Eu alcancei restos do tempo em que a impiedade se
apresentava escarnecendo e insultando o bem. Os inimigos da Igreja falavam
abertamente contra a Igreja, queriam agredi-la, queriam fechá-la,
increpavam-na, caluniavam-na de frente. Caluniavam o Clero, os Bispos, os
padres, debicavam dos sacramentos, queriam destruir materialmente as
igrejas. Enfim, estavam numa oposição completa contra a Igreja
[1].
Mas tais adversários perceberam que o Movimento
Católico se tornara no Brasil uma potência. E as forças do mal entenderam
que seria inútil atacar essa potência de frente. Era preciso miná-la,
dessorá-la, desviá-la, dividi-la, de maneira que ela caísse vergada ao
peso de suas divisões internas e de sua deterioração
[2].
Para isto, a impiedade viu que era vantagem
mascarar-se e iniciar uma conversa nova com os católicos.
Lembro-me do meu desconcerto quando, pelo ano de
1932, dando minhas costumeiras investidas contra os erros, comecei a ver o
adversário — que em 1930 me fazia caretas — agora como que me dizer:
“Sua lança não me machuca. Você não tomou em consideração que estou
mudando, que estou ficando outro?”
No fundo, vinha o seguinte recado: “Os séculos
mudaram e a Igreja não vai mais ser militante assim. Os inimigos dela
passaram a ser mansos e ela também. E, para todo o sempre, essa sua
posição combativa deve não só ser posta fora de uso, mas esquecida. Uma
nova era começou”.
Procurei observar em torno de mim e vi os próprios
católicos que aplaudiam a minha combatividade um ano antes, agora olhavam
com simpatia para o adversário. E implicitamente davam a entender que, se
eu insistisse em minha posição combativa, eles me atacariam
[3]. Pessoas antes resignadas a lutar comigo por verem o
adversário fazer cara feia, agora que viam o adversário sorrir, passaram
para o outro lado. E eu fiquei só
[4].
Tristão de Athayde era um grande adepto dessa nova
posição. Ele e eu tínhamos fricções violentas a esse respeito. O
temperamento dele era todo feito de trato ameno, cordial, de homem fino,
muito interessante, de uma conversa agradável. Era o contrário do
truculento. Ele dava de si e das coisas que dizia só impressões amenas.
Era o literato do ameno, não era o literato do forte. E eu era entusiasta
da virtude da fortaleza
[5].
Esta era portanto a nova estratégia do ataque das
forças do mal contra a Igreja.
Este princípio de ataque procurou minar aquilo que
havia de mais ardoroso dentro do Movimento Católico, que era o movimento
dos congregados marianos
[6].
Desarticulada pela base essa força católica,
destruía-se o que ela tinha de melhor. E, liquidado isso, o resto se
desarticularia.
Como isto se fez?
[7]
1. Posição pouco varonil diante do comunismo
Considerem a situação em 1934. Movimento mariano
pujante, movimento comunista desenvolvendo-se muito também
[8].
A Liga Eleitoral Católica havia se transformado em
um mamute
[9].
Qual era então a esperança natural de todo o mundo?
Que o Movimento Católico fornecesse as armas espirituais para abater o
comunismo, que o movimento mariano fosse a solução contra o movimento
comunista. Seria o curso natural dos acontecimentos.
Vivíamos num período em que havia a idéia de que o
comunismo era um perigo grave e que só por meio de um regime firmemente
anticomunista se resistiria a esse perigo. Essa idéia estava cada vez mais
acreditada e todo mundo a achava razoável. E todos que tinham uma
mentalidade capaz de ser bem orientada, simpatizavam com um regime
anticomunista.
Mas, nessa emergência, o movimento mariano começou a
tomar diante do comunismo uma posição pouco varonil, que era proveniente,
infelizmente, da própria posição pouco varonil das autoridades
eclesiásticas. E todo mundo sentia que as Congregações Marianas só
poderiam mover-se pela direção da autoridade eclesiástica nesse terreno.
2. Balde de água fria no entusiasmo dos melhores congregados
Menciono apenas um caso.
Para comemorar o primeiro aniversário da vitória das
emendas católicas na Constituinte de 1934, foi convocada pela Federação
das Congregações Marianas de São Paulo, para o dia 16 de julho de 1935,
uma concentração mariana monstro, na Praça da Sé, em São Paulo
[10]. Foi precedida por três dias de conferências
solenes na igreja de São Bento, feitas por leigos, com uma afluência
colossal. A igreja estava repleta.
Aí começam a correr boatos de que os comunistas iriam
entrar em choque com os congregados marianos.
Isto desceu como corisco para todos os congregados
que estavam reunidos na igreja de São Bento. E todos ficaram elétricos de
contentamento de irem enfrentar, sem armas, os comunistas no Largo da Sé.
Dom Duarte estava assistindo, um dia antes da
prevista concentração, à sessão solene atrás do órgão da igreja de São
Bento, sem ser visto, por estar adoentado.
De repente, ele vê entrar o secretário da Justiça e
Segurança Pública, Artur Leite de Barros, que trazia um recado do
governador do Estado, Armando Sales, pedindo que ele impedisse aos
congregados marianos de desfilar em praça pública, pelo receio de um
insucesso com os comunistas. E acrescentou que, se houvesse choque e
morresse algum congregado, o governo de São Paulo lavava as mãos.
E o velho Arcebispo, de aproximadamente setenta anos,
naturalmente pensando nos filhos de família que poderiam morrer, nas mães
que poderiam chorar, em outros aspectos sentimentais da mesma tecla, e
sobretudo na oportunidade de fazer uma gentileza ao governador do Estado,
o que é que fez?
Mandou Dom José Gaspar, Bispo Auxiliar nessa ocasião,
dirigir-se aos congregados aproximadamente nos seguintes termos:
— Meus caros congregados marianos, eu venho vos
pedir um sacrifício tremendo, um sacrifício formidável: não fazer amanhã a
concentração mariana no Largo da Sé, mas no pátio do Liceu Coração de
Jesus. Depois nós faremos o desfile
[11].
Os
congregados marianos receberam essa comunicação com um desapontamento
respeitoso, sem revolta, mas com tristeza por não poderem oferecer a vida
pela causa católica
[12]. Mas, diante da perspectiva de um desfile
posterior, aceitaram mais ou menos bem a idéia da concentração no Coração
de Jesus. E a concentração foi transferida do Largo da Sé para o pátio do
Liceu.
No dia seguinte, realiza-se a concentração.
Uma imensidade de congregados marianos! Foi uma das
cenas mais bonitas que eu tenha visto em minha vida! Era uma quantidade
que correspondia ainda à idéia de qualidade, não era pura inflação.
Foi o mais bonito episódio, esteticamente falando, do movimento mariano
[13].
Naquela efervescência, com todo o mundo esperando o
momento do desfile, Dom José comunica “outro desejo” de Dom Duarte, “um
segundo sacrifício”: que os congregados marianos não realizassem o
desfile.
|
Dom José
Gaspar de Affonseca e Silva |
Aquilo foi, na concentração, uma espécie de balde de
água fria.
Todo mundo sentiu perfeitamente que, no momento em
que era preciso tomar diante do comunismo uma atitude máscula, a
autoridade eclesiástica queria uma atitude débil.
Isto desacreditou o movimento mariano aos olhos dos
melhores, dos mais dedicados, daqueles que naturalmente seriam nossos.
Quer dizer, foi uma desmoralização das elites do Movimento Católico.
E o pior é que toda a conversa, toda a atitude da
autoridade eclesiástica estava nessa orientação.
Nós, congregados marianos, íamos reagir? Podíamos
reagir?
Não podíamos reagir quando a palavra de ordem era:
“Não se metam na política e não criem dificuldades”.
3. Decepção e migração de muitos para o Integralismo
Justamente nesse momento, aparece o Integralismo
[14], servido por uma propaganda muito boa da mídia,
promovendo desfiles aparatosos, portando camisas verdes, e dando a idéia
de uma arregimentação muito forte contra o comunismo.
Então, qual era a força naturalmente capaz de reagir?
Era o Integralismo.
E assim a dialética integralismo-comunismo
enlouqueceu os meios católicos, estabelecendo-se a idéia de que quem não
era integralista era comunista. E quem não era integralistizante
era bolchevizante
[15].
Alguns elementos excelentes, próximos de nosso grupo,
de primeira ordem
[16], pessoas bem inteligentes, se bandearam nessa época
para o Integralismo, apesar de todo o meu esforço para os manter no nosso
movimento
[17]. O Integralismo levou muitos e muitos dos nossos
elementos e dos melhores. Diziam que não queriam ser congregados marianos,
porque a Congregação Mariana era uma bobagem, enquanto o Integralismo é
que era positivo
[18].
E mesmo católicos que foram postos de lado pelos
integralistas davam um certo apoio a eles, dizendo que era melhor o
Integralismo do que o comunismo, e que só o Integralismo poderia salvar o
Brasil, e outras coisas do gênero.
4. Ascensão e queda do Integralismo: Estado Novo de Getúlio Vargas
Nessa época, Dom Helder Câmara
[19] tornou-se um chefe integralista no Norte do
País, apesar de ser padre. Diz-se que, quando ele foi ordenado padre,
ele levou a camisa verde integralista por debaixo da batina, no dia da
ordenação.
Tristão de Athayde também se dizia simpático ao
fascismo e ao Integralismo. E escreveu um artigo aconselhando todos os
católicos a entrarem no Integralismo
[20].
|
Remoção de
feridos da manifestação integralista da Praça da Sé em São Paulo |
Engrossando muito as suas fileiras, os integralistas
começaram a organizar marchas. Realizaram então, na Avenida Paulista, uma
manifestação contra o comunismo.
Nessa marcha havia integralistas com botas, camisas
verde-oliva, e no braço uma faixa com um círculo, tendo no fundo a letra
grega Sigma
- ∑ - que
queria dizer totalidade.
Promoveram também, no Largo da Sé, uma manifestação
colossal. Comunistas postados no alto de alguns prédios desse Largo
fizeram uma fuzilada em cima deles. Por uma coincidência feliz feriram só
uns três ou quatro. Então, houve dispersão. Mas ficou assim provado o
“perigo do comunismo”
[21].
A imprensa informou que tinha sido descoberto um
papel revelando que se preparava um tremendo golpe comunista no Brasil.
Esse papel teria sido perdido por um judeu chamado Cohen e por isso ficou
chamado “Plano Cohen”.
Então o Getúlio, “alarmado”, aproximou-se dos
integralistas, teve várias conferências com Plínio Salgado, com Rocha
Miranda*.
* Rocha Miranda pertencia a uma
família de integralistas muito conhecida na época.
|
Jornal do Brasil noticiando o golpe de 1937 |
E nessas conferências ficou mais ou menos entendido
que o Getúlio daria um golpe de Estado, dissolveria a democracia-liberal e
chamaria Plínio Salgado para ministro da Educação.
No dia 10 de novembro de 1937, o Brasil todo foi
surpreendido pela notícia de que o Getúlio tinha dado um golpe, que
acarretou a dissolução da Câmara dos Deputados, do Senado e a suspensão da
Constituição; os governadores foram nomeados interventores federais
demissíveis ad nutum nos Estados em que até o momento eram
governadores e o Getúlio promulgou uma Constituição federal de caráter
absolutamente fascista
[22].
Mas Plínio Salgado não foi chamado e, para encurtar a
história, antes de terminar o mês de novembro, Getúlio declarou dissolvido
o Integralismo
[23]. No ano seguinte, ou seja, 1938, Plínio Salgado
exilou-se em Portugal
[24].
1. Ambiente católico antes da crise
Depois de ter tratado das circunstâncias que minaram
o Movimento Católico no terreno político, falo agora das que minaram esse
movimento no terreno propriamente teológico e eclesiástico
[25].
E aqui começa a história da crise
católico-progressista
[26].
Pelos idos de 1935, eu já contava com sete anos de
militância dentro do Movimento Católico. E tinha presenciado uma série de
mal-entendidos entre os membros desse movimento, mas que eram resolvidos
logo; e sempre me edificava ver a facilidade com que aqueles
mal-entendidos se dissipavam.
Às vezes ocorria uma pequena concorrência entre uma
associação e outra, uma pequena rivalidade, uma coisinha assim: não havia
nada mais fácil de se resolver.
A concórdia que reinava era portanto completa
[27]
e, como não havia ainda o fenômeno da esquerda católica, todos estavam
unidos em torno da mesma doutrina. Por causa disso via-se muita união e
coesão
[28].
Nós vivíamos numa paz religiosa completa, numa
confiança inteira de uns católicos para com os outros, e a concórdia das
associações religiosas entre si era a maior possível.
Não passava pela cabeça de um congregado mariano, ou
de uma outra congregação ou associação, qualquer intenção desleal,
malévola, anticatólica, fazer um trabalho de sapa em relação a outros.
Inclusive pela minha cabeça a idéia de que isto poderia acontecer não
passava.
As crises internas que atingiam a Igreja na Europa e
um pouco nos Estados Unidos ainda não haviam chegado ao Brasil.
E eu julgava que havia de um lado os católicos, e do
outro o mundo. E achava que a parte da população sensível à influência
cinematográfica de Hollywood, às más revistas, à má imprensa, constituía
uma massa diferente da nossa, que não estava diretamente em guerra contra
nós, mas que nos via com maus olhos.
Havia, sim, um começo de movimento comunista. E esse
movimento comunista era o grande dragão, o grande adversário.
2. Incubação progressista em pequenos núcleos
Na realidade, essa idéia de uma grande concórdia do
Movimento Católico e da inexistência de inimigos internos era um quadro
irreal, porque precisamente dos movimentos de esquerda católica da Europa
já começavam a vir propagandistas apoiados por pessoas de prestígio de
dentro desse mesmo Movimento Católico.
Tristão de Athayde, Sobral Pinto
[29]
e numerosos eclesiásticos começaram a convidar esses propagandistas, que
vieram ao Brasil com a missão de fundar grupos e veladamente espalhar as
idéias da esquerda católica.
O Movimento Litúrgico e a Ação Católica foram, dentre
todos, os grandes meios de penetração da mentalidade esquerdista. Esses
grupos, instalados no Movimento Católico, dispunham do apoio de forças
católicas consideráveis
[30].
Eram movimentos visivelmente voltados para destruir
aquele tom contra-revolucionário que o ambiente católico brasileiro
tinha, para transformá-lo num movimento revolucionário
[31].
Eu evidentemente ia vendo a JOC — Juventude Operária
Católica, ramo da Ação Católica, que trabalhava a favor de uma modificação
da organização social — promovendo no fundo uma luta de classes para
acabar com os ricos e com a propriedade privada, e promover a igualdade
completa das classes sociais
[32].
Era o adversário que penetrava nos porões do navio,
estabelecendo-se nele
[33].
Sustento mesmo que estávamos em presença de um
verdadeiro renascer do modernismo: as mesmas tendências, o mesmo
espírito, os mesmos métodos sinuosos e camuflados, o mesmo espírito de
revolta contra todo o freio, toda autoridade, toda tradição
[34].
* *
*
Julgo não ser ocioso acentuar que esse espírito novo
não pairava nas nuvens, como uma ideologia subtil e impalpável. Esse
espírito tinha chefes que o introduziram no Brasil, possuía uma ideologia
muito precisa, tinha na Ação Católica um instrumento de difusão de
primeira ordem, e era portanto uma verdadeira organização
[35].
Os seus propagadores eram fanáticos e dissimulados,
viviam em estado de conjuração, e tinham a suprema arte de impugnar como
agressivos aqueles mesmos que eles queriam agredir.
Quando surgia uma polêmica sobre suas posições
erradas, uma de suas táticas era tentar impedi-la sob o pretexto de paz e
evitar de todos os modos que a questão subisse até a Santa Sé.
Aos poucos, essa corrente foi dominando inteiramente
a situação e acabou por destruir todos os óbices com que se defrontava
[36].
Estávamos com o inimigo dentro de casa e tínhamos que
lhe fazer face, numa luta de natureza completamente diferente da que até
então havíamos travado
[37].
A primeira notícia que tive
dessa tentativa para destruir o movimento das Congregações Marianas e,
portanto, implantar o progressismo no Brasil, veio singularmente através
de Mamãe, que me abriu os olhos.
Eu era deputado e passava boa
parte do tempo no Rio. Um dia recebi dela uma carta que infelizmente não
guardei, em que vinha junto, preso com muito esmero por um alfinete, um
pedacinho de notícia de jornal, creio que de O Estado de S. Paulo,
cortado com tesourinha bem fina.
Depois de tratar de vários
assuntos, em certo momento ela disse: “Agora sua mãe vai passar para um
outro ponto. Leia a notícia acima, a respeito do professor francês fulano
de tal”
[38].
Pouco depois a Agência Havas
começou a telegrafar para todos os jornais do Brasil
[39], distribuindo uma notícia que vinha apresentada da
maneira como os jornais costumam fazer quando querem valorizar alguém
[40].
Essa notícia dizia mais ou menos o seguinte:
“Encontra-se no Brasil o professor Robert
Garric, notabilidade francesa (nem era tão notável assim) que vem a
São Paulo para lançar as ‘Equipes Sociais’, movimento que visa interessar
a juventude católica pelo destino dos operários e movimentar a fermentação
das idéias sociais no Brasil”
[41].
A notícia não falava uma palavra a respeito das
Congregações Marianas, mas dava a entender que qualquer organização de
apostolado tornava-se caipira em comparação com a grande novidade
que vinha da França
[42].
Mamãe, que entendia pouco de
tudo isto, pôs entretanto na carta o seguinte comentário: “Filhão, veja
se isto não é feito para derrubar as Congregações Marianas e prejudicar
você”
[43].
Não sei como ela percebeu
atrás dessa notícia a intenção de acabar com as Congregações Marianas
[44].
Eu gostei que Mamãe me
escrevesse, mas não gostei da notícia que ela me havia transmitido
[45].
O Tristão me escreveu: “Garric está para chegar. E
vocês precisam se interessar pelo Garric etc.”.
* *
*
Garric apresentava-se como professor da Sorbonne,
uma espécie de agregé ou coisa que o dera e que viera ao Brasil,
sendo contratado como professor pelo governo do Estado de São Paulo para a
cadeira de Literatura Francesa na Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras. E aqui ele queria fundar as Equipes Sociais
[46].
Eu havia conhecido de passagem esse Robert Garric no
Rio, e consegui esquivar-me do contato com ele
[47].
Mas em uma das minhas vindas de fim de semana a
São Paulo, recebo um telefonema:
— O professor Garric está
hospedado no Hotel Terminus e gostaria de travar contato com o senhor, e
falar das Equipes Sociais.
Fui ao Hotel e tivemos ali
uma conversa, estando junto um rapaz carioca que o acompanhava, chamado
Roberto Pantoja, pessoa de trato muito agradável, de muito boa
apresentação e falando o francês na perfeição
[48].
O Pantoja simplesmente
assistiu à nossa conversa. Tinha ficado mais ou menos no ar que, após
esse encontro com o Garric, o Pantoja iria almoçar comigo e teríamos uma
conversa só os dois. Mas, na hora de sair, ele não formulou o convite para
o almoço, e as nossas relações pararam aí
[49].
Muito amável, Garric explicou
que estava no Brasil para lançar o movimento das Equipes Sociais,
destinado a conglomerar jovens, e capaz de fazer muito bem à juventude
católica brasileira, porque a tirava da obsessão dos assuntos de piedade e
ajudava-a a se preocupar também com as questões sociais.
Não gostei nada dessa maneira
de abordar o assunto, porque, segundo a boa doutrina, o principal é a vida
de piedade, a vida interior, a devoção; as outras coisas vêm depois, em
segundo lugar. E esse movimento já vinha para inverter esta boa ordem
[50].
M. Garric contou então que ele tinha participado da
guerra de 1914-1918 e que, junto com outros companheiros, tinha conhecido
nas trincheiras homens de classes sociais diversas. E eles perceberam que
esse convívio entre classes sociais diferentes aproximava os homens entre
si. Então era preciso continuar esse convívio depois da guerra, para
estabelecer um vínculo entre as classes sociais
[51].
Segundo ele, isto se deveria fazer assim: os
estudantes irem aos bairros de operários e conviver com estes. Nesse
convívio, se operaria um apostolado "fantástico": davam aos operários
algumas noções culturais complementares, ensinavam-lhes a ler e a
escrever, mas não lhes falavam de religião
[52].
Então os operários, "comovidos", acabavam um dia
perguntando ao estudante: “Mas o senhor o que é: católico?”
E o estudante respondia: “Sim, eu sou”. E
então o operário tinha uma como que "revelação" e alguns se convertiam.
Ele apresentava isto como fantástico, como o que
poderia haver de melhor.
Eu perguntei:
M. Garric, mas então o seu movimento é
católico?
— No sentido de movimento
cristão.
— Mas eu queria saber bem
precisamente o seguinte: é católico ou não é?
— Não, os católicos devem
tomar o cuidado de evitar que o movimento apareça como católico.
Eu pensei de mim para comigo:
“Para que deixar as Congregações Marianas, movimento brilhante, para me
meter nisso”?
[53].
Garric ainda acrescentou:
— As Equipes atuam nos meios operários também para
ensinar-lhes a reivindicar os seus direitos. Afinal, eles não podem ficar
dependendo de bons patrões que queiram dar-lhes o que é o direito deles.
Os operários, ou arrancam seus direitos da mão do patrão, ou nunca ficarão
bem instalados na vida. É preciso ensinar-lhes esse senso de
inconformidade.
Eu fui ouvindo aquela
conversa toda e sorrindo. Sorri o tempo inteiro. E perguntei:
— Professor Garric, o seu
movimento é bem visto pela Igreja?
— Ah! muito. Tais
Arcebispos, tais Cardeais vêem muito bem o meu movimento enquanto
movimento leigo, enquanto movimento não oficialmente católico. Eu sou
católico. Eu tenho vários jovens que são de comunhão diária. Mas isto não
tem nada que ver com a religião.
Ora, na concepção
contra-revolucionária, todas essas questões sociais são principalmente
questões morais. Se se procura tirar a resolução de tais questões da
influência da Igreja, caminha-se para a Revolução
[54].
Ele por fim me pediu que eu desse a ele vários
congregados marianos, como se os congregados fossem móveis que a gente dá
de presente para alguém. São entes vivos que não podem ser "dados" como
quem dá dez laranjas. Eu naturalmente não dei...
[55]
— Pois não, professor
Garric. Eu vou pensar. Depois, conforme for, comunico-me com o senhor. Até
logo.
Nunca mais nos vimos. Ele era
um homem bem mais velho do que eu.
O fato concreto é que eu
senti uma coisa muito singular se mover nisso tudo
[56].
* *
*
Dom Duarte não quis saber
dessas Equipes Sociais.
Mas, apesar de Dom Duarte não
querê-las e de elas não se terem fundado em São Paulo, foram fundadas no
Rio. E, mesmo aqui em São Paulo, alguns rapazes do Movimento Católico
acabaram entrando para essas Equipes. E passaram a constituir uma oposição
liberal contra nós
[57].
Desde logo, essas Equipes Sociais foram promovidas
por Tristão de Athayde. Foi ele quem impulsionou o Movimento Litúrgico, a
Ação Católica e tudo aquilo que seria depois objeto de minha denúncia no
livro
Em Defesa da Ação Católica.
No carteio de ruptura entre Tristão e eu a propósito
desse livro, ele se eriçava, porque cada letra da obra era contrária às
convicções e sobretudo ao programa dele
[58].
Os rapazes das Equipes Sociais do Rio formados por
ele vieram a constituir o elemento inicial do Movimento Litúrgico carioca
[59].
Relato um outro episódio, que prenunciou essa
ofensiva para a derrubada do Movimento Católico por pessoas provenientes
da Europa, antes mesmo da vinda de Garric ao Brasil.
Em 1932, apareceu em São Paulo uma senhora belga,
Mlle. Adèle de Loneux, professora da Escola Católica de Serviço Social de
Bruxelas.
Essa belga se apresentava de uma maneira bem
singular: cabelos pretos lisos com um coque atrás, com aparência de pessoa
muito bem nutrida, toda vestida de preto, sapatos sem salto para uns pés
de tamanho considerável. Ar misterioso, muito ruminativa, tinha olhos
impassíveis com aparência de cândidos, muito úmidos. Mas no fundo da
aparente impassibilidade do olhar, cintilava uma esperteza que, creio eu,
poucas pessoas percebiam.
Promoveu ela uma série de conferências no Colégio
Des Oiseaux. Eu mesmo fui encarregado de fazer duas ou três
conferências nessa série, direcionada para um público que era a nata, o
creme, a flor de farinha do movimento feminino católico em São Paulo
[60].
Lembro-me que, enquanto eu fazia as conferências,
Mlle. Loneux permanecia no fundo da sala observando.
Naqueles dias começou a correr a notícia de que Svend
Kok se iria ordenar sacerdote*.
* Ele de fato entrou pouco depois,
em 1934, para a Ordem de São Bento, passando a ser conhecido como Dom
Teodoro Kok. E em 1955 tornou-se monge trapista.
Perguntaram-me então se eu também não iria ficar
padre. E soube depois que Mlle. Loneux, ouvindo isto, havia feito o
seguinte comentário, que julguei um tanto esquisito: “Ele é bom
católico demais para se tornar padre”. Comentário um pouco sinuoso,
mas, enfim, a coisa passou.
* *
*
Eu soube com toda a certeza, cerca de dez anos
depois, por informação do próprio Arcebispo Dom José Gaspar, e também de
uma moça que fora convidada para o movimento de Mlle. de Loneux e não
aceitou, que Mlle. de Loneux havia fundado aqui uma congregação religiosa
secreta de freiras, as quais deveriam trajar-se como leigas, mas que
ficavam ligadas pelo voto de obediência a essa congregação.
Essa congregação religiosa secreta havia sido fundada
na Bélgica pelo Cardeal Mercier
[61]
e chamava-se Auxiliares do Apostolado. Tinha dois ramos, um dos
quais especialmente destinado a auxiliar os padres da Companhia de Jesus.
Essas Auxiliares do Apostolado aliciaram
várias moças desse grupo feminino e fizeram algumas delas passarem um,
dois ou três anos estudando numa Escola de Serviço Social de Louvain ou de
Bruxelas, para depois voltarem ao Brasil. Quer dizer, fizeram ali um
verdadeiro noviciado
[62].
As pessoas das relações delas não sabiam que tinham
se tornado religiosas: nem o público sabia, nem eu sabia.
E isto ajuda-nos a compreender a gênese do movimento
liturgicista no Brasil, pois com elas se formou toda uma organização com
muita influência no Movimento Católico de São Paulo. Eram moças na sua
quase totalidade ricas, das melhores famílias de São Paulo, inteligentes,
capazes, sabendo dirigir muito bem as coisas, e que haviam recebido uma
formação errada proveniente da Bélgica*.
* O grupo do
Legionário costumava apelidá-las intramuros de “construtivas”,
por elas afirmarem que a Ação Católica reformularia completamente os
métodos de apostolado da Igreja, inaugurando uma nova era de “boa
vontade”, na qual as divergências, as polêmicas e as condenações ao erro
seriam deixadas de lado. E seriam estabelecidas relações
construtivas, cordiais e amigáveis com todas as pessoas e
correntes até então consideradas adversárias do catolicismo, para
supostamente conseguir a sua conversão.
6. De início as vi com simpatia, depois percebi...
Quando em determinado momento notei que elas
apareceram, vi com muita simpatia o fato de que o ambiente católico de São
Paulo estava enriquecido pelo surgimento de um grupo de moças de boa
sociedade (eram dez, mais ou menos), extraordinariamente capazes e
inteligentes.
A princípio eu julguei que se tratava do aparecimento
de mais uma força definida, decidida, capaz de lutar a favor da causa
católica.
De onde, então, eu as ter acolhido muito bem e,
guardadas as diferenças que naturalmente deve haver entre os sexos, ter
feito com elas boas relações, bom equilíbrio.
Mas, ao cabo de algum tempo, comecei a perceber que
havia qualquer coisa de esquisito, de meio modernoso, meio arrojado, meio
igualitário na atitude que elas vinham tomando. Eu tinha a sensação de que
a elas faltava exatamente a mentalidade católica*.
* O então Cônego Antonio de Castro
Mayer delas dizia, em carta (data desconhecida) ao Cardeal Dom Sebastião
Leme:
“Quase todos os
membros da Ação Católica incipiente eram pessoas mais ou menos
convertidas, moças todas elas. Mais ou menos convertidas, pois, se não
passaram da infidelidade para a Fé, passaram de uma falta de interesse
pelas coisas da Igreja para um aparente fervor maior. Diziam: foi a A.C.
que nos entusiasmou. [...] Pode bem dizer-se que a A.C. entrou pela
janela, excluindo as pessoas mais recomendadas pelo senso da pureza dos
costumes católicos e integridade de fé. Mais. A Ação Católica apareceu
como francamente revolucionária”.
Elas procuravam agradar o nosso grupo do
Legionário, procuravam ter boas relações conosco. Eu até certo ponto
fiquei com um pé atrás, mas de outro lado achando que, quem sabe, a
situação ainda se recomporia se um bom padre, um bom diretor espiritual
desse a elas uma boa orientação.
Elas começaram a trabalhar em torno da Ação Católica,
e apresentavam a Ação Católica como ultra novidade de apostolado, uma
novidade que haveria de reformular completamente os métodos de ação da
Igreja, e que teria uma capacidade de conversão extraordinária, uma
espécie de raio laser em matéria de apostolado. E eu achando aquilo
uma coisa esquisita.
7. O “serviço social” das “construtivas” era socialismo puro
Esta formação tinha como seu ponto principal de
atração a idéia do serviço social, que era no fundo, e continuou
depois a ser, socialismo puro.
Depois dessas conferências, Mlle. de Loneux voltou
para a Bélgica e nunca mais retornou ao Brasil, que eu saiba.
|
Edith
Junqueira Azevedo Marques fundadora do Centro Social Leão XIII |
Mas as suas discípulas foram as moças que fundaram em
São Paulo, em 1932, o Centro de Estudos e Ação Social; e em 1936 a
Escola de Serviço Social.
Todo o elemento de esquerda do movimento feminino
liturgicista recebeu sua formação social (em última análise, socialista)
nessa Escola de Serviço Social
[63]. Essa escola foi o foco da Ação Católica e do
maritainismo feminino em São Paulo
[64].
Também criaram aqui o Centro Leão XIII e A
Lareira
[65], esta última uma organização interconfessional em
que trabalhavam sacerdotes conhecidos como liturgicistas e modernistas por
suas doutrinas e hábitos: o Padre Benedito Mário Calazans e o Padre Ramón
Ortiz, de quem falaremos mais adiante
[66].
Segundo me consta, a Escola de Serviço Social
do Rio de Janeiro também foi fundada por elas.
* *
*
Vimos, portanto, no ano de 1932, a penetração do
socialismo nos meios católicos de São Paulo, feito de um modo muito
velado, muito indireto.
O que correspondia à tática modernista de divulgação
de idéias: formação socialista feita em um nucleozinho, mas isto não se
dizia para fora. Depois, aos poucos, divulgação dessas idéias por meias
palavras, de maneira a não se perceber logo o seu fundo doutrinário
[67].
8. As "construtivas" tomam os postos-chave da Ação Católica
Prestigiadas pelos conhecimentos especializados que
traziam da Europa, e pela magnífica bandeira sob a qual trabalhavam, ou
seja, a Ação Católica, elas começaram a fundar núcleos em vários lugares
como São Paulo, Rio, Belo Horizonte.
Dentro em breve, esses núcleos se irradiaram por todo
o Brasil, atraindo a si elementos do melhor quilate intelectual e
religioso da mocidade.
Por meio de viagens, de contatos epistolares
freqüentes e diversos outros meios, elementos vindos da Bélgica formaram,
a bem dizer direta e pessoalmente, todos os dirigentes dos principais
núcleos.
Decorreu daí para a Ação Católica em todo o Brasil
uma tal homogeneidade de espírito e uniformidade de ação, que dela fizeram
uma potência de primeira ordem para difundir idéias e diretrizes nos
círculos católicos do País
[68].
Enquanto a Escola de Serviço Social, de origem
predominantemente belga, se desenvolvia em São Paulo, o Movimento
Litúrgico, de origem alemã e francesa nascia no Rio de Janeiro por volta
de 1933
[69].
O grupo de litúrgicos no Rio surgiu da
convergência de influência dos padres dominicanos de Toulouse, França; e
dos beneditinos de Beuron e de Maria Laach, Alemanha
[70].
O Rio de Janeiro tornou-se a cidadela do Movimento
Litúrgico. Um bom número de monges do prestigioso mosteiro de São Bento, e
leigos como Tristão de Athayde (homem da total confiança do
Cardeal-Arcebispo do Rio, Dom Sebastião Leme da Silveira Cintra) apoiaram
esse movimento.
E em São Paulo, a Ação Católica gozava de todo apoio
do jovem Bispo Auxiliar Dom José Gaspar de Affonseca e Silva
[71].
Alceu Amoroso Lima (o Tristão de Athayde na
literatura), foi um dos que se fizeram mais ardorosamente entusiastas da
nova tendência. Escritor de grande prestígio, presidente da Ação Católica
de todo o Brasil; também presidente do Centro Dom Vital, organização
católica com sua rede de filiais em várias cidades do País e muito
conhecida da intelectualidade brasileira; e além do mais diretor da
revista Ordem, lida e assinada em todo o nosso território,
inclusive nos seminários, seu prestígio levou muitos a passarem para o
campo liturgicista
[72].
* *
*
O monge alemão que dirigia toda essa investida era
Dom Martinho Michler
[73], do mosteiro de São Bento no Rio.
Foi
um dos homens mais atraentes que eu tenha conhecido.
Alto, esguio, com um sorriso muito comunicativo,
maneiras muito afáveis, as quais davam à pessoa com quem tratava vontade
de estar de acordo com ele. Tinha um modo de ser que realmente encantava
[74].
Muito inteligente, muito enjôleur sobretudo,
havia nele uma espécie de irradiação que lhe dava uma verdadeira graça
[75].
Mas era o mentor de todas essas idéias com que não se
podia estar de acordo
[76].
Eu me lembro que assisti a algumas conferências dele
no Centro Dom Vital, no Rio.
Ele dava a impressão singular de uma extraordinária
maestria em todos os seus movimentos. Os seus movimentos, mesmo os
menores, eram bonitos: ele se dobrava para apanhar um pedacinho de papel
que caiu no chão, aquilo era feito com naturalidade, com uma beleza quase
clássica; ele dava uma risada, a risada dele era cativante; ele olhava, o
olhar era aveludado e agradava; ele descansava, o repouso dele era
comunicativo.
Entretanto — é um mistério — ele era feio, e até bem
feio. E um pouco pesadão
[77].
* *
*
Eu me lembro também do último encontro que tive com
ele.
Os componentes do grupo do Legionário e eu
tínhamos ido visitar Dom Mayer na Diocese de Campos.
Estávamos andando por uma das praias de lá, daqueles
arredores. Tempo lindo, sol magnífico, praia enorme, areia estupenda, mar
muito mais bonito do que a areia.
Conversávamos sobre várias coisas, quando vimos ao
longe uma camionete que se aproximava e uma pessoa que de longe nos
sorria.
Mais perto, percebemos que usava batina. Eu, sem
reconhecer bem (nunca fui bom fisionomista), sorria amavelmente também.
Quando ele chegou próximo de nós, vi que era Dom
Martinho Michler.
Eu já havia escrito o livro
Em Defesa da Ação Católica e estávamos rompidos. Mas ainda
olhei para ele e pensei:
“Como é um homem atraente e encantador”!
Passamos um pelo outro em meio às mostras da maior
cordialidade. E depois nunca mais nos vimos
[78].
O fato concreto é que este monge começou a dar, para
os membros da Ação Católica do Rio de Janeiro, cursos sobre a Sagrada
Liturgia inteiramente na orientação condenada pela encíclica Mediator
Dei
[79].
Esses cursos atraíram vários jovens, que dentro em
breve se fizeram notar por seu excessivo liturgicismo. Eram jovens
inteligentes, que abraçaram a vida religiosa na Ordem de São Bento e na de
São Domingos, e que desenvolveram um trabalho ativo em favor do
liturgicismo no Brasil.
Dom Martinho Michler irradiou sua mentalidade em São
Paulo, em Belo Horizonte e em várias outras cidades, sempre com o apoio de
bom número de seus irmãos de hábito. Em escala menor, o mesmo se deu junto
a outras abadias e mosteiros beneditinos.
Assim, o espírito da abadia de Maria-Laach, no
que ele tinha de temerário, penetrou largamente no Brasil, atingindo de
preferência os próprios círculos da Ação Católica, tão preparados para o
receber. E, por fim, os dois movimentos, o liturgicista e a Ação Católica,
se fundiram inteiramente
[80].
10. Meu primeiro contato com o Movimento Litúrgico
A primeira vez que tomei contato com esse Movimento
Litúrgico foi através do Tristão de Athayde.
O Tristão realizava todo mês uma reunião de líderes
católicos no prédio da Coligação Católica, da qual ele era o presidente,
que ficava em frente ao prédio da Assembléia Constituinte. E ele convidava
um deputado por mês para falar.
Às horas tantas ele se lembrou de me pôr como orador.
E me pediu que tratasse de um tema de vida espiritual.
Eu ignorava a existência desse Movimento Litúrgico, e
por pura coincidência expus várias coisas que estão no livro de Dom
Chautard
[81]
a respeito de liturgia e do bom movimento litúrgico de Dom Guéranger. E
falei disso com muito calor.
Notei que, pelo meio deles, um grupo de rapazes que
eu não conhecia se movia com um afã, mas uma coisa única!
Terminada a conferência, o Tristão, que morava pelos
lados do meu hotel, me disse:
— Você me espere um pouquinho que eu vou com você
e o deixo junto ao seu hotel.
— Pois não.
Descemos, sentei-me no automóvel, e foi a única vez
que Tristão elogiou uma conferência minha na vida.
— Plinio, você hoje falou de um modo fantástico!
Estou encantado com seu discurso! Tem um grupo de rapazes doidos para se
aproximar de você, e que quer ter contato. São tais rapazes assim, assim,
bons católicos.
Eu, naquela confiança que reinava entre católicos
naquele tempo, pensei comigo: “Como, afinal de contas, ele está mudado
comigo”! Porque ele era muito amável na aparência, mas no fundo muito
frio.
No primeiro convite que me fizeram, eu fui. E me
deparei com o quê?
Numa sala do prédio da Coligação Católica, com os
móveis afastados de lado, eles todos com breviários e roupa de leigos,
recitando o Ofício Divino, um fazendo papel de abade, outros fazendo papel
de monges.
Isto, de si, não tem nada de mau
[82]. Mas curiosamente me disseram, com ar de mistério:
“Dr. Plinio, é uma coisa muito interessante. Mas é reservada”.
Dessa história de “reservada” eu não gostei.
Reservada por quê? Nosso Senhor recomenda que os
filhos da luz proclamem do alto das casas o que fazem. Reserva para quê?
Que negócio é esse?
Terminado o Ofício, era natural que me apresentassem
aos rapazes e que conversássemos um pouco.
Não! Os rapazes foram em fila para uma outra sala e
sumiram.
— O que você achou?, perguntou o Alceu.
Eu disse:
— Bom, é uma oração da Igreja, uma oração do
Breviário... É um pouco curioso que os rapazes usem o Breviário.
— É, porque... você sabe? Isso corresponde a uma
coisa nova. Um frade alemão do Mosteiro de São Bento aqui do Rio está nos
ensinando uma nova forma de piedade, que já está sendo divulgada pelo
mundo e que faz parte do que se chama Movimento Litúrgico.
— Em que consiste?
— Valorizar a Sagrada Liturgia, as pessoas serem
levadas a gostar do Ofício Divino. Você não acha isso bom?
— É uma coisa excelente, mas qual é a razão do
caráter reservado? Uma coisa tão boa pode-se fazer na frente de todo o
mundo.
— Não, não, porque não convém atrair muita gente.
Eu achei a coisa meio esquisita: “Como não convém?
Se é uma coisa muito boa, quanto mais gente entrar, melhor é. Por que
panelinhas fechadas? Não senhor, abra esse negócio! Que negócio é esse”?
Somente mais tarde é que vim a perceber que se
tratava de um movimento que trazia doutrinas erradas, paralelas às
doutrinas da Ação Católica
[83].
11. A influência de Maritain, Mauriac e Bernanos
Além de todas essas influências tivemos a atuação,
como já disse, de certos dominicanos franceses, cuja Província no Brasil
dependia da Província de Toulouse, toda ela formada no espírito do
semanário Sept, ou do semanário Aurore. Em conseqüência, no
espírito dos escritores franceses Maritain, Mauriac
[84]
e Bernanos
[85], e dentro da mentalidade da "politique de la
main tendue".
Por outro lado, vários dominicanos brasileiros foram
estudar na França. E também hauriram essa mentalidade.
Todas essas tendências, as de Maria-Laach como as de
Toulouse, e ainda as da Ação Católica desviada, a bem dizer se fundiram em
uma só. Elas tinham entre si uma afinidade profunda, que o gênio
essencialmente intuitivo e latino dos brasileiros bem percebeu.
Maria-Laach era em teologia o que Toulouse era em filosofia e sociologia,
e o que os erros e exageros da Ação Católica eram em Pastoral.
Assim, de tudo isto se formou um imenso corpo de
doutrinas, adotadas de Norte a Sul do Brasil pelas mesmas pessoas,
defendido concretamente por grandes organizações religiosas, verdadeiras
potências, tendo a seu serviço a autoridade de sua situação eclesiástica e
as vantagens do dinheiro, do número e do talento.
A tantas influências somava-se ainda a de numerosos
sacerdotes que, um pouco por toda a parte, no púlpito, no confessionário,
nos seminários favoreciam esse espírito.
12. Também do Canadá e dos Estados Unidos chegam influências laxistas
E, para complicar mais o quadro, a isto deve se
acrescentar ainda a aproximação entre os círculos católicos brasileiros e
norte-americanos inovadores, as bolsas de estudo para brasileiros nos
Estados Unidos, a criação de casas religiosas de congregações
norte-americanas e canadenses no Brasil etc. As idéias, hábitos e
tendências liberais desses católicos norte-americanos e canadenses
penetraram assim entre nós, festivamente recebidos pelos inovadores
brasileiros, os quais tinham, todos eles, uma tendência manifestamente
laxista em matéria moral
[86].
Era com suma preocupação que eu via uma nação, na
época com 40 milhões de católicos, e uma das maiores esperanças da Igreja,
ser trabalhada em suas vísceras por uma grande força de desagregação
religiosa e moral que agia em nome da própria Igreja
[87].
13. Padre José Gaspar: entusiasmo pela Ação Católica; Dom Cabral:
propugna liturgicismo
Um fato pequeno, mas que também prognosticava o
futuro.
Era diretor espiritual da Federação das Filhas de
Maria de São Paulo, o então Padre José Gaspar de Affonseca e Silva, o qual
escreveu um prefácio para o anuário delas. Nesse prefácio ele falava com
grande entusiasmo e pela primeira vez da Ação Católica
[88].
* *
*
Outro foco intenso de liturgicismo foi Belo
Horizonte.
O então Arcebispo de Belo Horizonte, Dom Antonio dos
Santos Cabral, tomou imediatamente partido das idéias novas. E passou a
ser um dos propugnadores mais enérgicos delas.
Belo Horizonte transformou-se numa Meca (Tristão de
Athayde chegou a escrever que havia se transformado numa Roma...) dos
movimentos liturgicistas dentro do Brasil
[89].
A serviço desse liturgicismo colocou-se desde logo o
primeiro e maior diário católico de nosso País, o Diário, de Belo
Horizonte, lido em todo o território nacional. Ao lado da revista Ordem,
acolitado por revistas menores como Vida, órgão da Ação Católica de
Porto Alegre, o Diário foi mais uma grande força a serviço do
liturgicismo
[90].
14. Conclusões a que cheguei
Depois de muito ouvir e observar, não tardei a
perceber:
— Que a tal ordem religiosa clandestina trazida da
Bélgica para cá por Mademoiselle de Loneux tinha instalado, na Ação
Católica de São Paulo, uma mentalidade que era a mesma versão da
mentalidade que havia no Movimento Litúrgico de Tristão de Athayde no Rio.
— Que essa gente da Ação Católica de São Paulo
colaborava intimamente com Tristão de Athayde, e que esses dois movimentos
(Movimento Litúrgico e Ação Católica) constituíam o verso e o reverso de
uma só coisa, embora cada um deles quase não falasse a respeito do outro
[91].
— Que havia um certo número de padres, e mesmo um
certo número de Bispos que davam apoio a esses movimentos: viam o que eles
diziam e faziam, estavam de acordo, e por debaixo do pano até sopravam
essas ideias.
— Que esses clérigos, antigamente amigos do
Legionário e meus, iam nos colocando à margem e pondo esse pessoal na
direção do movimento católico.
— Que estava se armando uma verdadeira conspiração
para introduzir essas ideias novas no lugar das ideias antigas
[92].
— Que essa conspiração tinha caminhado muito e até
galgado graus dos mais excelsos na Hierarquia Eclesiástica, entre os quais
se destacava, a perder de vista, Dom Antonio dos Santos Cabral, Arcebispo
de Belo Horizonte
[93].
— E que, por fim, o principal patrono dessa
mentalidade nova era um homem de seus 37 anos, resplandecente, encantador:
o Bispo Auxiliar de São Paulo, Dom José Gaspar de Affonseca e Silva
[94].
15. Jesuítas perseguidos apóiam Dr. Plinio
Os litúrgicos, os maritainistas, o pessoal do
Serviço Social, os componentes da Ação Católica começaram as atividades
deles com uma propaganda violenta contra a Companhia de Jesus.
Essa propaganda não se voltava contra os homens da
Companhia de Jesus, mas contra a própria instituição e os métodos de
apostolado que esta empregava: contra os Exercícios Espirituais de Santo
Inácio, reputados antiquados, nocivos; contra a ascese inaciana; contra a
espiritualidade dos jesuítas.
Como as Congregações Marianas e também as federações
marianas eram em geral dirigidas por jesuítas, vieram os ataques às
Congregações Marianas.
* *
*
Talvez por isto, entre as pessoas que se levantaram
para combater esses erros não figurávamos apenas nós. Desde o início,
destacou-se um jesuíta extraordinariamente capaz, inteligente, o Padre
César Dainese
[95].
Além dele, levantou-se mais tarde outro jesuíta de
quem já falei, o Padre Arlindo Vieira, este brasileiro, orador verboso,
popular, boa alma dedicada e que fez conferências célebres contra Bernanos
e escreveu artigos contra Maritain. E também o Padre Louis Riou,
provincial da Companhia de Jesus.
Esses três jesuítas tomaram partido muito a favor das
boas idéias. Também o padre Felix Pereira de Almeida e o padre Walter
Mariaux
[96]. Sobre como conheci este último, falarei mais
adiante.
Mas, notem uma coisa curiosa: vários outros jesuítas
eram de uma indiferença soleníssima em relação a nós, uma indiferença que
chegava às vezes até à hostilidade. A impressão curiosa que se tinha era
de uma espécie de divisão dentro da Companhia. O Padre Sabóia
[97], por exemplo, desde que chegou dos Estados Unidos,
já desceu no Brasil falando mal de nós
[98].
1. Co-participação no poder de santificar dos sacerdotes
Tanto no que se referia à liturgia quanto à Ação
Católica, os erros da nova corrente que tínhamos de enfrentar giravam em
torno do conceito do sacerdócio dos leigos.
Segundo a doutrina tradicional, o sacerdote traz
consigo um poder que lhe vem da ordenação sacramental. E os leigos
participam passivamente do sacerdócio do padre.
Segundo os inovadores, Pio XI teria acrescentado algo
ao sacerdócio passivo dos leigos, de sorte que, com a inscrição de um
leigo na Ação Católica, este adquiriria ipso facto um modo de
participação no sacerdócio, participação essa que já não seria
inteiramente passiva
[99], mas lhe conferiria certa parcela no poder de
jurisdição, visando assim estabelecer uma transformação do estatuto do
leigo na Igreja
[100].
De onde eles deduziam que os membros da Ação Católica
participariam da liturgia, não passivamente, mas ativamente como
verdadeiros liturgos oficiantes.
O Movimento Litúrgico também sustentava que eles não
pertenciam apenas à Igreja discente, governada e santificada, mas exerciam
funções de docência, governo e santificação que lhes pertenciam como
atributos próprios de seu novo estado
[101].
Seriam, no fundo, uns padrezinhos, um padre em ponto
menor. E, como tal, deviam em alguma medida participar do governo da
Igreja, deviam santificar e deviam ensinar.
Segundo a concepção deles, quando o padre celebra a
Missa (ato central da Fé católica) e faz a consagração da hóstia (ato
central da Missa), se o fiel diz as mesmas palavras do padre, tomaria
parte ativa no ato da transubstanciação
[102], cooperaria com o sacerdote no operar a
transubstanciação
[103].
Assim também, em todas as orações, pedidos, súplicas,
atos de adoração que o sacerdote faz durante a Missa: se o leigo
pronunciasse junto com o padre, é como se ele se enxertasse nas palavras
do padre e em algo concelebrasse a Missa.
Todos os leigos eram assim mais ou menos
sacralizados. E — notem bem — as leigas também. As que entrassem para o
Movimento Litúrgico ficariam meio sacerdotisas. E a velha proibição, que
vem dos Apóstolos, de mulheres acederem ao sacerdócio ou ao governo da
Igreja, saltava pelos ares.
Quer dizer, era a abolição da fronteira sagrada que
separava os leigos dos sacerdotes.
2. Co-participação no governo da Igreja
Algo semelhante se dava na Ação Católica no que diz
respeito, não mais no santificar pela liturgia, mas no governar a Igreja.
Eles sustentavam que era preciso tomar em
consideração o que São Pedro disse de nós, o povo católico: somos um povo
sacerdotal e régio.
Então — deduziam os adeptos das idéias novas da Ação
Católica — nós, os leigos, somos co-sacerdotes, somos co-reis, somos
co-governadores
[104].
Em que sentido?
No sentido de uma definição de Pio XI, que dizia ser
a Ação Católica uma participação dos leigos no apostolado hierárquico da
Igreja.
Daí eles deduziam que Pio XI havia dado aos leigos um
poder de fazer apostolado em nome da Hierarquia, como se os leigos fossem
uma espécie de padre e participassem das graças muito especiais que tem o
apostolado de um sacerdote
[105].
Tudo caminhava, portanto, para afirmar que, na
Igreja, não havia diferença entre leigos e padres, e que no fundo, na
Igreja, o leigo valia tanto quanto o sacerdote.
[106].
Daí também a tendência, pelos exageros relativos à
Ação Católica e à liturgia, a apagar a noção de que a Igreja é uma
sociedade de desiguais, dos quais uns têm a incumbência de ensinar,
governar e santificar, e os outros de se deixar governar, ensinar e
santificar (cfr. São Pio X, Encíclica Vehementer Nos, de 11 de
fevereiro de 1906)
[107].
Em conseqüência, o leigo na Ação Católica devia tomar
a direção e empurrar o padre de lado
[108]. O fundo do pensamento era: “Acabou-se o tempo
em que os padres, Bispos e Papas mandavam nos leigos. Chegamos a uma época
de liberdade, igualdade e fraternidade. E na Igreja deve também reinar a
liberdade, a igualdade e a fraternidade. Nós agora traçamos o nosso
caminho. Porque o tempo de hoje é o tempo do povo. E nós somos o povo
dentro da Igreja”
[109].
Na concepção deles, deveria continuar a haver padres
e Bispos, mas com um poder puramente representativo, figurativo; e os
leigos deveriam ter independência e resolver dentro da Igreja as coisas
como quisessem
[110].
De outro lado, segundo essas doutrinas novas, todos
os leigos seriam obrigados a inscrever-se como sócios nos quadros da Ação
Católica. Desta forma praticamente essas funções governativas seriam
estendidas a todo o laicato.
3. Visão panteísta e falsa concepção de “mandato”
Esses inovadores gostavam muito de usar a expressão
“Corpo Místico de Cristo”. Para eles não se tratava apenas de uma metáfora
para designar uma realidade sobrenatural, mas de uma verdadeira
incorporação física. E assim as doutrinas novas caíam no panteísmo, que é
o nivelamento estabelecido entre o homem e Deus
[111].
* *
*
Por outro lado, os mentores dessa nova escola diziam
que Pio XI, fundando a Ação Católica, tinha dado a ela um “mandato” para
fazer apostolado.
Em virtude desse “mandato”, a Igreja tinha
restringido apenas à Ação Católica, e a nenhuma outra organização, a
incumbência de fazer apostolado. Todas as outras organizações que se
dedicassem ao apostolado o fariam a título puramente auxiliar, ou então
não deveriam fazer, porque só a Ação Católica tinha o direito, em virtude
desse “mandato”, de fazer apostolado
[112].
Assim, deviam desaparecer todas as antigas
associações religiosas (Congregações Marianas, Ordem Terceira do Carmo,
Ordem Terceira de São Francisco, Apostolado da Oração, Filhas de Maria
etc.) e deveriam ser substituídas por uma só organização — a Ação Católica
—, porque ela sozinha valia mais do que todas as outras, e os seus membros
participavam do apostolado do sacerdote
[113].
Ademais, diziam eles, Pio XI também tinha dado aos
leigos a ordem de fazer apostolado na Ação Católica. De maneira que o
leigo que tirasse alguma coisa de seu tempo livre para fazer um apostolado
de caráter particular, fora da Ação Católica, era um indisciplinado. Ele
deveria entrar na Ação Católica e fazer o seu apostolado dentro dela.
O resultado era o estabelecimento de uma verdadeira
ditadura da Ação Católica. Pois, se só se podia fazer apostolado dentro da
Ação Católica, e como na Ação Católica todo apostolado era dirigido, ou se
fazia o apostolado progressista deles, ou não se fazia apostolado nenhum.
Era a implantação de um perfeito nazismo eclesiástico.
Naquele tempo, tudo isso era reputado muito moderno.
E eu notei desde logo a que resultados eles queriam chegar: a morte das
Congregações Marianas
[114].
4. Imunes ao pecado: levar “o Cristo” aos lugares moralmente suspeitos
Esta doutrina vinha acompanhada de outra, atingindo o
campo moral.
As “construtivas”, por exemplo, afirmavam, em
última análise, que o católico podia freqüentar lugares moralmente
suspeitos, até de perdição, sem perigo para a sua alma, desde que ele
tivesse comungado antes, porque ele tinha dentro de si "o Cristo"
(eles não gostavam de falar “Nosso Senhor Jesus Cristo”)
[115]. Ele deveria comungar de manhã, fazer um pouco de
oração durante o dia, e à noite ir para esses lugares suspeitos, para ali
“levar o Cristo”
[116].
A idéia era de que, quando a pessoa comungava, a
comunhão eucarística fazia com que ela ficasse “vacinada” contra toda
tentação, contra toda a solicitação do mal
[117]. Na concepção deles, os leigos da Ação Católica
estavam de tal maneira “sacralizados”, tinham tais graças novas, e estavam
de tal maneira justapostos à Hierarquia, que não havia mais possibilidade
de eles pecarem
[118].
Por isso mesmo, a pessoa podia ir, por exemplo, ao
cassino da Urca (que era naquela época um dos lugares de freqüentação
imoral mais conhecidos no Rio de Janeiro), e ela não pecava, antes fazia
um ato de virtude.
Por que ela fazia um ato de virtude? Porque ele ia
“levar o Cristo’ ao cassino da Urca, que estava cheio de gente que
nunca tinha recebido a comunhão, ou que havia tanto tempo que a tinha
recebido, que a recordação eucarística estava apagada nessas almas
miseráveis.
E essa pessoa da Ação Católica que comungou cedo,
recebeu de tal maneira uma união com “o Cristo”, que ela podia
levar “o Cristo” até essas pessoas que há trinta ou quarenta anos
viviam em estado de pecado mortal.
Haveria então um contágio: “o Cristo” estava
no rapaz da Ação Católica e não estava na moça com quem ele dançava. Mas
aquela moça acabava recebendo uma ação “do Cristo”, por
dançar com um moço que tinha recebido “o Cristo” de manhã
[119].
Portanto, para conquistarem o mundo moderno, não
deveriam mais sair do mundo, como recomendavam as antigas
associações religiosas a seus membros. Pelo contrário, agora deveriam
entrar no mundo, misturar-se com ele, fingir não ver o que o mundo
tinha de ruim, e meter-se dentro de todos os ambientes
[120].
Compreende-se facilmente que essa doutrina acabasse
por conduzir a abismos mais profundos. Não faltaram os que começaram a
considerar que os atos contrários à moral podiam ser feitos de um certo
modo “santo”, quando praticados com “sinceridade”, “inocência” e
“simplicidade”. Essa idéia de santidade subsistente na imoralidade se
manifestava, por exemplo, na copiosa literatura místico-sensual da revista
A Ordem
[121].
No fundo, as idéias novas
- importa notar este ponto, que é
o âmago da questão - constituíam
uma tentativa de adaptar o catolicismo aos sistemas filosóficos e aos
costumes de nosso século.
Não seria difícil demonstrar que o misticismo
panteísta a-racional que caracteriza muitos sistemas filosóficos modernos
influenciava também, a fundo, o movimento ideológico dos inovadores. A
moral de nossos dias, que favorece de todos os modos o livre exercício dos
instintos, e despreza todo o exercício disciplinador que sobre eles pode
exercer a inteligência e a vontade, também influenciava profundamente as
concepções morais dos inovadores
[122].
5. Negação do pecado original e da militância da Igreja. Ecumenismo
Esta concepção envolvia uma virtual negação do pecado
original.
A idéia subjacente era a seguinte: “Os homens, no
fundo, não são maus. Eles são maus porque os bons desconfiam deles. No dia
em que o bom confiar no mau, o mau se converte e se torna bom. Com o mau a
gente deve conduzir a política da mão estendida. Deixemos todos os homens
fazerem o que quiserem, que tudo correrá bem”
[123].
No livro
Em Defesa da Ação Católica apontei esse erro fundamental como
sendo o ponto de partida de um certo
ecumenismo. O ecumenismo pressupõe que, estabelecendo-se
relações amáveis, dulçurosas, com os hereges, com os cismáticos, a pessoa
os acaba convertendo
[124].
O apostolado deveria ser, portanto, ecumênico:
discussões jamais, polêmicas jamais; o sorriso seria o veículo natural da
graça de Deus.
E se uma pessoa, em vez de sorrir e de ser amável,
discutisse com os que estão no erro, essa pessoa rejeitaria o “fiel
do Cristo” que quer vir “ao Cristo”.
Era preciso, portanto, jamais dizer a alguém:
“Você está no erro, você não pode pensar assim”. Ou: “Tal maneira
de proceder é contra tal Mandamento da Lei de Deus”. Não! Sorrir!
Somente sorrir
[125].
E então a atitude militante da Igreja não
tinha mais razão de ser. A atitude da Igreja devia ser conciliante,
própria a reconciliar e fazer com que as pessoas boas, as pessoas honestas
vencessem sempre a batalha não combatendo. O resultado seria que, diante
de tanto amor, tanto amor, tanto amor, a maldade humana não resistiria.
Não havia, pois, razão para estar combatendo. A luta
era uma coisa errada
[126].
6. Arte sacra extravagante, literatura erótico-mística, combate à
“mania” da moral
Uma coisa que me chocava nesses inovadores era também
o apoio que davam às realizações mais audaciosas e extravagantes da arte
sacra, e uma certa literatura religiosa erótico-mística das mais
perigosas.
Por isto também apregoavam nos ambientes católicos
uma grande liberdade de costumes.
Acusavam os congregados marianos, as filhas de Maria
e outras associações de terem um ideal de pureza farisaico e algum tanto
antiquado.
Pregavam o favorecimento da intimidade entre os
sexos, dos passeios e excursões em comum, do uso de trajes de banho
hipermodernos. E diziam que os problemas sexuais podiam e deviam ser
tratados não só em particular e com modéstia, mas em cursos e conferências
feitos para ambos os sexos e até pelo rádio e demais meios
[127].
Em suma, era preciso acabar com a preocupação
moralizante. A “mania” da moral devia desaparecer. A Igreja existia,
diziam, não para pregar a moral, mas para o “apostolado”
[128].
No fundo, no fundo, no fundo, a Moral deixava de ter
importância. E era o próprio perfil do católico que mudava também.
Em geral, o católico do tempo em que fui deputado
timbrava por ser sério, rir pouco, apresentar-se com gravidade, dizer
coisas que tinham importância, alcance, maturidade, pensamento.
Para eles, não. O católico novo devia estar sempre
rindo, sempre brincando, sempre gracejando, tomando tudo com ar de
ingenuidade
[129].
Resumindo: a Ação Católica era, em matéria de
apostolado, o que o Movimento Litúrgico era em matéria de piedade. Ou
seja, eram dois aspectos de uma mesma heresia
[130].
7. Luta de classes latente na opção exclusiva pelo operariado
Naquele tempo havia um movimento que teve na Europa,
sobretudo na Bélgica, um desenvolvimento extraordinário, chamado JOC,
Juventude Operária Católica.
Esse movimento era dirigido pelo Padre Joseph-Léon
Cardjin, que mais tarde, se não me engano no pontificado de Paulo VI, foi
elevado a Cardeal
[131].
Esse movimento tinha uma eficácia, tinha uma precisão
de movimentos, de atitudes e um bom gosto no realizar as suas
manifestações públicas que verdadeiramente entusiasmava.
Lembro-me de ter visto álbuns com fotografias da JOC
belga ocupando estádios colossais, com as famílias dos operários católicos
nas arquibancadas, e os jovens desfilando e fazendo exercícios. Eu ficava
encantado considerando aqueles desfiles.
As primeiras “bandeirantes” do progressismo em São
Paulo sustentavam que a única coisa que valia a pena, hoje em dia, era
promover movimentos operários, porque as classes mais altas tinham perdido
completamente o prestígio. E que a existência dessas classes altas era uma
espécie de bossa, de saliência errada, mais ou menos como uma espécie de
corcova de zebu na organização social. E que era preciso acabar com essas
classes. O que era uma manifestação clara do espírito de luta de classes
para a qual tendia esse movimento.
Contra isto, eu — que era entusiasta da JOC belga e
dos movimentos que esta fazia, do número impressionante de jovens que
recrutou, quer na JOC masculina, quer na JOC feminina — me opus
categoricamente
[132].
Eu sustentava que era fácil dirigir para o bem as
classes populares, desde que as classes altas tomassem a direção boa em
relação à Fé, à doutrina católica
[133].
8. Balanço final: uma outra “igreja” metida dentro da Igreja
Isso tudo posto, o balanço a ser dado sobre todo esse
movimento era:
— Estávamos em presença de uma religião nova,
otimista, alegre, permissivista e satisfeita, a qual partia da idéia de
que o homem, tendo inteira liberdade, se conduz bem.
— À maneira da lâmina de uma espada oculta
dentro de uma bainha, assim eles queriam ocultar, dentro da bainha da
verdadeira Religião Católica, a lâmina de uma religião anticatólica; era
uma outra “igreja” metida dentro da Igreja.
— Estava sendo pregada uma revolução que vinha
a ser, dentro da Igreja, o que a Revolução Francesa foi dentro do Estado.
Exatamente a mesma coisa. Era, portanto, um começo de Revolução Francesa
que assistíamos dentro da Igreja.
— Tudo isto era, antes mesmo da Revolução de
Maio de 1968, a implantação na Igreja Católica do ideal da Sorbonne, cujo
lema foi: “É proibido proibir”.
1. Conspiração feita em surdina. Combate à devoção a Nossa Senhora
Essa doutrina não era enunciada com esta clareza. Ela
era toda “conspirada”
[134].
Em seus escritos, raramente afirmavam sem rebuços sua
doutrina. Mas punham em silêncio todas as verdades que queriam destruir,
apresentando uma imagem implicitamente mutilada e deformada do
catolicismo. De mais a mais, adotavam uma linguagem ambígua, que tanto
podia ser entendida em seu sentido errôneo quanto em seu sentido
verdadeiro.
Assim, combatiam a devoção a Nossa Senhora falando
dela o menos possível, isto é, quase nunca. E em seus livros de piedade,
abstraíam da existência de Maria Santíssima, induzindo o leitor ignorante
e desprevenido a julgar a devoção a Nossa Senhora supérflua e de pouca
valia
[135].
Também elogiavam tanto e tanto o Bispo, que o fiel
era levado a ter uma visão falsa da organização da Igreja, pela impressão
de que o Bispo era quase tudo e o Papa quase nada
[136].
Essa doutrina eles não davam claramente, davam de um
modo confuso, para a ir colocando aos poucos na cabeça das pessoas.
Um outro exemplo desse modo confuso eu notei no
Movimento Litúrgico: muita correção no recitar o Ofício, muita afinação,
tudo muito direito. Só podia impressionar bem as pessoas. Porém, na hora
em que explicavam por que faziam aquela oração, vinham os erros: as formas
antigas de piedade deviam ser substituídas; não mais o Rosário, não mais a
Via Sacra, não mais a comunhão fora da Missa: participe da Missa com o
padre e não se preocupe mais com os atos antigos de piedade.
Isto era dito assim: “O leigo participa com o
sacerdote da Santa Missa”.
Mas o que é “participar”? Nunca diziam
claramente. Davam a entender que era qualquer coisa de muito novo, de
muito importante.
Quando notavam que uma pessoa oferecia certa
resistência, eles então a sabotavam. E só promoviam, só davam lugares de
honra aos que se engajavam em sua escola
[137].
E assim na surdina, dentro da obscuridade, no meio
católico se fazia uma espécie de conspiração de um “catolicismo” que não
era catolicismo, porque não há dois gêneros de catolicismo. Existe uma só
Religião Católica Apostólica Romana, e todo tipo de adaptação do
catolicismo a uma mentalidade dita “nova” é uma deformação do catolicismo.
Portanto uma coisa que não se deve aceitar
[138].
2. Núcleos aparentemente desarticulados
Inteiramente outro era o procedimento dessa gente em
seus conciliábulos. Nos seus pequenos círculos de estudo e nas suas
palestras, de pessoa a pessoa usavam eles de uma franqueza maior e, por um
processo de verdadeira iniciação, à medida em que notavam que as
tendências de seus ouvintes iam-se manifestando favoráveis, aumentavam
suas confidências, até fazer o "apostolado" direto das doutrinas mais
audaciosas.
E assim o liturgicismo caminhava cautelosamente,
jogando muito mais com palavras que voam do que com escritos que
permanecem. E se alguém ousasse denunciar seus manejos, eles se faziam
imediatamente de vítimas, dizendo-se caluniados.
Era pois uma das tarefas mais difíceis provar que
alguém pertencia ao liturgicismo. Pessoalmente eu possuía um grande
arquivo de cartas, artigos de jornais, que me permitiram, com algum
trabalho, demonstrar o que está no livro Em Defesa da Ação Católica.
Mas poucos teriam sido os que, sem igual esforço e documentação, poderiam
exibir esta prova
[139].
Já mencionei que havia blocozinhos de pessoas que iam
à Europa para formar-se nos movimentos europeus contaminados com essa
mentalidade. E que depois voltavam ao Brasil para espalhar esses erros. E
que vinham pessoas da Europa com essa mentalidade, para incuti-la nos
meios católicos brasileiros.
Esses núcleos eram articulados entre si, mas não
apareciam como articulados.
A generalidade dos católicos não percebia esta
articulação e foi na onda, pois esses núcleos eram compostos de pessoas de
comunhão diária, de aparência muito religiosa, muito católica, mas que
sabotavam de todos os modos tudo quanto havia de bom e de antigo, e
pregavam sua doutrina de modo velado
[140].
Eles em geral procuravam pôr em relevo aspectos
legítimos da doutrina católica, mas apresentados de uma maneira exagerada
[141]. Era, portanto, uma conspiração velada
[142].
3. Alguns Bispos perceberam e fecharam as portas
Houve reação?
Nas principais dioceses o erro não encontrou nenhuma
reação: Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre, Belo Horizonte e outras.
Nelas os liturgicistas assumiram os postos de direção, aí exerceram toda a
sua influência e conseguiram afastar os elementos de mentalidade
tradicional. E assim trabalhavam à vontade.
Também em centros menores, como por exemplo Guaxupé.
O Bispo, Dom Hugo Bressane de Araújo, mandou tirar da matriz de Poços de
Caldas, que dele dependia, todas as imagens. E isto depois da publicação
da encíclica Mediator Dei, que fustigava essa prática.
Em Uberaba, em Campinas, em Juiz de Fora e outras
cidades, a campanha liturgicista continuava infrene.
Muitos de nossos Bispos perceberam o problema, e se
defenderam contra ele fechando suas dioceses aos agentes da dissolução.
Foi o que se passou por exemplo em Piracicaba, Ribeirão Preto, Bragança
Paulista, Curitiba, Jacarezinho, Valença, Mariana e outros lugares.
Mas esses Bispos não ignoravam que a Ação Católica
era dirigida, em seus centros principais, por uma mentalidade
fundamentalmente imersa no erro, e que, mais cedo ou mais tarde, não
conseguiriam evitar que essa mentalidade se propagasse das Juntas
Nacionais e Arquidiocesanas para as suas próprias dioceses. E julgaram
melhor não lutar de frente contra o mal, mas apenas opor-se a ele pela
abstenção e pelo prudente recuo.
Isto subtraiu momentaneamente ao mal certas dioceses.
Mas foram resistências individuais, todas elas posteriormente destroçadas.
Reação oficial não existiu
[143].
Ora, teria sido preciso, para mover à ação os mais
fracos, os mais imprevidentes, como também a grande maioria inerte, que se
compreendesse que estávamos em presença de um vasto sistema de ideias,
constituindo toda uma mentalidade nova. Que a penetração desse sistema de
ideias nos meios católicos existiam não só no Brasil, mas em quase todos
os países. Que, em última análise, era uma tentativa sutil, e por isto
mesmo duplamente perigosa do espírito do século, de arrebatar as almas ao
aprisco da Igreja. E que a própria sutileza do perigo o tornava ameaçador,
não só para os propensos ao mal, mas até para espíritos sinceramente
orientados ao bem.
Nessa tarefa, a cooperação franca e geral dos membros
do Episcopado teria sido indispensável para resolver o problema. Sem essa
cooperação, não haveria trabalho fecundo e completo
[144].
Infelizmente vimos o contrário. E o destroçamento das
resistências sadias não teria sido possível se
- e este é o ponto básico
- a corrente inovadora não
tivesse tido o apoio da autoridade eclesiástica nos centros a que acabo de
me referir, e também em várias dioceses de importância embora não tão
central.
Não julgo as intenções. Verifico o fato concreto. E
esse fato concreto foi que, invariavelmente, a autoridade desses focos
centrais fez tudo para prestigiar os inovadores e inutilizar, nesses
vários centros, a reação sadia. A razão é que o impulso dado pelos centros
dirigentes a toda a periferia foi neste sentido
[145].
1. Críticas mordazes para cercear a influência de Dr. Plinio
Foi aí que comecei a notar que se ia fazendo o vazio
em torno de mim nos meios católicos
[146]. E que, da parte de alguns daqueles que eu tinha
em conta de bons católicos, vinha contra mim, e na minha presença, uma
série de pequenas críticas mordazes que indicavam uma conspirata qualquer
para me afastar e me pôr de lado. E eu não sabia por quê.
Dou aqui um exemplo desse tipo de críticas, muito
característico
[147].
Em minhas aulas de História na Faculdade Sedes
Sapientiae eu colocava um empenho enorme em ser claro. E as alunas
achavam minhas aulas realmente muito claras.
Certo dia Mlle. de Loneux, aquela freira que não se
dizia freira mas pertencia a uma ordem religiosa meio oculta, disse à
diretora da Faculdade: “Eu gostaria de assistir a uma aula do Professor
Plinio Corrêa de Oliveira”.
A diretora
[148]
veio me pedir licença, dizendo que uma compatriota belga queria assistir a
uma das minhas aulas, por ter ouvido falar muito delas.
Eu disse: “Pois não, à vontade. Arranjem uma
cadeira mais confortável para ela, eu tenho todo o gosto de dar a aula
diante dela”
[149].
Do fundo da sala, ela observava a minha aula
[150].
Terminada a aula, seria normal que ela viesse me
felicitar, uma vez que eu tinha dado licença a ela para assisti-la. Ela
tinha sumido
[151].
Dias depois, a diretora da Faculdade me disse: “O
senhor não sabe o que Mademoiselle Loneux achou de sua aula
[152]. Ela fez um comentário muito elogioso”.
Eu achei esquisito que esse comentário elogioso ela
não o fizesse para mim, fosse fazer para outra. E pensei: “Aqui tem
ronha”.
— Ah, sim? O que ela disse?
— Ela disse que o senhor é um professor tão claro,
tão claro, tão claro, que ela acha que está mal empregado numa
universidade, e que era muito melhor que fosse utilizado numa escola de
ensino de débeis mentais. Porque sendo claro como é, nem os débeis mentais
conseguiriam não entender o senhor.
[153].
Era uma mordida de serpente. À primeira vista, um
grande elogio
[154]. Mas na realidade um modo de degradar um
professor, não por um defeito, mas por uma qualidade. Quer dizer, a
qualidade era tão grande que até merecia ser degradado
[155].
Aí se vê qual era o método de sabotagem: sob o
aspecto de amabilidade
[156], aconselhar que me mandassem para junto dos
imbecis e evitar que, pela minha influência, eu fizesse apostolado
[157].
2. “Recados” sobre o fim das Congregações
Marianas
Outro caso de que me lembro, um pouco antes da Ação
Católica aparecer, deu-se com uma boa senhora, que eu respeitava muito e
até queria bem. Ela não tinha nenhum parentesco comigo e era de muito boa
família de São Paulo. Era também muito católica, mas influenciada por
alguns padres.
Disse-me ela uma vez:
— Plinio, você está satisfeito de ser congregado
mariano? Você não queria alguma coisa a mais?
— Se houvesse alguma coisa melhor, quereria. Mas o
que pode ser?
— Ainda virá, você vai ver. Com as viagens de tal
e tal pessoa à Europa, virá coisa nova. É feita para você. A Congregação
Mariana já fez o seu tempo, é coisa superada!
— Mas superada pelo quê?
— Você vai ver.
— Sim, senhora.
* *
*
Algum tempo depois, quando a Congregação Mariana
estava em pleno esplendor, Monsenhor Gastão Liberal Pinto, que era muito
chegado a mim, e que tivera um papel muito grande na minha candidatura a
deputado, me disse:
— Então, senhor congregado, como vai você?
— Bem, e o senhor, como vai?
— Bem, obrigado. Ah! a Congregação Mariana já fez
seu tempo, hein! já acabou.
— Mas acabou por quê, Monsenhor?
— Tem que vir outra coisa. Não pode ficar
eternamente Congregação Mariana. Roda, roda, roda... Congregação Mariana!
Quase lhe perguntei: “Roda, roda, roda... e o
senhor é padre sempre? Comigo, roda, roda, roda e sou batizado sempre. O
que é que o senhor está querendo?”
Mas não disse nada. Fiquei quieto, procurando ver o
que é que vinha.
E me perguntei: por que tubulações chega a mim esta
espécie de palavra de ordem? Qual é a fonte emissora? O que essa palavra
de ordem contém? “Écoutons, parlons bas, marchons à petits pas, ne
faisons point de bruit” — “Escutemos, falemos baixo, andemos devagarzinho,
não façamos nenhum ruído”. O que é que vai sair de tudo isso?
[158]
Em certo momento, notei que um rapaz que pertencia ao
nosso grupo ia se deixando envolver pelas construtivas.
Ele era dos mais moços do nosso grupo. Rapaz de
razoável inteligência, muito amável no trato com as pessoas, mas sempre
disposto a concordar com quem ele notasse que estivesse de cima. Daí o
fato de a adesão dele às nossas idéias não me convencer muito.
Certo dia, essas moças da
Ação Católica resolveram fazer um congresso no mesmo prédio onde
funcionava a sede da Congregação Mariana de Santa Cecília, na rua
Imaculada Conceição.
No andar térreo ficava o Legionário, que era o
órgão da Congregação Mariana. No 2° andar funcionava a Congregação
Mariana. E toda a parte de cima, o 3° andar, era tomado por um salão
grande, destinado a conferências, apresentações de teatro e outras
atividades.
Enquanto as moças realizavam esse congresso na parte
de cima
[159], eu embaixo trabalhava com os que estavam
preparando o próximo número do
Legionário
[160], e que pertenciam à equipe formada em boa parte
por rapazes que mais tarde seriam os fundadores do jornal Catolicismo
e por fim da TFP.
Eles, sentados de modo recolhido na sala de redação,
diante de suas mesinhas, estavam compondo as notícias com as matérias que
lhes eram fornecidas.
Enquanto na sala do Legionário havia aquela
quietude de trabalho e silêncio religioso, em cima, na reunião
progressista, eu ouvia palmas, palmas e mais palmas
[161].
Achei aquilo estranho, porque era um gênero de palmas
frenético, e gargalhadas a propósito de coisas que pareciam
engraçadíssimas. O modo pelo qual uma pessoa ri de uma piada imoral, este
era o modo pelo qual se ria naquele andar de cima.
Terminada
a festa, vejo aquele mundo de gente que desce. E afinal aparece o tal
redator do Legionário (mais tarde tornou-se um político) que
naquele dia tinha deixado de trabalhar na redação para ficar com as
construtivas lá em cima.
Ele se dirigiu à minha sala, pôs-se de pé em frente a
mim, numa atitude de quem esfrega as mãos.
Olhando-me meio de cima, ele disse
[162]:
— Plinio, note a diferença entre os dois andares.
Você aqui em baixo com os jovens do Legionário representam a Igreja
antiga, séria, que reza, que trabalha, que luta contra o adversário. Em
cima é a Igreja nova, que ri, que dança, que se diverte, que vai à praia,
que vai à piscina, que vai para toda a parte levando o Cristo. E eu queria
avisar a você que há uma combinação de mudar completamente a Igreja. Se
você aderir à Igreja nova, nós teremos muita força política e não há cargo
a que você não possa ser elevado. Mas se você continuar nessa sua posição,
você vai ficar só e completamente esmagado, e o seu futuro terá acabado
[163].
Você será cancelado e sua carreira como homem
público ficará cortada também
[164]. Ou vocês mudam completamente seus métodos e
sua doutrina de ação, ou ficarão completamente postos à margem. Porque a
Ação Católica tomou um impulso que não vai mais com os métodos do
Legionário. E o Legionário estará liquidado
[165], será posto completamente de lado pela
Hierarquia. E seremos nós que passaremos à sua frente
[166].
Era evidentemente um recado vindo de mais altas
paragens
[167].
4. Prossegue a conversa: informações importantes
Eu disse a ele:
— Fulano, espírito não se escolhe por política. Ou
você me explica o que é esse espírito, e então eu analiso, e se estiver de
acordo sigo, ou por política não vai: não espere que, por causa de um
estardalhaço desses, eu vá mudar de posição.
Ele se sentiu apanhado, mas retrucou:
— Você se fecha. Até nos dancings imorais nós
levamos o Cristo. Você não iria a um lugar desses. Se lhe levassem lá
amarrado, você ficaria vituperando e com cara furiosa. E logo que lhe
desamarrassem, você sairia. Você sabe nós o que fazemos? Dançamos! Não se
choque nem se irrite, nós dançamos. Porque nós vamos com o espírito
desprevenido, alegre, e nós levamos o Cristo em nós. Resultado: o Cristo
entra naquele lugar e produz conversões.
Eu disse:
— É verdade, mas não é Cristo que entra nesses
lugares, mas Satanás que entra em vocês. Num lugar desses, qualquer homem
normalmente constituído tem tentações, não é possível que vocês não as
tenham. Ou vocês foram concebidos sem pecado original? Se assim é, e se me
demonstrarem isso, presto minha homenagem, está aqui um vassalo disposto a
admirá-los, mas demonstrem.
— Não. Essas coisas não são assim. Se você entra
lá procurando o mal que há lá, há mesmo. Se você, lá, pensa nisso, é claro
que o mal lhe entra pelos olhos. Mas se você vai lá com a idéia de não ver
o mal, o mal não te assalta. Não veja o mal!
— A mim assalta! Então, você e todo o mundo que
está no andar de cima desse prédio é muito mais virtuoso do que eu. Os de
cima são imunes ao mal. Aqui em baixo, não. Resultado: nós combatemos e
vocês não combatem
[168].
Eu
percebi que ele estava transmitindo coisas que se conversavam nas rodas
confidenciais. E que era um bom momento de eu me informar do que é que
diziam lá.
Ele então me disse:
— A questão é a seguinte:
você representa aqui no Legionário um tipo antigo de católico. Você é
combativo. Você acha que a doutrina católica deve ser desfraldada por
inteiro aos olhos dos outros. Você acha que a discussão é um bom meio de
firmar os princípios. Você acha que quando uma pessoa não anda bem na
doutrina e nos costumes, é preciso dizer isso de frente. Você acha que o
tipo do homem e da moça deve ser um homem sério, uma moça séria, que vivem
pensando em coisas elevadas, que têm uma linguagem nobre e bonita.
Não, acabou! Agora é uma era nova. Nós vivemos no mundo da igualdade, no
mundo da Ação Católica. A meta da Ação Católica é fazer a Igreja lutar por
uma revolução social. É preciso acabar com as classes sociais, acabar com
as desigualdades, acabar com a seriedade carrancuda. Nós vivemos em uma
época de alegria, de despreocupação. A
gente deve pensar nas alegrias de Cristo. As dores de Cristo passaram.
Eu:
— Ah! sei, sei
[169].
— Todo mundo tem medo de
você, com essas suas certezas, com este seu autoritarismo, com este seu
modo de discutir que vai empurrando a pessoa contra a parede. Nós não
estamos mais na época disso.
Eu interrompi:
— Perdão, nós estamos numa época de quê?
Não se falava ainda em diálogo, mas já a
mentalidade do diálogo super-ecumênico estava no veneno da víbora.
Ele disse:
— Nós não estamos mais na época em que um homem
com aspecto aristocrático, com aspecto de professor de todo mundo, desce e
resolve um problema, e depois ninguém mais tem nada que dizer. Nós estamos
na época dos círculos de estudos, na época em que ninguém é mestre de
ninguém na busca do caminho. Mas chegamos à época em que todos fazem uma
roda, cada um dá um fragmento de opinião amiga, desprevenida, dá opinião
como colaborador entre outros colaboradores, sem dizer a ninguém que ele
está errado. Não se faz mais tanta carga nessa distinção entre erro e
verdade, bem e mal, ortodoxia e heterodoxia. Não! Temos de caminhar
juntos, procurando a verdade, a mão na mão, com caridade.
Eu pensei: “Aqui está o espírito da Revolução
Francesa, aqui está a víbora contra a qual eu consagrei a minha vida.
Depois de eu ter martelado contra essa víbora de todas as formas, fora dos
ambientes católicos, vejo que ela se fez de morta fora e entra por debaixo
do assoalho”.
Eu disse a ele:
— Mas eu faltei com a atenção a alguém, para meter
tanto medo?
— Não, mas o seu modo anacrônico mete medo.
— Mete medo em quem?
— A mim e a todo o mundo.
— Mas, é curioso, aqui a sala está cheia de gente
que não tem medo de mim.
— É, mas é porque você não sabe, você precisa ver
o vazio que está se cavando em torno de você. Você é muito afirmativo.
Hoje não se deve mais ser afirmativo. Estamos em uma época de liberdade de
opiniões. Opiniões que tendem a se encontrar e se conciliar, e não de
opiniões que querem se apresentar por esta forma.
Eu pensei: “Ah! aqui está outro aspecto”. E
deixei-o falar, para ver o que é que vinha.
— Deve haver colaboração feminina, os sexos hoje
são iguais, todos colaboram de igual a igual
[170].
5. Fim da conversa: “eu prefiro tudo a me vender”
Eu retruquei:
— Você está querendo, afinal de contas, me
comprar. Porque vejo um companheiro de armas que me pede para largar a
luta, misturar-me com o adversário, para depois ser recompensado
generosamente por todo tipo de promoções. E me diz que, se não for isto,
rua.
E então me levantei e falei cortesmente, mas firme
[171]:
— Fulano, eu prefiro tudo a me vender. Ainda que
eu tenha que ser o último dos homens, eu serei o último dos soldados da
Igreja tradicional, mas a Igreja tradicional nunca morrerá. Dizer que eu
serei o último dos soldados é um modo de dizer, porque depois de mim virão
outros que pensarão como eu, pois a Igreja não morre
[172]. A Igreja Católica nunca mudará e ela nunca se
venderá. Ela nunca adotará uma modernidade falsa e contrária aos
princípios dela só para se encontrar bem nesse mundo. Ela está no mundo
não para se reformar segundo o mundo, mas para reformar o mundo segundo
ela. Ou isto é assim, ou quem não pensa assim não pensa com a Igreja
Católica. E eu prefiro tudo, prefiro ser cancelado, barrado, empurrado de
lado, ignorado, caluniado, esquecido; eu prefiro tudo isso a trocar a
verdadeira imagem da Igreja Católica que conheci quando aprendi o meu
catecismo nos braços de minha mãe
[173].
— Bem, você foi avisado. Depois não se queixe.
— Eu só me queixaria se soubesse que Deus vai me
abandonar na luta. Mas isso nunca acontecerá, porque eu tenho confiança
n’Ele e confiança em Nossa Senhora. E eles não abandonam nunca, isto não
acontecerá. Poderei ser derrotado, mas outros virão que vencerão.
Portanto, eu não abandono a minha posição
[174].
Era a pré-TFP que se enunciava nesse projeto de
sacrifício total, de renúncia total, desde que Nossa Senhora fosse servida
até ao fim.
* *
*
O fato concreto é que aquele jovem que me falava
deixou as fileiras do antigo Legionário, entrou para o movimento
progressista, aderiu àquele clima de alegria excitada que se realizava no
andar superior, e que era símbolo de um estado de espírito, de um modo de
ver as coisas que depois chegou ao seu auge.
Este rapaz depois galgou as posições mais brilhantes
da vida política brasileira. E ajudou a conduzir o Brasil para a triste
situação em que está, uma situação de pré-comunismo, a dois passos do
comunismo.
E nós, lutando na trincheira oposta, ajudamos muitos
brasileiros a se porem na brilhante situação em que estão: de uma minoria,
mas uma minoria que disse energicamente não, que se fez conhecer
no Brasil inteiro, porque não há no Brasil lugar onde não se saiba da
existência da TFP.
Mas aquela intimação que esse pobre jovem enunciou,
realizou-se. Nós fomos relegados, fomos postos de lado, procuraram pôr-nos
na penumbra
[175].
6. O que está por detrás?
Essa conversa com esse rapaz
deixou-me intrigado
[176].
Parecia que ele estava instruído a fazer uma
provocação para ver se me induzia a uma imprudência qualquer que pudesse
servir de slogan numa campanha de difamação contra a nossa
orientação
[177].
E pensei o seguinte: “Esse
rapazinho (isto foi em 1939 e ele tinha cerca de 23 anos e eu 30-31)
e essas senhoras devem se sentir apoiados de cima, para iniciar essa luta.
Quem é, em cima, que os apóia?”
[178]
Então resolvi o seguinte: “Em vez de combater, eu
vou ouvir, para descobrir o que está atrás da cabeça deles; eu vou fazer
com que, apesar do suposto medo de mim, eles digam o que está na
‘arrière-pensée’ deles; e quando eu tiver descoberto, aí eu tomo as
providências que as circunstâncias possam comportar”.
Então, convívio, conversa, gentilezas, sorrisos
[179].
7. Convidado para uma reunião
da Ação Católica
Um dia o meu
vigário, chamado Padre Luiz Gonzaga de Almeida
[180], me diz:
— Plinio,
vai haver uma reunião da Ação Católica aqui, uma coisa extraordinária,
você não quer comparecer?
— Vou.
Creio que o
Dr. Paulo Barros de Ulhôa Cintra estava nessa reunião. Fomos até lá, uma
casa alugada pela paróquia no próprio largo de Santa Cecília
[181].
Chegando lá,
encontrei esta situação: uma mesa, no centro dela um jarro verde-claro que
comunicava uma impressão colorida agradável, com umas flores comuns,
digamos copos-de-leite. Aquelas flores pareciam sorrir
[182].
Estavam
presentes três senhoras de boa família, de trinta e tantos anos, mas com
ares de moças, e vestidos com desenhos de florezinhas claras.
— Então,
vai haver uma reunião aqui?
— É, mas
não na sala de reuniões, porque não fazemos reuniões. Nós fazemos círculos
de estudo. Passou-se o tempo em que um falava e outros ouviam
(já era a tendência para a
colegialidade).
Na Europa ninguém aceita mais isso, não se tolera mais. Nem nos Estados
Unidos. E aqui no Brasil vai mudar também.
Elas fizeram
um círculo e disseram: “Em vez de entrar aqui uma pessoa que conheça a doutrina e a justifique
por argumentos, e os outros ficam quietos, cada um de nós dá um fragmento
da verdade. E daí, de fragmento em fragmento, compomos uma verdade
completa, sem polêmica, numa discussão de amigos
[183].
Eu estava
entre os assistentes da história. Sentaram-se três moças e começaram um
diálogo, de cujos termos exatos não me lembro, mas era mais ou menos nessa
linha:
— Fulana, o que você acha da definição da Ação
Católica? Ela é uma participação ou é a colaboração no apostolado da
Igreja?
A outra responde em tom sorridente e melífluo:
— Ah! Beltrana, você sabe que é até difícil
responder?
— É difícil, sim. Mas se nós nos quisermos bem e
discutirmos com amor, haveremos de chegar a uma definição.
— Você acertou. O amor resolve tudo!...
Eu achei aquilo uma coisa espantosa! Encontrar uma
definição por meio do amor e não da lógica, isto extrapolava completamente
de meu modo de ser, era uma coisa inaudita. Mas eu fiquei quieto, tomei
uma atitude urbana
[184].
E continuei a observar tudo aquilo arregalando os
olhos, mas disfarçando. Eu só me espantava de elas não perceberem o que eu
estava achando
[185].
A idéia de fundo era de que, por processos muito
amistosos, havia uma forma de adocicar os homens que os faria mudar de
pensamento, faria com que o ecumenismo fosse possível a partir da
idéia da queda da razão.
Era evidentemente uma escola filosófica, mas uma
escola filosófica completamente errada
[186].
Era uma nova forma de governo que entrava na Igreja.
Era uma nova Igreja. Mas, à noite, os congêneres dessa gente no Rio de
Janeiro iam ao Cassino da Urca para dançar e levar “o Cristo ao Cassino”.
Iam assistir à Missa liturgicista de Dom Martinho Michler, com oferendas
de hóstia na mão e todas essas coisas que já eram o prenúncio da liturgia
modernizada que vemos hoje, com todos os seus erros. Todos eram amigos de
todos e constituíam uma conspirata
[187].
1. Perfil do Arcebispo
Já me referi a isto, mas vale a pena repetir: em
1935, o então Padre José Gaspar, na qualidade de diretor espiritual da
Federação das Filhas de Maria de São Paulo havia escrito um prefácio para
o Anuário dessa Federação, em que falava com entusiasmo da Ação Católica
[188]. Ele tinha a intenção de fechar as Congregações
Marianas e transformá-las em Ação Católica
[189].
Mas ainda era Arcebispo o velho Dom Duarte Leopoldo e
Silva, que manteve a rédea firme durante todo o seu longo governo
episcopal. Como já estava velho e muito cardíaco, a Santa Sé deu-lhe como
Bispo Auxiliar o jovem sacerdote Padre José Gaspar de Affonseca e Silva.
E a Ação Católica passou a gozar de todo o apoio deste
[190].
* *
*
Dom José Gaspar era da cidade de Araxá, no Estado de
Minas Gerais
[191].
Era uma pessoa que valia a pena ter conhecido.
|
D. José
Gaspar |
Era o contrário do velho Arcebispo de granito, Dom
Duarte Leopoldo
[192]. Pessoa de uma presença muito agradável, as
fotografias dele não dão bem idéia de como ele era.
Homem alto, ainda moço (tinha 34 anos na época em que
foi elevado a Bispo Auxiliar), com uma contradição curiosa: apesar de uma
tez morena, era ao mesmo tempo muito corado
[193]. Sobrancelhas pretas um pouco grossas, que
terminavam num ponto meio indefinido. E com olhos pretos meio aveludados
[194], muito atraentes, que davam à pessoa a vontade de
concordar com ele
[195]. Com um ar muito sonhador
[196], e um tom de voz também aveludado
[197], assim:
— Bom diiia, Dr. Plinio.
Como vai passando? Vai bem? Como vão os senhores seus pais, vão passando
bem?
— Bem, e Vossa Excelência
como vai, Senhor Bispo?
— Ah! vou bem, obrigado,
obrigado.
Era ao mesmo tempo uma pessoa
extremamente política, labiosa, atraente
[198], muito afável, muito amável, mas também muito
voluntarioso. O que ele queria, ele queria.
Era também bom orador
[199], de inteligência mediana e com ares de muito
culto. Qualquer coisa que se falasse diante dele, ele deitava um olhar de
profunda compreensão, não dizia nada e, depois, conforme fosse o caso,
sabotava ou não. Mas a sabotagem dele era sempre suave, mansa, em geral
acompanhada de um suspiro.
Debaixo de certo ponto de
vista, era a antítese do meu modo de ser.
|
Plinio Corrêa de Oliveira, após o término da
Constituinte, assume efetivamente a direção do
Legionário. |
Para quem conhece o meu retrato em moço, pode
imaginar o encontro dos dois homens: um definido, categórico, tom de voz
firme, dizendo as coisas como são; o outro, suave, gentil, amável,
atraente
[200].
Ele era um homem de temperamento, curso de idéias,
doutrinas, em tudo completamente diferentes de como eu entendia como as
coisas deveriam ser na Igreja
[201].
No meu trato com ele, sempre mantive as mais cordiais
relações. E tinha por ele um sentimento de viva e natural simpatia, desde
que o conheci, quando ainda era simples sacerdote. Mas inegavelmente era
uma pessoa em cuja mentalidade a contradição era um hábito, a irreflexão
um sistema e a ingenuidade uma segunda natureza. O modo pelo qual ele
concebia a humanidade e julgava dever tratar as pessoas fazia abstração
completa dos efeitos do pecado original no homem.
2. Dom José Gaspar dava provas de confiar nos adversários da Igreja
Sua tática constante e uniforme, sempre que
encontrasse diante de si um adversário da Igreja, consistia em procurar
desarmá-lo por múltiplas manifestações de afeto e carinho. Mais grave
ainda: dando-lhe provas efetivas e indiscutíveis de confiança. Assim, ele
não temia entregar assuntos dos mais delicados a adversários declarados do
catolicismo. Esse era, para ele, o modo de “conquistar” as almas.
* *
*
Havia em São Paulo um banqueiro, conhecido por sua
vida não muito recomendável. Mas o Sr. Arcebispo queria “conquistar” essa
alma pelos “seus” métodos.
Para isto, logo que foi nomeado Arcebispo, mandou que
seu secretário, o Padre Rolim Loureiro
[202], levasse ao banqueiro a minuta da Pastoral de
saudação a fim de que fizesse sugestões quanto à parte referente às
questões sociais. O banqueiro, que também era grande industrial, cancelou
todo um trecho, alegando que, por seu tom, poderia favorecer a propaganda
comunista. O Sr. Arcebispo se queixou do fato ao Padre Rolim Loureiro...
mas não publicou o trecho incriminado.
Esse banqueiro foi o único leigo consultado sobre a
Pastoral.
Tudo isto me foi narrado pelo Cônego Loureiro
[203].
* *
*
Certa noite, enquanto escrevíamos as matérias para o
Legionário, vieram nos avisar que estava na entrada do prédio o
automóvel do Bispo Auxiliar (Dom José), que vinha nos fazer uma visita.
|
Visita de D.
José Gaspar à sede do Legionário, recebido por Plinio Corrêa de
Oliveira |
Fiquei surpreso, mas imediatamente fui recebê-lo e
ele veio para nossa sala trazendo para os redatores um bolo enorme que lhe
haviam dado de presente. E também um quadro de Nossa Senhora Aparecida.
Dei o bolo para os rapazes e começou uma conversa.
A certa altura desvenda-se o objetivo da visita: ele,
Dom José, havia conversado com um padre beneditino chegado da Alemanha. E
este explicara para ele que o problema nazista não estava sendo bem
focalizado pelas pessoas aqui do Brasil. Que de fato a Anschluss
[204]
tinha sido um benefício para a Áustria. E que o Episcopado austríaco não
tinha sabido ver bem a necessidade premente da entrada dos nazistas
naquele país.
Ora, a Anschluss havia indignado todo o mundo.
E nós, no Legionário, havíamos publicado artigos e mais artigos
cuja tese era: o problema alemão só tinha como solução a restauração da
dinastia dos Habsburgos, a derrota dos Hohenzollerns, a supressão
da República de Weimar e de todo o nazismo. Isto o Legionário
sustentava com todas as notas.
Dom José ainda acrescentou que o único homem que vira
bem essa situação, e o grande homem capaz de salvar a Áustria, era o
Cardeal Theodor Innitzer, Arcebispo de Viena entre 1932 e 1955.
Por causa disso, ele vinha pedir um obséquio ao
Legionário: que suspendêssemos todo ataque ao nazismo. Esses ataques,
afinal de contas, só poderiam magoar a colônia alemã e desorientar os
espíritos, porque era evidente que nós estávamos errados, uma vez que esse
padre beneditino havia dito o contrário.
Por respeito a ele, não respondi aquilo que me
saltava aos lábios: não é porque nos vem dizer isso um padre beneditino
que esteve na Alemanha, que todos os argumentos de caráter histórico e
doutrinário, e os fatos evidentes não ficam valendo nada.
Então eu disse:
— Senhor Bispo, é muito fácil cessar de atacar o
nazismo. Basta V. Excia. mandar. O que eu não posso é escrever um artigo
elogiando a anexação da Áustria, o que é contra a minha convicção.
Dias depois vinha um artigo do Osservatore Romano
criticando a anexação da Áustria e sustentando mais ou menos a mesma
posição do Legionário.
Mostrei a ele o artigo do Osservatore e ele
disse:
— Ah! bem, neste caso pode deixar.
* *
*
Outro fato que me chamou imediatamente a atenção
dizia respeito à mudança de orientação que ele imprimiu no governo da
Arquidiocese.
Até o momento da morte de Dom Duarte, em que Dom José
Gaspar era ainda Bispo Auxiliar, sempre que havia algum assunto importante
ligado aos interesses católicos, nosso grupo era chamado para opinar. E
era regra da Cúria evitar de tratar tais assuntos com católicos suspeitos,
liberais e de meias tintas. Estes ficavam à margem
[205].
Quando se tornou Arcebispo, Dom José Gaspar já tomou
como lema de seu brasão de armas Ut omnes unum sint — Para que
todos sejam um.
É um belíssimo desejo expresso por Nosso Senhor no
Evangelho, no sentido de que todos se unissem em torno d’Ele, portanto se
tornassem católicos.
Mas Dom José era levado a entender o lema no sentido
ecumênico de hoje, ou seja, para que os católicos se confundissem e
se misturassem com os outros
[206].
Imbuído dessa mentalidade, na hora de escolher
pessoas para cargos de confiança em instituições católicas, a solução do
caso terminava sempre assim: para tal incumbência ou tal encargo, não
vamos nomear os católicos líderes; estes poderiam ficar na sombra, porque
eram servidores com os quais a Igreja contava em qualquer situação. Vamos
chamar pessoas que sejam ovelhas perdidas e dar a elas os cargos e as
incumbências de direção.
* *
*
Não posso deixar de contar um fato muito
exemplificativo dessa mentalidade.
A certa altura do ano de 1936, ainda como Bispo
Auxiliar, ele resolveu instituir uma estação de rádio católica.
Como não tinha dinheiro para montar uma nova, ele fez
um contrato de compra e venda de uma rádio leiga, dirigida por um homem
que nada tinha a ver com a Igreja.
Um dia ele disse que queria minha opinião de advogado
sobre o contrato, concebido nos seguintes termos: ele entraria com uma
quantia “x”, obtida em donativos, como sinal do pagamento. As outras
parcelas deveriam ser pagas em mensalidades de 40 contos
[207], que a Cúria arrecadaria junto à massa dos fiéis.
E, como medida de economia, para não ter de pagar funcionários para
organizar a coleta, o tal homem da rádio se incumbiria de receber as
mensalidades. E, quando tudo estivesse pago, a rádio passaria para a
Cúria.
Ele me perguntou:
— O senhor, como advogado, Dr. Plinio, o que acha
deste contrato?
— Senhor Bispo, há uma escrituração qualquer para
tomar nota das entradas dos donativos, para controlar a rádio? Sem esse
controle, esse homem da rádio não poderá receber mais e dizer que recebeu
menos?
— Não há esse controle. O senhor acha necessário?
— Como advogado, acho necessário. Mas se V. Excia.
confia no tal homem, e tem razões para agir como um advogado não agiria,
isto é uma decisão pessoal sua sobre a qual não saberia opinar.
— Eu vou lhe contar um segredo: o Padre Tal
disse-me que ele, o tal homem, está se convertendo nessas relações comigo.
E que vai até doar a rádio à Cúria muito antes do pagamento completo.
Ao ouvir isto, entendi que não era para dizer mais
nada. E fiquei quieto.
Dentro de algum tempo, a rádio começou a receber os
donativos e anunciou quantias muito menores do que o esperado. Acabou
saindo uma polêmica pelos jornais. E Dom José Gaspar ficou sentidíssimo
com o negócio.
Logo depois, os banqueiros a quem ele devia 15 contos
o apertaram de um modo brutal para que ele pagasse as dívidas. Isso ele
mesmo me contou. Não sei como ele conseguiu pagar essas dívidas, mas a
aventura da rádio católica acabou.
Esse fato mostra bem o modo pelo qual o problema das
relações com pessoas infensas à Igreja se punha aos olhos dele. E como era
um homem feito para ver preto em tudo quanto nós víamos branco, e ver
branco em tudo quanto nós achávamos que era preto.
3. Hostilidade declarada contra as Congregações Marianas
Ele tomou aquele redator do Legionário de quem
falei acima, tomou aquelas moças do Centro de Estudos de Ação Social e
organizou com eles a Ação Católica. Depois convidou-nos também para
entrarmos na organização. E começou uma luta declarada contra as
Congregações Marianas.
Houve até uma solenidade de recepção de membros da
Ação Católica em que ele fez um discurso tão violento contra as
Congregações Marianas, que chegou a provocar uma pergunta oficial da
Nunciatura Apostólica a ele: qual a razão daquela virulência?
[208]
Manhã do dia 13 de novembro
de 1938. Minha criada portuguesa bate na porta e me acorda.
Eu me levanto e pergunto:
“Ana, o que há de novo”?
— Sua tia, Dona Fulana,
telefonou dizendo que o Senhor Arcebispo Dom Duarte está muito mal.
— Ah! está muito mal, é?
Ela era uma portuguesa
fidelíssima. Até hoje não posso me esquecer do jeito dela, uns brações
roliços de camponesa. Ela deu uma pirueta e
respondeu: “Já se foi!”
[209].
Imediatamente me compenetrei
do que o acontecimento tinha de triste, de grave e de importante para nós.
E me preparei para comparecer aos funerais.
* *
*
Pôs-se um primeiro problema para mim.
Naquele tempo, em funerais de grandes autoridades,
ia-se de fraque. Quando era uma pessoa comum, ia-se de terno azul-marinho
e gravata preta.
Minha pergunta: “Hoje, com tudo mudado, os leigos
irão de fraque ou de roupa azul comum?”
Eu pensei: “É inegável que eu fui o braço direito
de Dom Duarte para grande número de assuntos, e que era tido e havido como
tal. Tendo ele sido um homem de tanto cerimonial, vou comparecer de
fraque. Os outros que compareçam como quiserem”.
O corpo dele foi exposto na igreja de Santa Ifigênia,
naquele tempo catedral provisória, pois a catedral do Largo da Sé estava
em construção. E me dirigi para lá.
À medida em que eu me aproximava da igreja, fui
notando a massa de povo que afluía.
Chegando ao local, lá rezei, e a certa hora o enterro
se organizou para sair.
Fizeram uma procissão imponente, com todo o Clero,
mas absolutamente todo o Clero de São Paulo representado. Depois vinham os
Arcebispos e Bispos da Província Eclesiástica de São Paulo, mais os
Arcebispos e Bispos vindos de outras dioceses de fora.
Havia representantes das autoridades civis e outras
pessoas gradas, várias de fraque. E os sinos do mosteiro de São Bento
tocavam o dobre de finados.
Foi um cortejo muito bonito. Saiu em linha reta
através do viaduto de Santa Ifigênia rumo ao Largo de São Bento. Em
seguida tomou a rua Boa Vista, depois a rua 15 de Novembro e daí seguiu
até o Largo da Sé, cheio de povo.
O povo era tanto que nos vários prédios do percurso
as pessoas subiam ao alto do teto.
Era uma manifestação da popularidade de Dom Duarte,
como eu nunca pensei que em São Paulo pudesse haver para alguém. Era a
popularidade desse alto respeito, dessa alta seriedade, dessa consciência
de sua própria dignidade que habitualmente o povo não elogia, mas na hora
de ele deixar o cenário, percebe o vazio imenso que deixa. E o povo todo
compareceu para acompanhar, ao menos com o olhar, a ida do Arcebispo para
a sua última morada
[210].
5. Sede vacante em São Paulo: decepção de Dom José Gaspar
Cessadas as funções do antigo Arcebispo, a sede
arquiepiscopal de São Paulo ficou vacante.
Quem seria o sucessor de Dom Duarte?
[211]
Dom José não era Bispo
Auxiliar da sede, mas Bispo Auxiliar do Arcebispo, de maneira que, com a
morte de Dom Duarte, as funções de Dom José automaticamente cessavam.
E aconteceu que o cabido metropolitano não elegeu Dom
José Gaspar como Vigário Capitular, mas sim a um velho monsenhor:
Monsenhor Martins Ladeira.
Quando soubemos do resultado dessa eleição, o
Legionário noticiou e publicou duas fotografias, uma do novo Vigário
Capitular, e outra de Dom José Gaspar, com uma homenagem muito carinhosa.
Naquela noite mesmo eu fui visitar Dom José Gaspar no
Seminário, fui lá para consolá-lo. Ele estava abatidíssimo por não ter
sido escolhido.
Ele me abraçou, eu abracei a ele, conversamos, ambos
lamentamos o acontecido. E na hora da saída, ele me disse: “Dr. Plinio,
o senhor creia que, para qualquer lugar onde eu vá, eu nunca me esquecerei
do Legionário”.
Eu respondi: “Excelência, creia que nós também
nunca nos esqueceremos de V. Excia.”
Despedimo-nos. Foi uma despedida muito amável, até
afetuosa.
* *
*
O fato concreto é que, por uma série de
circunstâncias, essa não nomeação de Dom José representou uma ducha de
água fria no movimento da Ação Católica em São Paulo. Isto porque, não
tendo sido eleito Vigário Capitular, ele teve que abandonar a Arquidiocese
de São Paulo. E durante todo o tempo da vacância da sede — perto de um ano
— ele passou fora de São Paulo. E com isto todas essas questões
progressistas ficaram amortecidas
[212].
Nisto morre Pio XI. E ficaram vacantes ao mesmo tempo
o Papado e a sede arquiepiscopal de São Paulo. Foi
preciso então aguardar a eleição do novo Papa (Pio XII), e esperar que ele
elegesse o sucessor de Dom Duarte
[213].
Sendo São Paulo, já naquele
tempo, uma grande sede arquiepiscopal, fazia parte do estilo da Igreja
levar muito tempo para a preencher. Em parte porque a Igreja ouvia
opiniões de vários lados, em parte também porque era bonito a Igreja
mostrar sua sabedoria sendo lenta nas grandes ocasiões. Isto incutia
confiança na maturidade de seus juízos, de maneira que se passaram muitos
meses em que nós ficamos com esta interrogação: Quem será o Arcebispo
de São Paulo?
[214].
* *
*
José Carlos de Macedo Soares desejou ardentemente a
vinda de Dom José Gaspar para São Paulo.
Quando o Cardeal Eugenio Pacelli (futuro Pio XII)
esteve no Brasil de volta da Argentina, onde havia ido como legado papal
para o Congresso Eucarístico Internacional que se realizara em Buenos
Aires
[215], José Carlos de Macedo Soares foi visitá-lo. E
disseram-me que ele, nesse encontro, falou umas dez ou quinze vezes do
Padre José Gaspar de Affonseca e Silva, recomendando-o, inculcando-o,
dizendo que fez isto, que acha aquilo, pensa de outro jeito. Tudo indica
que sua intenção era fazer, assim, com muita antecedência, propaganda para
que Dom José fosse eleito Arcebispo de São Paulo.
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