
o que o senhor deseja?” [88]
— O senhor é presidente da
Ação Católica em São Paulo, não?
— Sou sim, Padre Dainese.
— O senhor quereria me
dizer bem exatamente qual o seu objetivo, o que o senhor tem em mente com
a atuação que desenvolve à testa da Ação Católica? Eu quereria muito
saber.
Olhei para ele e pensei: "Este aqui veio mandado por outrem. Ele é muito esperto e muito experiente
da vida e eu tenho que me mostrar em relação a ele esperto e experiente
também. Eu não vou fazer o papel de bobo e perguntar quem o mandou falar
comigo. Ele vai me dar a entender aos poucos. Vou conversar com ele em
português claro”.
E então respondi:
— Padre Dainese, eu vou
ser franco com o senhor. A situação é esta assim, assim. É uma doutrina
errada, é uma corrente errada. Eles pretendem destruir toda a autoridade
eclesiástica, pretendem destruir a moral tradicional da Igreja, pretendem
destruir as devoções tradicionais e colocar uma outra religião no lugar da
primeira. É uma religião toda feita de pagodeiras, de concessões ao
espírito do mundo. Em última análise, é uma religião que reproduz o
modernismo condenado por São Pio X. Eu me sinto profundamente chocado com
o que estou vendo e luto contra isso. Pode ser que eu seja esmagado nessa
luta, mas eu lutarei até o fim, porque essa é uma luta pela Igreja
Católica.
Ele foi ouvindo tudo e depois
me disse:
— É, eu dou toda razão ao
senhor. O senhor merece verdadeiramente apoio. O senhor nunca procurou
informar ninguém?
Eu disse:
— Padre Dainese, moro em
São Paulo e tenho pouca oportunidade de ir ao Rio. O meu informante
natural seria o Núncio Apostólico, a quem eu dirigiria minhas informações.
Mas falta-me quem sirva de instrumento de ligação junto ao Núncio.
— Algo eu posso fazer.
— Então, Padre, eu poderia
fazer para o senhor um relatório?
— Pois não. Então o senhor
faça assim [89].
Mais adiante, ele solta uma frase: “O Senhor
Núncio, um dia, depois de confessar-se comigo, disse-me tal coisa”.
Evidentemente ele não disse nada do segredo de
confissão, mas deixava entendido que era confessor do Núncio.
A certa altura ele se levanta e se despede: “Então, Dr. Plinio, até logo.” [90]
* *
*
Não preciso dizer que logo na manhã seguinte procurei
o Cônego Mayer e comentei o assunto com ele. Cônego Mayer então me
explicou que ele era um jesuíta de alta categoria, homem tido como muito
inteligente [91].
A partir dessa conversa, até o momento em que o Dom
Carmelo foi nomeado Arcebispo de São Paulo, e mesmo depois, eu pude contar
com o apoio decisivo do Padre Dainese [92].
2. Relatório e encontro com o Núncio
Eu então fiz o relatório.
Alguns dias depois esse relatório estava seguindo para o Rio [93],
por intermédio de meu bom e distinto amigo, Padre Dainese [94].
Passou-se algum tempo e certo dia vem um recado do
Padre Dainese.
— Olha, aquele senhor
gostaria de conversar consigo.
— Quando?
— Ele passa esta semana
toda aqui no Rio. O senhor pode vir quando quiser.
Foi aí que conheci
pessoalmente o Núncio e a Nunciatura.
* *
*
|
Dom Bento Aloisi Masella |
O Núncio, Dom Bento Aloisi Masella [95],
foi um dos homens mais interessantes que eu tenha conhecido em minha vida.
Naquele tempo ele teria seus sessenta e poucos anos.
De família nobre da Itália, ele era sobrinho de outro
Cardeal Aloisi Masella que tinha sido um grande teólogo.
Claro, corado, de altura mediana, com um rosto um
pouco quadrado, os traços muito regulares, cabelos já brancos, atitudes
muito distintas e sumamente reservado [96].
Era um aristocrata e um prelado da Igreja tradicional na força do termo,
muito bom diplomata e muito relacionado na alta sociedade do Rio de
Janeiro [97].
Eu fui apresentado a ele pelo
Padre Dainese, numa sala de visitas grande,
toda dourada, com mosaicos, toda arranjada à maneira de palácio.
Ele entrou muito jovial, muito amável, deu-me o anel
para beijar e depois me disse: “Venha, venha”.
E me fez entrar para uma segunda sala de visitas
menor, também bem arranjada, mas feita evidentemente para confidências.
Sentou-se no sofá e perguntou-me:
— Caro Doutor, o que o
senhor tem para me dizer?
Eu então desfilei diante de
seus olhos toda a situação como eu a via.
Ele me ouviu impassível
durante o tempo inteiro. A fisionomia dele não mudou nada. Nem um gesto de
aprovação, nem de desaprovação. Um diplomata perfeito.
Ele me tinha posto numa
atitude de confiança, e eu disse a ele tudo o que tinha de dizer.
Ele não quis revelar o juízo dele. Mas no fim me
disse:
— É, precisamos rezar
muito. O senhor reze muito, eu vou rezar muito também.
Mas o que os lábios não
diziam, o olhar dizia. E o olhar era sumamente complacente, sumamente
amável, dando a entender que ele atuaria.
Volto para São Paulo. E
segue-se uma série de novos encontros com o Padre Dainese, novas
informações, que depois iam, naturalmente, para a Nunciatura.
De repente chega-nos a
notícia de que Dom José estava manobrando para tirar o Cônego Mayer do
cargo de Assistente Geral da Ação Católica [98].
O Vigário Geral da Arquidiocese, Monsenhor Ernesto de
Paula, que aliás era muito simpático a nós, havia sido convidado para
Bispo de Jacarezinho (depois tornou-se Bispo de Piracicaba). E Dom José
planejava elevar, no lugar de Dom Ernesto, o Cônego Mayer a Vigário Geral,
para assim retirar dele o cargo de Assistente Geral da Ação Católica.
Dom José evidentemente pretendia colocar no lugar do
Cônego Mayer um padre litúrgico. E assim eu, como presidente da Junta,
teria de acabar me demitindo. O Cônego Mayer ficaria pairando nas nuvens,
despachando papéis, e a Ação Católica tomaria um outro rumo [99].
Telefonei então ao Padre
Dainese, contei para ele o caso, e ele me disse:
— Está bem, vamos ver o
que se pode fazer.
4. Padre Dainese e o Núncio intervêm
Estava eu dando aula na
Faculdade Sedes Sapientiae, quando uma freira veio me dizer que
havia um padre do Rio querendo falar comigo com muita urgência.
Eu fui voando ao telefone, e ele, sem dizer o nome:
— Como vai passando?
Eu vi bem que ele não queria que se mencionasse o
nome dele. E eu respondi:
— Bem, e o senhor, como
está?
— Bem. Olhe aqui, se o seu
amigo receber um convite para ser promovido, diga a ele que não recuse.
Não recuse!
— Pode estar certo que eu
digo para não recusar [100].
Custei para conseguir dar o resto da aula. Terminada
esta, fui e contei para o Cônego Mayer o telefonema. Ele também ficou com
uma interrogação na cabeça.
* *
*
Dias depois sai a nomeação de Dom Ernesto de Paula
como Bispo. E, logo em seguida, o Arcebispo convida o Cônego Mayer para
Vigário Geral [101].
Mas mesmo assim o Cônego Mayer aceita o convite.
Soubemos que, logo em seguida à nomeação, o Núncio
escreveu um cartão a Dom José, dizendo mais ou menos o seguinte: “Felicito-o pela escolha de seu excelente Vigário Geral, mas não dispense
os serviços dele na Ação Católica, tão preciosa é a sua colaboração”.
O Cônego Mayer acumulou, deste modo, o cargo de
Vigário Geral e o de Assistente Geral da Ação Católica. E a tentativa de
Dom José de afastar o Cônego Mayer da direção da Ação Católica ficou
frustrada [102].
Criou-se assim uma situação difícil para Dom José: o
Cônego Mayer estava sustentado como Assistente Geral da Ação Católica pelo
Núncio. Como demiti-lo, sem pedir licença ao Núncio? E se o Núncio não
desse licença, no que ficava? [103]
Foi um serviço inestimável que o Padre Dainese
prestou naquela ocasião em favor da boa causa [104].
5. Fato muito significativo: a Carta Apostólica “Com singular
complacência”
Dois meses depois, no dia 21 de janeiro de 1942, Pio
XII dirigiu ao Cardeal Leme a Carta Apostólica Com singular
complacência da qual fizemos um exame atento e meticuloso.
Preliminarmente, é digno de nota que o Sumo Pontífice
tenha tratado um problema de envergadura mundial, qual seja o da situação
jurídica das Congregações Marianas nos quadros do apostolado leigo depois
da fundação dos atuais organismos da Ação Católica, por meio de um
documento dirigido ao Cardeal-Arcebispo do Rio de Janeiro.
O Santo Padre poderia exprimir-se pela voz autorizada
de seu Secretário de Estado. Preferiu, entretanto, honrar o movimento
mariano do Brasil, dirigindo-se pessoalmente e em português - o texto
oficial é em nosso idioma - ao Cardeal Dom Sebastião Leme.
Quis o Santo Padre mencionar nominalmente a
Confederação Nacional das Congregações Marianas no Brasil, e seu “dileto filho César Dainese, da Companhia de Jesus”.
Maior ainda foi Sua satisfação “ao saber que as
valorosas Falanges Marianas são cooperadoras eficazes na propagação do
Reino de Jesus Cristo e que exercem um fecundo apostolado, por meio de
múltiplas e variadas obras de zelo”. O Pontífice se rejubila com a
magnitude desse papel, e acrescenta a expressão de seu grande
contentamento pelo fato de que elas “ocupam um lugar conspícuo, segundo
está informado, no trabalho e na luta para a maior glória de Deus e bem
das almas, e que são, como força espiritual, de grande importância para a
causa católica no Brasil”.
Que informações teve o Sumo Pontífice para chegar a
tal afirmação?
Foram as mais autorizadas e imparciais, e é Ele mesmo
quem no-lo diz: “com tanto entusiasmo, publicamente o tem manifestado
em repetidas ocasiões, dileto Filho Nosso, bem como também o tem feito
outros Veneráveis Irmãos no Episcopado” [105].
Logo que este documento chegou às mãos do Cardeal
Leme, este resolveu dá-lo à publicidade em uma Concentração Mariana que
dentro em breve se iria realizar. Mas ao mesmo tempo recomendou aos padres
jesuítas que, eles mesmos, falassem o menos possível sobre a Carta
Apostólica.
Assim, os padres jesuítas emudeceram.
Mas em São Paulo, o
Legionário consagrou à
Carta Apostólica uma série de artigos claros e precisos.
Salvo o Legionário, ninguém mais tratou do
assunto [106].
1. Eventos do ano de 1940 a 1942
Em 1940 houve a chegada do Padre Mariaux a São Paulo.
Em 1941 foi a nomeação do Cônego Mayer para Vigário
Geral. E também o ano em que comecei a escrever o meu livro
Em defesa
da Ação Católica.
Passamos agora para 1942, ano do IV Congresso
Eucarístico Nacional, realizado entre os dias 4 a 7 de setembro aqui em
São Paulo.
O Congresso teve muita solenidade. E um brilho
extraordinário*.
* No dia de seu
encerramento, o Vale do Anhangabaú estava tomado por uma multidão de mais
de 500 mil pessoas, vindas do Brasil inteiro.
O Presidente da República não estava presente, mas
havia altas autoridades na tribuna: [107]
o Interventor Federal (equivaleria ao governador do Estado, hoje); membros
do governo e das Forças Armadas; o Arcebispo Dom José Gaspar, o Núncio
Apostólico Dom Bento Aloisi Masella, que como Legado do Papa tinha honras
especialíssimas [108].
2. Tensões e triunfo: discurso no Vale do Anhangabaú
Durante esse Congresso, deram-se fatos que mostram
bem a tensão em que nós estávamos.
Dom José convidou-me para ser o orador da 3ª sessão
solene no Parque do Anhangabaú. E eu devia, a pedido dele, fazer a
saudação às autoridades, mesmo sabendo que eu era antigetulista.
Antes do evento, Dom José mandou dizer que não queria
que nenhum orador improvisasse, e que todos pusessem seus discursos por
escrito para ele ver.
Escrevi então o meu discurso e mandei para ele.
Quando à noite chego para falar, Dom José se aproxima
de mim muito amável e diz:
— Dr. Plinio, há um ressentimento muito grave de
diversos Ministros de Estado contra o Congresso Eucarístico, porque
ninguém até agora fez elogio do Doutor Getúlio (ele gostava muito do
Getúlio). E eu queria pedir ao senhor para fazer uma homenagem calorosa
ao Doutor Getúlio Vargas, e exprimir toda a simpatia pelo apoio que ele
tem dado ao Congresso.
Então eu disse a ele:
— Mas, Senhor Arcebispo, V. Excia. me manda
alterar o meu discurso agora, diante de todo este mundo? V. Excia. calcule
essas 500 mil pessoas aqui e outras milhares de pessoas ouvindo pela
rádio. E eu vou improvisar um discurso assim?
Ele ainda me pediu uma outra coisa:
— Como o Doutor Getúlio (ele dizia sempre
“Doutor” Getúlio) sofreu um acidente na estrada de Petrópolis e está
com uma das pernas encanadas, exprima também toda a nossa alegria pelo
fato do restabelecimento dele.
E depois acrescentou:
— Ademais, Dr. Plinio, eu queria lhe fazer outra
recomendação. Como mandei falar alguns oradores fora do programa, eu quero
que o senhor faça um discurso bem rápido: uns 10 minutos no máximo.
O único orador dessa noite que iria falar só 10
minutos seria eu. Eu lhe respondi:
— Senhor Arcebispo, eu calculei o meu discurso
para muito pouco tempo: quinze minutos no máximo.
— É, mas aquele seu discurso está muito longo. O
senhor abrevie esse discurso de qualquer maneira.
De fato o meu discurso não estava muito longo. Eu
disse:
— Bem, Senhor Arcebispo, eu vou fazer o que for
possível, mas eu não lhe garanto o que conseguirei fazer.
* *
*
|
O Exmo. Dom
John Mark Gannon, representante do Episcopado norte-americano,
discursa observado por Plinio Corrêa de Oliveira |
Nessa mesma noite deveria falar o Tristão, depois eu,
e por fim o Bispo de Erie, Pensilvânia, Dom John Mark Gannon, que não dizia uma palavra em português.
Ficou ele, Dom José Gaspar, numa mesa com as
autoridades, e eu na mesa dos oradores. Nessa mesa dos oradores, o Bispo
de Erie ficou no meio, eu à esquerda e o Tristão à direita. E eu com
cara amarrada.
O Tristão então passou a mão por detrás do Bispo e me
perguntou:
— O que é que você tem?
— O que tenho é que Dom José fez assim, assim e
assim comigo, e isto é uma coisa que não se faz.
Diz o Tristão:
— Mas, não tem nada. Você se arranja de qualquer
jeito e às vezes esses improvisos saem melhores.
Eu insisti:
— Mas isto é uma falta de consideração dele.
* *
*
|
Plinio
Corrêa de Oliveira discursa na sessão de encerramento |
Chegou a minha vez de falar.
O locutor anunciou e eu fui e fiz exatamente o
discurso que eu tinha redigido, que levou no máximo uns 10 minutos. E
arranjei um jeito, sem me comprometer em nada, de me referir ao Getúlio de
modo totalmente impessoal [109].
O discurso não teve um elogio sequer ao Getúlio. Eu
insinuei que ele tinha em torno de si uma equipe de propaganda do outro
mundo. E que à glória de ter essa propaganda se juntava uma outra glória,
que era a unanimidade dos brasileiros no que diz respeito à luta contra o
estrangeiro*. Mais nada [110].
* Esse “elogio” ao
Getúlio limitou-se às seguintes palavras:
“Poucas vezes,
no curso da História Brasileira, se tem erguido em torno de uma figura
concerto tão generalizado de louvores e admiração, do que em torno de S.
Excia., o Sr. Presidente da República, Dr. Getúlio Vargas.
“Será supérfluo
neste momento acrescentarmos a tantos louros, mais um. A situação de
beligerância em que nos encontramos [contra as nações do Eixo], fez
erguer-se em torno de S. Excia. todos os brasileiros de todos os
quadrantes geográficos e ideológicos do País. Esse apoio unânime ao
governo de S. Excia. é hoje um imperativo patriótico, em cujo cumprimento
os católicos reclamam para si a primeira linha, no terreno do devotamento
e da disciplina.
“Mas há uma
afirmação sobremaneira importante a fazer aqui. Mil e mil vezes têm sido
ditos a S. Excia. os motivos pessoais que em torno de sua figura têm
congregado tanta solidariedade.
“É preciso que o
intérprete da opinião católica afirme que a disciplina dos católicos ao
Poder Temporal firma suas raízes mais no fundo, e que, abstração feita das
considerações de ordem pessoal, sua obediência aos poderes públicos se
baseia na convicção de que obedecem assim a vontade do próprio Deus,
conhecida pela luz da razão natural e pelos esplendores da revelação
cristã.
“Católicos, não
somos nem podemos ser partidários da doutrina da soberania popular, e por
isto mesmo recusamo-nos a ver a augusta autoridade do Poder Temporal
firmada sobre a areia, movediça entre todas, da popularidade. Ela se crava
na rocha firme de nossas consciências cristãs” (cfr.
O Legionário,
n° 525, de 7/9/42).
O que me salvou foi que o representante do Getúlio,
Fernando Costa (era o Interventor em São Paulo), ficou literalmente
maravilhado com o discurso. Ele acompanhava com os olhos encantados. Uma
vez até interrompeu puxando as palmas [111].
E os outros políticos, vendo o Interventor contente, mostraram-se
contentes também.
O Legado Papal, Cardeal Masella, permaneceu
impassível. E Dom José Gaspar, vendo o efeito do discurso, ficou um pouco
mais serenado [112].
* *
*
Quando acabou o discurso, passei em frente do
Interventor, Fernando Costa e fiz uma inclinação diante dele, como fazem
os oradores. Ele então se levantou para me abraçar. Eu o abracei também.
Dom José estava bem longe, por causa do protocolo,
mas quis também entrar na onda, sorrindo para mim [113].
Embaixo o povo começou a aplaudir, gritando: “Plinio! Plinio!”
Dom José ficou vendo que a posição verdadeiramente
popular era a antigetulista, porque eu tinha feito um discurso que, sem
falar mal do Getúlio, não falava nada de bem dele. Naquele tempo já era
uma prova clara de antigetulismo [114].
Logo que eu me sentei, o Tristão me disse por detrás
do Bispo de Erie: “Seu improviso foi bem bonzinho [115].
Sabe que até elegância tinha o seu discurso?” [116]
3. “No meu Estado você seria preso”
No fim da sessão, ao descer as escadas do palanque,
encontrei-me [117]
lado a lado com Agamenon Magalhães, que era interventor federal em
Pernambuco, e que tinha sido meu colega na Constituinte [118].
Cumprimentamo-nos, ele me pegou por dentro do braço e
descemos juntos. E ele me disse, com aquela voz um pouco cantante do
pernambucano [119]:
— Plinio, Plinio, ainda bem que você fez esse
discurso em São Paulo e não em Pernambuco.
— Por que, Agamenon?
— Porque eu, em Pernambuco, mandava pôr você na
cadeia [120].
Quer dizer, ele tinha sentido até onde ia o discurso.
Eu me dava muito com ele e respondi: [121]
— Não sou bobo, sei onde falo. Por causa disto eu
não aceitaria o convite para falar em Pernambuco.
Ele me deu uns tapinhas nas costas e nos despedimos.
Com isso, acabou sendo que a noite foi de vitória
para a Contra-Revolução [122].
E foi uma ovação como talvez eu nunca tenha recebido em minha vida! [123]
* *
*
Dias depois, o Conde Ernesto Pereira Carneiro [124]
me convida para um almoço no Hotel Esplanada, em São Paulo.
Cheguei lá pensando que fosse um almoço para muitas
pessoas, mas era apenas numa salinha interna do Hotel.
Estavam ali para almoçar também Mateus Pereira
Carneiro (aparentado com familiares meus), Dom Aquino Corrêa (Arcebispo de
Cuiabá), Dom José Gaspar e eu.
Nem Dom José esperava me encontrar ali, nem eu a ele.
Mas durante o almoço conversei normalmente com ele.
Na saída, ele me pegou pelo braço e disse:
— Meu Presidente da Junta Arquidiocesana ainda
está muito zangado comigo?
Respondi:
— Não, Senhor Arcebispo. A gente se esquece de
tudo com o tempo.
Ele “mineirou” [125]
em cima do assunto e o incidente do Congresso Eucarístico se deu por
encerrado.
Mas esse incidente mostrava bem como, por detrás da
amabilidade, a tensão era grande. E o livro Em Defesa da Ação
Católica nem estava ainda publicado... [126]
1. Reviravolta em nossa história
Na avaliação de nosso passado, julgo importante ter
em mente as circunstâncias que determinaram o golpe desferido no
progressismo nascente pelo livro Em Defesa da Ação Católica.
Esse golpe representou um
tournant, uma
reviravolta em toda a nossa história.
Essa reviravolta foi marcada por uma voluntária
renúncia a uma situação de fastígio dentro dos meios católicos
brasileiros, em vista de um interesse maior da Igreja.
A Ação Católica era a tubulação por meio da qual os
erros que denunciei estavam penetrando na Igreja. Era de fato a Igreja que
estava em jogo [127].
2.
Desprevenção dos católicos face à
inoculação do erro
Eu notava que a corrente progressista ia crescendo
cada vez mais em São Paulo e no Brasil, penetrava nos seminários, tomava
influência no Clero, entrava, enfim, como uma torrente por todos os lados [128].
Era uma infiltração gradual, poderosa, mas ao mesmo
tempo muito prudente.
Os meios católicos tradicionais eram muito mais
numerosos do que hoje, mas ingênuos, e não tinham — diferentemente de hoje
— nenhuma prática da luta interna no seio da Igreja. Por causa disso,
estavam a léguas de admitir que um Bispo pudesse favorecer idéias erradas,
ou que essas idéias fossem pregadas por um eclesiástico.
Essa idéia era tão arraigada que, anos depois, certo
católico veio falar comigo e me disse: “Para mim, é obrigação do
católico ‘sentire cum Ecclesia’, ou seja, sentir com a Igreja. E isso quer
dizer ‘sentire’ com o Romano Pontífice, ‘sentire’ com o Bispo, ‘sentire’
com o pároco, ‘sentire’ até com o sacristão”.
Para se ter o sacristão como padrão de ordenação do
próprio pensamento, vê-se até que ponto chegava essa idéia errada de
disciplina.
A batalha não era, portanto, da maioria tradicional
contra a minoria nova, mas a batalha da penetração velada de uma minoria
nova nos meios tradicionais, mudando-lhes gradualmente as idéias.
3. Um sacrifício aceito de antemão
Ora, como eles eram muito ingênuos, era necessário
que alguém assumisse a tarefa de lhes abrir os olhos, denunciar a
infiltração. Também que estivesse disposto a sofrer as perseguições, as
calúnias, as detrações que viessem, e ser esmagado se fosse necessário,
mas jogar-se como um kamikaze contra os infiltrantes.
Eu via perfeitamente que, se eu fizesse isto, ficaria
criado um caso e a maioria ingênua ficaria de pé atrás com essa
infiltração. E se eu não fizesse essa denúncia, a maioria ingênua se
deixaria dominar completamente.
Portanto, era preciso preparar uma denúncia
monumental [129].
Fiz então o seguinte cálculo:
— Vou escrever um livro denunciando toda essa
doutrina [130].
Criado o escândalo, muitos ficarão
atemorizados. Não aderirão a nós, mas também não aderirão a eles. Ficarão
com uma interrogação na cabeça. A minha posição de líder católico vai ser
arrasada. Mas é melhor eu começar o fogo e iniciar a batalha enquanto
ainda tenho soldados, do que iniciar o fogo no momento em que tudo em
torno de mim estiver gangrenado [131].
Eu me dava bem conta, portanto, de que o livro iria
produzir um estouro do outro mundo e que era uma obra, como disse, de kamikaze: eu iria destruir o adversário, mas eu também iria me
destruir.
Era portanto uma auto-imolação [132].
Mas ao menos a prevenção contra o progressismo, que viria em decorrência
desse gesto, haveria de brecar o ímpeto da infiltração na Ação Católica [133].
4. Preparando o livro e prevenindo os companheiros para o contragolpe
que viria
Comecei a escrever o livro em 1941. Mas só em 1942
ele ficou pronto.
Primeiramente, mandei vir uma coleção de documentos
pontifícios publicados pela editora francesa Bonne Presse, desde
Leão XIII até Pio XI inclusive (era Pio XII o Papa reinante) [134]
para estudar. Tive de ler também muitas publicações da corrente
progressista [135].
Isso tudo me tomou meses, e o
fiz no maior segredo. Depois, no livro, eu
citei mais de quatrocentos documentos pontifícios para mostrar os erros
daquela corrente.
Para escrever o livro, resolvi passar um mês em
Santos [136].
Toda a vida tive uma letra muito feia e também não
conseguia escrever por muito tempo. Precisava levar, portanto, alguém a
quem eu ditasse.
Convidei o Dr. José Carlos Castilho de Andrade [137],
pois a praia naquela época permanecia deserta, não havia o inconveniente
moral de hoje [138].
Castilho se hospedou no Hotel Atlântico e eu no Hotel
Santos.
E então ditei ao Dr. Castilho o Em Defesa da Ação
Católica, anotado por ele com aquela correção, aquela paciência,
aquela meticulosidade, aquela sobriedade de atitudes que todos os que
conviveram com ele conhecem [139].
* *
*
A luta foi
particularmente árdua em vista de nosso intuito de tentar extinguir o mal,
mas de forma a causar o mínimo possível de ressentimentos e de divisão nos
meios católicos.
Para isto era preciso
conduzir o combate na ordem das idéias, poupando as pessoas tanto quanto
possível. E só mencionando os opositores que tivessem matéria publicada
sobre o assunto.
Se tivesse descido ao plano concreto em meu livro,
indicando nomes e lugares, acusar-me-iam, na época, de “falta de
caridade”... [140]
* *
*
Eu também precisava prevenir os mais chegados a mim
de que a casa poderia cair, para que eles soubessem se proteger contra os
escombros que viessem por cima deles, e assim permanecessem firmes.
Era um susto para eles: a casa vai cair! E era
preciso incutir nos meus companheiros a idéia da conspiração que estava
sendo feita. E conspiração de homens de altar, o que há dois anos antes
seria uma “blasfêmia” imaginar.
Não havia clima, por exemplo, para se fazer uma
reunião geral. Era preciso conversar com cada um. Levou tempo até que
todos se dessem conta da situação [141].
Então, tive de desenvolver um triplo trabalho ao
mesmo tempo: ler os documentos pontifícios para embasar o livro; ir
colhendo os fatos que comprovassem os erros denunciados; e por fim ir
conversando com os mais íntimos, para mostrar-lhes que nos sacrossantos
meios católicos, na Cidade de Deus, na Santa Igreja Católica, haviam
penetrado os erros progressistas.
Alguns dos meus primeiros irmãos no Movimento
Católico tiveram medo e fugiram, se dispersaram.
|
"...um
punhado permaneceu fiel. E esse punhado viria a ser de futuro a
semente do grupo de Catolicismo e posteriormente
da TFP..." |
Mas um punhado permaneceu fiel. E esse punhado viria
a ser de futuro a semente do grupo de Catolicismo e posteriormente
da TFP [142].
5. Revisão e a necessidade de um prefácio
do Núncio
Quando terminei o livro,
procurei os sacerdotes com quem eu podia contar: Cônego Mayer, Padre
Sigaud e três jesuítas: o Padre Walter Mariaux (que, como disse, eu
conhecera durante essa batalha), o Padre César Dainese e o padre Louis
Riou, provincial dos jesuítas em São Paulo.
Ao Cônego Mayer e ao Padre Sigaud eu disse:
— Aqui está esse livro. Os senhores querem fazer o
favor de ler e opinar se pode sair?
Terminada a revisão de ambos [143],
mandei uma cópia ao Padre Dainese:
— Padre Dainese, estou com vontade de publicar
este livro, o senhor veja o que acha.
Tempos depois, o livro me volta do Rio de Janeiro,
restituído por ele [144].
Folheei um pouco e encontrei, escrito numa tira de
papel comprido, creio que à tinta: “Livro admiravelmente exato quanto à
doutrina, muitíssimo original mesmo em questões muito debatidas e
maravilhosamente oportuno, providencial, atualíssimo”, mas sem dizer
de que livro se tratava [145].
Marquei então um encontro com
o Padre Dainese e disse a ele:
— Padre Dainese, eu não tenho a menor ilusão de
que este livro vai ser uma explosão, e que com essa explosão eu me
liquido. Eu estou disposto a essa liquidação, desde que ele saia em
condições de representar uma bomba para o progressismo. Eu me liquidar em
vão, não. Portanto, este livro só sairá se tiver um prefácio do Núncio
Apostólico. Com isto eu publico o livro. Sem isto o livro não sai.
— Bem, eu vou falar [146].
O resultado foi que pouco depois seguia uma carta
minha ao Sr. Núncio oficializando o pedido de prefácio*.
* A carta era
datada de 4 de agosto de 1942.
6. Frieza de Dom Pedrosa e Dom Teodoro Kok
Levado pelo desejo de proceder em tudo com cortesia,
eu mostrei o livro também a Dom Pedrosa e a Dom Teodoro Kok, para
opinarem.
Algum tempo depois, Dom Teodoro me telefona:
— Sabe, lemos o seu livro e estamos prontos a
opinar. Como Monsenhor Mayer é Vigário Geral, Dom Pedrosa declarou que ele
prefere tratar do assunto na casa do Vigário Geral. Então manda propor um
encontro em casa de Monsenhor Mayer entre nós dois, Monsenhor Mayer e
você.
No encontro, os dois foram amáveis, mas frios.
Notava-se, entretanto, que estavam uma pilha de nervos, sobretudo Dom
Pedrosa...
A certa altura Dom Pedrosa disse com fisionomia
mortificada:
— Bem, eu li o livro, aqui está.
Eu: “O senhor teria alguma ponderação a fazer?”
Resposta de Dom Pedrosa: “Não teria nada de
especial a dizer”.
Dom Pedrosa, dirigindo-se a Monsenhor Mayer: “Monsenhor leu, não, Monsenhor?”
Diz Monsenhor Mayer: “Li”.
Dom Pedrosa: “É, Monsenhor, com certeza está bem”.
Eu disse: “Teria algum ponto que o senhor gostaria
que eu alterasse?”
Dom Pedrosa: “Bem, digamos, tal ponto e tal
ponto”.
Eram dois ou três pontos sem importância, pequenas
correções de forma que não atendiam à doutrina. Eu logo concordei.
Dom Pedrosa por fim pegou o livro, colocou-o em cima
de uma mesinha e disse: “Bem, então está tratado o nosso assunto”.
Como Monsenhor Mayer era o dono da casa, eu voltei
meus olhos para Dom Mayer, pois não competia a mim continuar uma visita em
casa de outro.
Monsenhor Mayer, sempre muito positivo, categórico e
belicoso, respondeu: “Está bem!”
Os dois se levantaram, despediram-se e estava acabado [147].
Eu quis mencionar a participação deles no livro, e
mostrar a cordialidade com que eu os tratava, para se compreender a
gravidade das acusações feitas por eles pouco tempo depois [148].
Era visível que o livro os tinha desagradado no mais
alto grau, mas que não tinham nenhuma objeção a fazer. Ficou visível
também que eu estava combatendo contra uma doutrina disposta a não
discutir e a não se mostrar.
Foi nessa ocasião que acabei percebendo o quanto Dom
Pedrosa estava comprometido com a nova corrente, e que não sairia mais
dessa orientação [149].
7. Carta e entrevista com Dom José e pedido de “imprimatur”
Uma coisa que também pensei: “Eu não posso
publicar este livro como presidente da Junta Arquidiocesana da Ação
Católica sem consultar o Arcebispo. Nós vamos ao Arcebispo” [150].
Na segunda-feira à tarde (21/12/42), enviei-lhe o
trabalho, juntamente com uma carta em que lhe dava uma explicação sobre as
minhas intenções e pontos de vista ao elaborar a obra [151].
O livro estava num desses classificadores de tamanho
enorme, porque um livro de 400 páginas enche um classificador [152].
* *
*
Naquele mesmo dia o Sr. Arcebispo foi à chácara que
ele possuía em Santo Amaro e leu o livro, ao menos em parte [153].
Certa pessoa que servia o Arcebispo, e que se sentia
escandalizada com o que ouvia sobre toda a espécie de trama e conspiração
que estava sendo feita no sentido do liturgicismo, contou-me que Dom José
passou a noite em claro, andando muito. De manhã, ele encontrou o
classificador aberto, com anotações nas 20 ou 30 primeiras páginas [154].
* *
*
No dia seguinte (portanto na terça-feira, 22 de
dezembro), Dom José chamou-me com insistência ao Palácio São Luís,
procurando-me com açodamento em vários lugares [155].
Ele me recebeu mais amável do que nunca [156].
Muito gentil, pegou o classificador com o livro e disse: [157]
— Que livro enorme, hein? Quanta dedicação
escrever um livro tão grande! [158]
Mas notei que ele estava vermelho [159].
Ainda com fisionomia muito prazenteira, disse-me de
modo mais ou menos vago que aprovava o esforço que eu tinha desenvolvido
em confeccionar o trabalho. Mas não fez um só elogio ao livro, nem por
amabilidade.
E logo abriu o “jogo”.
Disse que lera os dois primeiros capítulos do livro,
aproveitando uma noite de insônia que tivera. E que desde já me deveria
declarar que era muito ocupado, e não poderia lê-lo senão muito devagar,
pelo que inevitavelmente deveria ser grande a demora na saída do livro.
Ademais, ele não achava clara a exposição da parte
que leu. As frases eram muito grandes, contendo “muitas idéias”, o
que tornava muito complexa a leitura. Seria preciso portanto “arejar”
o livro, alterando-lhe a redação. E que ele conhecia “um doutor”
que poderia se encarregar disso. Não gostaria eu de dar o livro ao Dr.?
Ele mesmo gostaria de me auxiliar, mas estava ocupadíssimo.
Outra coisa: ele havia notado no livro algumas
repetições e certos conceitos eram objeto de muita insistência. Para que,
por exemplo, insistir tanto sobre o fato de que há erros na Ação Católica?
Respondi ao Sr. Arcebispo que reconhecia que minhas
frases tinham o defeito de ser muito grandes. Entretanto, eu não precisava
do “doutor” conhecido dele para as reduzir. Pediria isto a um amigo,
Pacheco Sales.
Diante dessa resposta, o Sr. Arcebispo ficou
contrafeito, e me disse que ele mesmo, então, indicaria as frases que era
necessário “desbastar”. Iria lendo “lentamente” o livro, e,
à medida que fosse lendo, me enviaria as páginas tendo entre parênteses o
que não deveria sair.
Ficava evidentíssimo que os pretextos literários
encobriam simplesmente o intuito de tornar o livro tão inócuo quanto
possível. E a atitude dele punha em risco de morte o livro.
Respondi-lhe a tudo com muita cordialidade,
dizendo-lhe que agradecia a cooperação que ele iria me prestar [160].
Eu ainda disse que queria que
o livro saísse sob o meu título de presidente da Junta da Ação Católica, e
assinando-o como tal.
Ele, muito amável, disse: “Está bem”.
* *
*
Tal era o poder de sedução dele, que eu saí do
Palácio alegre [161],
sem perceber a cilada em que caíra. Saí pela rua São Luís em direção à rua
da Consolação, e quando transpus a grade do Palácio, parece que a ação de
presença dele se desfez.
E eu pensei: “Meu Deus! Estou liquidado. Este
negócio nunca mais sai”.
8. Perplexidade: intervenção do Núncio desencalha o livro
|
Prefácio no
Núncio D. Bento A. Masella |
Tomado de perplexidade, escrevi uma carta ao Padre
Dainese com o pedido de que transmitisse ao Núncio as dificuldades que
estava havendo*.
* A carta ao Padre Dainese era datada de 23 de dezembro de 1942. No dia seguinte, 24 de
dezembro, Dr. Plinio escreveu diretamente ao próprio Núncio, relatando-lhe
com luxo de detalhes os termos da conversa mantida com Dom José, e
solicitando uma intervenção para resolver o impasse.
Dias depois chegava ao Palácio São Luís uma
comunicação da Nunciatura mandando o Arcebispo entregar o livro para ser
publicado tal como estava.
O Arcebispo então chamou Monsenhor Mayer e disse:
— Mayer, eu estive vendo este livro. Vamos mandar
publicá-lo. Você leu o livro?
— Li sim, Senhor Arcebispo.
— Bem, se você leu, dê você o imprimatur.
— Pois não.
Monsenhor Mayer então bateu o imprimatur: “De mandato Ecmi. ac Revmi.
DD. Archiepiscopi
Metropolitani. — Monsenhor Antonio de Castro Mayer, Vicarius Generalis.”
*.
* Traduzindo para o
português: "Por mandato do Exmo. e Revmo. DD. Arcebispo Metropolitano —
Monsenhor Antonio de Castro Mayer, Vigário Geral". O imprimatur
vem datado de 25 de março de 1943, festa da Anunciação de Nossa Senhora.
Passados alguns dias, chegou-me o prefácio do Núncio.
Vinha também datado de 25 de março de 1943.
Tomei o prefácio [162],
tirei uma cópia e tranquei-o na minha melhor gaveta [163].
9. “Em Defesa da Ação Católica” vai para a
gráfica
Com o prefácio do Núncio e o
imprimatur de Dom
Mayer, mandei o livro para a tipografia Ave Maria [164]
dos padres da igreja do Coração de Maria [165].
Vinte dias ou um mês depois, não posso me lembrar, a tipografia entregava
os primeiros exemplares [166].
Era uma edição de 2500 exemplares, insignificante
hoje, mas não para aquele tempo. Além do mais, eu queria que o livro só
circulasse nos meios católicos, para não desedificar os meios não
católicos [167].
A edição custou 5 contos de réis. Naquele tempo era
muito dinheiro. E era também o único dinheiro que eu tinha depositado em
banco. Não tinha mais.
O doloroso é que eu era responsável pela subsistência
de meus pais já velhos. Uma doença que houvesse, eu não teria recursos
para resolver a situação. Mas confiei em Nossa Senhora e paguei o livro [168].
10. Lançamento da “bomba” e difusão
Bem, eu estava prevendo que o
livro iria ocasionar uma confusão, uma desordem, um desconcerto nos meios
contaminados pelos erros nele denunciados. E tinha nossos pequenos
dispositivos preparados para o combate [169].
* *
*
Nisto ocorreu um fato escandaloso que tornou o
ambiente mais favorável ao lançamento de meu livro.
Um dos padres de Taubaté, que depois se tornou
apóstata, Carlos Ortiz, escreveu na Ordem, revista do Tristão de
Athayde, um artigo com uma série de inconvenientes de caráter doutrinário.
Diante disso, Monsenhor Rosalvo Costa Rego, eleito
Vigário Capitular pela morte de Dom Sebastião Leme, depois Arcebispo
Auxiliar do Rio, publicou em 1943 algumas Instruções condenando
indiretamente o artigo e dizendo que Dom Leme, antes de morrer, estava
muito aborrecido com essas tendências litúrgicas*.
*Essas Instruções, dadas a lume dia 21 de maio de 1943, foram publicadas na
íntegra no Legionário n° 564, de 30 de maio de 1943. Nelas lemos:
"Estas
lamentáveis confusões e outras temerárias asserções, que não raramente se
ouvem acerca da Sagrada Liturgia, muito e muito preocuparam o espírito do
nosso falecido Cardeal".
Era mais um escândalo público dessa corrente contra a
qual nós nos opúnhamos [170].
O que facilitou a receptividade ao livro.
* *
*
Mandei o livro, antes, para os amigos. E escrevi uma
carta para cerca de vinte Arcebispos e Bispos, também amigos meus,
acompanhada do livro com uma dedicatória.
De todos recebi respostas boas, algumas até
calorosas, entusiásticas, manifestando todo apoio [171].
De algumas dessas cartas, eu tive de suprimir certas
expressões que teria sido imprudente publicar. Por exemplo, Dom João
Batista Muniz, um redentorista, Bispo da Barra, na Bahia, dizia que eu
denunciara um protestantismo em estado larvar, que ele já observara
grassando em Juiz de Fora. Por respeito ao Sr. Bispo de Juiz de Fora — de
quem eu recebi depois uma injúria grave — não publiquei esse comentário [172].
Depois de receber essas cartas, soltei a bomba!
Primeiro, o Legionário publicou uma notícia
dizendo que iria sair o livro Em Defesa da Ação Católica, com
prefácio do Exmo. Revmo. Senhor Dom Bento Aloisi Masella, Núncio
Apostólico no Brasil, e com imprimatur, da parte do Arcebispo
Metropolitano, de Monsenhor Castro Mayer. E também com cartas de aprovação
dos senhores Arcebispos e Bispos tais e tais [173].
Procuramos então as principais livrarias católicas de
São Paulo, pois naquela época livro católico só se vendia em livraria
católica. E livraria católica só vendia livro católico. Os livreiros em
geral pertenciam ao Movimento Católico. E o livro foi posto à venda em
várias delas [174].
Isto foi em junho de 1943.
Todo esse mundo católico se
atirou em cima do livro [175].
Repercutiu nos meios católicos do Brasil inteiro. Foi uma verdadeira
bomba! [176]
Mandei o Em Defesa em encadernação especial,
com dedicatória, a Dom José Gaspar. Também mandei ao Tristão de Athayde e
a uma série de outras pessoas do Movimento Católico. E o correio levou a
bomba por toda a parte [177].
Um belo dia, para um lindo automóvel em frente à
minha casa e entrega uma carta do Arcebispo [178]
agradecendo o exemplar encadernado, e fazendo votos de que na Arquidiocese
houvesse uma unidade de espírito como a já reluzente entre os primeiros
cristãos*[179].
*A carta do Sr.
Arcebispo vinha datada de 25 de junho de 1943 e afirmava que “nada
tenho mais a peito do que fazer de todos os meus caríssimos diocesanos um
só coração e uma só alma, porquanto assim se tornariam a ver, na
arquidiocese de São Paulo, aquelas maravilhas de caridade e prodígios de
santidade, que os primeiros cristãos, consoante refere o Livro dos Atos
dos Apóstolos, exibiam aos olhos atônitos dos pagãos”. E acrescenta:
“E não será este apostolado de concórdia e amor fraterno o que devemos
exercer, num mundo trabalhado pelos maus fermentos do paganismo?”.
Terminava dando a
entender que não lera a obra: “Vou ler atentamente o seu livro, prezado
Dr. Plinio, na medida em que os meus muitos e graves encargos do
ministério pastoral me facultarem algum vagar”.
Em notas pessoais
(certamente do 2° semestre de 1943), Dr. Plinio registrava os “rumores
entre pessoas chegadas a S. Excia., que declaram o aborrecimento do mesmo
com a difusão do livro”. A Monsenhor Mayer, em reunião na Cúria,
diante dos Vigários Gerais, o Arcebispo disse que o livro fora escrito com
períodos longos, o que “é pena, porque senão ele poderia fazer muito
bem”.
11. Primeiras reações contrárias
Aí comecei a receber repercussões do lado contrário
ao livro.
Tristão de Athayde escreveu-me uma carta em que ele
se queixava amargamente, dizendo que no meu livro, sob o aspecto de
defender a Ação Católica, eu fazia denúncias injustificadas a
personalidades respeitáveis. Que ele lamentava que eu desse o meu nome a
essa campanha indigna que estava sendo feita. E cortamos relações.
A última vez que nos vimos foi em 1955, por ocasião
do 36° Congresso Eucarístico Internacional que houve no Rio.
Encontramo-nos casualmente no corredor do Palácio São Joaquim, depois de
anos de relações rompidas.
Ele foi muito amável:
— Oh! Plinio, como vai você?
— Dr. Alceu, o senhor como está?
Quase não paramos para nos falar. Apertamos as mãos e
depois disso, até a morte dele, não nos vimos mais. Acabaram-se as
relações [180].
Também Dom Cabral e outros começaram a dizer que o
livro deveria se chamar “Indefesa Ação Católica” [181].
A reação contrária teve três etapas. Ela fracassou na
primeira, e novamente fracassou na segunda. Porém alcançou pleno êxito na
terceira. Vejamos cada uma delas.
12. Ameaças de condenação que não vieram
A primeira etapa foi a das ameaças.
Lembro-me ainda que, de volta de uma viagem a Minas,
meu então jovem amigo José de Azeredo Santos (que seria depois tão
conhecido como polemista de indomável coerência) nos informou bem humorado
e divertido:
— Estive com Frei BC, que me disse estar
constituída uma comissão de teólogos para refutar o livro do Plinio. ‘Ele
se arrependerá’ — disse Frei BC — ‘de o ter publicado’.
Resolvemos esperar a refutação. Até hoje ela não
veio.
* *
*
Também penso, escrevendo estas linhas, em um cartão
de uma muito ilustre e respeitável personalidade. Dizia o missivista que
agradecia o oferecimento do livro e que em breve denunciaria de público os
erros nele contidos. Nada se publicou [182].
Excetuou-se a tentativa de réplica explícita do Bispo
de Uberaba, Dom Alexandre do Amaral. Com ela não estive de acordo. Mas
agradou-me a franqueza com que, de viseira erguida, ele afirmou o que lhe
parecia bem [183].
13. Zum-zum que também fracassa
Fracassadas as ameaças de refutação, veio a fase do
zum-zum.
O livro continha erros. Até numerosos erros. Não se
dizia quais eram. Mas que os havia, havia. Já não se falava de refutação.
Era somente a reafirmação insistente da mesma acusação imprecisa: “há
erros, há erros, há erros”.
Pobre
Em Defesa da Ação Católica: dele tudo se
disse. Ora se afirmou que era obra de sapateiro trabalhando fora de seu
mister: livro de leigo, que supunha conhecimentos de Teologia e Direito
Canônico.
Ora, para melhor combater o livro, se afirmava que um
leigo jamais teria conseguido escrever tal trabalho. E então se lhe fazia
a honra de atribuir como autor, ora a Monsenhor Mayer, ora ao Padre
Sigaud*[184].
* Em Belo
Horizonte, chegou-se até o baixo recurso da calúnia. De lá, o Padre Dainese escreveu a Dr. Plinio contando:
“O livro suscitou por aqui uma
grande celeuma: espalham até o boato de que o autor ‘foi’ católico mas que
agora é um simples ‘apóstata’, que não freqüenta mais a religião etc....”
(cfr. carta do Padre Dainese a Dr. Plinio, de 9 de julho de 1943).
* *
*
Houve uma
coincidência desagradável que contribuiu para azedar o ambiente.
|
Dom Antônio
dos Santos Cabral, Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte |
Quando publiquei o
Em Defesa, eu ignorava
completamente que Dom Cabral, Arcebispo de Belo Horizonte, havia preparado
uma Carta Pastoral sustentando exatamente o contrário do meu livro [185],
por ocasião do 25º aniversário de sua sagração episcopal. Era uma Pastoral
ousadíssima, em que ele defendia com calor a maior parte dos erros
existentes em matéria de Ação Católica [186].
Essa Pastoral saiu a lume mais ou menos concomitante
com o lançamento do Em Defesa*.
* O fato deixou Dom
Cabral exacerbado e fora de si, conforme contou o Padre Dainese, então
residente em Belo Horizonte, em carta de 3 de novembro de 1943 a Monsenhor
Mayer:
“No dia 21 de
outubro p.p., fui chamado a palácio pelo Sr. Arcebispo [Dom Cabral].
Entre outras coisas falou-me S. Excia. do livro do Dr. Plinio Corrêa de
Oliveira, ‘Em Defesa da Ação Católica’. A respeito desta obra exprimiu-se
o Sr. Arcebispo em termos de franca censura e oposição, salientando os
pontos seguintes: 1°) o livro do Dr. Plinio é um livro ‘negativo’:
prejudica a A.C. em lugar de favorecê-la ou defendê-la. [...] 2°) É
portanto um livro contraproducente: é como se alguém escrevesse um livro
em defesa do sacerdócio, pondo em realce suas dificuldades, as misérias e
os escândalos dos maus padres... 3°) A propósito da afirmação de Pio XI de
que o apostolado da A.C. faz parte do próprio ministério sacerdotal, diz
S. Excia. que encontrou cinco textos em que o Papa reafirma esta sua
asserção. Ora o Dr. Plinio sustenta que o Papa não pode entender esta
participação no sentido estrito porque seria heresia. Donde o Sr.
Arcebispo conclui que praticamente o Dr. Plinio qualifica de herética uma
afirmação do Papa. 4°) Disse também o Sr. Arcebispo que o Dr. Plinio,
sendo um simples leigo, não pode arvorar-se em juiz e censor dos Srs.
Bispos, nem da A.C. que está sob a imediata vigilância do Episcopado. 5°)
Afirmou finalmente S. Excia. que o Dr. Plinio fez uma lista de Bispos
‘hereges’, na qual incluiu o nome do Sr. Arcebispo de Belo Horizonte. [...]
“O livro do Dr.
Plinio suscitou aqui, como V. Revma. deve saber, uma verdadeira celeuma,
com escândalo de muitas almas: pois que de um lado o livro foi
praticamente banido do Seminário e da A.C. (a Presidente da J.F.C. chegou
a telefonar a todas as dirigentes proibindo-lhes a leitura do livro), e do
outro é um livro que se apresenta sob a égide e com aprovação do
representante do Papa no Brasil”.
* *
*
Amainada a
segunda etapa do zum-zum, deram-se os acontecimentos que marcaram a
terceira etapa, esta sim, profundamente prejudicial a nós. É a que narro a
seguir.
1. Antecedentes
Havia sido criado um setor da Ação Católica, que era
a JUC — Juventude Universitária Católica. Foi, aliás, o primeiro setor da
Ação Católica em São Paulo, fundado ainda quando Dom José era Bispo
Auxiliar.
O cargo de assistente eclesiástico foi entregue a Dom
Pedrosa. E, indicado por mim, teve como presidente primeiramente José
Pedro Galvão de Sousa e depois Franco Montoro. O vice-presidente era Paulo
Barros de Ulhôa Cintra.
De nosso grupo faziam parte da JUC, além de Paulo
Barros, José Fernando de Camargo, José Gustavo de Souza Queiroz e outros.
Acontece que, como já disse, Dom Pedrosa tinha uma
orientação profundamente oposta à nossa, mas ele não a revelava
claramente. Houve atritos entre ele e nós durante todo o tempo em que ele
foi assistente eclesiástico da JUC.
É preciso dizer que eu estimava sinceramente Dom
Pedrosa e sempre o tratei com a maior consideração com que se possa tratar
uma pessoa.
Como presidente da Ação Católica, nunca publiquei um
ato sem antes levar ao conhecimento dele e perguntar o que achava. Agia
assim por deferência, sem ter a mínima obrigação de fazê-lo, pois ele era
assistente eclesiástico de um setor e eu era presidente da Junta
Arquidiocesana.
Lembro-me de que, quando os mal-entendidos entre ele
e eu estavam muito grandes e com algumas intrigas pelo meio, combinei com
Dom Pedrosa e com Dom Teodoro Kok que nunca um de nós tomaria qualquer
atitude em desabono do outro, sem antes avisar e procurar ver se o
mal-entendido não poderia ser desfeito.
Foi o que me levou, por exemplo, a pedir a ambos que
opinassem, como já mencionei, sobre o livro Em Defesa, antes de
publicá-lo.
2. Confidências numa viagem a Campinas
Um dia, como eu ia a Campinas fazer uma conferência
para os salesianos, pedi a Dom Pedrosa para levar junto Dom Teodoro Kok.
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Legionário
Nº 149, 8 de julho de 1934 - Svend Kok entra para a Ordem dos
beneditinos a 10 de julho |
Na viagem, conversamos como antigos amigos e
companheiros da Congregação de Santa Cecília sobre a situação toda,
baseado na amizade que ele continuava a me demonstrar, e também baseado no
fato de que ele me contou vários abusos litúrgicos que havia observado no
Colégio Santo Anselmo de Roma, onde ele havia feito os seus estudos.
Então contei a ele várias das minhas impressões e
mesmo alguns fatos relativos ao andamento do liturgicismo aqui no Brasil,
e referi-me ao apoio que Dom José vinha dando a essa corrente.
Chegamos a Campinas, fiz a conferência e pernoitamos
naquela cidade. Na manhã seguinte, encontrei Svend Kok e perguntei
maquinalmente como passara a noite.
Ele respondeu:
— Eu não consegui dormir depois do que você me
contou! Fiquei tão impressionado com a situação, que custei a conciliar o
sono. Então, haverá nos dias de hoje um Bispo capaz de ter uma doutrina
oposta ao Papa? Isto é uma coisa que me deixa arrasado, eu não posso
compreender isto.
Ele dizia isto não como quem objetava contra mim, mas
como uma pessoa que deplorava a situação.
Falamos um pouco mais sobre isto e voltamos de trem
para São Paulo, conversando sobre outras coisas*.
* O Cônego Mayer,
em carta ao Sr. Núncio (em 12/5/45), acrescenta que Dr. Plinio havia
falado a respeito do mesmo problema com Dom Pedrosa, ao tentar alertá-lo
para a má influência exercida pelo Padre Ramón Ortiz. Eis o trecho da
carta:
"Não ignora
Vossa Excelência todo o apoio que o Sr. Arcebispo dá ao Padre Ramón Ortiz,
e aos demais padres de Taubaté. Esses sacerdotes desenvolvem um movimento
incessante em prol do liturgicismo, procurando penetrar em todos os
ambientes católicos. Ultimamente, o Padre Ramón tem adquirido grande
ascendente no espírito do Revmo. Dom Paulo Pedrosa, que o tem levado a
Itanhaem fazer férias com os jovens universitários. O mesmo Dom Paulo já
convidou para idêntica excursão o Revmo. Padre Calazans, e também já
encarregou de um retiro na JUC o Padre Carlos Ortiz.
"O Dr. Plinio
sempre foi muitíssimo amigo de Dom Paulo Pedrosa, bem como de Dom Teodoro Kok. Por este motivo, procurou explicar a ambos os inconvenientes do
convívio de tais padres com os universitários. Evidentemente, o argumento
dos dois Monges foi de que, se tais padres fossem perigosos, o Sr.
Arcebispo não os apoiaria. E o Dr. Plinio, então, no mais estrito sigilo,
abriu-se com aqueles dois sacerdotes sobre o Sr. Arcebispo. Ambos - e
especialmente Dom Paulo - são muito confiantes. Assustaram-se com a
afirmação de que o Sr. Arcebispo não desconhece os erros daqueles padres e
os apóia" (carta do Cônego Mayer ao Sr. Núncio, de 12/5/45).
3. Estouro na reunião do Clero
Pouco depois realizou-se, sob a presidência do
Arcebispo Dom José Gaspar, uma Semana de Estudos de Ação Católica
para o Clero regular e secular de São Paulo, no térreo do prédio vizinho à
igreja da Ordem Terceira de São Francisco. Estavam presentes os Vigários
Gerais, todo o Clero e muitos padres de fora da Arquidiocese [187].
Esta semana de estudos do Clero realizou-se no
próprio momento em que o meu livro e a Pastoral de Dom Cabral faziam todo
o barulho: a polêmica estava no ar em virtude da efervescência dos dois
documentos.
Na primeira sessão, a Pastoral de Dom Cabral havia
sido colocada anonimamente na sala de reuniões. Quando os padres entraram,
viram-na em cada cadeira.
Qual não foi a minha surpresa quando eu soube que, no
segundo dia desse evento, Dom Teodoro Kok se levantou e, sem citar nomes,
mas numa alusão translúcida a nós, fez um discurso denunciando-nos como
conspiradores contra Dom José Gaspar.
Afirmou ele que se tratava de membros de projeção da
Ação Católica, portanto pessoas de confiança de Dom José Gaspar, os quais
diziam que [188]
há Bispos que têm doutrinas erradas em matéria de Ação Católica:
— Eu nem vou dizer os nomes dos Bispos que eles
indicam, porque causaria neste ambiente um verdadeiro horror. Mas venho
fazer aqui um protesto contra a insolência desses elementos, que se
atrevem a imaginar que um Bispo católico possa cair em erro em matéria de
doutrina [189].
São pessoas que julgam tudo por seus próprios conceitos, e isto é uma
falta de humildade.
E reafirmava: "Acusarem um Bispo de erros em
matéria de doutrina... onde já se viu isto.":
Terminado o discurso de Dom Teodoro Kok, foi um
escândalo na sala, uma coisa tremenda, pois naquele tempo dava-se como
certo que um Bispo não podia errar...
Dom José sabia de antemão que esse golpe ia ser dado.
Ele estava presidindo à sessão e assistindo à explosão, combinada antes
com ele, como depois ficou evidente pelo desenrolar dos fatos. À direita
dele estava Monsenhor Mayer como vítima, porque indubitavelmente falar de
nós era falar de Monsenhor Mayer.
Mas então Monsenhor Mayer se levantou e disse:
— Temos que salvar os princípios. Dom Teodoro
afirmou que um Bispo nunca pode cair em erro de doutrina. Ora, esta sala
está cheia de pessoas que estudaram Teologia, e todos sabem que um Bispo
pode cair em erro. E este princípio precisa ser salvo aqui dentro. Nós não
podemos aceitar a doutrina da infalibilidade dos Bispos.
Dom Teodoro havia também afirmado que um leigo nunca
poderia criticar um Bispo. E Monsenhor Mayer rebateu:
— Eu discordo. Há casos em que um leigo pode e até
deve criticar um Bispo. E isto, em boa doutrina, é preciso sustentar.
Com a grande autoridade de teólogo que ele tinha, foi
tal o impacto, e estabeleceu-se uma tal confusão, que Monsenhor Mayer saiu
mais simpatizado do que nunca da sessão, embora as opiniões fossem muito
contrárias a mim pessoalmente e aos demais membros da Junta Arquidiocesana
da Ação Católica.
Aí os senhores podem ver o Dom Mayer inteiro dos bons
tempos: lealdade, coragem, inteligência, e entrando inteiro dentro da
luta. Era Daniel na cova e puxando o bigode do leão.
Dom José não esperava aquela intervenção de Monsenhor
Mayer e encerrou a sessão com palavras muito anódinas.
4. Monsenhor Mayer exige ver antes o novo discurso de Dom Teodoro Kok
Dom Teodoro havia anunciado que continuaria a falar
no dia seguinte.
Terminada a sessão, Monsenhor Mayer desceu do
estrado, dirigiu-se a Dom Teodoro e disse:
— Teodoro, o senhor amanhã, se falar de novo, tem
que me mostrar o seu discurso, porque o senhor não é homem que possa falar
sem que se veja antes o que o senhor vai dizer.
Dom Teodoro gaguejou, ficou lívido.
Monsenhor Mayer teve ainda a audácia de dizer a Dom
José que ele tinha proibido Dom Teodoro de fazer seu novo discurso sem que
ele visse antes.
5. “Golpe profundamente nocivo para nós”
Ficamos sabendo depois, através de uma pessoa das
cercanias do Arcebispo, o que se passou no Palácio naquele dia, após a
reunião.
Dom José havia chegado muito preocupado. Chamou o
Padre Ramón Ortiz, que tinha estado presente e assistido à cena. E os dois
passearam nervosamente pelos jardins do Palácio durante bastante tempo.
Logo depois do almoço, Dom José saiu.
A atmosfera era contrafeita dentro do Palácio. Eles
não ficaram contentes com o resultado do golpe dado. Mas esse golpe foi
profundamente nocivo para nós.
* *
*
Dom Teodoro acabou por enviar o discurso dele a
Monsenhor Mayer. E na sessão seguinte ele leu o texto aprovado pelo
Monsenhor Mayer. Era um discurso anódino.
Dom Mayer e Dom José não comentaram entre si o
incidente. Trocaram alguns comentários sobre outros pontos, o que era como
que não comentar. Ficou assim no ar e o incidente foi dado como encerrado.
1. Retração e gelo
Aí começaram as represálias.
Eu tinha sido convidado para fazer um discurso em
Campinas. Dias depois recebo uma carta do Bispo de lá comunicando que esse
discurso estava adiado sine die.
Começo a notar, desde esse dia, vários padres mudarem
completamente a sua atitude a meu respeito. Em praticamente todo o meio
eclesiástico de São Paulo, isto é, entre os padres (no laicato isso não
repercutiu), minha cotação, se antes era 80, desceu para 8 ou menos que 8.
Foi uma baixa vertiginosa [190].
Um certo número de Bispos que havia apoiado o livro
Em Defesa da Ação Católica, vendo que os Bispos novos e influentes
se voltavam contra nós, foram também tirando o corpo [191].
* *
*
Houve belas exceções.
O Provincial dos jesuítas, Padre Louis Riou, tomou
uma atitude decididamente favorável ao livro. E evidentemente uma parte
dos jesuítas continuou absolutamente na mesma conosco.
Muitos outros, entretanto, foram contra, e boa parte
deles afastou-se de mim. E ficou criada entre os jesuítas uma situação de
polêmica.
Especialmente continuaram a me apoiar, além do Padre
Riou, o Padre Dainese, o Padre Arlindo Vieira e em alguma medida o Padre
José Achótegui. A atitude do Padre Mariaux, que também me apoiou,
constitui um capítulo à parte, de que vamos falar depois [192].
Um bom número de Bispos e também de sacerdotes de São
Paulo e do interior do Brasil ficaram de nosso lado.
Permaneceram também conosco, obviamente, os
componentes do grupo do Legionário e os dois sacerdotes que depois
se tornariam Bispos: o então simples padre secular Monsenhor Antonio de
Castro Mayer, e o jovem sacerdote mineiro da congregação do Verbo Divino,
Padre Geraldo de Proença Sigaud [193].
2. Difamação e palavra de ordem
A partir desse momento, houve uma alteração na
situação de nosso grupo, já prevista de antemão: antigamente estava no
candelabro e agora era posto debaixo do alqueire, quer dizer, numa
situação muito cruel [194].
Eu tinha na época 35 anos [195].
Soprou uma onda de difamação
tremenda contra mim em toda a Arquidiocese de São Paulo e nos meios
católicos de todo o Brasil.
Ninguém mais me convidava para nada. Fui
completamente posto à margem, como um exilado. Em 20 dias, a minha
situação mudou inteiramente, como, aliás, repito, eu havia previsto [196].
Baixou uma ordem extra-oficial de não mais me
convidarem para falar em nenhuma, mas absolutamente nenhuma reunião
católica. Sendo que antes eu era um dos oradores mais convidados para toda
espécie de discurso em São Paulo, e muito frequentemente em outras
cidades.
Tão verdadeiro era isto, na situação anterior ao
ostracismo, que a Folha de S. Paulo fez a certa altura uma pesquisa
para saber qual era o orador mais apreciado em São Paulo, numa lista de
cinco ou dez nomes. Publicados os resultados, o segundo orador escolhido
da lista de São Paulo era eu.
Não se passa da condição de segundo orador de São
Paulo para a de um homem que nunca mais é convidado para falar em público
em eventos católicos, sem uma enérgica palavra de ordem.
E essa palavra de ordem foi cumprida ao pé da letra e
em todos os pormenores, exceto em duas ou três ocasiões em que fui
convidado para falar em cerimônias da Universidade Católica e aceitei. Mas
aí a situação era diferente: o convite não dependia de ordens secretas da
Cúria, por ser a Universidade uma entidade autônoma.
Duas ou três vezes também fui escolhido paraninfo e
aí a Cúria não tinha o direito de proibir. Aceitei essas minúsculas
possibilidades de atuação para que não se pudesse dizer que eu fiz o papel
de émigré à l‘interieur [197].
Pelo contrário, tomei parte naquilo que me pediram, e o que eu não fiz
foi porque não me pediram [198].
Esses convites indicavam uma popularidade
“subcinerícia”. “Cinerício” vem de cinis, cineris, em latim,
cinza. Subcinerício é aquilo que fica por debaixo das cinzas [199].
E esta situação perdura até hoje [200].
* *
*
Uma exceção nessa época foi a cidade de Santos.
Havia ali um amigo nosso, Reinaldo Cruz, católico
militante, que se aproximara de nós mais ou menos nesse período de
ostracismo.
Ele era um fogosíssimo entusiasta de nossas
atividades e um propagandista de primeira ordem. Muito amigo do Dr.
Antonio Ablas Filho, que era nosso representante em Santos. E promoveu
naquela cidade uma série de conferências minhas que lotavam literalmente
um salão muito grande que havia no centro da cidade, da Humanitária [201].
Todos os jornais de Santos davam depois a notícia.
Ele me convidava também para ir falar na rádio (não
havia TV naquele tempo).
O Bispo de Santos, Dom Idílio José Soares, ia sempre
às conferências, e foi sempre muito amável. Várias vezes fui visitá-lo
para agradecer essa atenção.
Era uma situação paradoxal: nós afundando de todos os
lados em São Paulo, e com uma popularidade extraordinária em Santos! [202]
Eu tinha ido passar alguns dias de descanso, junto
com o grupo do Legionário, numa fazenda muito agradável dos
jesuítas em Itaici, a mesma onde se realizam hoje, num prédio enorme
construído posteriormente, as reuniões do Episcopado nacional *.
* Naquele tempo, Itaici, no município de Indaiatuba-SP, era ainda uma velha fazenda que
havia pertencido a Jorge Tibiriçá Piratininga, governador do Estado de São
Paulo e avô de Dr. Eduardo de Barros Brotero, futuro membro do grupo de Catolicismo e um dos fundadores da TFP.
Estávamos andando no parque, quando [203]
recebo um telefonema de Monsenhor Mayer avisando-me que tinha recebido uma
carta de Dom José comunicando que, quando o nosso mandato terminasse, ele
queria que saíssemos da direção da Ação Católica [204].
4. Pressão econômica
Chegou-me, pouco depois, uma outra comunicação.
Eu era advogado da Cúria desde o tempo de Dom Duarte,
mantendo com ela dois contratos de serviços advocatícios.
E Dom José, através de Monsenhor Consentino,
mandou-me o seguinte recado:
— O Senhor Arcebispo pede
para avisar a Dr. Plinio que ele será advogado da Cúria apenas até o fim
do mês. No fim do mês, lhe serão tirados os serviços [205].
* *
*
Pouco depois, outra medida, desta vez indireta:
inexplicavelmente saiu um decreto do governo do Estado — estávamos em
regime de ditadura — fechando o Colégio Universitário onde eu era
catedrático vitalício.
Depois eu soube que o decreto de fechamento fora
pedido por Dom José Gaspar ao governador Ademar de Barros, de quem ele era
muito amigo.
O decreto determinava que o Colégio se dissolvesse,
podendo seus professores serem aproveitados em cadeiras de colégios de
cursos secundários na capital ou no interior. Se não quisessem aceitar
isto, seriam aposentados com vencimentos proporcionais.
Como eu era professor novo, optar pela aposentadoria
significaria receber a terça parte dos vencimentos. Assim, eu era
praticamente jogado na miséria com essas duas providências* [206].
* Posta essa
situação, Dr. Plinio teve de ir lecionar no Colégio Estadual Presidente
Roosevelt, situado na rua São Joaquim, no bairro da Liberdade, em São
Paulo. Ali foi objeto de grande apreço por parte dos alunos. Os alunos de
uma das turmas que, por razões administrativas, deveriam não mais ter
aulas com Dr. Plinio, chegaram a promover um
abaixo-assinado para que ele
continuasse a lecionar para a turma.
Note-se que o homem que agia assim (Dom José Gaspar)
pregava a tolerância e a bondade para com todos os inimigos da Igreja,
levadas a um grau inimaginável... [207]
5. Boicote do livro nas livrarias
Enquanto isto, o livro Em Defesa pipocava no
ambiente católico, estourando de todo o jeito. Mas de repente os membros
do grupo do Legionário encarregados da distribuição às livrarias
começam a me comunicar que crescia o número de livrarias que se recusavam
a continuar a venda, alegando tratar-se de um livro de oposição ao
Arcebispo.
Apenas a Livraria Catedral continuou a
vendê-lo. Eu não conhecia o dono, mas mandei felicitações a ele, dizendo
que eu apreciava a sua coragem. Este senhor, até o fim, enquanto houve
leitores em São Paulo para o livro, ele o vendeu [208].
1. Morte completamente inesperada
Eu estava muito preocupado
com essa situação toda quando, durante uma aula no Colégio Roosevelt, sou
chamado ao telefone. Disseram-me tratar-se de um assunto urgentíssimo.
Era o José N. César Lessa, redator do Legionário,
que com uma voz cava me disse [209]:
— Plinio, eu queria lhe
avisar que está correndo o boato de que o avião que levava Dom José Gaspar
ao Rio de Janeiro caiu e ele morreu. Morreram também o Cásper Libero,
Monsenhor Alberto Pequeno, o Padre Nelson Vieira, secretário dele e toda a
tripulação *.
* Em meio a densa
cerração, o piloto da VASP havia feito uma primeira tentativa de pouso sem
resultado, e na segunda bateu com a asa direita em um dos prédios da
Escola Naval situado na Ilha de Villegaignon, contígua ao Aeroporto de
Santos Dumont. Três passageiros foram resgatados com vida pelos cadetes da
Marinha e as restantes 18 pessoas morreram no desastre. O desastre ocorreu
às 9:05 horas do dia 27 de agosto de 1943 (cfr. Legionário n° 577,
de 29 de agosto de 1943).
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Noticiário
sobre o acidente que vitimou D. José Gaspar na Folha da Manhã de 28
de agosto de 1943 |
Fiquei muito espantado [210].
Esse desastre de avião era uma coisa com a qual ninguém contava [211].
Voltei para dar aula, mas
aquela impressão diante do meu espírito se tornou tão clamorosa, que
interrompi a aula.
Tomei um automóvel e, ao passar em frente à agência
da Vasp, de longe vi uma aglomeração diante da vitrine.
Cheguei perto e encontrei um aviso: “Temos o pesar
de informar que faleceram Dom José Gaspar, o senhor Cásper Líbero e outras
pessoas.”
Parei um minutinho, olhei e mandei o automóvel tocar
para o [212]
meu escritório de advogado, no centro da cidade. Fechei as portas e
deitei-me um pouco no sofá. Eu estava muito emocionado e, pela única vez
em minha vida, tomei um calmante chamado Água das Carmelitas [213].
2. Premonição dessa morte prematura
Uma das razões pelas quais fiquei impressionado [214]
foi por ter-me lembrado de uma cena ocorrida algum tempo antes com o
Arcebispo.
Numa solenidade na Cúria, [215]
estávamos os dois em pé, o Arcebispo e eu, conversando sobre assuntos do
Movimento Católico. Ele se referiu a uma coisa qualquer e depois, não sei
por que, disse-me o seguinte: “Nos poucos anos de vida que me restam,
ainda conto fazer tal coisa”.
Quando falou isto, ele, que estava casualmente
olhando para o chão, levantou os olhos e olhou no fundo de meus olhos.
Nossos olhares se cruzaram. E percebi perfeitamente que ele tinha razão e
iria viver pouco tempo [216].
* *
*
Apesar de todas as desavenças, prestei a ele todas as
honras fúnebres que deveria prestar. E ainda fizemos um número especial do
Legionário em sua homenagem [217].
3. A morte o colhe em plena campanha contra nós
Depois da morte de Dom José, soubemos que ele estava
de tal maneira empenhado na luta contra nós, e posto numa campanha tão
formidável nesse sentido, que ele havia programado uma visita a todos os
Bispos da Província Eclesiástica de São Paulo, com o intuito específico de
recomendar que não nos convidassem para nada e nos mantivessem no
ostracismo mais completo.
Soubemos também que ele estava indo ao Rio de Janeiro
para levar à Nunciatura documentos contra nós e tentar nos demolir junto
ao Núncio.
Foi encontrado até um caderninho, que um sacerdote
amigo nosso chegou a ler, com a agenda dos encontros que ele deveria
manter naqueles dias no Rio. Eram quase todos amigos nossos daquela
cidade.
* *
*
Nessa campanha contra nós, ele havia tido um
desaponto.
Ele passara uma circular aos seus colegas de
Episcopado comunicando que eu tinha deixado a Presidência da Junta
Arquidiocesana da Ação Católica.
Os Bispos mandaram uma resposta muito corriqueira e
inteiramente burocrática, agradecendo a comunicação, quando ele esperava
perguntas: “Por que? Mande informações”. E alguns Bispos, com quem
ele foi falar, receberam mal a visita.
O velho Bispo de Ribeirão Preto, Dom Alberto José
Gonçalves, chegou a dizer a ele:
— Senhor Arcebispo, V. Excia. é moço e eu sou
velho. Cuidado! O caminho da heresia é o que V. Excia. está seguindo.
O Bispo Auxiliar, Dom Manuel da Silveira d‘Elboux,
também disse a Dom José coisas muito pesadas.
Numa visita a Dom Cintra [218],
na época Reitor do Seminário e mais tarde Bispo de Petrópolis, Dom José
perguntou:
— Cintra, você também é dos que acham que eu sou
herege?
Dom Cintra respondeu:
— Senhor Arcebispo, eu não acho que V. Excia. seja
herege, mas acho que V. Excia. protege os hereges, e que infelizmente a
sua atitude não é boa.
Falando depois a meu respeito para Dom Cintra, ele
disse: “O Plinio não tem mais razão de ser nesta vida. A única solução
para ele é morrer”.
* *
*
Tudo isto mostrava bem que nós, apesar de
precipitados de uma situação brilhante, tínhamos deixado muitas
consciências alertadas.
Portanto, dentro de nossas desgraças, havíamos feito,
até certo ponto, o papel de Sansão. A coluna estava derrubada [219].
E o nosso cadáver, atravessado na estrada, impedia o inimigo de continuar.
Quer dizer, o sacrifício tinha sido útil [220].
4. O dom de romper as estagnações, quebrar as indiferenças e mover as
águas paradas
Lá pelo fim da década de 1940, quando as devastações
produzidas contra nós em conseqüência do lance do Em Defesa estavam
no auge, por essas ou aquelas circunstâncias fortuitas, a Universidade
Católica de Porto Alegre convidou-me para fazer uma conferência.
Fui recebido gelidamente pelo Arcebispo Dom Vicente
Scherer [221],
mas com muito interesse pelos jesuítas de lá.
Ao que parece, esses jesuítas estavam naquele momento
numa tensão interna, e eram pertencentes à ala da Companhia de Jesus que
me tinha dado apoio.
Por causa disso, conseguiram que eu fosse convidado
para fazer conferência em São Leopoldo, que dista cerca de uma hora de
Porto Alegre e onde há um grande seminário jesuíta.
* *
*
Em São Leopoldo havia um sacerdote jesuíta chamado
Cândido Santini, que publicara um livro com críticas à Ação Católica.
Por causa dessas críticas, a Ação Católica promoveu
um rumor contra esse Padre, que foi posto de lado e transferido para o
Seminário Central de São Leopoldo, onde ficou professor.
Por uma conjunção de horários, antes ou depois da
conferência, não me lembro bem, os padres me convidaram para um lanche.
Eles me levaram ao refeitório, onde encontrei o Padre Cândido Santini.
Não nos conhecíamos. Mas cumprimentei-o muito
cordialmente, como se cumprimenta uma pessoa que está na mesma ordem de
idéias. E sentamo-nos.
|
Pe. João
Baptista Reus S.J. |
Aproveitando alguns instantes em que estávamos sós no
refeitório, o Padre Santini, talvez por se sentir não observado, me disse
à queima-roupa: “O senhor tem o dom de romper as estagnações, quebrar
as indiferenças e mover as águas paradas”.
Mas ele disse isto como uma pessoa que estava numa
situação muito desagradável, perseguido, oprimido, e que tinha
oportunidade de fazer um desabafo com alguém capaz de compreendê-lo, e que
só tinha oportunidade de dizer aquelas palavras entre a saída de um padre
e a entrada de outro. E disse isto visivelmente com a intenção de me
animar.
* *
*
Morou e morreu neste mesmo seminário o Padre Reus [222],
que não conheci pessoalmente, mas foi meu contemporâneo.
Esse Padre Reus era muito mais velho do que eu. Só um
pouco antes de sua morte é que me falaram dele. Após sua morte,
mostraram-me a sua fotografia. Ou eu me engano enormemente, ou esse padre
foi um grande santo.
Na minha caixa de relíquias, eu tenho uma relíquia
indireta dele, um pano que o tocou. Eu osculo metodicamente cada uma das
relíquias que tenho diariamente, e quando chega a vez da do Padre Reus, eu
osculo com uma particular piedade.
A sua sepultura no cemitério de São Leopoldo é
visitada continuamente por pessoas que depositam flores e pedem graças [223].
Não há gente nossa que vá ao Rio Grande do Sul que eu não recomende de ir
à sepultura dele [224].
Após a morte de Dom José Gaspar, estava vaga a
Arquidiocese. E foi eleito Vigário Capitular [225]
o Monsenhor José Maria Monteiro.
O Cônego Mayer foi convidado por Monsenhor José para
ser pró-Vigário Geral e pediu a ele para continuar como assistente
eclesiástico da Junta da Ação Católica. E autorizou-o a nos manter na
Junta Arquidiocesana até que viesse o novo Arcebispo.
Com isto diminuíram também as oposições que se faziam
a nós [226].
Eu não perdi os meus serviços advocatícios na Cúria,
e nós tivemos assim alguns meses de tranquilidade [227].
A situação se prolongou ad interim, e durante
esse tempo o meu livro continuou a sair e a polêmica em torno da Ação
Católica a ferver.
2. Polêmica a respeito de Maritain
O Legionário já tinha, ainda no tempo de Dom
José, iniciado uma polêmica a respeito de Maritain que ele continuou
durante a vacância da sede [228].
|
Jacques
Maritain |
Os livros de Maritain tiveram entre nós a mais ampla
divulgação, trazendo consigo a aceitação entusiástica, por parte de seus
adeptos, de seus principais erros: jesuitofobia, separação entre a Igreja
e o Estado, concepção interconfessional e laica da “nova cristandade”,
socialismo, “politique de la main tendue” (política da mão
estendida) etc.
Era fácil perceber que os erros referentes à Ação
Católica e à liturgia preparavam os espíritos para receber muitas das
teses de Maritain, como a jesuitofobia e o interconfessionalismo. E a
tendência ao panteísmo favorecia uma inclinação para o socialismo e o
comunismo* [229].
* O primeiro artigo
dessa polêmica foi publicado no n° 586 (31/10/43), e tinha como título A doutrina de Jacques Maritain e os documentos pontifícios. Era de
autoria do Padre Arlindo Vieira S.J., e analisava os vários conceitos
expostos por Maritain em sua obra Les Droits de l’homme.
Padre Arlindo
Vieira tecia um paralelo entre as teses heterodoxas do escritor francês e
as doutrinas ensinadas por Pio IX, Leão XIII e São Pio X, apontando a
inegável oposição entre o que apregoava Maritain sobre o papel da Igreja e
do Estado no mundo contemporâneo e o que a esse respeito ensinava o
magistério infalível da mesma Igreja.
Como era de se
prever, o artigo suscitou numerosas objeções. Pouquíssimas versavam sobre
o mérito da questão. A imensa maioria delas ficava nas preliminares: — “Padre Arlindo teve uma atitude a priori injusta, infeliz e prejudicial
aos interesses da Igreja; Maritain fora atacado em sua honra de católico;
foram postos em dúvida os ensinamentos do maior filósofo cristão da
atualidade”, e assim por diante.
Mas ficavam nisto,
não entrando nem de longe na análise dos textos produzidos pelo Sacerdote.
O Diário
Católico de Belo Horizonte, por exemplo, estampou em sua edição de
14/11/43 um artigo indignado de Fábio Alves Ribeiro, sob o título Ataques contra Maritain, em que chegava a lançar em rosto do Padre
Arlindo Vieira a acusação de que ele estava agindo de “má fé”. Esse artigo
fora encaminhado ao Diário por Alceu Amoroso Lima, que assim
endossava esse violento ataque.
Em vista dessas
reações, o Legionário publicou um artigo, assinado por José
Fernando de Camargo, dizendo, em nome da Redação, que ao inserir em suas
colunas o trabalho do ilustre Sacerdote, o jornal não se colocava na
atitude comum da imprensa, que impunha a seus colaboradores a inteira e
exclusiva responsabilidade por tudo quanto tivessem assinado, mas o Legionário se manifestava de acordo com o Revmo. Sacerdote. E por
isso, não só lhe franqueou suas colunas, mas se esmerou em dar ao trabalho
um destaque proporcional à
importância do assunto. Esse artigo de Dr. José
Fernando tomou o sugestivo título de Maritain e o “dogma” de sua
infalibilidade, e foi publicado no Legionário n° 590, de 28 de
novembro de 1943. Nesse mesmo número o Padre Arlindo Vieira apresentava
sua réplica aos ataques que havia sofrido.
Essa polêmica enchia colunas inteiras do jornal e
contribuiu para nos afastar ainda mais de Tristão de Athayde e de todos os
seus partidários.
3. A “Mystici Corporis Christi” reforça a nossa posição
Durante esse período de vacância, o Legionário
fez a difusão da encíclica Mystici Corporis Christi, e isto
favoreceu ainda mais a posição do nosso jornal.
Pouco antes de Dom José morrer, aconteceu uma coisa
muito boa para nós: saiu a encíclica Mystici Corporis Christi, a
qual condenava alguns dos erros de que eu falava em meu livro [230].
Ela retificou importantes desvios doutrinários referentes ao elemento
sobrenatural e ao elemento jurídico na Igreja [231].
Ora, a ofensiva feita pelos nossos adversários contra
o meu livro dizia que ele relatava erros que não existiam. E a encíclica
denunciava esses mesmos erros, o que me dava naturalmente muito mais base
para denunciá-los.
Dom Motta Arcebispo de São Paulo: oposição
pertinaz ao “Legionário”
1. Eleição de Dom Motta e inquietação do Sr. Núncio
Certo dia, atravessava eu muito preocupado o Largo de
São Francisco, em São Paulo, quando me encontro com Paulo Monteiro,
ministro na Ordem Terceira de São Francisco, cargo leigo equivalente ao de
prior na Ordem Terceira do Carmo.
Ele me chamou e disse o seguinte:
— Dr. Plinio, tive informações absolutamente
seguras de que Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Motta, Arcebispo do
Maranhão, será nomeado Arcebispo de São Paulo. Amigo íntimo de Dom Cabral,
ele vem executar em São Paulo a política do Arcebispo de Belo Horizonte, e
já está decidido que o primeiro golpe dele será contra os senhores.
Lembro-me de ter dito a ele: “Sr. Monteiro, nós
estamos nas mãos de Nossa Senhora. Ela fará ou permitirá o que entender.
Vamos continuando a viver”.
* *
*
Pouco depois fui a Barra do Piraí para fazer uma
conferência no Congresso Eucarístico que iria haver lá [232].
Deparei-me com uma situação quase engraçada, pois a
mesa era presidida por Dom Jaime de Barros Câmara, sucessor do falecido
Dom Leme na Sé do Rio. Ele estava no centro, à direita o Tristão e à
esquerda eu. Tristão e eu éramos oradores no Congresso [233].
De Barra do Piraí fui para o Rio de Janeiro, de onde
seguiria depois para Friburgo, convidado para fazer uma conferência no
seminário dos jesuítas de lá.
|
Dom Carlos
Carmelo de Vasconcelos Motta |
Estava eu nesse dia de repouso no Rio, quando, por
volta do meio-dia [234],
telefona-me o Dr. Pacheco Sales, de São Paulo: “O novo Arcebispo de São
Paulo é Dom Carmelo!”
Eu sabia que ele fora intimíssimo amigo de Dom José
Gaspar. E tive a impressão de que o Núncio sabia quem é que vinha.
O Padre Dainese, dias depois, me contou que viu o
Núncio andando nervoso e dizendo a ele [235]:
“O Arcebispo que vem para São Paulo é inimigo pessoal de Dr. Plinio; e
vem com intenção de demolir o Dr. Plinio e o seu grupo. É uma tristeza,
mas não tem remédio. Coitado do Dr. Plinio, coitado do Dr. Plinio!” [236]
Eu fiquei tão, tão aborrecido, que à noite, já em
Nova Friburgo [237],
estava com uns quarenta graus de febre, tal o sofrimento moral que a
notícia me provocou [238].
Fiz minha conferência como Deus foi servido, voltei para São Paulo, e aqui
tomei conhecimento da situação como ela se apresentava.
Então, passei um telegrama a Dom Carmelo,
felicitando-o.
Ele mandou-me uma resposta amabilíssima* , que eu
publiquei no Legionário, dirigida a mim como presidente da Junta
Arquidiocesana, e saudando o “valoroso líder católico”, uma porção
de coisas assim.
* Dom Carlos
Carmelo ainda se encontrava no Maranhão quando enviou seu telegrama, em
data de 14 de setembro de 1944, no qual dizia: “Receba valoroso
presidente Ação Católica Diretor Legionário nossos agradecidos abraços
bênçãos Pt Arcebispo Carlos Carmelo”.
Eu até hoje não sei por que ele me passou esse
telegrama [239].
2. Honroso convite do Sr. Núncio como prêmio de consolação
Alguns meses mais tarde, recebi convite do Padre
Dainese para fazer uma conferência no Teatro Municipal, durante uma sessão
solene da Federação das Congregações Marianas do Rio de Janeiro *.
* Esta sessão
realizou-se no dia 29 de novembro de 1944, em comemoração do centenário de
nascimento de Dom Vital Maria Gonçalves de Oliveira, o grande Bispo-mártir
pernambucano protagonista da Questão Religiosa que abalou o Império
no século XIX (cfr. Legionário n° 645, de 17/12/44).
Falar no Teatro Municipal do Rio era reputado uma
coisa muito honrosa. E eu era ainda relativamente moço naquele tempo.
Ficava evidente que o Padre Dainese queria com isto
fazer-me uma gentileza, em virtude de todas as lutas de que tínhamos
participado [240].
E por detrás da iniciativa estava o Núncio, que, para me afagar um pouco,
promoveu esse discurso no Teatro Municipal [241].
Chegando ao Teatro, vi uma mesa de honra colossal
posta ali. Sentados, estavam o Padre Riou, o Núncio Apostólico Dom Aloisi
Masella, o Padre Dainese e uma série de personalidades políticas e
intelectuais, entre as quais o ministro da Agricultura do governo Getúlio
Vargas, Dr. Apolônio Sales.
Chamam-me para a mesa, toca uma música, dois outros
oradores me precedem, sou o terceiro a fazer o discurso. Nesse discurso eu
crivei a facção progressista de indiretas e de farpas de toda ordem.
Olhei para o Núncio, cara impassível. Olhei para o
Apolônio Sales, sorrindo. Olhei para o Padre Dainese, impassível.
Fui muito veemente nas minhas palavras e o discurso
foi longo. Terminado este, houve uma verdadeira ovação! [242]
O Apolônio Sales saiu do seu lugar e veio me abraçar efusivamente [243].
3. Carta Pastoral de Saudação: para
Getúlio elogios, para o “Legionário” ordem de se calar
Depois disso, os fatos se sucederam.
Dom Carlos Carmelo veio do Maranhão para o Rio de
Janeiro em avião da FAB [244],
com todo o apoio de Getúlio Vargas.
E lançou a sua primeira Carta Pastoral antes mesmo de
chegar a São Paulo. Em um de seus trechos saudava o Getúlio como o homem
da legislação social *.
* Eram as seguintes
as palavras laudatórias ao Presidente da República dessa Carta Pastoral,
“dada e passada no Presbitério da Matriz de São João Batista da Lagoa,
no Rio de Janeiro”, aos 29 de outubro de 1944, festa de Cristo Rei:
“Ao insigne
Presidente da República, Doutor Getúlio Vargas, os Nossos respeitosos
cumprimentos, quer na Nossa qualidade de cidadão brasileiro, quer na de
Bispo da Igreja de Deus. Não podemos os católicos do Brasil deixar de
proclamar, com sincera gratidão, as obras beneméritas de seu Governo, que
nos tocam mais de perto: a legislação operária, modelar e cristã” etc.
etc. (cfr. Legionário n° 641, 19/11/44).
|
Publicação
pelo "Legionário" de 19 de novembro de 1944 (Nº 641) da Carta
Pastoral de Saudação de Dom Carlos
Carmelo de Vasconcelos Motta |
Ao mesmo tempo em que elogiava Getúlio, essa Carta
Pastoral era um tiro contra nós. De princípio a fim, esse documento pode
ser qualificado como um libelo contra o Legionário [245].
Eu soube então, com toda a certeza, que Dom Paulo
Pedrosa, prior do Mosteiro de São Bento, havia tomado um avião e ido ao
Maranhão para indispor ainda mais Dom Carmelo contra nós. E que essa
Pastoral tinha sido conseguida por manobra dele, Dom Pedrosa* [246].
* Informação essa
que, décadas depois, seria confirmada por Dom Polycarpo Amstalden, O.S.B.,
diretor da Faculdade de São Bento nos anos 30 e 40. Segundo ele, "Dom
Pedrosa, Abade do Mosteiro de São Bento, logo advertiu Dom Motta a
respeito do problema 'Plinio Corrêa de Oliveira' e o grupo ligado a seu
livro 'Em Defesa da Ação Católica'" (cfr. Frei José Ariovaldo da
Silva, O.F.M., O Movimento Litúrgico no Brasil, p. 352).
Em carta ao Sr.
Núncio Dom Aloisi Masella, o Cônego Mayer se referia a essa mudança de
ânimo de Dom Paulo Pedrosa, que de amigo passou a inimigo acérrimo de Dr.
Plinio. Ele se queixava de que Dom Pedrosa “tomou como empreitada
levantar escândalos contra nós” (carta de 9/9/44).
Em outra carta ao Núncio, datada de 9 de
setembro de 1944, o mesmo Cônego Mayer apontava para uma possível causa
dessa rotação: “Desde o rompimento que brutalmente ele teve
conosco, na semana de Ação Católica para o Clero em 1943, a aliança de Dom
Paulo [Pedrosa] com os RR. PP. Ramón Ortiz e Benedito Calazans é
fato público e notório. O Padre Ramón Ortiz fez várias conferências aos
jucistas de Dom Paulo Pedrosa, e o P. Benedito Calazans foi constituído
por Dom Paulo Assistente Eclesiástico dos jucistas da Escola Politécnica;
e se ultimamente deixou esse cargo, foi devido a desejo expresso do Exmo.
Monsenhor Vigário Capitular, finalmente alarmado com as reiteradas queixas
que contra ele formulavam zelosos vigários da Arquidiocese, e a um sermão
escandaloso do seu colega Padre Carlos Ortiz” (doc. cit., de 9/9/44).
O sentido da Carta Pastoral de Dom Carmelo era o
seguinte: que os católicos não devem estar divididos. As polêmicas
procedem do demônio e são sempre más. A verdade sem a caridade não adianta
de nada. E a caridade devia primar por cima da verdade. E por isso ele
condenava, censurava, verberava, reprovava, discrepava das polêmicas
havidas até então entre católicos [247].
Depois de ter dirigido as mais severas censuras aos
causadores de polêmicas [248],
dava uma ordem formal: cessar todas essas polêmicas [249],
num armistício (a expressão era dele) até que a Comissão Episcopal
da Ação Católica julgasse as doutrinas que circulavam sobre essa
organização* [250].
* O Legionário
n° 641, de 19 de novembro de 1944 publicou na íntegra esta Pastoral de
Saudação, cujo tom pode ser medido nos seguintes destaques:
“Os pretextos
mais fúteis bem se prestam ao diabólico intento da discórdia. Mesmo entre
os católicos de nossa terra se há lançado, por entre o trigal de Cristo, a
semente maléfica da cizânia. [...] Os católicos que se deixam
fanatizar por disputas e partidarismos doutrinários ou pessoais, cometem
contra a vida da Igreja um atentado [...]. Em suas dissidências
internas, [...] procure cada um restringir-se aos assuntos de sua
competência e do seu dever de estado, sem estorvar as funções e os deveres
de outrem. [...] Na hora presente, abstenham-se os católicos de
tudo quanto os possa distrair e dividir. [...] Ocupemo-nos e
preocupemo-nos com a vida real e objetiva da Fé, ou seja, com sua prática
eficiente, mais do que com a vida especulativa da doutrina, isto é, com a
teoria pura. [...] Faça-se um armistício total e absoluto nos
arraiais contendores! Esta orientação queremos dá-la não em carácter
definitivo, mas apenas de emergência, enquanto momentosos assuntos não
forem julgados pela Comissão Episcopal da Ação Católica. [...] Seja tida e havida a Ação Católica por instituição oficialmente
incorporada ao nosso ministério pastoral” (destaques nossos).
Pouco depois, Dom Carmelo proibiu que na Ação
Católica se adotasse o meu livro, ou até se falasse nele. O mesmo nas
Congregações Marianas e outras associações religiosas. Exerceu tal
pressão, que nem sequer as livrarias católicas ousavam vender a obra, não
obstante a aprovação de tantos Bispos e o prefácio que lhe deu o Núncio
Dom Aloisi Masella [251].
Dom Carmelo nos pôs, dessa forma, na posição mais
humilhante que uma pessoa possa ficar: réus que daqui a pouco iriam ser
julgados.
Sem o dizer claramente, o Sr. Arcebispo dava a
entender que iria fazer uma verdadeira devassa para, armado de todas as
provas contra nós, esmagar aqueles a quem ele estava denunciando [252].
* *
*
Escrevi então no Legionário o artigo
Armistício
(fora a palavra utilizada pelo Sr. Arcebispo), comentando a
Pastoral de Saudação e dizendo em outras palavras mais ou menos isto: “Como é sábia a Pastoral! Afinal, nos promete uma decisão. Nós não
queremos outra coisa senão decisão; nós vamos nos calar porque temos a
perspectiva de uma decisão. E essa decisão, nós a acataremos de todo o
coração” *.
* O Legionário
publicou, no mesmo número, tanto a Pastoral de Dom Carlos Carmelo quanto o
artigo Armistício, de Dr. Plinio, este muito respeitoso, cheio de
dignidade, mas ao mesmo tempo ousado, pois dizia:
“Promete-nos S.
Excia. o julgamento da Comissão Episcopal para os ‘momentosos assuntos’
referentes à A.C. Essa promessa é áurea. Todo ato de magistério da Igreja
é uma jóia. E por isto S. Excia. [...] pede um ‘armistício’. Para
este ‘armistício’ o Legionário entra, não só a fim de atender ao augusto
pedido, mas de ‘grand coeur’ [...] Um distinto sacerdote [...]
me aconselhava silêncio a respeito dos assuntos debatidos em matéria de
A.C. [...] E eu lhe respondi: a meu ver, paz na estagnação da
ambigüidade será para a A.C. uma ruína. Mas a paz à vista de uma solução
dos pontos controvertidos é o meu sonho dourado. [...] Que mais
pode desejar um espírito sedento de Verdade? O pronunciamento da Comissão
Episcopal será um verdadeiro divisor de águas. [...] Na autoridade
da Comissão Episcopal [...] esperamos a água viva da Verdade, com a
sedenta e abrasada sofreguidão do cervo ‘ad fontes aquarum’” (Armistício,
Legionário n° 641, 19/11/44).
Mandei esse artigo ao Arcebispo, acompanhado de uma
carta muito respeitosa. Não obtive resposta.
* *
*
Nos dias seguintes à posse dele, fui visitá-lo. Ele
me recebeu amavelmente, fez-me até sentar no sofá ao seu lado.
Logo em seguida, o Cônego Mayer, o Padre Sigaud e eu,
como dirigentes do setor de homens da Ação Católica, fizemos uma outra
visita a Dom Carlos Carmelo. E ele ainda nos recebeu muito amavelmente.
Alguns dias depois, o Cônego Mayer organizou uma
homenagem da Juventude Feminina Católica ao Sr. Arcebispo. Eram
naturalmente algumas centenas de moças de várias cidades, de todas as
gamas sociais, e que pertenciam à Ação Católica.
Dom Carlos Carmelo chegou muito mal humorado, nem
queria vir, e afinal obteve-se que ele fosse. Fez um discurso que foi um
libelo contra o Cônego Mayer, sem mencioná-lo diretamente.
Disse de si mesmo, na ocasião, que ele, Dom Carmelo,
era uma pessoa muito reta e detestava os subterfúgios. E que também
detestava gente que falasse mal dos outros. E que a doutrina dele era paz,
paz, paz. Que ele vinha aqui para pregar o amor.
E acabou dizendo que ele era como uma locomotiva, um
comboio que ia pelos trilhos [253]:
ia cortando tudo e não admitia réplica de ninguém. E que ele estraçalharia
qualquer pessoa que resistisse a ele, tal como uma locomotiva estraçalha
os objetos que encontra no caminho [254].
Disse ainda que, quanto a essa mania de falar em
Papa, Papa, Papa, que isso também tinha limites. Que, do ponto de vista da
hierarquia de Ordem, Bispo e Papa valiam exatamente a mesma coisa; e só do
ponto de vista da hierarquia de jurisdição, sim, é que o Papa era o juiz
dos Bispos.
Ora, essa era uma afirmação contrária à doutrina
católica. O Papa não é mero juiz dos Bispos. O Papa é o Pastor dos
Pastores, ele é quem governa os Bispos.
Diante disso, o Cônego Mayer, muito habilmente, fez
apenas um discurso de agradecimento. As moças bateram palmas, serviram
champanhe e acabou a festa.
* *
*
Pouco tempo depois, o Padre Sigaud, cuja mãe conhecia
muito Dom Carlos Carmelo, foi fazer uma visita a ele no Palácio Pio XII.
Eles se encontraram no momento em que o Padre Sigaud
subia uma escada interna do Palácio e Dom Carlos Carmelo descia. E
conversaram então no patamar dessa escada.
O Padre Sigaud explicou que era Assistente Geral da
JEC, que vinha apresentar as homenagens e que trabalhava junto com o
Cônego Mayer.
Dom Carlos Carmelo tratou o Padre Sigaud muito
friamente. E a visita deu em nada.
* *
*
As coisas estavam nesse pé, quando, depois de um
retiro do Clero em 1945, Dom Carlos Carmelo chamou o Cônego Mayer e
passou-lhe uma repreensão, a mais violenta, a mais apaixonada e a mais
injusta que um homem possa passar em outro [255].
Disse que estava muito desgostoso com a Ação
Católica; que ele absolutamente não queria saber de a Ação Católica
continuar nas mãos do Cônego Mayer; que ele o destituía do cargo de
pró-Vigário Geral; que ele cassava todos os seus poderes e que o reduzia a
simples vigário; e que, de mais a mais, ele tinha a dizer que, se ele
estivesse aqui no momento em que o Cônego Mayer declarou que um Bispo
podia errar, ele o teria suspenso de ordens.
Era evidentemente uma jogada bem feita da parte do
Cardeal, porque se o Cônego Mayer entabulasse uma discussão, ele diria: “Está vendo? Revoltoso, orgulhoso.”
Como o Cônego Mayer ficou quieto e observou o
silêncio mais modelar, ele ainda acrescentou:
— Bem, outra coisa: eu ouvi dizer que esse Imprimatur que figura no livro do Dr. Plinio foi dado sem autorização
de Dom José Gaspar. Eu quero as provas de que foi dado com autorização
dele.
O Cônego Mayer respondeu:
— Não costuma haver prova nesses casos, porque não
há na Cúria documento escrito por onde habitualmente o Arcebispo manda dar
“Imprimatur ex comissione”.
Mas tínhamos as provas, pois Dom José Gaspar tinha
visto o livro e tínhamos as primeiras páginas do rascunho anotadas pela
mão do Arcebispo.
E, pelo que seguiu, o Sr. Arcebispo Dom Carlos
Carmelo sabia disso, pois disse:
— Ouvi também dizer que vocês possuem um dos
originais do livro de Dr. Plinio tendo nas primeiras páginas marcas do
próprio punho de Dom José. Quero ver isto para confrontar a letra”.
O que significava nos chamar de falsários. O Cônego
Mayer soube ficar quieto e não disse uma palavra.
No fim, o Arcebispo disse:
— Bem, o senhor tem duas paróquias para escolher:
ou vai ser vigário do Ó, ou vai ser vigário do Belenzinho. Escolha.
O Cônego Mayer acabou indo para a paróquia de São
José do Belém *.
* Em carta ao Sr.
Núncio Dom Aloisi Masella (de 14/1/45), o Cônego Mayer assim narra o
episódio:
“Chamado pelo
Sr. Arcebispo para um encontro particular, verifiquei desde logo que tinha
diante de mim um juiz que me condenava in pectu sem me ouvir, que
me chamava para me acusar, me humilhar e me punir, e que parecia disposto
a não me dar sequer a oportunidade de expor com calma e filial confiança o
que minha consciência me inspirasse em minha defesa. Fiquei reduzido a
interpor, durante a conversa, apenas uma ou outra rápida alegação em minha
defesa, mas que foram sempre postas em dúvida. [...] Por fim [fui] intimado a redigir um documento, respondendo a duas perguntas que
S. Excia. me formulava no momento, documento este que será enviado a V.
Excia. pelo Sr. Arcebispo, segundo este me disse. Se, nesse documento eu
fizesse alguma acusação ao Sr. Dom José, seria aberto contra mim um
processo canônico, disse-me o Sr. Arcebispo. [...] Por fim, S.
Excia. me declarou que chamava a si a direção da A.C., o que implicava na
minha exoneração. E ordenou-me que aceitasse uma paróquia, oferecendo-me
duas para escolher: Freguesia do Ó e S. José do Belém. Disse, então, que
estava nas mãos de S. Excia., ao que me replicou que isto não era
resposta, pois eu devia escolher positivamente. Respondi que dificuldades
oriundas de minha saúde impediam-me de ser tão positivo como S. Excia.
desejava, mas S. Excia. ordenou-me que escolhesse, dando-me prazo de
alguns dias”.
A nomeação do
Cônego Mayer para vigário da paróquia de S. José do Belém deu-se no dia 25
de janeiro de 1945.
* *
*
O Cônego Mayer falou comigo a respeito do problema do
rascunho revisto por Dom José. Eu disse a ele:
— Não mande os originais do livro a Dom Carlos
Carmelo. Se ele vier falar de falsificação, eu entesto com ele, porque aí
eu faço o contrário: eu digo a ele que me dê ordem por escrito para que eu
apresente esses documentos. E quando ele me der essa ordem por escrito, eu
apelo para a Santa Sé.
O Cônego Mayer não deu os documentos e ele também não
falou mais nisso.
* *
*
Ainda na anterior conversa, o Arcebispo ameaçou o
Cônego Mayer de instaurar contra nós um processo canônico por difamação a
Dom José Gaspar, por termos dito que Dom José Gaspar tinha erros de
doutrina.
E também levantava a acusação de que o Cônego Mayer
havia obtido fraudulentamente a nomeação para Vigário Geral, o que era
evidentemente falso.
* *
*
Dois ou três dias depois, não posso me lembrar bem,
saiu um edital da Cúria Metropolitana declarando dissolvidas todas as
diretorias e juntas da Ação Católica, e nomeando novas [256].
Desta forma, todos os jovens da Ação Católica com
quem cooperei na luta contra o liturgicismo, e eu, estávamos fora das
posições de direção.
Além disso, fomos cuidadosamente mantidos à distância
de todas as iniciativas católicas importantes: Liga Eleitoral Católica,
Universidade Católica etc. Ao pé da letra, estávamos feridos de morte
civil em todo esse campo.
Ficamos assim desprovidos dos meios para pôr cobro a
um perigo gravíssimo como era o do liturgicismo [257].
Tudo isto somado, constituiu-se em São Paulo um
ambiente de tal terrorismo, que praticamente todos os bons se calaram e só
os maus tiveram liberdade de se mover.
Este terrorismo chegou a tal ponto que, quando em
1948 o Cônego Mayer foi elevado ao Episcopado pela Santa Sé, um dos Bispos
Auxiliares de São Paulo, instrumento dedicado de S. Emcia., proibiu aos
antigos companheiros de Ação Católica de irem prestar homenagem ao novo
Bispo, sob pretexto de que isto seria "injurioso" ao Sr. Cardeal [258].
* *
*
Quando Dom Carmelo foi eleito cardeal (em 1944 ele
tinha sido eleito Arcebispo de São Paulo, e sua elevação ao cardinalato
deu-se em 1946), eu estava em Santos e me lembro que fiquei muito na
dúvida sobre o que deveria fazer. Porque era tal o prestígio de um cardeal
naquele tempo que, sendo ainda diretor do Legionário, ficaria mal
eu não ir homenageá-lo no seu embarque [259].
Então, escrevi-lhe uma carta felicitando-o e
justificando o meu não comparecimento à estação para apresentar as minhas
despedidas [260].
Debaixo do peso desses acontecimentos, e empurrados
compulsoriamente para fora da Ação Católica, portanto no cúmulo do
desprestígio, fomos substituídos pelos inovadores que, em sua maior parte,
haviam sido afastados da Ação Católica por seus desvios. E assim voltaram
para os cargos que ocupavam antes. Os padres e leigos que assumiram eram
todos da linha nova.
Tudo isto coincidiu com uma série de acontecimentos
muito tristes para nós.
* *
*
Deixou-nos Dom Aloisi Masella, que permanecera 19
anos no Brasil sem conseguir sua elevação ao cardinalato. De repente, as
coisas desencalharam misteriosamente. Ele recebeu o chapéu cardinalício e
foi-se embora *.
* Ele viajou no
navio Duque de Caxias, cedido pela Marinha brasileira, junto com os
Arcebispos do Rio e de São Paulo, na data de 22 de janeiro de 1946. Os
três foram elevados simultaneamente por Pio XII ao cardinalato, no
consistório de 18 de fevereiro de 1946. Em lugar de Dom Masella, assumiu o
Núncio Dom Carlo Chiarlo (1881-1964), o qual permaneceu no Brasil de 1946
a 1954, sendo elevado por João XXIII, em 1958, ao cardinalato.
* *
*
Muito triste também foi a morte de José Gustavo de
Souza Queiroz, um dos membros do grupo do Legionário, que tendo
recaído na sua doença, após um ano veio a falecer *.
* Seu falecimento
se deu no dia 8 de março de 1946, à idade de 31 anos, devido à tuberculose
que o acometeu. Ele havia ingressado muito cedo na Congregação Mariana de
Santa Cecília, onde estreitou relações com o grupo do Legionário.
Filho das mais antigas e ilustres famílias paulistas, era de um trato
aristocrático e gentil para todos, sem se vulgarizar jamais, e fez amigos
sinceros e devotados em todas as classes sociais. Era também de uma pureza
exemplar, e um verdadeiro católico de mentalidade ultramontana na força do
termo (cfr. Legionário n° 710, de 17/3/46).
[N. do Site]: José Gustavo de
Souza Queiroz deixara quase concluída a tradução das famosas
Cartas sobre a Inquisição espanhola, de Joseph de Maistre. Mãos
amigas terminaram o pouco que faltava da tradução, e esta foi editada
pelas “Leituras Católicas de Dom Bosco”, nº 712, de setembro de 1949, com uma nota biográfica de 26 páginas sobre o tradutor, escrita por
Plinio Corrêa de Oliveira.
* *
*
Logo em seguida, veio a notícia de que o Padre Sigaud
seria transferido para a Espanha.
O Padre Sigaud, antes de embarcar, ainda nos prestou
um grande serviço.
Estava chegando da Europa Dom Jaime de Barros Câmara,
que também tinha ido receber o chapéu de Cardeal juntamente com Dom Carlos
Carmelo de Vasconcelos Motta, na mesma ocasião em que o recebera o Núncio
Dom Aloisi Masella.
Faltando algumas horas para partir, Padre Sigaud foi
a uma sessão onde Dom Jaime Câmara iria promulgar os novos estatutos da
Ação Católica.
Nessa sessão, o Padre Sigaud ouviu coisas que
mostravam o lado escorregadio desses estatutos. E repassou-nos essas
informações, que nos foram de muita utilidade mais tarde, quando se tentou
aplicar aqui no Brasil esses estatutos, fazendo tabula rasa da
encíclica Bis Saeculari Die, de 27 de setembro de 1948.
Durante essa sessão, quando o Padre Sigaud passou
diante de Dom Jaime, este perguntou:
— O senhor, quem é?
Era uma pergunta surpreendente, pois Padre Sigaud era
um sacerdote já ilustre e muito conhecido.
— Senhor Cardeal, eu sou Geraldo de Proença
Sigaud, padre do Verbo Divino, e agora vou como missionário para a
Espanha.
O Cardeal olhou para ele e disse:
— Me parece que alguma vez já ouvi o seu nome.
— Pois não — respondeu Padre Sigaud.
Nas vésperas da partida do Padre Sigaud, lembro-me de
que fizemos uma despedidazinha, nos crepes do luto mais profundo.
Acompanhei-o até o Rio de Janeiro [261].
Recordo-me até do lugar onde me despedi dele com uma
tristeza enorme: foi num ponto de ônibus Rio-Juiz de Fora, perto da igreja
de São Francisco de Paula, no largo do mesmo nome. O navio que devia
levá-lo à Europa sofrera um atraso e ele aproveitou esses dois ou três
dias de delonga para visitar um amigo em Juiz de Fora.
Eu não poderia ficar no Rio esse tempo todo. Então o
abracei e, no momento em que eu voltava, pensei: “Um capítulo em minha
vida que está encerrado é o Padre Sigaud. Ele agora vai para a Europa e
está acabado”.
Como já disse atrás, o Cardeal Dom Carlos Carmelo nos
havia ameaçado com um processo canônico.
Levado pelo receio de que essa ameaça se
concretizasse a qualquer momento, como eu tinha direito a uma
licença-prêmio no Colégio Estadual, requeri essa licença e passei seis
meses lendo as coleções da revista Ordem, do Diário de Belo
Horizonte, do Correio Católico de Uberaba e de outras publicações
da corrente progressista*, para extrair delas proposições que pudessem me
servir de defesa, pois continham muitos erros.
* Serviam também à
corrente inovadora revistas como Palavra, de Belém do Pará; Idade Nova,
de Porto Alegre; Lampadário, de Juiz de Fora; Presença, de Salvador e outras mais.
Mas, dada a linguagem viscosa que essa corrente
costumava adotar, naturalmente muitas dessas proposições eram duvidosas, e
eu precisava mostrá-las a censores eclesiásticos.
O Padre Sigaud, antes de sua partida para a Espanha,
tendo de vir muitas vezes ao centro de São Paulo fazer compras para a sua
viagem, ia almoçar em casa. E eu mostrava a ele aquela pilha de
documentos. Ele começou a ler aquele material e a detectar algumas coisas
erradas. Certo dia me disse:
— Plinio, não estou satisfeito com este serviço.
Não se trata de pegar um errinho aqui ou outro ali. É preciso aprofundar o
estudo desses erros e verificar qual é a doutrina oculta dessa gente.
Detectada essa doutrina, nós saberemos bem exatamente que heresia está
caminhando aí.
Ora, o livro Em Defesa da Ação Católica
desenvolvera bem a doutrina errônea em matéria de Ação Católica, mas não
focalizara a doutrina errada do liturgicismo. Apontava apenas algumas
proposições erradas nessa matéria.
O Padre Sigaud foi então farejando essas publicações
e encontrou os primeiros dados para explicar essa questão.
O assunto interessou muito ao Cônego Mayer, a Dr.
Pacheco, a mim, e pedimos ao Dr. Pacheco para preparar um estudo com base
nos dois autores liturgicistas mais citados pelos inovadores: Dom Anselm
Stolz, OSB, e o Padre Romano Guardini [262].
Lendo esses autores, foi possível a Dr. Pacheco
delinear perfeitamente toda a doutrina liturgicista.
O Dr. Pacheco estava preparando também, nesse tempo,
um livro refutando as teses de Maritain. E o trabalho sobre Maritain
serviu para auxiliar o trabalho sobre Romano Guardini.
Com base nesses estudos, nós teríamos o que dizer
para nos defender em um eventual processo canônico.
De outro lado, começamos a perceber, mais claramente
do que nunca, todo o vulto da trama herética que combatíamos, e que agia
dentro da Igreja para introduzir uma religião falsa no âmago da religião
verdadeira.
Naturalmente isto nos confortava e dava-nos redobrado
ânimo para a resistência [263].
7. Principais focos de oposição ao livro
Os principais opositores do meu livro eram Dom Carlos
Carmelo, Arcebispo de São Paulo, Dom Antonio Cabral, Arcebispo de Belo
Horizonte [264].
Constou-me que Dom Cabral tinha inclusive mandado
queimar o Em Defesa numa reunião da Ação Católica* [265].
* O grau de
exacerbação de Dom Cabral em relação ao livro pode ser medido pelo cartão
manuscrito, sem data definida, que ele escreveu a Dr. Plinio: “... ‘Em
Defesa da Ação Católica’ que melhor deveria chamar-se — Ataque disfarçado
à Ação Católica...”
Cabe acrescentar
que também em Porto Alegre, Arquidiocese que tinha à frente o Arcebispo e
depois Cardeal Dom Vicente Scherer, havia uma campanha cerrada contra o
livro, segundo informou o Padre Dainese em carta de 4 de junho de 1944: “Começou-se naquele Estado uma campanha em grande estilo contra nossas
idéias, contra seu livro e contra o que chamam o grupo ‘intransigente’ e
‘fanático’. O movimento está muito bem articulado (por quem?...)”.
8. Reunião da Comissão Episcopal da Ação Católica: carta de pedido de
julgamento, silêncio como resposta
Nesse ínterim, pelos jornais chega ao meu
conhecimento uma reunião da Comissão Episcopal da Ação Católica*.
* Ela se realizou
no Palácio Arquiepiscopal de São Joaquim, no Rio de Janeiro, no dia 23 de
setembro de 1945, tendo como presidente Dom Jaime de Barros Câmara, e como
participantes os Arcebispos e Bispos brasileiros empenhados na mobilização
da Ação Católica. E nela se debateu a reforma dos estatutos dessa
organização (cfr. Legionário n° 686, de 30/9/45).
Era este o evento que o Sr. Arcebispo de São Paulo
anunciara, um ano antes, que iria levantar os assuntos controvertidos
referentes à Ação Católica. Parecia-me fora de dúvida que o meu livro
seria objeto do pronunciamento da Comissão.
Resolvi então mandar uma carta a Dom Carlos Carmelo.
Eu dizia a ele que havia escrito o meu livro
fundando-o todo em textos do magistério infalível e documentos
pontifícios. E que estava disposto a derramar até o meu sangue, se preciso
fosse, para defender aquelas verdades.
Mas, se estivesse errado na interpretação do
pensamento do Romano Pontífice, eu estaria igualmente disposto a aceitar
por falso e pernicioso tudo o que, a meu juízo privado e falível,
parecesse verdadeiro e bom. E que, com a graça de Deus, eu me retrataria
publicamente e sem reservas, praticando esse ato de humildade com a ufania
com que os filhos do mundo recebem as glórias da terra.
Eu acrescentava estar no firme propósito de prestar
ao Sr. Arcebispo toda a obediência que a S. Excia. eu devia por divina
instituição e pelas leis eclesiásticas, muito exatamente na medida e
extensão em que a Santa Igreja preceituava tal obediência. Sentimentos
esses, dizia eu na carta, que se estendiam à Veneranda Comissão Episcopal
que iria se reunir [266].
A mensagem, entregue em mãos na Cúria, levava junto
um termo de solidariedade dos demais redatores do Legionário para
com essa tomada de posição*.
* A carta era
datada de 22/9/45, portanto de um dia antes da reunião da Comissão
Episcopal da Ação Católica.
Não obtivemos nenhuma resposta. E os assuntos não
foram julgados. Não soubemos o porquê de tal silêncio [267].
Fui depois informado de que a Comissão Episcopal
havia resolvido nomear uma subcomissão de sacerdotes, para elaborar uma
relação de livros “recomendados” sobre a Ação Católica. Dessa lista o meu
livro seria excluído. E seria esta a “resposta” ao meu livro [268].
Meses mais tarde, os jornais começaram a noticiar uma
reunião do Episcopado brasileiro no Rio de Janeiro [269],
com o objetivo de cuidar do assunto Ação Católica.
|
Dom José
Maurício da Rocha, primeiro de bispo de Bragança Paulista |
Não tive dúvida: escrevi uma carta a Dom José
Maurício da Rocha, Bispo de Bragança Paulista, pedindo-lhe que lesse, no
plenário da reunião dos Bispos, uma carta minha ao Episcopado nacional, e
encarreguei Dr. Paulo Barros de a levar àquela cidade.
Dom José Maurício era muito amigo meu, desde o tempo
do apogeu do Movimento Católico. E no meio daquela degringolada toda,
sempre continuei a ter boas relações com ele [270].
Homem rígido, decidido, de estatura alta, cabelos
brancos, sempre de solidéu [271],
era um alagoano muito tradicional e mantinha toda a pompa episcopal em sua
Diocese [272].
Usava um anel com um dos mais bonitos rubis que eu tenha visto em minha
vida. Ele apresentava esse anel para o ósculo, quando íamos falar com ele [273].
* *
*
Meu apelo se explicava. O meu livro não tinha sido
ainda aprovado pela Santa Sé e eu receava muito que os nossos adversários
quisessem indiretamente desautorá-lo nessa reunião do Episcopado*.
* Este receio teve
posterior confirmação numa carta do padre jesuíta João de Castro e Costa,
antigo professor de Dr. Plinio no Colégio São Luís. Escrita de Roma, onde
desempenhava funções no Colégio Pio Brasileiro, aquele sacerdote dizia a
Dr. Plinio:
“Achei que devia
dar conhecimento do seu livro às autoridades superiores, e levei à Sec. de
Estado a Monsenhor Lombardi, meu grande amigo, bem informado das cousas do
Brasil e já conhecedor da celeuma aí levantada. Dias depois, uns
quinze, chamou-me e perguntou-me o meu parecer, dizendo que o livro tinha
sido examinado, creio que por outros 2 monsenhores. [...] Vieram os
dois exemplares, o pergaminho e a carta [material enviado por Dr.
Plinio para ser oferecido ao Papa e à Secretaria de Estado]. Voltei a
Monsenhor Lombardi que se encarregou de entregar tudo, como de fato o fez.
Mais tarde chamou-me para dizer que lhe escrevesse [a Dr. Plinio],
consolando e animando. Pedi que fosse alguma coisa de oficial. Não o quis
fazer, pois uma carta da Sec. de Estado iria melindrar a muita gente,
principalmente aos Srs. Bispos. Pouco depois recebi uma carta alarmante de
Monsenhor Librelotto [capelão chefe da FAB na II Guerra]
avisando-me que corriam vozes que o livro seria condenado pela Comissão
Nacional [Episcopal brasileira]. Voltei à carga e Mons L. [Lombardi] respondeu-me: seria um absurdo: o livro é ortodoxo, e além
disso traz aprovação do representante do Papa. Insisti de novo para que a
Sec. mandasse, não digo uma aprovação, mas uma palavra de animação. Desta
palavra está encarregado V. R., respondeu-me” (carta do Padre João de
Castro e Costa a Dr. Plinio, de 7/9/46).
* *
*
|
Manuscrito da Carta ao Episcopado |
Na véspera da reunião do Episcopado, uma vez tudo
combinado com Dom José Maurício, pedi a Dr. Paulo Barros de Ulhôa Cintra
ir ao Rio e organizar a distribuição da carta-circular (datada de 31 de
maio de 1946) a todos os Bispos presentes na cidade.
Dr. Paulo fez maravilhas: ele conseguiu no palácio do
Cardeal os endereços dos Bispos, tomou automóvel, distribuiu para todos e
ainda conversou com vários deles.
* *
*
Minha carta era muito respeitosa. E também um desafio
do outro mundo! [274]
Ela ia acompanhada de página separada com uma lista das teses que meu
livro levantava.
Eu relembrava nessa carta que o livro havia
despertado reações as mais diversas, desde cartas de aprovação de
numerosos Bispos e sacerdotes do Clero secular e regular. Que Dom Carlos
Carmelo havia pedido para cessar as discussões e polêmicas, o que para o
Legionário foi tomado como uma ordem, abstendo-nos de qualquer
referência aos assuntos que antes tanto nos empolgavam. Que nossos
contendores, pelo contrário, protegidos por nosso silêncio forçado,
sustentavam livremente as suas teses em seus órgãos de imprensa, com
referências muitas vezes amargas às nossas posições.
E que agora reafirmávamos a todo o Episcopado
nacional o pedido anteriormente feito a Dom Carmelo: se qualquer das
proposições contidas em meu livro estivesse contra a doutrina católica, eu
estaria na inteira disposição de aceitar com docilidade as correções que a
doutrina infalível da Igreja de Deus determinasse, pois a receberia com
toda aquela medida de submissão que o Direito Canônico estabelece.
Terminava dizendo nessa carta que apenas uma coisa eu
desejava, e esta eu pedia pelo sangue infinitamente precioso de Nosso
Senhor Jesus Cristo: que o quanto antes se fizesse luz, se condenasse a
treva, se dissipasse a confusão, se estraçalhasse o erro, ainda que pela
humana fragilidade a treva, a confusão, o erro só de mim procedessem [275].
* *
*
Além dessa carta-circular ao Episcopado, juntei uma
carta especial aos Bispos amigos que haviam elogiado o Em Defesa, na qual lançava mais um apelo: se houvesse qualquer dúvida, o que mais
simples do que suplicar a Roma que decidisse a questão? Eu mesmo me
associaria de bom grado aos que pedissem tal pronunciamento. Pois, se eu
estivesse certo, só teria a lucrar. Se estivesse errado, o que poderia
querer de melhor do que ser corrigido de meu erro?
Era justamente o que os opositores de meu livro não
haviam querido fazer. Em vão eu lhes pedia apresentarem concretamente a
tese, a página, o texto em que errei. Em geral preferiram ficar no terreno
das afirmações imprecisas, que não se prestavam a qualquer troca de idéias [276].
* *
*
Chega então o dia da reunião do Episcopado.
Dom José Maurício da Rocha
- um
homem que falava alto, com voz nordestina, peito cheio, expressão fácil e
ar sobranceiro - se levanta e
diz:
—
“Meus caros irmãos do Episcopado, eu lhes trago uma boa notícia.
Tenho aqui esta carta. É um ato de submissão completa do Professor Plinio
Corrêa de Oliveira. Ele não pede senão para ser julgado. Julguemo-lo”.
O próprio Dom José Maurício foi quem me contou o fato [277].
Dom Jaime ficou lívido [278].
Dom Carmelo, rubro, entretanto não disse uma só palavra [279].
Mas fez uma cara iracunda e furiosa.
O Arcebispo de Belo Horizonte, muito mais hábil,
começou a chorar.
Perguntaram a ele:
— Por que V. Excia. está chorando?
— Porque quem vai ser julgado sou eu.
— Mas como é que V. Excia. vai ser julgado?
— V. Excias. não percebem? [280]
O Dr. Plinio, com essa carta, inverteu a situação. Ele estava no banco
dos réus e nós éramos os juízes. Agora [281],
o julgado serei eu, porque eu condenei esse livro. E julgar-me a mim, um
Arcebispo de trinta anos de serviço, é um insulto que minha velhice
recebe.
|
Dom Manuel
da Silveira d'Elboux |
Equivalia a dizer: como fui eu, Dom Cabral, que
condenei, aquele que foi objeto de minha condenação não tem direito à
justiça. Razão? Porque sou um velho Arcebispo de trinta anos de serviço...
Onde estava a noção de justiça nesse raciocínio? [282]
O Sr. Bispo de Ribeirão Preto (Dom Manuel da Silveira
d'Elboux) fez ainda na reunião uma apologia da oportunidade de meu livro.
Não chegou contudo a haver votação. Dom Cabral fez
questão fechada de que minha circular não fosse respondida. E o Sr.
Cardeal Dom Jaime de Barros Câmara, que presidia à sessão, nem pôs o
assunto em votação. Deu-o por liquidado ex auctoritate propria.
E a minha carta-circular ficou sem resposta [283].
* *
*
Eu recebi depois carta de vários Bispos,
felicitando-me por minha atitude e dizendo que eram solidários comigo. Um
deles foi o Sr. Bispo da Barra (Bahia), Dom João Batista Muniz [284],
que me felicitou pela “atitude edificante” [285].
Eu não publiquei nada [286].
O fato resultante é que prevaleceu a decisão de não
julgarem nada *.
* Pouco antes de
Dom Masella partir de volta para Roma, onde receberia o capelo
cardinalício, Dr. Plinio escreveu-lhe uma carta em que dizia:
“Vossa Eminência
sabe o que penso sobre a gravidade do risco a que esses problemas expõem a
Igreja, no Brasil. Não vejo no “liturgicismo” e nos excessos da A.C.
apenas exorbitâncias de certos grupinhos de leigos de cabeça quente. O mal
deitou raízes mais fundas, e põe em risco a fidelidade do próprio Brasil à
Igreja de Roma.
Enquanto tive
liberdade de ação, lutei contra esses erros com todas as forças. Há mais
de um ano, porém, a Pastoral escrita ainda no Maranhão pelo Exmo. Revmo.
Sr. Arcebispo me impôs silêncio. E Vossa Eminência tem visto no
‘Legionário’ até que extremos levei minha obediência a esta ordem.
[...]
O que é certo é
que ninguém pode negar que existem os erros que mencionei. Meu livro é bem
anterior à Encíclica Mystici Corporis Christi, e entretanto já impugnava
os mesmos erros contra os quais agiu a paternal solicitude do Sumo
Pontífice. Como explicar essa atitude ‘profética’ que tomei? Adivinhei os
erros?
“O único ponto
que pode ser posto em dúvida é se a doutrina que sustentei sobre a A.C. é
certa ou errada. Se for certa, diga-se isto para defesa da verdade,
preservação das almas e exaltação da Igreja. Se for errada, declare-se
isto do mesmo modo. O que não posso compreender é o silêncio. O silêncio,
em que os fautores do erro tanto se obstinam, e com o qual só eles podem
lucrar.
“Já fiz a outros
este oferecimento, e o deixo agora em mãos de Vossa Eminência: consta-me
que certos membros de nosso Venerando Episcopado acham que caí em erro em
meu livro. [...] Denunciem, pois, meu trabalho ao Sumo Pontífice.
Eu mesmo escreverei uma carta, que acompanhará a denúncia, em que me
comprometo a retratar quanto escrevi, a destruir os exemplares restantes
da edição, e a fazer a penitência pública que a justiça do Santo Padre
mandar, na hipótese de que eu tenha realmente errado” (carta a Dom
Bento Aloisi Masella, de 1°/1/46).
Mas, então, do que adiantaram essas cartas? — Muito.
Eu fiquei de posse da minha carta ao Episcopado. E
tenho a carta de vários Bispos dizendo-me que estavam inteiramente
solidários comigo.
Portanto, fiquei com a prova de que pedi o julgamento
e de que o julgamento não me foi dado. E o medo deles de me julgar trazia
a certeza de que eu estava certo.
É uma parte da história que não foi publicada, mas a
documentação eu a tenho. E para a História, isto fica [287].
10. No isolamento e no ostracismo
|
A cascata de catástrofes que se abatem sobre Plinio Corrêa de
Oliveira e os poucos que o seguem os relegam a completo isolamento
por vários anos |
A par de tudo isso, eu ia claramente notando um
desânimo cada vez maior em todos os nossos aliados, não os do nosso grupo.
Isto queria dizer em outros termos que a corrente ultramontana, que
havíamos formado com "sangue, suor e lágrimas" [288],
se estava esfacelando. Cada dia eu sentia o isolamento e a indiferença em
torno de nós *.
* Em carta ao seu
antigo professor no Colégio São Luís, Padre Castro e Costa, Dr. Plinio se
abria sobre a situação em que se encontrava:
"Minha situação
pessoal é a mais dolorosa possível. Os Srs. Bispos das sedes mais
importantes me hostilizam sem rebuços. No Rio, em Belo Horizonte e
particularmente em São Paulo estou oficialmente colocado na categoria de
lobo com pele de ovelha, que convém manter afastado do rebanho. Meu nome é
cancelado de todos os Congressos, de todas as reuniões e dos postos de
atividade, por mais apagados que sejam. Sou ainda Diretor do Legionário,
órgão cuja existência a Autoridade finge não perceber [...]. Todos
esses fatos repercutem intensamente nos meios católicos, onde passei a ser
mal visto por muitos daqueles que outrora me estimavam. Nos meios sociais
em geral, percebe-se este ostracismo, sem que se lhe conheçam as
verdadeiras causas: fico, pois, exposto a suspeitas que podem atingir até
a minha própria honorabilidade pessoal (Carta ao Padre João de Castro
e Costa, de 10 de outubro de 1946).
Antigamente, quando o funcionário do Legionário
ia ao correio abrir a caixa postal, trazia as mãos cheias de cartas. Mas
nesse período, houve dia em que chegavam uma ou duas. E numa certa semana
não chegou nenhuma. Foi fato virgem na vida do jornal.
Para mim, nada era mais lamentável, mas nada também
mais explicável. O adversário progressista estava senhor de todas as
posições [289].
Nada faltava a ele: influência, postos-chave,
revistas, jornais, bafejo oficial, grandes tipografias. Nenhuma vitória
poderia ser mais clara, mais total, mais absoluta e ter ares de mais
durável.
Também nenhuma derrota poderia ser mais completa,
mais fragorosa, mais pública do que a nossa. Ela se cercava de todos os
estigmas das penas infamantes, e nada fazia prognosticar que elas iriam
cessar.
* *
*
Enquanto isto se dava, o Arcebispo de Belo Horizonte
realizava congressos da Ação Católica, rodeado de vinte a trinta
Arcebispos e Bispos. E era prestigiado pelo comparecimento do Sr. Cardeal
de São Paulo, por delegações de leigos do Brasil inteiro que iam lá
aprender as doutrinas novas, para depois as disseminar por todo o País.
O Alceu Amoroso Lima tinha liberdade de vir falar em
São Paulo contra nós, com o prestígio do bafejo oficial de Dom Motta. Nós
continuávamos no pelourinho [290],
reduzidos ao silêncio [291].
E a isto o Sr. Cardeal chamava de "armistício".
Nossos amigos de outrora eram empurrados a um canto,
ou se recolhiam espontaneamente ao canto. As fileiras dos que lutavam pela
ortodoxia foram desbaratadas pela única força capaz de as desbaratar: a
obediência [292].
Era o caso de dizer como Corneille no Cid: [293]
"et le combat cessa faute de combattants" - A batalha cessou por
falta de combatentes [294].
* *
*
O que mais me fazia sofrer, entretanto, não era isto,
mas o fato de que o "delendus Plinius" não era a simples satisfação
de uma animosidade pessoal, mas o meio julgado indispensável para derrubar
um dos empecilhos que obstavam a uma cabal modificação da mentalidade
religiosa no Brasil.
Era para lá que íamos caminhando com passo seguro.
Muita gente via o perigo e gemia. Ninguém, ou quase ninguém estava
disposto a agir. As posições-chave estavam quase todas em mãos dos
"outros". Desarticulados, desanimados, inativos, os partidários da
ortodoxia, ou procuravam não ver toda a extensão do problema, ou, se não
conseguiam não vê-la, choravam em segredo *.
* Nesta batalha,
dizia Dr. Plinio em carta ao Padre João de Castro e Costa datada de 16 de
outubro de 1947, “empenhei tudo: nome, posição, tempo, energias,
amizades. [...] Não lutei por interesses pessoais, nem me deixei arrastar
pelo desejo de exercer cargos, desfrutar influências, fazer carreira. Se
estes fossem meus intuitos, eu teria tomado o lado oposto. Dom Cabral e
Dom Carmelo têm feito pelo Alceu e pelos leigos que o seguem, o que por
mim não fez nenhum dos Bispos que me aplaudem e aprovam. É esta a
realidade evidente. Se eu me deixasse arrastar pelo desejo de nome e
prestígio, bastaria que hoje mesmo eu me resolvesse a tomar outra
orientação doutrinária, para ser acolhido por meus detratores de braços
abertos.
11. O jogo dos “moderados” no Brasil e dentro do próprio Vaticano
Para completar esse quadro de desolação, havia quem
procurasse apresentar os liturgicistas como pessoas que erraram, é
verdade, mas que estavam sendo intempestivamente agredidas por nós.
Estariam elas sendo humilhadas, perseguidas, espezinhadas, enquanto nós
triunfávamos orgulhosamente [295].
Enviavam assim do Brasil informações falsas ou
semifalsas. E em Roma tinham correspondentes que acolhiam e encaminhavam
essas informações, e que na proximidade do Santo Padre escolhiam o momento
oportuno para apresentá-las.
Procuravam estes semear a impressão de que, da parte
dos liturgicistas, os desvios eram uma inclinação fútil, passageira, sem
solidez nem raiz, de certos setores da opinião católica.
Essa impressão falsa procurava inspirar uma tática
também errada.
Com efeito, em se tratando de um movimento
superficial de mocinhos e mocinhas em efervescência, a contemporização
poderia parecer a melhor política.
E isso alimentava a idéia de que os partidários mais
ardentes do liturgicismo não tinham verdadeira convicção dele, mas
simplesmente eram levados por uma certa simpatia alimentada quiçá por
circunstâncias inteiramente pessoais, como amizade, relações etc.
Assim, as polêmicas suscitadas aqui pelos adversários
do liturgicismo teriam chocado a alma sensível dos corifeus liturgicistas
que, por isto e só por isto, se aferraram ainda mais em suas opiniões.
Portanto, todas as polêmicas havidas aqui teriam sido
nocivas, e melhor teria sido que jamais elas tivessem ocorrido. De onde os
elementos mais obedientes à Santa Sé, mais zelosos da doutrina, mais
eficazes em limitar a extensão do erro ficavam parecendo pessoas
imprudentes, aos quais não se deveria dar nem prestígio nem cargos, sob
pena de comprometer a solução do problema.
Esses elementos deveriam, pois, ficar inteiramente
privados da confiança da Santa Sé, e sem meios para empenhar combate
salutar contra o erro.
Para quem deveria convergir tal confiança e tais
cargos? Forçosamente para os “moderados”, isto é, na maior parte das vezes
para pessoas que se mantiveram arredias à luta por motivos bem diversos da
verdadeira prudência. Ou seja, porque não tiveram senso católico
suficiente para perceber o erro, para o repudiar, e a abnegação para
arrostar os terríveis embaraços daí provenientes.
Neste panorama falso, não seria difícil apresentar os
fatos de tal maneira que os erros imputados aos liturgicistas não fossem
vistos como suficientemente graves, nem suficientemente generalizados para
justificar que contra eles se escrevesse todo um livro como o Em Defesa
da Ação Católica, nem se movesse uma campanha de jornal como a do Legionário.
Inércia diante do liturgicismo, eis a verdadeira
estratégia. Contemporização e indulgência para com os os liturgicistas,
eis a solução [296].
Na ordem prática, tiravam então uma conseqüência
curiosa: a se proceder com “justiça” e “prudência”, seria preciso punir
por sua empáfia os partidários da boa doutrina, e consolar por seus
dissabores os propagandistas da doutrina errada.
De um ou de outro modo, alguns informantes do
Vaticano participavam desse estado de espírito *. E assim não era de
espantar que, estando longe do cenário brasileiro, até pessoas amigas
pudessem ter dado um tal ou qual crédito a esta opinião [297].
* Notava-se
realmente àquela época, dentro do próprio Vaticano, um jogo de forças
antagônicas representadas por expoentes que atuavam pró ou contra a nova
corrente. Os primeiros tinham tendências modernistas, e os segundos eram
herdeiros da oposição férrea de São Pio X contra aquela corrente. Este
jogo de forças, cheio de vaivens e de sutilezas, ainda era desconhecido do
grande público, mas infelizmente se refletia na posição o mais das vezes
vacilante da Santa Sé em face do progressismo que nascia.
Dr. Plinio chegou
mesmo a apelar aos préstimos do Padre Louis Riou, que nessa época
encontrava-se em Roma, pedindo-lhe em carta para tentar desfazer essa
falsa impressão. Dizia Dr. Plinio: “Julgo que seria importante dissipar
alguns mal-entendidos que percebo perfeitamente estarem dominando em Roma,
vindos de informantes muito astuciosos ou muito ingênuos do Brasil, e
entretidos aí por outros elementos não menos astuciosos ou não menos
ingênuos”. Esses informantes passam a imagem de que “os
liturgicistas são cândidos anjinhos que se aferram a seus erros porque
eles foram algum tanto ‘malmenés’, mas que se corrigirão infalivelmente se
a Santa Sé se abstiver de os condenar” (v. carta ao Padre Louis Riou,
de 16/6/47).
O perigo dessas informações tendenciosas estava em
que elas eram feitas para induzir Roma a contemporizar, a não agir
claramente contra o liturgicismo, receando os efeitos de qualquer luta
movida no Brasil. E a focalizar a crise, não como a luta de duas
tendências opostas — a da verdade e a do erro — mas de três: a dos que
erraram num excesso, a dos que erraram noutro excesso, e a dos “sensatos”
e “moderados” que constituiriam um centro “prudente” e “zeloso”, cheio de
tato, e poderia levar tudo a bom termo.
O que os propugnadores dessa posição não pareciam
admitir era que os liturgicistas constituíam, conscientemente ou não, uma
verdadeira organização que espalhava as informações que lhe convinham,
difamava os personagens que a hostilizavam, estabelecia o silêncio em
torno dos outros, e desenvolvia um plano metódico e admiravelmente
articulado para ir conquistando uma a uma todas as posições-chave da vida
religiosa do Brasil.
Nessa focalização, ficava inteiramente impossível
admitir aquilo que sabíamos de sobra, isto é, que os liturgicistas
dispunham de elementos totalmente dedicados à sua causa, os quais faziam o
papel de “moderados” apenas para galgar cargos e depois cobrir com sua
proteção “insuspeita” os elementos mais ardidos* .
* Dr. Plinio
externou em carta a Dom Sigaud esta sua preocupação: "Nossos
adversários perceberam isto com uma sagacidade infernal. Por isto,
enquanto timbram em manter o Cônego Mayer e a todos nós num ostracismo
absoluto, inauguram uma política de pseudo-conciliação, capaz de dar a
nossos amigos a ilusão de que a situação vai se consertando por si mesma".
Nessa mesma carta,
Dr. Plinio se refere a esse estado de espírito presente numa Semana de
Ação Católica realizada em Campinas entre os dias 20 e 27 de outubro
de 1947 (v. Legionário n° 781, 27/7/47): “O Cônego ["X"]
nos contou que todos os discursos eram num sentido ‘moderado’ do ponto de
vista da doutrina. Falavam veementemente do Rosário, dos Exercícios etc.
iludindo os ingênuos [...] Eles estão reconquistando lentamente a
atmosfera de falsa tranqüilidade [...]. Na aparência, tudo
ortodoxo. Os bons se iludem e aceitam incautos o veneno destilado nos
conciliábulos, círculos de estudo etc.”. E isto a tal ponto que “o
Cardeal Caggiano [Bispo de Rosário, Argentina, presente ao evento,
mais tarde Cardeal Arcebispo de Buenos Aires] declarou que leu meu
livro, e que, sem se pronunciar sobre a doutrina, disse que não se
resolvia a crer que tais erros tivessem existido jamais: típico da nova
tática. [...] Tudo se passa, pois, como se nunca tivesse havido um
Cônego Mayer, um Padre Sigaud, um Plinio, um ‘Legionário’, um livro
‘Em Defesa da Ação Católica no Brasil’" (Carta a Dom Sigaud, 8/8/47).
Este ponto era muito importante para eles, porque, na
invariável escolha dos “moderados”, entrariam muitos partidários ocultos
da causa liturgicista. E os que ignorassem esse jogo, seriam levados a
confiar sem restrição em todo e qualquer elemento “moderado” que
aparecesse, o qual seria a priori considerado como “neutro”,
“sereno” e “insuspeito”.
Ficaria assim impossível impedir a infiltração do que
se poderia chamar de criptoliturgicismo em nosso meio. E o acesso desse
criptoliturgicismo às mais altas situações se tornaria inevitável.
Isto também induziria Roma a adotar a política de não
agir, não deixar agir, e assim dar inconscientemente aos liturgicistas a
liberdade de movimento e as posições-chave que tanto almejavam [298].
* *
*
Acontece que, aceito como verdadeiro o fato de que as
vítimas eram da esquerda e os agressores da direita, daí se seguiria
fatalmente uma “terapêutica” para o “caso brasileiro” sumamente perigosa.
Com efeito, se a uns era preciso abater, ou ao menos deixar rolar
indefinidamente sob os pés dos “esquerdistas”, e a outros era preciso
consolar, confortar e acariciar, nunca chegaríamos ao dia em que o erro
tivesse suas asas e suas garras cortadas. E em boa parte era o que estava
acontecendo no Brasil *.
* Em carta
posterior, dirigida ao professor da Gregoriana e assessor de Pio XII, o
padre jesuíta Robert Leiber, cuja minuta Dr. Plinio ajudou a redigir, Dom
Mayer expressava esta preocupação: “Padre Leiber é mestre em História:
lembre-se da aceitação cortês mas exterior dos jansenistas diante dos
documentos pontifícios, e entenderá o que se está passando no Brasil.
[...] Nosso povo não compreende bem documentos doutrinários, e pois
olha como autorizada e aprovada por Roma a orientação dos que se encontram
nos maiores cargos, nas posições de maior confiança. E pesa muito na
opinião o fato de que os Bispos recentemente promovidos, ou transferidos
para sedes com mais amplo raio de ação, serem, em bom número, simpáticos
às tendências novas. [...] Tudo isto cria um ambiente que vai
desalentando os melhores. E neste desalento está para mim o mais grave da
situação (Carta de Dom Mayer ao Padre Leiber, 1/6/52).
Enquanto isto, a Ação Católica — a pseudo-Ação
Católica deveria eu dizer — se expandia, incorporava a si os melhores,
deformava-os a seu talante, e preparava no laicato católico a incubação de
erros que daí a não muitos anos frutificariam em fel e vinagre.
Também os círculos da Ação Católica continuavam a ser
dominados pela influência de Alceu Amoroso Lima. Ele havia saído da
direção da Junta Nacional, mas continuava a publicar o que bem entendia, a
abordar todos os assuntos como queria, e a fazer propaganda de suas idéias
no Brasil inteiro.
O Cardeal Dom Jaime Câmara julgava dever tratá-lo com
“caridade”. O que produziu esse resultado concreto: aos olhos do grande
público, o Dr. Alceu tinha todo o prestígio para fazer o mal que
entendesse [299].
Era, aliás, a sua conduta constante diante dos
inovadores. Quando levavam ao seu conhecimento exorbitâncias muito
evidentes desses inovadores, limitava-se a lamentar e recomendava
“caridade”. Contudo, intervinha sempre para evitar que elementos ortodoxos
atacassem os inovadores.
De onde decorria a mais ampla liberdade de ação para
os inovadores.
Exemplo dessa conduta: devendo substituir na direção
suprema da Ação Católica o Sr. Alceu Amoroso Lima (há mais de dez anos no
cargo) e demais membros da Junta Nacional, nomeou um discípulo e
colaborador do Dr. Alceu, e outras pessoas da mesma orientação.
Outro exemplo. Realizando-se em 1948, no Rio de
Janeiro, um Congresso Internacional de Obras Sociais Católicas, S.
Eminência designou o Dr. Alceu de Amoroso Lima para presidir o importante
congresso, prova de prestígio e confiança que muito impressionou [300].
Ficávamos então diante deste paradoxo: enquanto
alguns viam nesta crise do liturgicismo, de hipertrofia da Ação Católica,
de 'maritainismo' apenas uma briga de sacristias, eu percebia sem a menor
sombra de dúvida que estava latente uma hidra, um monstro à maneira do
protestantismo. Também o protestantismo, de início, pareceu uma “querela
de frades”. Depois se viu qual era o verdadeiro porte do problema" [301].
1. Pequeno grupo em discreta resistência
Após o nosso lance de “kamikaze”, tornamo-nos
um pequeno grupo de seis pessoas que resistiam, não no sentido de ficar
fazendo discursos contra os Bispos solidários com os erros da Ação
Católica, mas vivendo a nosso modo, segundo a nossa consciência.
|
...
tornamo-nos um pequeno grupo de seis pessoas que resistiam... |
Não desobedecíamos a eles, mas sobretudo obedecíamos
à Igreja, enquanto que eles faziam coisas contrárias às máximas católicas.
E esta nossa minúscula presença no panorama tinha o seu peso, como o
comprova um pequeno fato que aconteceu comigo.
O fato foi o seguinte.
Estava eu tratando, certo dia, de questões de Direito
com um Bispo Auxiliar de São Paulo. De repente, ele fez uma pausa e me
disse:
— O senhor sabe que o Cardeal está contente com o
seu comportamento? “Parce que vous avez mis tout à fait de côté” — o
senhor colocou muitas coisas de lado sem lhe fazer oposição. E também
porque o senhor é muito discreto e não faz nenhum esforço para levantar as
pessoas contra ele.
Eu lhe respondi:
— Fico contente de saber que o Sr. Cardeal faça
justiça ao meu senso de ordem e de disciplina.
Ele me disse:
— Sim, mas o Cardeal tem uma queixa. Ele sabe que
a sua conduta é inteiramente correta, mas o senhor aparece em público com
um grupo de amigos, vai a restaurantes, a passeios com eles, e todo o
mundo diz: “Eis aí o grupo do Plinio”. Isto representa um fermento de
oposição. Percebe-se que o senhor permanece firme em seus princípios e que
não deseja mudar. Mas o Cardeal lhe daria qualquer coisa, desde que o
senhor dissolvesse esse grupo.
Eu respondi:
— Ah! Excelência. Aqui as coisas são diferentes.
Porque ele me pede que eu renuncie aos meus princípios e aos meus amigos.
Quanto a renunciar aos meus princípios, jamais. Quanto aos meus amigos, eu
não posso permitir que ninguém me imponha a renúncia a amizades que não
têm nenhuma relação com os assuntos da Igreja. São meus amigos
particulares, nós nos reunimos em nossas casas ou numa pequena casa que
alugamos, não formamos nenhuma associação religiosa. A minha vida privada
não pode ser contrariada, desde que não se lhe possa fazer nenhuma objeção
quanto aos bons costumes ou à boa doutrina. Havendo alguma objeção, eu
serei o filho obediente da Igreja. Mas não é este o caso. Qualquer que
seja o preço monetário desse arranjo, eu não posso aceitar [302].
O fato concreto é que, apesar desse reconhecimento,
o
Cardeal chegou a pedir ao governo do Estado que não me nomeasse como
catedrático para uma Universidade oficial, possibilidade esta que estava
muito bem encaminhada [303].
2. Tentando juntar os restos do naufrágio. Várias tendências
Dentro dessa reclusão, nós tomávamos os restos do
desastre e com os fios que restavam da bandeira estraçalhada, procurávamos
tecer outra bandeira, ou tecer todo um estandarte.
Dos pequenos elementos que nos restavam de cá, de lá
e de acolá, tentamos reaproximar vários antigos amigos, mas eles tiravam o
corpo dessa reaproximação, amedrontados e apavorados ao verem as sanções
de que tínhamos sido objeto.
Alguns desses, mais do que amedrontados e apavorados,
estavam postos em uma dúvida cruel ao verem que, aqueles que haviam tomado
essa atitude hostil para conosco, eram homens que falavam em nome de Nosso
Senhor Jesus Cristo. E diziam de si para consigo a meu respeito: “Ele
não era quem nós imaginávamos”.
Outros, apesar de compreenderem a nossa posição,
tomavam infelizmente uma atitude movida ao pé da letra pelo medo vil e
covarde.
Assim, não era raro eu encontrar nas ruas do centro
de São Paulo vários conhecidos, os quais me abraçavam e diziam baixinho ao
ouvido: “Plinio, muito bem, continue”. Equivalia a afirmar, no
fundo: “Plinio, leve na cabeça para ver se salva a causa de que eu
gosto, mas com você não tomo outro compromisso senão um abraço rápido e um
elogio cochichado”.
Apesar de tudo, era ao menos uma meia simpatia, que
ficava cintilando em meio às trevas e que poderia se manifestar
favoravelmente de futuro, numa situação crítica que se pusesse [304].
3. Pontos de apoio para futuras lutas
Nesse ambiente catacumbal, não nos esquecíamos da
luta externa. Ela era tocada por nós a partir de pontos mínimos de apoio
de que dispúnhamos, e que conservávamos quanto podíamos.
Um deles era a nossa relação com o Padre Mariaux, que
conhecia o Padre Leiber [305],
o qual por sua vez era íntimo de Pio XII.
Outro ponto de apoio eu já mencionei: o Bispo de
Bragança, Dom José Maurício da Rocha.
Havia ainda vários outros pontinhos assim. E desses
pontos de apoio começaram a renascer os arvoredos [306].
1. Necessidade de sobreviver ao naufrágio
Nós percebíamos que mais cedo ou mais tarde iríamos
perder o Legionário. E surgiu para nós um problema: onde nos
reunirmos, caso isto aconteça? O grupo tinha que sobreviver [307].
Em 1946 éramos ainda muito moços: o mais velho de
nós, Dr. José de Azeredo Santos, tinha 39 anos e o mais novo, 22. E
constituíamos um grupo pequeno, composto apenas de dez pessoas [308]:
Dr. Adolpho Lindenberg, Professor Fernando Furquim de Almeida, Dr. José de
Azeredo Santos, Dr. José Benedito Pacheco Sales, Dr. José Carlos Castilho
de Andrade, Dr. José Fernando de Camargo, Dr. José Gonzaga de Arruda, José
Gustavo de Souza Queiroz (que pouco depois faleceria), Dr. Paulo Barros de
Ulhôa Cintra, e evidentemente eu [309].
Tínhamos também em Santos o Dr. Antonio Ablas Filho,
que era um dos melhores cirurgiões da cidade, creio que dois ou três anos
mais novo do que eu, ou talvez da minha idade.
Pai dedicado, comendador da Santa Sé e professor de
Medicina Legal na Faculdade de Direito de Santos, ele tinha conosco a
maior intimidade e a maior ligação [310].
2. Sede da rua Martim Francisco
|
A Sede da
Rua Martim Francisco, atingida por bomba terrorista na madrugada de
20 de junho de 1969 |
Para termos um lugar onde nos reunir, alugamos o
andar térreo da rua Martim Francisco, número 665.
Dr. Adolpho Lindenberg herdara algum dinheiro de seu
pai, que acabara de morrer. E os outros ganhavam alguma coisa por mês, com
o que podíamos ajudar na manutenção da sede.
Compramos também alguns móveis, arranjamos tudo de um
modo modesto, decente, agradável e com bom gosto. E ali nos instalamos [311].
Como a sede da Martim Francisco era uma casa alugada,
ninguém nos tiraria dali. Se o grupo não dispusesse daquele lugar onde se
reunir, ele teria se dispersado. A instalação dessa sede assegurou a nossa
sobrevivência enquanto grupo. E fizemos dela uma espécie de catacumba onde
respirar e viver.
Certo dia um dos nossos viu o secretário do Cardeal
passar muito devagar em um automóvel e observar atentamente a casa. Ele
talvez quisesse ver como era a toca da onça... [312]
3. Reuniões diárias: coesão no pensar, no sentir e no agir
Esse grupo era tão pequeno que se contentava em
ocupar o andar térreo daquele prediozinho [313].
Apenas três salas, depois uma cozinha e no fundo uma área minúscula [314].
Foi uma coisa terrível sair da direção e da liderança
de um Movimento Católico espalhado pelo Brasil inteiro, e ficar reduzido a
uma coisinha pequena como aquela [315].
Mas ali nos reuníamos todas as noites, sem exceção.
Recordação, sem amargura nem orgulho, das glórias da
imolação dos dias idos. Análise solícita e entristecida, da deterioração
discreta e implacável da situação religiosa. Estudos doutrinários em
comum. Convívio fraterno e cordial.
Assim, a Providência colocava as condições ideais
para nos unir.
Veio daí um tal enrijecimento de nossa coesão no
pensar, no sentir e no agir, como mais seria difícil imaginar. Escondida
em terra, a semente germinava.
A nosso lado, organizava-se a solidariedade preciosa
e discreta de um pugilo de moças que conosco lutara na Ação Católica
contra o progressismo nascente, e também se retirara conosco para o
ostracismo [316].
Eram as antigas dirigentes da Ação Católica, que
passaram a constituir um grupo orientado pelo Cônego Mayer e vivendo com
vida própria, distinta das associações religiosas, para não perdermos
aquelas colaboradoras que nos prestaram depois muitos bons serviços [317].
4. Vida de sede: TFP em germinação
Todos nós trabalhávamos para nos manter. De maneira
que a sede, de dia, ficava habitualmente vazia [318].
Mas, à noite, terminado o jantar, todos confluíamos para a sede da rua
Martim Francisco.
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...havia o
costume de irmos visitar um pequeno oratório que se situava numa
sala do fundo, e onde instalamos a imagem de Nossa Senhora
Auxiliadora que está hoje na capela do prédio da rua Maranhão 341... |
Quando chegávamos, havia o costume de irmos visitar
um pequeno oratório que se situava numa sala do fundo, e onde instalamos a
imagem de Nossa Senhora Auxiliadora que está hoje na capela do prédio da
rua Maranhão 341. Ela nos acompanha desde os tempos iniciais do Legionário.
Após as orações, voltávamos para a sala onde
iniciávamos as nossas conversas.
Os assuntos eram os mais variados.
Em geral começavam por coisas banais da vida da sede,
ou pelos ecos do que ouvíamos sobre a marcha da heresia progressista que
lavrava em São Paulo.
Também tratávamos de alguma notícia mais importante
ou menos do dia, ligada à política nacional ou internacional.
Por fim, entrávamos nos temas de caráter mais
intelectual. Aí as conversas subiam muito de nível e eram abordados
assuntos verdadeiramente elevados. Éramos todos principiantes, e uma
porção de temas hoje ultra surrados, naquele tempo despertavam em nós um
real interesse [319].
* *
*
Em certo momento o Professor Fernando Furquim de
Almeida começou a estudar a história de Louis Veuillot [320],
o infatigável paladino do jornalismo católico na França [321].
E trouxe ao nosso conhecimento o fato de que na Europa, durante todo o
século XIX, a disputa dos católicos ultramontanos e dos católicos liberais
era muito análoga à que havia entre nós e a Arquidiocese.
Os liberais tinham do seu lado Montalembert, e os
ultramontanos Louis Veuillot. Saber disso foi para nós uma forma de
alento.
O mesmo Professor Furquim foi estudando depois a
história dos católicos do século XIX e revelando outros nomes e
movimentos: De Maistre, Balmes, De Bonald, Donoso Cortés, o carlismo na
Espanha, a Amicizia Cristiana de Pio Bruno Lanteri e ainda outros.
Constituía para nós um alento, porque compreendíamos que éramos
continuadores de uma certa tradição de luta pela Igreja [322].
* *
*
Tomei a meu cargo incrementar o quanto pudesse a
devoção a Nossa Senhora. Então,
longos comentários sobre São Luís Maria Grignion de Montfort e sobre a espiritualidade dele.
Eu tratava muito com meus companheiros do tema da
Revolução Francesa [323],
por considerá-la, quando bem estudada, a grande parábola da história do
Ocidente cristão decadente. Como tal, ela foi um acontecimento emblemático
que continha lições para todos os séculos.
Mostrando a eles como as situações políticas de hoje
repetiam de algum modo situações análogas da Revolução Francesa, eu os
levava à consideração do processo revolucionário na História [324].
Dr. Pacheco Sales, homem muito inteligente,
brilhante, que no fim da década de 1950 infelizmente se afastou do Grupo,
cuidava muito da questão da sociedade orgânica e do ponto de equilíbrio
entre o individualismo e o socialismo. Eram exposições muito bem
apanhadas. Ele tinha talento para isto e desenvolvia superiormente bem o
assunto.
Dr. Adolpho Lindenberg era ainda muito mocinho, Dr.
José Carlos Castilho de Andrade também. Eles prestavam pequenos serviços,
não tinham ainda iniciado a fase da contribuição intelectual que depois
deram para o Grupo.
Quando batia onze e meia da noite, saíamos
apressadamente para tomar um sorvete ou comer alguma coisa antes da
meia-noite, pois o jejum eucarístico naquele tempo se iniciava a essa hora
até a comunhão do dia seguinte.
Chegada a meia-noite, pagávamos a conta e saíamos. E
todos íamos dormir [325].
* *
*
Nossa vida interna começou assim a se estruturar aos
poucos em bases novas.
Fazíamos habitualmente reuniões baseadas numa seleção
de notícias compiladas em recortes de jornais sublinhados por nós,
tradição essa que trouxemos desde o tempo do Legionário. Mas
combinamos que tais reuniões não seriam dadas durante a semana, mas numa
reunião especial, em dia fixo, na sexta-feira à noite [326].
Íamos ao Belenzinho e fazíamos essa reunião junto com o Cônego Mayer. E
ela ficou conhecida em nosso Grupo, e depois na TFP, como a Reunião de
Recortes [327].
As Reuniões de Recortes tinham como finalidade
analisar, com base no noticiário de imprensa, os acontecimentos nacionais
e internacionais à luz dos princípios que depois foram expostos no ensaio
Revolução e Contra-Revolução [328].
Como São Paulo começou a adotar o sistema da semana inglesa [329],
combinamos de, aos sábados à tarde, nos encontrarmos para visitar alguma
exposição bonita que se abrisse, ou fazer alguma excursão de automóvel, ou
qualquer outro entretenimento que nos servisse de distração.
Assim, aos poucos, foi-se delineando uma
estruturação, uma institucionalização da vida interna ao nosso Grupo. Era
a estruturação da TFP que ia nascendo. Nossa Senhora ia favorecendo essa
estruturação [330].
5. Esboço do serviço de documentação
Como não podia deixar de ser, nossos trabalhos
estavam voltados para a nossa luta.
Instalamos na sede da rua Martim Francisco uma
pequena seção de leitura de jornais e revistas progressistas que se
publicavam no Brasil.
Durante meses e meses, eu lia essa documentação
católica liturgicista e nela sempre encontrava novos erros doutrinários [331].
E era nessas publicações brasileiras do Movimento
Litúrgico e da Ação Católica que eu acabava encontrando material
interessante e ilustrativo sobre os rumos da revolução progressista dentro
da Igreja, muito mais do que em revistas e jornais europeus importantes.
Isto tinha uma explicação. Os padres seculares, que
haviam feito seus cursos em Roma ou em outras grandes cidades européias,
voltavam ao Brasil encharcados das idéias novas. E mantinham
correspondência com centros da mesma índole no Velho Continente, os quais
sempre lhes enviavam livros e publicações que não circulavam publicamente
aqui.
Assim, eles recebiam tudo quanto havia de mais
ousado. E esses padres reproduziam essas matérias nos tais jornaizinhos
para dar formação a seus grupos de progressistas.
O mesmo processo se repetia com os padres regulares,
dentro das mais variadas ordens religiosas, incluindo a Companhia de
Jesus. Todas essas ordens tinham alguns alunos formados nas universidades
eclesiásticas mantidas pelas respectivas ordens na Europa. Quando
regressavam, voltavam intoxicados, e através dos condutos dessas ordens no
Brasil faziam o mesmo serviço.
Vários leigos também recebiam do Clero esse material
arrojado, e publicavam artigos de caráter progressista no jornalzinho
local da ordem religiosa, da paróquia ou da cidade.
E eu então lia e assinalava tudo isto [332].
6. Serviço fotográfico: “tiros na lua”
Esses documentos selecionados eram depois
fotografados por Dr. José Fernando de Camargo, Dr. José Carlos Castilho de
Andrade e Dr. Adolpho Lindenberg, num laboratório que funcionava na sala
dos fundos da rua Martim Francisco.
Naquele tempo não havia nada das sutilezas das
fotografias de hoje. Eram fotografias em papelões enormes, que nós,
fazendo economia, comprávamos.
Eu punha um comentário junto [333]
e mandávamos para os mais altos páramos de Roma, até mesmo para a mesa do
Papa Pio XII, por intermédio de pessoas que nós conhecíamos muito pouco,
mas que nos prestavam este serviço. Dizia o Dr. Paulo que aquilo era “dar tiros na lua” [334].
Esse conduto funcionava? Funcionava! [335].
Mas em nossa catacumba não recebíamos resposta [336].
Tive a comprovação de que funcionava, na viagem que
fiz a Roma em 1950, quando verifiquei que na Santa Sé tomavam muitíssimo
em conta o material que mandávamos [337].
Mandávamos por meio do Padre Dainese, por meio do
Padre Mariaux, por meio do Padre Castro e Costa [338]
e de outros condutos que eu fui conhecendo [339].
Depois, em 1950, o Padre Mariaux deu-me uma carta de
apresentação ao Padre Leiber, confessor do Papa, e que era o destinatário
desses documentos. Falarei da audiência com o Padre Leiber mais adiante.
Na ocasião, ele me disse, “os seus documentos estão aqui guardados”.
E deu-me a entender que ele os encaminhava para Pio XII.
De fato, no Vaticano tomei depois vários contatos e
constatei que os documentos que enviávamos para ele, todos circulavam.
Assim, no andar térreo da rua Martim Francisco, tudo
parecia “trancado”, mas — sempre foi a conduta característica da
Providência para conosco — havia um tubo que dava para o mais puro ar. De
lá, os documentos iam para a mesa de Pio XII.
Isto explica em larga medida a posterior nomeação de
Dom Mayer e Dom Sigaud como Bispos, a carta de aprovação ao meu livro e
outras coisas mais [340].
7. “O período mais bonito de nossas vidas”
Mas, sem saber de tudo isso, os componentes de nosso
grupo participavam das mesmas idéias, dos mesmos ideais, das mesmas
esperanças, da mesma mentalidade e sobretudo da mesma Fé Católica
Apostólica Romana. Por isto sentiam-se todos muito unidos entre si [341].
Sabíamos que remávamos contra toda a maré. No
entanto, esperávamos contra toda a esperança [342].
Vendo hoje esses fatos retrospectivamente, confesso
que foi o período mais bonito de nossas vidas. Fazíamos uma série de
coisas que pareciam absurdas, mas era o que estava ao nosso alcance fazer.
E todas essas coisas deram depois um resultado espetacular.
Foi um tempo de provação tremenda, mas foi também um
tempo de perseverança [343].
Nesse andar térreo da rua Martim Francisco o Grupo e depois a TFP
começaram verdadeiramente a nascer [344].
Depois dessa enxurrada de desastres, fatos
auspiciosos começaram a acontecer [345].
Ainda me lembro de um
dia de janeiro de 1947 [346],
em que noticiei aos meus amigos que, segundo uma emissora, Pio XII nomeara
Bispo de Jacarezinho o Padre Sigaud.
— Como? O quê? A
nossa alegria era grande, mas a dúvida ainda maior [347].
Ele tinha sido removido de
São Paulo por pressão do Sr. Cardeal Motta, e mandado pelos superiores
para a Navarra, na Espanha, como missionário. E agora se tornara Bispo!? [348]
A razão de minha dúvida se explicava. Em geral, a
nomeação de um Bispo era noticiada pelos jornais. E a nomeação de Dom
Sigaud só tinha sido divulgada pelo rádio. Fiquei desconfiado de que
houvesse algum equívoco.
Para tirar bem a limpo a veracidade da notícia,
telefonamos para a Navarra.
Naquele tempo, era dificílimo conseguir uma ligação
para a Europa, então muito cara. E nosso dinheiro estava para lá de
escasso.
Dom Sigaud veio ao telefone. Ele não sabia quem
estava falando. A telefonista não dizia e apenas o informava de que era do
Brasil.
Do outro lado do fio eu dizia:
— Padre Sigaud! Padre Sigaud!
E ouvi de longe:
— O que é?
— É Plinio quem fala!
— Ah! Plinio. Como vai você?
E eu apressando-me, pelo medo de que a ligação caísse
de um momento para outro. Perguntei-lhe:
— Queria saber se é verdade que o senhor foi
nomeado Bispo de Jacarezinho!
— Que éééééé?
— O senhor foi nomeado Bispo de Jacarezinho ou não
foi?
— Fui, sim. Estou preparando minha volta ao Brasil [349].
Voltaria então? Sim, voltaria [350].
Grande alegria, porque era uma vitória, uma espécie
de endosso da Santa Sé para a boa orientação de nosso livro* [351].
* Depois desse
telefonema, Dr. Plinio escreveu a Dom Sigaud contando as reações havidas
em São Paulo a respeito de sua nomeação:
“Dom Ernesto [de Paula] ficou radiante: a primeira coisa que fez foi telegrafar a
Dom Attico [Arcebispo de Curitiba] felicitando-o. Entre os Jesuítas
nem é bom falar: Padre Riou, Padre Felix, Padre Dainese, Padre Arlindo
Vieira, Padre Santini exultaram. De Pindamonhangaba, Monsenhor João de
Azevedo veio a São Paulo nos abraçar. O Cônego Silvio [Matos], o
Cônego Geraldo, o Padre Benigno [de Brito] não couberam em si de
contentes. No Seminário do Ipiranga, entre os Professores ‘foi uma bomba’,
disse-me o Padre Veloso. No Oiseaux (curso secundário) e na Santa Mônica,
o júbilo foi grande. Eu felicitei vivamente Mère Saint Ambroise porque era
o primeiro catedrático de lá a ascender ao Episcopado. [...] Dom
Pedro Henrique ficou muito alegre e me disse que queria vir à sagração. De
Roma, o Padre Castro e Costa [...] escreveu ao Padre Riou sobre sua
nomeação dizendo ‘que esplêndido triunfo do Legionário’. A miuçalha da JEC
[a quem Padre Sigaud dirigia enquanto assistente eclesiástico] está
radiante. Em suma, é um regozijo geral” (carta de Dr. Plinio a Dom
Sigaud, 16/12/46).
* *
*
Lembro-me que fomos ao Rio de
Janeiro esperar o navio que vinha trazendo Dom Sigaud da Europa *.
* Ele embarcara em
Barcelona no navio Cabo Hornos no dia 4 de março de 1947, e atracou
no Rio no dia 20 do mesmo mês, após um ano de ausência de nosso País.
Do Rio viemos com ele para São Paulo. Pouco mais de
um mês depois realizou-se a sua sagração* [352].
* Essa sagração
episcopal deu-se no dia 1° de maio de 1947.
Dom Sigaud convidou o Núncio Dom Carlo Chiarlo para
sagrante, porque não queria convidar o Sr. Cardeal. E era seu desejo fazer
a sagração aqui em São Paulo, na Basílica do Carmo.
O Núncio veio, fez a sagração, tendo como
consagrantes Dom José Maurício da Rocha e Dom Manuel da Silveira d‘Elboux [353].
* *
*
Demos publicidade a essa sagração através dos jornais
e do Legionário [354].
Era nossa intenção mostrar que não se tratava de um grupinho, nem de uma
manifestação contra ninguém, embora deixássemos claro que o passado de Dom
Sigaud na Ação Católica não era um capítulo duvidoso de sua biografia e
agora relegado a uma espécie de esquecimento penitencial, mas um autêntico
florão de sua coroa.
Neste ponto, ponderei com Dom Sigaud que era preciso
muita clareza, do contrário nossos adversários iriam espalhar que o Santo
Padre havia imposto a ele uma “retratação”, e que Dom Sigaud se vira
forçado a ingerir “calmantes” em Roma.
Por isto, os convidados para a homenagem foram
escolhidos entre os melhores elementos — social, intelectual e moralmente
falando — do laicato católico e mesmo da sociedade de São Paulo *.
* Estavam presentes
à cerimônia o governador de São Paulo, Sr. Ademar de Barros e seu
secretário, Comendador Mario Antunes Maciel Ramos. Ele teve como
paraninfos o governador do Paraná, Sr. Moisés Lupion, S.A.I.R. Dom Pedro
Henrique de Orleans e Bragança, Dr. Plinio Corrêa de Oliveira e o Dr.
Lucas de Proença Sigaud. De Jacarezinho vieram para a cerimônia o Sr.
Prefeito, Juiz de Direito e o Delegado. Também presentes o Vigário Geral
da Arquidiocese de São Paulo, Monsenhor Manuel Macedo
Freire, Monsenhor Luiz Gonzaga de Almeida, Dom Aidano Ebert,
prior do Mosteiro beneditino de Santos, e os representantes do Cabido
Metropolitano, os Srs. Cônegos Benedito Marcos de Freitas, Antonio de
Castro Mayer, Antonio Leme Machado, Luiz Geraldo do Amaral Mello,
Francisco Cipulo e o Cônego João Pavesio, que oficiou como cerimoniário.
Assim, mais do que homenagens pessoais, a cerimônia
foi a expressão da vitalidade de uma tendência que se afirmava
diplomaticamente [355].
No fundo, todo mundo ficou entendendo que era um
sinal de que a Santa Sé queria nos reabilitar [356].
* *
*
Fui depois até Jacarezinho, acompanhando Dom Sigaud
para as cerimônias de posse na Diocese [357].
Se não me engano fiz discurso na ocasião [358].
2. Nova grande vitória: a encíclica “Mediator Dei”
Ainda em 1947, tivemos outra grata surpresa, que
representava uma nova e grande vitória: a publicação por Pio XII da
encíclica Mediator Dei [359].
A doutrina condenada pela encíclica era, ponto por
ponto, tão idêntica à que professavam os liturgicistas no Brasil, que sou
levado a admitir como certo que o Sumo Pontífice teve sob os seus olhos,
pelo menos em parte, o nosso País [360].
Sem dúvida, essa encíclica constituía de si, de
alguma forma, uma carta de alforria que nos libertava das algemas em que
estávamos colocados.
Podíamos afinal falar, podíamos denunciar o erro. Já
não havia mais as "prudências" que pudessem destruir essa conquista, não
havia mais "armistícios" que permitissem reduzir ao silêncio apenas um dos
lados contendores, deixando que o outro escrevesse, sussurrasse, falasse e
urrasse à vontade [361].
* *
*
Eu absolutamente não acreditava que os liturgicistas
iriam desanimar ou renunciar às suas idéias.
E não me enganei: essa encíclica foi recebida pela
"ala esquerda" com frieza, publicada sem entusiasmo nem pressa (O
Diário, órgão católico de Belo Horizonte, levou mais de um mês para a
publicar), e foi tratada pelos inovadores como um documento sem
importância. Mais ainda, arranjaram um jeito de distorcer o seu sentido,
trombeteando contra toda a evidência que o Papa havia condenado
energicamente, nela, certos brasileiros que combatiam o movimento
litúrgico. E que ele queria, dali por diante, que o movimento litúrgico se
intensificasse muito mais* [362].
* Essa mesma
convicção, Dr. Plinio a manifestou em carta ao Padre Dainese:
"O clã
liturgicista continuará a agir (às escâncaras? na sombra? eis a questão!),
e não perderá nem as influentes proteções de que gozou até aqui, nem os
órgãos de imprensa e os meios de ação de que presentemente dispõe. A
pergunta que se põe, portanto, é esta: qual a reação dos liturgicistas?
(Carta de 31 de dezembro de 1947).
* *
*
De nossa parte, o que nos competia fazer, fizemos,
que era difundir a encíclica.
E escrevi um artigo dizendo que [363],
no momento em que a encíclica vinha dirimir questões de tão funda
repercussão em nossa vida religiosa, dois deveres se impunham ao católico:
um para com a Verdade, outro para com a Caridade [N. do Site: o
artigo chamava-se "Na casa do Pai comum", publicado no Legionário Nº 801, de 14 de dezembro de 1947
e pode ser lido aqui].
Para com a Verdade: acima de tudo e antes de tudo,
devíamos cuidar de combater o erro e difundir a sã doutrina. A este dever
primordial, tudo se devia sacrificar.
Mas a Verdade venceria atraindo a si os que erraram.
E isto se faz com Caridade.
Assim, pois, era preciso difundir a Verdade com
Caridade. E, se seria falso manter a Caridade calando ou velando a
Verdade, seria igualmente falso difundir a Verdade com espírito de orgulho
ou vã glória.
Há na Igreja duas situações inteiramente distintas, a
da inocência e a da penitência. Mas quem ousaria ver no inocente um
vencedor orgulhoso, e no penitente um vencido cheio de opróbrio?
A Igreja não dá tréguas nem quartel ao pecador
impenitente. Mas basta que este reconheça seu erro, repare humildemente o
escândalo, queime à vista de todos o que adorou, e adore o que queimou,
para que estejam abertas de par em par diante dele as portas do lar
paterno.
Ninguém, é certo, tinha autoridade para dispensar o
que Deus não dispensa, e confundir o penitente com o impenitente. A
Igreja, bem o sabemos, ama demais seus filhos penitentes para os injuriar
com esta confusão.
A Igreja, aos que erram pede tão somente que façam o
que o camelo tinha de fazer para transpor as portas baixas das cidades,
que no Oriente se denominavam “buracos de agulha”: deponham a carga de
seus erros, e façam-se pequeninos pela humildade. Quando os reerguer o
perdão da Igreja, ver-se-á que eles se tornaram gigantes porque nada
engrandece mais do que a verdadeira penitência.
Não havia o menor motivo para que os que erraram se
sentissem obrigados a silenciar vergonhosamente sobre seus próprios erros.
Pelo contrário, cobrir-se-iam de glória mencionando-os e refutando-os. Nem
estes erros deviam ser tratados por nós com um silêncio “caridoso”, que
seria, no fundo, essencialmente desdenhoso porque insinuaria cruel e
insidiosamente que a nódoa continuava. A solidariedade entre o homem que
errou e seus erros pretéritos era inteiramente destruída pela penitência.
Ao pecador penitente em aberto conflito com seus
erros passados, a Igreja ama com entranhas de mãe: ai de quem o moleste
por aquilo que Deus perdoou!
Ninguém tinha, pois, o direito de achar que os
ataques desferidos contra o erro podiam humilhar os que do erro se
retratassem [364].
Dom Sigaud escreveu também um artigo para o Legionário, dizendo que a encíclica era uma confirmação de toda a
nossa linha de apostolado e da denúncia feita pelo livro Em Defesa da
Ação Católica* [365]
.
* Nesse artigo,
publicado sob o título A Encíclica Mediator Dei e um pouco de história
da Igreja no Brasil, o Prelado dizia que “era uma grande consolação
lembrar neste momento o livro magistral do Diretor do Legionário, Dr.
Plinio Corrêa de Oliveira”, o qual “foi um brado de alarme e um
cautério. Brado de alarme, impediu que milhares de fiéis se entregassem,
em sua boa fé, aos erros e desmandos do Liturgicismo que avançava como uma
onda avassaladora”. O livro “abriu os olhos a muitos fiéis já
envoltos nas ondas do ‘liturgicismo’ e os reconduziu ao caminho que a
Igreja aponta como o certo e tradicional”. Ao terminar seu artigo,
dizia que “fomos testemunha da história de que este livro foi o centro.
Hoje damos graças a Deus por ter surgido tão oportunamente este brado de
alarme, que preservou e salvou para a Verdade e Vida tantas ovelhas de
nosso rebanho” (art. cit., Legionário n° 803, de 28/12/47).
3. Semana seguinte: Cardeal retira o “Legionário” das mãos de Dr.
Plinio
O resultado foi que, na primeira hora da madrugada de
31 de dezembro, quando Dr. José Carlos Castilho de Andrade, como de
costume, se dirigiu à tipografia para os serviços comuns de acompanhamento
da edição da semana seguinte, já em fase de composição gráfica, foi
informado de que todo o material necessário para a confecção do jornal
havia sido removido para a tipografia dos Padres Paulinos, e que o Legionário não mais seria impresso ali.
Diante da gravidade dessa comunicação, Dr. Castilho
me pôs logo a par do ocorrido [366].
Procurei imediatamente pelo Machado, que era o
diretor administrativo e financeiro do Legionário [367].
Não consegui encontrá-lo. Ele foi localizado muito mais tarde pelo Cônego
Mayer por telefone, a quem informou que não tinha mais nada com o assunto,
pois o Legionário estava agora nas mãos da Cúria. Como
diretor-financeiro havia passado todos os títulos de propriedade para o
Cardeal [368].
Eu então me comuniquei com o Vigário Geral, Monsenhor
Luís Gonzaga de Almeida, a quem indaguei se essa medida provinha de ordens
do Sr. Cardeal. Ele respondeu que de nada sabia, e que Sua Eminência
estava em Belo Horizonte, não podendo ele dar nenhuma informação.
Telefonei então para a Cúria Metropolitana e pedi
para falar com o chanceler, que era então Monsenhor Loureiro.
Ele me disse que lamentava o ocorrido e que não
tivera nenhuma participação no fato. Sabia apenas que o Dr. Luís Tolosa de
Oliveira e Costa Filho [369]
fora incumbido pelo Sr. Cardeal de dar todas as providências para a
execução dos desejos de Sua Eminência no atinente ao Legionário.
Então comentei com Monsenhor Loureiro que um
fechamento brusco do jornal, num momento em que fazíamos a divulgação da
encíclica Mediator Dei, só favoreceria os fautores do erro, com
evidente desdouro do diretor e redatores do Legionário, expulsos
ignominiosamente de uma folha onde trabalharam gratuitamente durante 13
anos [370].
E por fim afirmei:
— Monsenhor Loureiro, em relação aos que são
hereges, esse Cardeal não é pai, mas é mãe. Em relação àqueles que são
fiéis à doutrina da Igreja, esse Cardeal não é pai nem padrasto, mas é
carrasco. Porque, desde o dia em que ele pisou em São Paulo até agora, ele
não teve nenhum gesto de pai, ele só teve crueldade de carrasco. Esta é a
verdade! E a razão do fechamento do Legionário veio do fato de
sermos favoráveis à doutrina da Santa Sé. Transmita isso a ele da minha
parte.
O Monsenhor Loureiro me respondeu: “Meu amigo, eu
não posso aceitar isso” [371].
* *
*
Dr. Castilho recolheu, no próprio dia 31 de dezembro
de 1947, um depoimento do chefe das oficinas. Ficava claro que a ordem de
recolhimento do material tinha sido tão clandestina, que nem os próprios
tipógrafos a conheciam. No tal depoimento do funcionário ele atestava até
a hora em que tinham recebido de Dr. Castilho os originais para a
composição [372].
Documentamo-nos bem, para que ficasse claro que o Legionário não tinha sido fechado por nós. Uma das provas era a de
que, na gráfica, a matéria havia sido composta pela metade, e as chapas já
compostas tinham sido recolhidas.
* *
*
Na noite de 31 de dezembro, quase na virada do Ano
Bom de 1947 para 1948, quando eu ainda estava jantando, recebo um
telefonema do Monsenhor Loureiro dizendo que o Cardeal havia regressado
inesperadamente de Minas e mandava me dizer que estava à minha disposição
se eu quisesse falar com ele. Acabei de jantar, tomei o automóvel e parti
para o Palácio.
Ele me recebeu em companhia do Cônego Loureiro,
dizendo que o tinha trazido para presenciar a nossa conversa. E se
manifestou nos seguintes termos:
— Eu queria dizer ao senhor que o Francisco
Monteiro Machado procurou-me espontaneamente para oferecer a propriedade
do jornal, como liquidante da sociedade. E também queria lhe dizer que não
fui eu quem dei ordem para fechar o jornal. Como ele me entregou a
propriedade do jornal e eu não quero que o senhor continue na direção, eu
lhe tirei o jornal.
Ele estava muito trêmulo. Compreendi que uma briga
não convinha a ele, mas também não convinha a nós [373].
Limitei-me a dizer que não oporia nenhuma resistência
à determinação dele, mas que manifestava-me profundamente chocado com o
modo pelo qual fora coagido a sair [374].
Além do mais, atraía a atenção dele para o fato de que a situação criada
com a transferência de propriedade do Legionário era ilegal segundo
as leis do País [375],
pois a deliberação da assembléia dos sócios de liquidar a Legionário S.
A. [376]
não havia sido cumprida pelo Machado. E que ele, Dom Carlos Carmelo,
mandasse um advogado imparcial estudar a questão.
O Cardeal respondeu que não se incomodava com isso. E
me despedi debaixo dos votos de bom Ano Novo que ele me desejava *.
* Nesta conversa, o
Sr. Cardeal havia dito que confiaria aos padres paulinos, dali por diante,
a edição do jornal. Com efeito, no número de 29 de Fevereiro de 1948
apareceu um editorial em que se anunciava o início de uma "nova fase"
na existência do semanário, resumida no mote final do artigo, não
assinado: "Incipit vita nova". Nem uma palavra sobre Plinio Corrêa
de Oliveira, que havia dedicado ao Legionário, com imensa
generosidade, quinze anos da sua vida (cfr. Roberto De Mattei,
O
Cruzado do século XX — Plinio Corrêa de Oliveira, op. cit.). Nessa
"nova fase", é claro, nenhuma referência houve mais aos desvios
progressistas.
Dr. Plinio escreveu
em seguida a Dom Sigaud (carta de 5 de janeiro de 1948), contando o que
tinha havido: "As notícias que envio hoje a V. Excia. são bem tristes.
O Legionário foi fechado. [...] Sobre a Mediator Dei, aqui,
reina o mais absoluto silêncio. Púlpitos, tribunas, nas reuniões das
associações, tudo se cala”.
Uma coisa ficava clara: o Legionário foi
tirado de nossas mãos porque havíamos publicado comentários e notas à Mediator Dei. E porque aproveitamos o jornal para dar todo o realce à
encíclica [377].
E foi justamente enquanto esses estudos e notas
vinham sendo publicados, que o Cardeal Motta resolveu retirar, do modo
mais brusco, a direção da folha de nossas mãos. Transferiu-a a pessoas
como o Padre Enzo de Campos Gusso [378],
inteiramente afeito às idéias novas.
O Legionário, mudando de diretor, mudou
inteiramente de feitio e de aspecto, bem como de orientação. A campanha de
difusão da encíclica Mediator Dei se encerrou ipso facto e
inteiramente [379].
Algumas matérias nele publicadas passaram a
apresentar uma tendência pronunciada para a esquerda em matéria social, e
outras atacavam vivamente e em traços caricaturais os costumes religiosos
antigos, com o fito de insinuar uma era religiosa nova e moderna. Também
exprimiam com clareza a penetração da mentalidade laxista e modernizante
naquele órgão oficial da Arquidiocese* [380].
* Foi tal a rotação
ideológica do jornal, que a revista Vozes de Petrópolis publicou a
certa altura o seguinte comentário: “"Há um ano mais ou menos, no
fascículo Maio-Junho dessa Revista, manifestamos a nossa surpresa sobre
algumas manifestações de liberalismo impresso no hebdomadário católico de
São Paulo, O Legionário. Hoje experimentamos a mesma surpresa, vendo nova
manifestação aparecida no número de 10 de Setembro passado daquele
periódico" (Vozes, setembro-dezembro de 1950).
No Carnaval do ano de 1948,
fomos fazer um passeio em São Pedro [381].
Na volta, enquanto visitávamos o Salto de Piracicaba,
comentávamos com o Cônego Mayer nossa situação humanamente perdida, e
manifestávamos a disposição de ir até o fim do caminho, permanecendo fiéis
até a morte.
* *
*
Dias depois, de volta à sua paróquia do Belém, o
Cônego Mayer recebe a visita de Dom Siqueira [382],
que veio lhe oferecer seus préstimos para efetivá-lo na paróquia.
O Cônego Mayer conversou com naturalidade com Dom
Siqueira, mas já tinha no bolso, naquele momento, um convite para ser
Bispo Coadjutor de Campos. Mas ele não disse nada a esse respeito ao
Prelado.
* *
*
Pouco depois, aparece o Cônego Mayer em meu
escritório e começa uma conversa assim:
— Se eu fosse convidado para Bispo, você acha que
eu deveria aceitar qualquer diocese do Brasil?
Fiquei com muita pena do Cônego Mayer: “Coitado,
pensando nesse assunto numa situação tão miserável como a nossa”. Em
todo o caso, providencialmente respondi:
— Cônego Mayer, marque uma periferia que, para o
Norte, não passe da cidade de Campos. Mais distante do que Campos não me
parece que convenha.
Ele conversou um pouco mais e despediu-se.
Em seguida, recomecei a trabalhar e o assunto passou.
* *
*
Dias mais tarde, chego à nossa sede da rua Martim
Francisco e encontro o Dr. Pacheco elétrico:
— Episcopus habemus!
Ele estava numa tal vibração, que eu pensei que
tivesse sido nomeado algum padre péssimo.
Ele me disse:
— O Cônego Mayer foi eleito Bispo Coadjutor de
Campos!
Nesse ínterim, foram chegando os outros rapazes do
grupo, e nós nem conseguimos nos sentar. Esperamos que todos viessem e
fomos direto ao Belenzinho em três táxis. Um dos nossos levou até duas
garrafas de vinho para comemorar.
De lá mesmo o Dr. José Fernando de Camargo telefonou
a O Estado de S. Paulo, pedindo a publicação da notícia, que de
fato saiu no dia seguinte [383]
na seção religiosa do jornal. E ficamos imaginando o efeito-bomba dessa
notícia no Palácio Pio XII.
Soubemos depois que, pela manhã, o Cardeal mandou o
Cônego Enzo Gusso, seu secretário, ler os jornais. E este lhe deu a
notícia.
O Cardeal estava tão pouco informado sobre essa
nomeação que perguntou: “Será notícia oficial?”
* *
*
Houve então a cerimônia de sagração de Dom Mayer [384].
Sagrante, o Núncio, e consagrantes Dom Sigaud e Dom
Ernesto de Paula, tendo como padrinho Dom Pedro Henrique de Orleans e
Bragança.
Grande festa! O Núncio cordial.
Com a sagração de Dom Mayer, muitas coisas subiram de
ponto. E tudo isto animou muito o nosso grupo [385].
Quando publicamos o Em Defesa, nossos
adversários criaram em torno de nós uma atmosfera em que ficávamos
apontados como caluniadores da autoridade eclesiástica, rebeldes contra
ela, infectados de heresia. E diziam que em relação a nós era preciso que
todo bom católico se afastasse o quanto possível [386].
Ora, no seu conjunto, três documentos pontifícios
enunciavam, refutavam e condenavam os principais erros sobre que versava o
livro: Mystici Corporis Christi, Mediator Dei e Bis
Saeculari Die.
Mystici Corporis Christi
- A encíclica Mystici Corporis
Christi apareceu em 29 de junho de 1943 [387].
Isto pouco antes ou pouco depois de um Congresso de
Ação Católica realizado em Belo Horizonte, em que uma das resoluções foi
de que, se houvesse erros doutrinários entre os fiéis, as pessoas
que tomassem conhecimento de tais erros porventura existentes os
comunicassem às comissões de vigilância das respectivas dioceses. Ficava
proibido aos fiéis combaterem eles próprios tais erros.
Mas como, de outro lado, ditas comissões de
vigilância não existiam nem foram ulteriormente criadas, praticamente o
combate aos erros dos inovadores ficou impedido pela carência do órgão a
que a denúncia deveria ser feita. Aliás, o próprio fato de não haverem
sequer sido criadas ditas comissões revelava um desinteresse bem próprio a
desanimar os fiéis no combate ao erro.
Os inovadores, com os imensos meios ao seu alcance,
puseram em circulação:
1.
que tais erros nunca existiram no Brasil;
2.
que a principal preocupação da Santa Sé consistia em difundir a
devoção ao Corpo Místico, e não em destruir os erros porventura
existentes em outros países sobre o assunto;
3.
que, em conseqüência, discrepavam da mente do Pontífice os que se
sentissem alarmados ou preocupados com tais erros;
4.
que, ademais, a repressão a tais erros competia ao Episcopado;
5.
e que os sacerdotes ou leigos que chamassem a si combater tais
erros se mostravam, com isto, pouco confiantes em relação à Autoridade,
insubmissos, orgulhosos, provocadores de discórdia etc.
Foi nessa atmosfera que apareceu a encíclica.
* *
*
Mediator Dei
- Quatro anos depois, em 20 de
novembro de 1947, veio a Encíclica Mediator Dei.
Repetindo as condenações da Mystici Corporis e
estendendo muito o campo de visão dos estudiosos para novos erros, era uma
oportunidade incomparável para o combate a esses erros.
Porém, também esta encíclica foi alvo da mesma
campanha de silêncio.
O Diário católico de Belo Horizonte, o Correio da Noite, órgão católico do Rio de Janeiro, e demais jornais
da mesma corrente, levaram meses sem publicar o documento, o que evitou
que seu texto fosse conhecido na efervescência das primeiras notícias.
Quando o publicaram, já o primeiro interesse em torno do assunto havia
passado.
Única exceção foi o Legionário, que começou a
apresentar a encíclica (a idéia era publicar a matéria em números
sucessivos) com numerosos comentários, dando-lhe o máximo realce. Quando o
primeiro número saiu com essa matéria, o Sr. Cardeal Dom Carlos Carmelo
retirou de nossas mãos, conforme já dissemos, a direção do jornal,.
Dentro em breve, não se falou mais da Mediator Dei,
que teve o mesmo sepultamento que a Mystici Corporis Christi [388].
Bis Saeculari Die
- Por fim, em 1948 veio a lume a
Constituição Apostólica Bis Saeculari Die, da qual passo a falar em
seguida.
* *
*
6. Antecedentes da publicação da “Bis Saeculari Die” no Brasil
Julgo que melhor seria recordar os antecedentes, para
melhor entender a celeuma causada.
Antes de aparecer essa Constituição Apostólica,
os próceres da mentalidade nova apregoavam que outras associações
religiosas que não fossem a Ação Católica não tinham mais razão de ser.
Segundo eles, a nova situação jurídica desse
movimento só competia aos leigos inscritos nas associações ditas da Ação
Católica stricto sensu, ou seja, a JFC, a JEC, JIC, JOC, JUC etc. E
as Congregações Marianas e outras associações religiosas deveriam ser
apenas toleradas pela Igreja, e tenderiam a desaparecer *.
* Dom Mayer, já
Bispo, confidenciou ao Padre Leiber, em carta enviada antes de sua viagem
a Roma em 1950, que “ouvi pessoalmente do falecido Arcebispo de São
Paulo, Dom José Gaspar de Affonseca e Silva e de vários dirigentes da Ação
Católica de outros bispados, a tese de que, segundo a mente do Santo
Padre, as associações religiosas deviam ir morrendo por inanição. ‘A Santa
Sé é muito sábia, de maneira que não extingue as associações, mas deixa
que elas morram por si’ [dizia Dom José]”.
Alimentando essa tendência, os elementos dirigentes
da Ação Católica trabalhavam implicitamente para dispersar e reduzir ao
silêncio todos aqueles que não acertassem o passo com a corrente
inovadora. Em suas mãos, a Ação Católica passou a ser uma trincheira de
guerra contra tudo quanto no Brasil representasse o bom espírito ou a
tradição.
Daí o colorido muito particular que o problema das
relações entre a Ação Católica e as Congregações Marianas tomou entre nós.
Antes da Bis Saeculari Die, havia a tal
questão jurídica entre Congregações Marianas e Ação Católica, que em si
mesma não apresentava interesse primordial pela circunstância de que a
Ação Católica estava densamente infiltrada dos erros que já apontamos, e
se ela chegasse a suprimir as Congregações Marianas e outras associações,
todas dotadas de espírito tradicional, a mentalidade dos inovadores teria
dominado inteiramente o laicato católico do Brasil.
7. Publicada a “Bis Saeculari Die”. Desagrado do Cardeal de São Paulo
Em 27 de setembro de 1948 foi publicada por Pio XII a
Constituição Apostólica Bis Saeculari Die.
O documento
definia tão claramente a situação das Congregações Marianas, que desfazia
definitivamente qualquer tentativa progressista de imolá-las em favor da
Ação Católica [389].
* *
*
O texto dessa
Constituição chegou até nós por intermédio do Padre Dainese.
E tal foi o nosso entusiasmo, que resolvemos
passar, em nome próprio, um telegrama ao Santo Padre, felicitando-o.
Qual não foi a nossa surpresa ao sermos informados,
alguns dias depois, que o Cardeal Dom Carlos Carmelo estava enfurecido
contra nós.
Por quê? Porque, contra toda a expectativa, Monsenhor
Montini havia telegrafado a ele dizendo que Pio XII recebera o nosso
telegrama, e solicitava ao Sr. Cardeal que, em nome da Santa Sé,
agradecesse aos signatários da mensagem.
O Sr. Cardeal ordenou então que fosse aberto um
inquérito para saber quem havia passado telegrama ao Papa em nome da
Federação Mariana sem falar com ele. E censurou fortemente o Bispo
Auxiliar, Dom Siqueira, por haver deixado ocorrer fato “tão grave” à sua
revelia.
Sabendo disso, procurei logo Monsenhor Loureiro e
expliquei-lhe que o telegrama havia sido enviado em nosso próprio nome e
não em nome da Federação [390].
Tudo elucidado, seria normal que o texto da resposta
pontifícia fosse dado a conhecer aos congregados autores do telegrama,
entre os quais eu, pois disso o Sr. Cardeal fora incumbido pela Santa Sé.
Mas esse texto jamais nos foi comunicado.
O fato, que de si não tem muita importância,
entretanto revela de modo expressivo o ambiente em que estávamos vivendo [391].
* *
*
No domingo seguinte, durante uma Concentração Mariana
em Santo André, um congregado mariano ligado a nós citou vários trechos da
Bis Saeculari Die.
Novas dificuldades, pois um congregado havia ousado
citar um documento pontifício do qual a Cúria ainda não tomara
conhecimento.
Demos então, na Federação das Congregações Marianas,
uma resposta categórica, afirmando que o Santo Padre tem jurisdição direta
sobre todos os fiéis e os documentos pontifícios não precisam do imprimatur da Cúria.
8. A “Bis Saeculari Die” no Congresso Eucarístico de Porto Alegre
Assim que recebemos o texto completo do Osservatore Romano, traduzimo-lo.
Ele foi mimeografado e depois levado para o Sul por
Dom Mayer e por Dom Sigaud, e distribuído no V Congresso Eucarístico
Nacional de Porto Alegre de 1948. Ninguém lá o conhecia.
Durante esse Congresso, o Bispo de Uberaba, Dom Alexandre do Amaral, fez
um discurso em que restringia o sentido da Bis Saeculari Die,
dizendo que as Congregações Marianas eram Ação Católica lato sensu
e não stricto sensu, desvirtuando desse modo o alcance das palavras
do Papa *.
* Abria campo a
esse gênero de desvirtuamento a confusão que pairava sobre o conceito da
palavra Ação Católica, confusão esta explicitada por Dom Antonio de
Castro Mayer em documento enviado ao Sr. Cardeal Dom Jaime de Barros
Câmara, em 19 de março de 1956, a propósito das Conclusões da I
Conferencia Geral do Episcopado Latino Americano, realizada no Rio de
Janeiro entre 25 de julho e 4 de agosto de 1955. Dom Mayer ponderava que
as relações entre a Ação Católica e outras associações com fins e forma de
apostolado, como por exemplo as Congregações Marianas, era matéria “inçada de dificuldades decorrentes, em não pequena parte, de servirem as
palavras Ação Católica para designar ao mesmo tempo um conceito
abstrato (colaboração dos leigos no apostolado hierárquico), e uma das
tantas entidades, nas quais se concretiza aquele conceito (a associação
chamada ‘Ação Católica’). Daí a facilidade com que qualquer texto
referente à Ação Católica se tem prestado a dúvidas de intelecção entre os
especialistas”.
Declarava Dom Alexandre do Amaral que aquela Constituição Apostólica nada
vinha alterar, mas apenas reafirmar doutrinas já expostas pelo Santo
Padre. E portanto se deveria entender que o Papa declarava as Congregações
Marianas ação católica no sentido lato, uma vez que enquanto Secretário de
Estado este mesmo Papa as distinguira da Ação Católica no sentido estrito.
Portanto — concluía S. Excia. — as Congregações Marianas continuariam como
sempre foram, ou seja, meras auxiliares da Ação Católica *.
* Nesse discurso,
pronunciado na 2ª sessão solene do V Congresso Eucarístico Nacional
realizado em Porto Alegre entre os dias 28 a 31 de outubro de 1948, o
Bispo de Uberaba, ante o fato de que suas idéias restritivas a respeito
das Congregações Marianas se viam agora desautoradas pela nova
Constituição Apostólica, procurava forçar uma interpretação labirintiforme
do texto da Bis Saeculari Die, que não contundisse sua posição
progressista. E para isso utilizava uma antiga carta escrita pelo Cardeal
Pacelli, quando Secretário de Estado de Pio XI, a respeito da Ação
Católica, e o próprio texto de Pio XI. Dizia ele: “Ainda agora, no
último documento pontifício, a Constituição Apostólica sobre as
Congregações Marianas, Sua Santidade fez questão de conservar intata
aquela linha de delimitação da A.C. em face das suas venerandas e
preciosas auxiliares, que ele mesmo estabelecia quando, em carta luminosa,
explicava o discurso incisivo de Pio XI de 30/3/30. Pio XII era então
Secretário de Estado de Pio XI. Este discurso e esta carta permanecem
plenamente em vigor”. E, tentando minimizar o alcance da Bis
saeculari, afirmava: “Não se pode negar às Congregações Marianas,
como às demais associações que se entregam ao apostolado social,
‘característica alguma das que distinguem a A.C.’, enquanto se considera,
em sentido lato, na definição mais descritiva de Pio XI: ‘o apostolado dos
fiéis que se põem a serviço da Igreja e de certo modo a ajudam a cumprir
seu ministério’” (Transcrição datilografada enviada a Dr. Plinio pelo
Padre Walter Hofer, SJ, professor e, entre 1951-1954, diretor do Colégio
Anchieta de Porto Alegre).
9. Concentração mariana paralela ao Congresso Eucarístico. Discurso de
Dom Sigaud
Acontece que os congregados marianos haviam organizado, durante o mesmo
Congresso Eucarístico, uma Concentração Mariana no Teatro São Pedro de
Porto Alegre, à qual compareceram Dom Sigaud, Dom Mayer e cerca de trinta
outros Bispos, dos setenta que estavam na cidade [392].
Era
de esperar que, após a Bis Saeculari Die, os Srs. Bispos
procurassem aproveitar a ocasião e mostrar apoio a um movimento tão do
agrado do Romano Pontífice. Nada disso! Ambos os Srs. Cardeais — tanto o
do Rio como o de São Paulo — estiveram ausentes. E o próprio Arcebispo de
Porto Alegre lá não apareceu [393].
Durante a sessão, Dom Sigaud fez um discurso em que leu vários trechos da
Bis Saeculari Die, com comentários sustentando a perfeita
equiparação entre as Congregações Marianas e a Ação Católica. Terminou
sugerindo aos congregados marianos que passassem telegrama ao Santo Padre
agradecendo o documento.
Vários Bispos presentes abandonaram o recinto enquanto Dom Sigaud falava.
Mas nos meios marianos o discurso causou intenso júbilo *.
* Esse discurso de
Dom Sigaud, pronunciado no dia 30 de outubro de 1948, repercutiu cerca de
um mês depois em Roma, recebendo menção elogiosa no Osservatore Romano,
edição de 6 e 7 de dezembro do mesmo ano:
“S. Excia.
Monsenhor Geraldo de Proença Sigaud, Arcebispo de Jacarezinho, pronunciou
um inspirado discurso comentando a recente Constituição Apostólica ‘Bis
saeculari’ sobre as Congregações Marianas, que, por sua exatidão e
fidelidade no interpretar a letra e o espírito do documento pontifício,
merece ser por nós referido”.
* *
*
Logo
depois do discurso de Dom Sigaud, Dr. Paulo Barros de Ulhôa Cintra e Dr.
José Fernando de Camargo, presentes em Porto Alegre, procuraram a redação
do Jornal do Dia e conseguiram a publicação das teses aprovadas na
Concentração Mariana * [394].
* De fato, no dia
seguinte, 31/10/48, o jornal publicou um resumo fidedigno desse discurso.
E registrou a presença de 35 Bispos, sob a presidência do Sr. Arcebispo
Primaz da Bahia, o qual quis prestigiar o evento. O jornal destacava
também o trecho no qual Dom Sigaud dizia que “Sua Santidade o Papa
gloriosamente reinante declara que as Congregações Marianas devem ser
tidas na mesma categoria que as demais associações aplicadas à finalidade
apostólica, e define de ‘pleno jure’, isto é, de pleno direito [que]
são as Congregações Marianas verdadeira e legítima ação católica”. E
transcreveu a lista de teses das Conclusões apresentadas por Dom
Sigaud e aclamadas com prolongada salva de palmas, texto este que seria
distribuído depois a todas as Federações de Congregações Marianas do
Brasil “para fiel e cabal cumprimento da Constituição Apostólica”.
* *
*
Depois dessa divulgação, a reação contra o discurso
de Dom Sigaud foi vivíssima.
O Sr. Arcebispo de Porto Alegre, Dom Vicente Scherer,
proibiu sua divulgação na imprensa católica* [395].
* Esta informação
havia chegado a Dom Mayer através de carta do Padre Antonio Loebmann, SJ,
reitor do Seminário Central de São Leopoldo, em que este dizia:
“Não sei se V.
Exc. já sabe que o Arcebispo de Porto Alegre proibiu a publicação da
conferência de Dom Geraldo Sigaud em jornal, como também se expressou
aborrecido com a publicação das Conclusões da Concentração Mariana”
(doc. cit., de 3/12/48).
E em carta a Dom
Sigaud, datada de 3 de novembro de 1948, esse mesmo sacerdote narra
detalhes pasmosos da meticulosa proibição:
“Hoje de manhã
(4ª f) o Sr. Arcebispo de Porto Alegre visitou o nosso pobre Padre Jorge
Sedelmayer, doente no hospital, Diretor da Federação das CC MM [Congregações Marianas], não para lhe agradecer o bom termo e a
vibrante concentração Mariana, mas para deixar o seu enérgico protesto
contra dita concentração, proibindo terminantemente a publicação de coisa
alguma, aqui em Porto Alegre, sobre a nossa concentração, em particular
proibiu a publicação do comentário de V. Exc. Revma. sobre a Constituição
pontifícia, como também a oração do Senador Apolônio Sales como sendo cantos inconvenientes e provocantes de uma vitória obtida!! Diz ele
ter sido uma Providência [sic] não ter estado presente na dita
concentração, porque ele teria protestado contra a oração de V. Exc....
Também a publicação das conclusões ele teria impedido se tivesse sabido
delas...” (grifos do original).
Por iniciativa do Padre Leme Lopes, jesuíta e
professor na PUC do Rio, o Jornal do Commercio publicou (em
6/11/48) o texto completo do discurso de Dom Sigaud.
O Sr. Cardeal Dom Jaime Câmara manifestou-se
profundamente desgostoso com o que se passara. Acrescentou que, embora não
censurasse a substância do discurso de Dom Sigaud, notara nele alusões ao
“caso de São Paulo”, o que, segundo ele, podia desedificar, dando a
idéia de que havia uma cisão no Episcopado.
O fato concreto era que, observando-se as atitudes
dos dois Cardeais e de Dom Scherer, notava-se nelas um traço comum
fundamental: o desejo de abafar o discurso de Dom Sigaud, e o de afirmar a
coesão do Episcopado.
Eles pareciam não ter conseguido definir bem a
situação criada pelo discurso de Dom Sigaud, e a linha de conduta que
deviam seguir. Daí uma atitude de contemporização e de vacilação, quer em
São Paulo quer no Rio. A posição tomada por eles parecia ser de
expectativa, limitando-se a comentar o menos possível o assunto, e abafar
tudo.
Tanto é que, na reunião do clero o Sr. Cardeal não
disse uma palavra sobre a Constituição, limitando-se a ler um documento
pontifício do ano anterior, sobre os homens da Ação Católica,
acrescentando que “cumprir as diretrizes deste documento, isto sim, é
obedecer ao Papa”. E ficou nisto [396].
10. Artigo e discurso de Dom Mayer
No mês seguinte, novembro de 1948, foi a vez de Dom
Mayer entrar em cena.
No dia 22 saiu um artigo dele para o Santos Jornal,
em que, à luz da Bis Saeculari Die, firmava diversos conceitos que
permaneciam mais ou menos obscuros nos tratadistas da Ação Católica.
Em 19 dezembro, fez ele um momentoso discurso no
interior de São Paulo, durante uma concentração mariana em Piracicaba:
analisou detalhadamente a Bis Saeculari Die, impugnou as
interpretações incorretas que circulavam sobre o documento e ao mesmo
tempo pôs em evidência todo o enorme alcance daquela Constituição
Apostólica [397].
O discurso agradou tanto que
foi objeto de publicação em Roma pelo Boletim Acies Ordinata, do
Secretariado Mundial das Congregações Marianas. No Brasil, foi publicado
pelo Jornal do Commercio do Rio, edição de 19 de abril de 1949, o
que despertou viva repercussão* [398].
* Dom Mayer recebeu
cartas elogiosas de Bispos, sacerdotes e leigos de todo o Brasil, que o
cumprimentavam pela clareza do discurso e coragem de o fazer. Padre
Arlindo Vieira, por exemplo, dizia que “os argumentos apresentados por
V. Exc. são irrespondíveis, embora não hajam de persuadir aqueles que
interpretam a seu modo a palavra do Papa” (Carta de 2/5/49).
* *
*
Pouco tempo depois, veio a réplica do Cardeal de São Paulo, Dom Carlos Carmelo, que publicou uma
Carta Pastoral na qual procurava refutar os pronunciamentos dos dois
Bispos, citando ad verbum o de Dom Sigaud
em Porto Alegre e in genere o de Dom Mayer *.
* Frei Batista Blenke, sacerdote carmelitano muito amigo do grupo do
Legionário e
que na época estava em Roma, na Casa Generalícia da Ordem do Carmo,
escreveu a Dom Mayer em abril de 1950, contando o seguinte:
“V. Exc.ia pode
ficar tranqüilo. Parece que esta vossa atitude foi comunicada ao S. Padre.
O S. Padre está ao par das cousas brasileiras; disseram-lhe que houve
alguma dúvida a respeito da ‘Bis Saeculari’; ele respondeu (admirado):
‘mas como é: eu falei com tanta clareza!’
“Porém seria
muito oportuno se V. Exc.ia e Dom Sigaud viessem a Roma e falassem
claramente e explicassem tudo ao S. Padre (assim falou Padre Danti S.J.).
Pois o Papa gosta de ouvir os Snrs. Bispos e toma nota do que dizem.
Também houve boas referências a respeito de vossa atitude; parece que o
Srn. Núncio escreveu neste sentido também a S. Santidade” (Carta de
Frei Batista Blenke a Dom Mayer, 12/4/50).
11. A questão da tradução da “Bis Saeculari Die”
Novo
problema na Federação Mariana.
Como
éramos membros da diretoria da Federação Mariana de São Paulo, julgamos de
nosso dever dar divulgação à Bis Saeculari Die.
Então alguns dos nossos distribuíram em folhas mimeografadas a tradução de
alguns tópicos do documento.
O
presidente da Federação, Dr. José Amadei, repreendeu-os por isto, alegando
que deveríamos ter antes pedido licença à Autoridade eclesiástica local
para fazê-lo* [399].
* Dom Antonio Alves
de Siqueira, designado em 1948 pelo Sr. Cardeal de São Paulo para
substituir os jesuítas na direção da Federação das Congregações Marianas,
e o Padre Boaventura Cantarelli, sacerdote salvatoriano que era seu braço
direito, afirmaram que a tradução continha erros, e que ouviram no Palácio
São Luís a informação de que a publicação tinha sido feita como um acinte
a Sua Eminência (cfr. Palestra sobre Memórias (X) 15/8/54).
Ao mesmo tempo,
pessoas chegadas ao palácio cardinalício avisavam à diretoria da Federação
Mariana que era preciso ter muito cuidado na divulgação do documento
pontifício, porque “estava fazendo sofrer nosso Cardeal” (cfr.
Memorando para o Cônego Antonio Leme Machado, data provável 1948).
* *
*
Pouco depois, outro incidente.
Quando levantamos a necessidade de publicar no
Boletim da Federação a íntegra do documento pontifício, houve da parte
do presidente da Federação má vontade e protelações, que seria longo
narrar aqui.
Foi
mesmo necessário que um membro da diretoria lembrasse ao presidente que
incorriam em excomunhão, pelo Código de Direito Canônico, as pessoas que
impedissem a difusão dos documentos pontifícios [400].
Vencidas essas dificuldades, foi impresso por fim, no
número de outubro de 1948, o texto latino da Constituição Apostólica com a
respectiva tradução portuguesa, feita de modo muito fiel pelo Padre
Augusto Magne S.J., um conhecido latinista [401].
A edição foi avidamente recebida pelos congregados
marianos, e se esgotou logo.
* *
*
Fez-se então uma segunda edição.
Estava ela sendo distribuída quando o
presidente da Federação, em reunião da diretoria,
declarou que o Padre Enzo Gusso, enquanto secretário do Sr. Cardeal, lhe
transmitira ordem para suspender essa edição [402],
mandando recolher todos os exemplares que traziam a nossa tradução, porque
o Sr. Cardeal iria publicar um texto oficial [403].
Pouco depois, o mesmo Padre Enzo Gusso enviou, para
ser publicada em terceira edição, uma tradução substancialmente idêntica à
primeira, exceto num ponto absolutamente capital, este adulterado [404].
A
alteração era a seguinte.
O
texto latino, oficial, afirmava, em síntese, que, como as Congregações
Marianas são reconhecidas pelos sagrados pastores, são Ação Católica.
Já o
texto adulterado dizia que as CC.MM. são Ação Católica “desde que sejam
recebidas nas fileiras da milícia apostólica pela Hierarquia Eclesiástica
e dela dependam em iniciar e realizar os trabalhos de apostolado”.
Essa
tradução transferia jeitosamente aos Bispos o poder de reconhecer ou não
as Congregações Marianas como Ação Católica [405]
Os
Congregados recusaram-se a divulgar esta versão com o sentido tão
gravemente adulterado.
Dr.
José Fernando de Camargo apresentou então ao Padre Boaventura Cantarelli o
nosso texto em português da Bis Saeculari Die. Este o entregou a
Dom Siqueira para apreciação.
Dom
Siqueira, de posse das traduções — a oficial da Arquidiocese, adulterada,
e a nossa, equivalente à da Poliglota Vaticana [406]
— disse que considerava certa a nossa tradução publicada pelo boletim da
Federação das Congregações Marianas. Mas que, “em homenagem ao Sr.
Cardeal”, aceitássemos colocar, na terceira edição, a que ele estava
mandando. E acabou exigindo que fosse publicada tal qual [407].
E essa versão, com o sentido adulterado*, nunca foi retirada de circulação
no Brasil [408].
* Uma curiosidade.
No site do Vaticano (vatican.va) por nós recentemente consultado, aparecem
em latim todas as constituições apostólicas emanadas durante o pontificado
de Pio XII, e também as traduções em algumas línguas, em geral feitas pelo
departamento competente da Cúria Romana. Da Bis Saeculari Die, a
única tradução existente é... para o português! Isto parece indicar que
essa Constituição Apostólica tinha especial interesse para o Brasil. O
que, por sua vez, mostra como a Santa Sé acompanhava com atenção a
polêmica que aqui se travava a respeito do tema.
* *
*
Esses embates nas reuniões da diretoria da Federação
Mariana de São Paulo foram tão comprometedores para os adversários da Bis Saeculari Die, que eles fizeram desaparecer por muito tempo o
livro das atas, pelo que foi impossível registrar metodicamente as
ocorrências durante as reuniões.
Sob pretexto de brevidade, fez-se uma ata sumária
relativa ao período em que o livro estivera “perdido”. Essa ata “sumária”
omitia tudo quanto pudesse prejudicar os inovadores, e era tão
tendenciosamente redigida que acabou não sendo aprovada pela diretoria [409].
12. Comissão Episcopal se arroga o privilégio de interpretar os
documentos pontifícios
Outro fato significativo.
Pouco depois do V Congresso Eucarístico de Porto
Alegre, a Comissão Episcopal de Ação Católica, composta pelos Srs.
Cardeais Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Motta e Dom Jaime de Barros
Câmara, pelos Srs. Arcebispos Dom Augusto Álvaro da Silva, de Salvador e
Dom Antonio dos Santos Cabral, de Belo Horizonte, e pelo Sr. Bispo Dom
João da Matha de Andrade Amaral, de Niterói, fez publicar um edital,
datado de 3 de novembro de 1948, dizendo que a interpretação dos
documentos pontifícios cabia apenas àquela Comissão *.
* Era uma afirmação
de suma gravidade, pois a Comissão Episcopal extrapolava de seu papel ao
chamar a si a interpretação de um documento pontifício. Além do mais, ela
não tinha nenhum poder legislativo sobre os Bispos e só podia falar em
nome deles para todo o Brasil com o assentimento unânime de todos e de
cada um dos Bispos brasileiros.
No comunicado
oficial está dito que a Comissão Episcopal da A.C. “determina”
[sic!] oficialmente ao Episcopado que, “para salvar a unidade de
orientação”, ela “se reserva, naquilo que se refira ao
apostolado externo, a interpretação oficial da ‘Bis Saeculari Die’
no âmbito nacional”. Assinava pela Comissão Episcopal da A.C.B. o seu
secretário, Dom João da Matha de Andrade Amaral, Bispo de Niteroi.
A repercussão desse
documento em certos círculos vaticanos parece não ter sido nada boa, a se
julgar pelas informações do seminarista Amaury Castanho, futuro Bispo de
Valença (RJ) e depois de Jundiaí (SP), então estudante no Pio Brasileiro.
Dizia ele numa
carta de 17/2/50 para um destinatário ignoto: “Depois das dissensões
surgidas por causa daquele item da Comissão Episcopal da A.C. que se
reservava o direito de interpretar a Carta Apostólica do Santo Padre, Dom
Jorge [Marcos de Oliveira] ficou encarregado de consultar a Santa
Sé sobre o que se deveria fazer entre nós. Lá por agosto do ano passado a
resposta seguiu para o Brasil. A respeito do teor da resposta, somente se
conseguiu saber por aqui que ‘è stata favorevolissima alle Congregazioni’
[‘foi favorabilíssima às Congregações Marianas’]. [...] Houve conveniência em não divulgar no Brasil a resposta da Santa Sé?
Parece que houve pelos seguintes motivos: 1) a solução ou carta mandada
por Roma foi só para o Episcopado. 2) Não terá sido favorável à ala
oposicionista [à Carta Apostólica] e pois estava fadada, a tal
resposta, ao arquivo. [...] Dentro do mesmo assunto Dom Jaime,
quando esteve em Roma quis tirar as coisas a limpo. Pediu soluções às
dificuldades que tinha ao Sr. Cardeal Pizzardo, que praticamente não
respondeu por si a Sua Eminência. Foi quando Dom Jaime interrogou
diretamente o Santo Padre. Ele, o Santo Padre, respondeu simplesmente ao
Sr. Cardeal, nós só fomos informados disso por Dom Jaime (!), que
‘Soltanto il Papa ha il diritto di interpretare la Lettera Apostolica’ [‘somente o Santo Padre tem direito a interpretar a Carta Apostólica’].
Conseguintemente, aquele item da Comissão Episcopal foi prematuro. Aliás,
há bem uns anos que o Código [de Direito Canônico] não deixava
dúvida sobre quem pode interpretar um documento pontifício!!!”
Tomando conhecimento dessa circular da Comissão
Episcopal, Dom Mayer e Dom Sigaud enviaram, cada um por seu turno, uma
carta* ao secretário Dom João da Matha de Andrade Amaral, em que
sustentavam não ter a Comissão Episcopal o poder de impor determinada
interpretação dos documentos pontifícios: somente o Papa podia fazê-lo.
* Na carta de Dom
Mayer, datada de 18 fevereiro de 1949, ele afirmava:
“Diz essa DD.
Comissão Episcopal que se reserva a ‘interpretação oficial’ da
Constituição Apostólica no plano nacional. Com toda a reverência, permita,
Sr. Bispo, que declare que não posso reconhecer à Veneranda Comissão
Episcopal o direito de ‘interpretar oficialmente’ a palavra do Santo
Padre. A interpretação autêntica da palavra pontifícia só à Santa Sé
pertence. [...]
“Como é bem
evidente, os dois princípios que dominam o assunto são: a) a suprema,
inteira e direta jurisdição do Santo Padre sobre cada Bispo e cada fiel;
b) a autonomia do Bispo em sua diocese — ressalvadas as disposições
canônicas com relação ao Metropolita — no governo de sua grei com relação
aos poderes que não sejam do Santo Padre, e o conjunto de organismos que
constituem a Santa Sé e que, sob dependência do Sumo Pontífice, constituem
o governo da Igreja.
“Do primeiro
princípio decorre, como já lembrei, que, em tudo que se relaciona com atos
do magistério ou governo supremo da Igreja, a situação da Comissão
Episcopal é, como a de qualquer Bispo, meramente obediencial. Não pode nem
sequer interpretar autenticamente a palavra do Pontífice.
“Mas — e passo
para o segundo princípio — esta função obediencial não se exerce sobre os
Bispos e fiéis a título governativo. Em outros termos, não compete à
Comissão Episcopal dar ordem aos bispos no que diz respeito ao cumprimento
de determinações emanadas da Santa Sé”.
13. Resultado do esforço: a “Bis Saeculari Die” ficou conhecida no
Brasil
Narro ainda um último episódio.
Em
1950, quando estive em Roma, apresentei as provas das resistências e
manobras dos que procuravam cercear os efeitos do documento papal, e Dom
Mayer apresentou um relatório oficial como Bispo.
No
ano seguinte, quando Dom Sigaud por seu turno ia partir em viagem a Roma,
de passagem pela Nunciatura no Rio, ouviu o seguinte do Sr. Núncio, na
época Dom Carlo Chiarlo:
— V.
Excia. vai a Roma? Muitos brasileiros têm ido lá entregar uns pedacinhos
de papel à Secretaria de Estado. E, por causa disso, eu recebi
recentemente a maior repreensão de minha vida diplomática. Eu não posso
compreender porque mandam esses recortes para Roma e não me entregam aqui.
Para que levar a Roma?
Dom
Sigaud ouviu, despediu-se e tudo ficou em ordem *.
* Mal sabia o Sr.
Núncio que Dom Sigaud não estava levando apenas “uns pedacinhos de
papel” a Roma, mas um substancioso relatório de 123 páginas
datilografadas, para cuja elaboração teve a ampla colaboração de Dr.
Plinio. A data desse relatório é 10 de junho de 1951.
* *
*
Assim, com todos esses esforços, foi possível evitar
que a Bis Saeculari Die não fosse conhecida no Brasil.
Mas também ficou patente a luta que houve para se
conseguir publicar aqui um documento pontifício
[410].
1. Boicote do Cônego Enzo Gusso a um recado da Santa Sé?
Anos antes de eu receber da Santa Sé a carta de
elogio ao meu livro, havia acontecido um fato muito grave.
O Padre Veloso [411]
comunicou-me que havia recebido uma carta do Padre Castro e Costa, meu
antigo professor no Colégio São Luís, muito sentido comigo por eu não ter
respondido a uma carta muito importante que ele havia me enviado por
intermédio do Cônego Enzo Gusso, que acompanhara o Cardeal Motta à Europa [412].
Padre Costa e eu éramos muito amigos, e sempre
conservamos boas relações. Ele se tornou ardente protetor do meu livro em
Roma [413].
Escrevi então ao Padre Costa*, dizendo que não havia
recebido a carta que ele entregara em confiança ao Cônego Enzo Gusso.
* No post
scriptum dessa carta ao Padre João de Castro e Costa, SJ, diz Dr.
Plinio: “Relendo a carta, vejo que omiti o seguinte: Padre Enzo disse
ao Padre Veloso que reconhece haver recebido do Sr. a dita carta, que,
chegando a São Paulo, ele pôs no correio, com endereço a mim! Esta carta
não me chegou às mãos, como o Sr. vê” (Carta ao Padre João de Castro e
Costa, SJ, 7/8/46).
Padre Costa enviou-me então uma outra carta do mesmo
teor, na qual ele me dizia que Monsenhor Lombardi, então encarregado dos
assuntos brasileiros na Secretaria de Estado, mandava dizer-me que meu
livro havia sido examinado pela Secretaria de Estado e considerado
rigorosamente ortodoxo. Dizia também que [414]
não iria mandar uma carta da Secretaria de Estado, pois isso iria
melindrar o Sr. Cardeal Arcebispo de São Paulo e outros prelados. O Padre
Costa, além disso, pediu-me a mais estrita reserva sobre as informações
que estava fornecendo [415]:
não deviam ser publicadas, e eram dadas só para a tranqüilidade de minha
consciência. E que esperava da minha discrição que eu nada dissesse.
* *
*
Por coincidência, no mesmo dia em que eu recebi a
nova carta do Padre Costa, encontrei-me com o Cônego Enzo Gusso na rua.
Perguntei-lhe então se não havia recebido uma carta do Padre Costa para me
entregar.
Muito atrapalhado, ele disse que recebera sim, e que
havia colocado um selo nela e posto no correio, endereçando-a a mim aqui
em São Paulo.
Eu disse:
— Mas o senhor recebe uma carta em Roma para
trazer a mim e a põe no correio de São Paulo?
Ele:
— Eu não tenho obrigação de levar carta em sua
casa.
— Realmente, e eu não discuto isto: bastaria o
senhor me telefonar, que eu a mandaria buscar.
— É, eu não tive essa idéia.
— Porque a carta extraviou-se... Extraviou-se, mas
eu recebi cópia.
Naturalmente, logo depois seguiu um relatório para
Roma, contando o sucedido.
2. Conversa com o provincial dos jesuítas. Nossos documentos chegavam
à Santa Sé
Alguns dias antes [416]
de ter eu recebido a carta de aprovação de meu livro, ainda em março de
1949, fui chamado pelo Padre Arturo Alonso, provincial dos jesuítas [417].
Para se saber que orientação tinha este Padre Arturo
Alonso, basta dizer que os Padres César Dainese e Arlindo Vieira haviam
sido destinados por ele a cargos em que automaticamente ficavam afastados
de mim e do grupo do ex-Legionário [418].
Ele havia chegado há pouco de Roma e o encontrei
acamado, com a perna fraturada. Ele me disse:
— Não adianta continuar a cutucar a Santa Sé com
os sucessivos relatórios que manda para Roma, visando crucificar este
pobre Provincial da Companhia [419].
E abrindo teatralmente os braços em forma de cruz,
disse:
— Eu vi os seus relatórios na mesa do Papa.
Para mim, ouvir aquilo foi interiormente um júbilo.
Ele continuou:
— Sei que o senhor quer a aprovação do seu livro.
Não insista, pois a Santa Sé nunca jamais aprovará o seu livro. Está
preparado um golpe da Santa Sé a favor das Congregações Marianas. Se o
senhor soubesse de que natureza é, o senhor iria ficar muito contente. Mas
esse golpe não acarretará a aprovação de seu livro [420].
Depois explicou:
— A atitude que os jesuítas têm tomado, de não
mover nenhuma luta, tem explicações transcendentais que eu não posso dar
ao senhor. E por isto não adianta o senhor me apontar nos seus relatórios
como homem que atraiçoa a Igreja.
Eu respondi:
— Padre Alonso, eu não tenho autoridade para
dizer-lhe o que eu penso a seu respeito. O senhor não é meu súdito. Mas,
uma vez que o senhor foi ler cartas dirigidas a quem eu tenho, segundo o
Código de Direito Canônico, o direito de me dirigir, eu devo dizer que, o
que o senhor leu lá, é exatamente o que eu penso a seu respeito.
— Então, o velho Plinio é sempre o mesmo,
inflexível contra mim?
— Enquanto o senhor for inflexível nessa atitude
de flexibilidade para com o erro, eu serei inflexível contra o senhor [421].
— E o senhor acha que o senhor foi justo comigo?
— Padre, eu pergunto ao senhor: nesses relatórios
há algum argumento que seja falso? Algum fato que seja errado? Alguma
coisa que não esteja bem raciocinada? Se houver, estou disposto a dar a
mão à palmatória. Mas, “amicus Plato, sed magis amica veritas” — “Platão
pode ser nosso amigo, mas a verdade é mais nossa amiga do que Platão”.
Quer dizer, o senhor pode ser meu amigo, mas eu sou mais amigo da verdade
do que do senhor.
— É, Dr. Plinio, nem tudo é lógica, muita coisa na
vida é coração.
— Padre, é exatamente com o que eu não estou de
acordo. O coração contra a lógica não vale nada. Um coração contra a
lógica é um coração torto e errado. Ou é lógica ou é nada [422].
— O senhor não enxerga que a gente deve se
contentar com o mal menor, quando não se pode conseguir tudo? Os golpes
que o senhor quer dar nos adversários nunca surtirão bons resultados. O
senhor quer o impossível.
E por aí foi a conversa, muito longa, mais de uma
hora. Mas achei muito esquisita a insistência dele de sempre me recomendar
que não insistisse pela aprovação de meu livro [423].
Nunca mais vi esse homem. Mas fiquei encantado de ver
que o conduto por onde enviávamos nossos documentos a Roma funcionava e
que Pio XII tinha mandado chamá-lo para apertar [424].
3. Em nome de Pio XII, carta de louvor de Monsenhor Montini
Um belo dia [425],
lá pelo mês de março de 1949, Frei Jerônimo Van Hinten, um carmelita que
tinha se aproximado de nós em 1946 ou 1947, portanto no período da
desgraça, telefonou-me [426]
na hora do almoço dizendo o seguinte:
— Recebi uma carta vinda de Roma dirigida ao
senhor. É da Secretaria do Estado da Santa Sé, mas está fechada. O senhor
quer que faça o quê?
— Abra e leia a carta.
Ele leu e era uma carta de aprovação da Santa Sé ao
livro Em Defesa da Ação Católica. Uma carta oficial em latim,
assinada por Monsenhor João Baptista Montini, que dirigia então a
Secretaria de Estado.
Eu caí de várias nuvens e disse a ele:
— Frei Jerônimo, isso é fantástico! [427]
Eis seu texto em português:
Palácio do Vaticano, 26 de fevereiro de 1949
Preclaro Senhor,
Levado por tua dedicação e piedade filial ofereceste ao Santo Padre o
livro “Em Defesa da Ação Católica”, em cujo trabalho revelaste aprimorado
cuidado e aturada diligência.
Sua Santidade regozija-se contigo porque explanaste e defendeste com
penetração e clareza a Ação Católica, da qual possuis um conhecimento
completo, e a qual tens em grande apreço, de tal modo que se tornou claro
para todos quão oportuno é estudar e promover tal forma auxiliar do
apostolado hierárquico.
O Augusto Pontífice de todo o coração faz votos que deste teu trabalho
resultem ricos e sazonados frutos, e colhas não pequenas nem poucas
consolações.
E como penhor de que assim seja, te concede a Bênção Apostólica.
Entrementes, com a devida consideração me declaro teu muito devotado
(a) J. B. MONTINI
Subst.* |
* Esta carta da Santa Sé, com o timbre da Secretaria de Estado, chegou às
mãos de Dr. Plinio acompanhada de uma outra carta de Frei Batista Blenke,
em que este explicava porque havia mandado a correspondência através de
seu irmão de hábito, Frei Jerônimo (Frei Batista tinha sido o primeiro
pároco da igreja, depois Basílica, de Nossa Senhora do Carmo da rua
Martiniano de Carvalho, em São Paulo, e posteriormente Procurador Geral da
Ordem em Roma).
Em sua carta a Dr. Plinio, Frei Batista dizia:
“Tenho o prazer de
passar às suas mãos a carta que o Santo Padre lhe manda por intermédio do
Monsenhor Montini. Peço desculpa por mandá-la por este caminho
[através de Frei Jerônimo]; porque o endereço ut supra seja talvez
errado, achei mais prudente enviá-la ao convento do Carmo. Conforme ao seu
pedido, tentei obter a opinião do Santo Ofício, mas não foi possível,
porque este Dicastério não costuma manifestar-se nesse sentido. Faço votos
que a bênção do Santo Padre seja um estímulo para continuar seus trabalhos
com o intuito de fazer Cristo sempre mais e mais conhecido e amado no
Brasil” (carta de Frei Batista Blenke a Dr. Plinio, de 4/3/49)
Por uma carta anterior do mesmo Frei Batista a Frei Jerônimo, datada de 21
de fevereiro de 1949, constatamos que, se Frei Batista não foi o único a
fazer chegar o livro Em Defesa à Secretaria de Estado, foi pelo
menos um dos que o encaminharam àquela alta Secretaria, e o que teve o
encargo de transmitir a aprovação da Santa Sé a Dr. Plinio.
Na referida carta de Frei Batista, ele diz a Frei Jerônimo:
“Escrevi-lhe a respeito do livro ‘Em Defesa da Ação Católica’. Dr. Plinio
me pediu no ano passado mandar o livro para o Santo Ofício e ver se havia
possibilidade de obter a opinião do mesmo Dicastério. Fiz alguma coisa
nesse sentido, mas não foi possível; na mesma ocasião o Sr. Plinio me
disse que já tinha mandado antes o livro ao Padre Costa S.J., que está no
Colégio Brasileiro em Roma, para oferecê-lo ao Santo Padre e ver se havia
possibilidade de obter alguma coisa neste sentido; porém o mesmo Padre
Costa não havia dado resposta. Eu por mim pensava que fossem talvez motivo
de ordem por assim dizer ‘diplomática’ que o livro não foi introduzido na
Secretaria de Estado, pois, como sabemos, no Brasil não faltaram as
‘críticas’. Portanto não quis imediatamente fazer alguma coisa neste
sentido, pois nestas coisas precisamos de usar da maior prudência. Tomei
diversas informações etc. Agora está assim: o livro já está na Secretaria
de Estado; eu espero qualquer resposta. Se vier uma resposta, i. é, uma
carta, mandarei ao Sr. [...] Infelizmente não pude oferecer o livro
na sua própria forma: deveria ser encadernado com couro branco, e com a
inscrição em letras douradas; não sabia disso. [...] Naturalmente
suponho que venha qualquer resposta da Secretaria de Estado”.
Significativa também é a carta de agradecimento que Dr. Plinio enviou a
Frei Batista, da qual destacamos o seguinte trecho: “Tudo isto me leva,
prezado Frei Batista, a sentir o mais comovido reconhecimento pela amizade
com que V. Revma. me prestou seu valiosíssimo e decisivo auxílio neste
passo importante de nosso apostolado. Todos os meus amigos do
‘ex-Legionário’ e muito particularmente Dom Mayer e Dom Sigaud participam
comigo, intensamente, desse reconhecimento. Vejo um requinte de bondade de
Nossa Senhora no fato de tão grande graça haver chegado a mim, modesto
noviço carmelita da Ordem Terceira, pela única e direta interferência do
Procurador de nossa Ordem” (carta sem data conhecida, provavelmente de
março de 1949).
Curiosa é a carta dirigida a Dr. Plinio por Monsenhor Pascoal Gomes Librelotto (1901-1967), Major Capelão do 1º Grupo de Caça e da FEB, e
também 1º Capelão da FAB (cfr. http://www.sentandoapua.com.br).
Nesta carta, ele narra a audiência privada que teve durante mais de uma
hora com Pio XII, na qual falou-se sobre o livro Em Defesa da Ação
Católica:
“Em 1944 segui para a guerra como Ten. Cel. Capelão Chefe da FAB, e a
pedido do Santo Padre fiz um Relatório sobre a situação da religião no
Brasil em 19 páginas papel almaço à máquina, que apresentei aos 21 de
Março de 1945 em audiência privada que durou mais de hora.
“Escrevi um Capítulo inteiro sobre o tema: - Como eu entendo a Ação
Católica — que o Santo Padre aprovou com estas palavras: - ‘È proprio
così’ [‘É exatamente isto’]. — No Relatório fiz um apelo ao Santo
Padre mandasse examinar o seu livro e o do Padre Cândido Santini S.J., e,
caso houvesse neles algo menos certo, fossem disso notificados os autores
que certamente fariam a correção.
“Disse, e por escrito, que uns condenavam como falso o seu livro,
outros silenciavam e outros o aprovavam e aplaudiam, e que eu, pertencendo
aos últimos, o achava ótimo, digno de ser conhecido” (carta de
18/5/49).
Em carta a Dr. Plinio (7/9/46), o Padre João de Castro e Costa conta que
Monsenhor Librelotto o havia alertado sobre rumores de que o livro Em
Defesa seria condenado pela Comissão Episcopal da Ação Católica
brasileira.
Desta vez, tudo se tornava
cristalino. Pio XII louvava e recomendava o livro do kamikaze [428].
Era um triunfo enorme. Um triunfo que deixava muito
mal os nossos adversários, sobretudo o Arcebispo de São Paulo, Cardeal Dom
Carlos Carmelo.
Eu nem almocei. Fui diretamente de automóvel pegar a
carta no Convento do Carmo [429].
Fiquei evidentemente muito contente, senti um alívio
como se uma série de pressões que se exerciam contra mim se
descomprimissem [430].
Na sede, fizemos em conjunto grandes orações a Nossa
Senhora, para agradecer a Ela este imenso favor.
E naquela mesma noite organizei um jantar para os
meus companheiros de luta, num dos melhores restaurantes de São Paulo.
* *
*
No dia seguinte, a primeira providência foi redigir
uma notícia a respeito. E a distribuímos a todos os jornais de São Paulo.
Dois ou três publicaram a notícia, dando um resumo da
carta. Era o que podíamos fazer como publicidade. Mas foi uma bomba!
Ninguém imaginava isso [431].
Mandei também uma carta muito respeitosa ao Cardeal,
através de Monsenhor Loureiro, comunicando o recebimento do documento da
Santa Sé, e colocando-me inteiramente à disposição dele como o menor dos
servidores. Carta esta que ficou sem resposta [432].
Por fim, enviei a Monsenhor Montini a seguinte carta:
“São Paulo, 19 de
março de 1949
“Excelência
Reverendíssima,
“Apresentando-vos
minhas homenagens muito sinceras, eu vos agradeço a carta que Vossa
Excelência Reverendíssima me fez a honra de escrever, ao transmitir os
augustos sentimentos de benevolência do Santo Padre em relação ao meu
livro ‘Em Defesa da Ação Católica’.
“Compus este meu
trabalho com o único desejo de tornar conhecidas as sábias diretivas da
Santa Sé no assunto Ação Católica, e de as defender contra as
interpretações verdadeiramente perigosas. Nada, pois, pode me tocar mais
profundamente do que saber que meu livro foi honrado pela augusta
aprovação do Soberano Pontífice.
“Suplico a Vossa
Reverendíssima de ter a condescendência de depositar aos pés do Vigário de
Jesus Cristo meus sentimentos do mais humilde e do mais filial
reconhecimento.
“Possa Deus
conceder-me a graça de servir ao Santo Padre em todos os instantes de
minha vida, e de derramar meu sangue por Ele, se a ocasião se apresentar.
“Conto, para isto, com
as preces de Vossa Excelência Reverendíssima, e aproveito a ocasião para
vos apresentar, Monsenhor, os protestos de minha respeitosa consideração.
“De Vossa Excelência
Reverendíssima, o
“mais devotado em
Nosso Senhor” etc. [433].
|
Nossa situação começou assim a se recompor, e um
problema pôs-se para nós.
Percebia-se que uma multidão de católicos continuava
a não ter a mínima idéia da crise medonha que lavrava dentro da Igreja e,
portanto, não estava acumpliciada com essa crise.
Se nós de algum modo tivéssemos possibilidade de
agir, ainda poderíamos salvar uma boa parte desse contingente. E aos que
eu chamaria de católicos intermediários, poderíamos fazer o convite de São
Luís Maria Grignion de Montfort: Quem é de Deus, una-se a nós! [434]
Agora, como fazer isto?
Um dos primeiros passos foi dar uma clarinada, para
fazer entender a esse público que todos os ideais defendidos e sustentados
no Em Defesa da Ação Católica continuavam de pé. E que aquela
corrente que se reunia em torno do livro, já agora em novas fortificações,
oferecia um reinício de batalha.
Para isto, foram adotadas algumas medidas.
5. Carta de Dr. Ablas ao Padre Helder Câmara
Uma importante providência que tomamos foi uma
declaração de guerra ao lado progressista, para que este sentisse que a
batalha havia recomeçado, pois cortava-lhe espaços. Consistiu no seguinte.
Dr. Antonio Ablas Filho era presidente da Ação
Católica de Santos e muito meu amigo. Quando viajávamos a Santos, todas as
noites íamos à sua casa, tínhamos longas conversas com ele e com Dª
Julinha Guimarães Ablas, sua esposa. Os filhos, ainda muito pequenos,
ficavam ali ouvindo a conversa.
Sem fazer rodeios, porque a posição dele para conosco
era muito leal, eu propus o seguinte:
— Ablas, você poderia nos prestar um favor?
Escrever um ofício, enquanto presidente da Ação Católica de Santos, ao
Monsenhor Helder Câmara, que é assistente eclesiástico da Junta Nacional
da Ação Católica no Rio, dizendo a ele que havia chegado tal aprovação da
Santa Sé ao meu livro. E que seria conveniente que a Ação Católica, indo
ao encontro dos desejos do Santo Padre manifestados de modo claro ao se
referir à difusão de tal trabalho, recomendasse oficialmente a leitura da
obra aos seus membros.
Ablas gostou muito da idéia e dentro de poucos dias a
carta estava em mãos do Monsenhor Helder *.
* O primeiro ofício
foi enviado pela Junta Diocesana de Santos no dia 30 de março de 1949, e
levava a assinatura de Dr. Ablas enquanto presidente e do Sr. Ítalo
Sartini enquanto secretário. Como não viesse resposta, Dr. Ablas mandou um
segundo ofício, datado de 23 de junho de 1949, reiterando o mesmo pedido.
Dizia que, “procedendo desta forma, empenha-se esta Junta Diocesana
única e exclusivamente em ir de encontro dos desejos do Santo Padre Pio
XII, gloriosamente reinante, manifestados de modo claro e insofismável ao
se referir a tão importante e oportuno trabalho”.
Não tendo ainda
desta vez obtido resposta, Dr. Ablas telefonou diretamente a Monsenhor
Helder Câmara (em 20/1/50), o qual era o assistente geral da Junta
Nacional de Ação Católica, mantendo o seguinte diálogo:
- É Monsenhor Helder Câmara?
- Sim senhor.
- Louvado seja Nosso Senhor Jesus
Cristo!
- Para sempre seja louvado.
- Aqui quem fala é o Dr. Ablas
Filho, presidente da Junta Diocesana de Ação Católica de Santos. A sua
bênção, Monsenhor.
- Deus lhe abençoe. O que o
senhor deseja?
- Monsenhor, eu desejo saber algo
sobre aqueles dois ofícios que lhe foram enviados, um pelo correio, outro
pelas mãos de pessoa amiga aí do Rio.
- O que o senhor pede naqueles
ofícios é uma coisa muito delicada!
- Como delicada? Não há a
respeito uma carta do Santo Padre?
- Vou me dirigir à comissão
episcopal de AC para então lhe responder a respeito.
- Sim, Monsenhor, eu preciso de
uma resposta, pois penso que, seja qual for a resposta, os tais ofícios
precisam tê-la. Pelo menos me responda que recebeu os ofícios.
- Sim senhor, lhe responderei
muito breve.
Dr. Ablas se
despediu dele, pediu sua bênção, mas o assunto não andou (cfr. relatório
do dia 30/1/50, feito pelo próprio Dr. Ablas).
Monsenhor Helder não respondeu, mas ficou sentindo
que a contra-ofensiva recomeçara. Foi como naquelas batalhas medievais, em
que um dos lados sai, canta um hino e depois começa a guerra. Assim também
nós levantamos a luva [435].
6. Resultados do “Em Defesa” a longo prazo
O Em Defesa foi um livro cujo alcance é muito
mais fácil de se perceber hoje do que no tempo em que foi escrito. Naquela
época estava em estado de vagido o bramido que hoje o progressismo dá no
mundo inteiro [436].
Os perigos que nele indiquei eram apenas a semente do que depois tomou
corpo, se ampliou e deu no que vemos atualmente [437].
Na relativa modorra do ambiente religioso daquela
época, era difícil para um católico acreditar que se gestava uma heresia,
a qual se anunciava como um bom e normal desenvolvimento da vida da
Igreja. Ou seja, a Ação Católica se apresentava como uma novidade, quando
de fato era uma revolução que estava nascendo.
Nos seminários, nas universidades mantidas pelo
Estado ou pela Igreja, na imprensa católica, na direção das grandes
associações católicas, essas idéias foram introduzidas a um tempo, e
aceitas geralmente pelas mesmas pessoas, e vieram a constituir o programa
vastíssimo de transformações eclesiásticas, políticas e sociais
propugnadas por uma imensa e poderosa corrente, cujo chefe leigo era
Tristão de Athayde.
E esta corrente difundia seus erros ora de modo
explícito, ora de modo implícito. E era muito mais clara em suas doutrinas
na propaganda verbal do que na escrita [438].
Por isso, na época, muita gente católica julgou que o
quadro que eu traçara era forçado demais.
Esses católicos achavam que, depois da Contra-Reforma
e da definição do dogma da infalibilidade papal, não havia nem poderia
haver dentro da Igreja espaço para desenvolver-se um movimento herético. E
eriçaram-se contra o livro.
Mas, à medida que a crise interna da Igreja foi-se
acentuando, ficou patente aos olhos dessas incontáveis pessoas que era de
fato a trama profunda de uma revolução na Igreja no século XX o que havia
sido denunciado [439].
O livro foi perseguido porque furava essa conspiração
que iria fazer prevalecer esse estado de coisas na Igreja Católica várias
décadas depois [440].
Nesta situação, parecia-me como certo que o único
meio de disputar terreno ao adversário consistia em abrir a luta de
viseira erguida, combatendo mais uma vez a tática da confusão pela tática
da definição.
Tenho como certo que, se não tivesse sido publicado o
Em Defesa da Ação Católica, a heresia que acabou penetrando por
toda parte teria penetrado muito mais, e já naquela época seria senhora do
País.
E se é verdade que hoje ela está espalhada de um modo
tremendo, também é verdade que, por ter sido denunciada no seu início, ela
caminhou limitada, mal à vontade e com o passo cambaleante, por ter havido
alguma coisa que a freou. Disto eu tenho certeza [441].
Quando a Ação Católica foi trazida da Europa para o
Brasil, a intenção era transformá-la em um viveiro de revolução. E seu
contingente era para ser tirado das Congregações Marianas, ou seja, dos
jovens católicos mais fervorosos, mais entusiasmados, que iriam entrar na
revolução religiosa. Revolução religiosa essa que faria por sua vez, mais
tarde, o papel de viveiro para a Democracia Cristã. Os melhores da Ação
Católica seriam depois transferidos — como foram! — para a Democracia
Cristã, e em parte passariam a apoiar o comunismo.
Neste processo [442],
a influência de Jacques Maritain foi bastante grande. Ela atingiu seu auge
entre os anos de 1940 a 1960.
Esses meios deram origem ao esquerdismo católico que
apoiou Goulart e quase deitou o Brasil por terra. Na era, pós-goulartiana,
continuam atuando em correntes centristas ou esquerdistas [443].
* *
*
Temos então o seguinte balanço: nós lutamos para
impedir o curso dessa revolução. E, com o favor de Nossa Senhora,
contribuímos para mudar o curso da História! [444]
Esta tese fica mais clara se imaginarmos como as
coisas teriam corrido se simplesmente tivéssemos cruzado os braços [445].
Devemos tudo evidentemente a Nossa Senhora. Mas
podemos dizer que fomos os instrumentos d’Ela. E damos graças a Ela por
ter querido servir-se de nós. Mas em algo correspondemos à graça. E a
tarefa foi feita [446].
NOTAS
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