1. Cátedras favorecem o apostolado
Em 1935 saí definitivamente da política.
Voltei para a vida privada e assumi, em épocas
diferentes, três cátedras: [1]
a primeira, de professor de História da Civilização no Colégio
Universitário, seção anexa à Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo, em 1935; a segunda, de História Moderna e Contemporânea na
Faculdade Sedes Sapientiae, em 1937; e a terceira, de
História Moderna e Contemporânea na Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras São Bento [2].
Fiquei no exercício da docência creio que mais ou
menos 20 anos.
Só bem mais tarde fundei a TFP, em 1960.
Quando a TFP foi fundada, eu já havia parado de
lecionar. Porque para fundar essa associação foi necessário um trabalho
prévio muito absorvente, incompatível, quanto a horários e demais
exigências anexas ao cargo, com o ensino. Então deixei de lecionar [3].
Quando estudante na Faculdade de Direito, eu já
sentia certa vocação para professor, certo gosto de explicar, expor
idéias. Meu desejo sempre foi o de ser professor de História. Parecia-me a
mais bonita das matérias para a cultura geral do homem.
Não a História dada por professor que entra na aula e
diz: “Meroveu I, filho de Chlodion: quando
começou a reinar, quando morreu? Foi morto? Morreu de doença?”. Eu
achava tal exposição de uma sensaboria sem nome. Para dar História assim,
eu não me sentia atraído. Já para comentar a História, fazer sua análise,
procurar mostrar o seu sentido profundo, aí eu me sentia apto [4].
As datas, eu levava por escrito e as lia, e dava a minha aula histórica
consultando tais datas na frente dos alunos [5].
Eu aspirava por uma vida em que a preocupação de
ganhar dinheiro ocupasse o menor espaço possível, para poder me dedicar
ao apostolado. O ideal seria uma profissão que de si já possibilitasse o
apostolado, em que se pudesse fazer o bem. E ser professor de História
parecia-me a melhor forma de realizar esse intento [6],
uma vez que abria caminho para um curso contra-revolucionário da História,
com possibilidade de fazer adeptos [7].
Aquelas cátedras deram-me a possibilidade de exercer
uma ação pública de expressão doutrinária marcante, porque a formação
histórica, mesmo quando colocada numa objetividade que roce pelas raias da
neutralidade absoluta, não deixa de ter uma profunda repercussão sobre a
formação doutrinária e a mentalidade dos alunos [8].
2. Dito de Alcântara Machado
Como foi que me tornei professor de História?
Como deputado, eu me via obrigado a prever o momento
em que deixaria de o ser. Então, o que iria fazer da vida? Eu estava muito
preocupado com isso.
Foi aí que, numa reunião da bancada paulista, à qual
confesso que não estava prestando muita atenção, o líder Alcântara Machado
em certo momento olha para os presentes e diz:
— Isto aqui está aprovado?
Silêncio na sala.
— Está aprovado?
Silêncio na sala.
— Então, está aprovado!
E voltando-se para mim, acrescentou:
— Quem ganhou com isto foi o senhor.
— Por que eu ganhei?
Eu notei que ele viu que eu não tinha prestado
atenção. Mas queria saber por que tinha ganho.
— Porque nesta Constituição nova está dada licença
à Igreja de fundar universidades católicas [9]
e quase não é compreensível que uma universidade católica em São Paulo não
tenha o senhor como professor [10].
E o senhor tem todas as condições para começar a sua vida por onde outros
acabam [11].
Até então, no Brasil, todo o ensino universitário
estava nas mãos do Estado. E por aquela disposição da Constituição de
1934, estabelecia-se a possibilidade de grandes entidades privadas, entre
elas a Igreja Católica, montar faculdades e universidades, sujeitas
naturalmente à fiscalização do Ministério da Educação [12].
Quando o Alcântara Machado disse aquilo, eu
espevitei-me. Fiquei muito contente, mas disfarcei para não notarem que eu
não prestara atenção na matéria.
3. Convite da Faculdade São Bento
Pouco tempo depois, estando em São Paulo (eu ainda
era deputado), recebi um telefonema dos padres beneditinos. Queriam falar
comigo.
|
Faculdade de
Filosofia, Ciência e Letras de São Bento |
Eu disse que poderíamos nos encontrar. E eles
adiantaram:
— Estamos fundando uma Faculdade, a Faculdade de
Filosofia, Ciência e Letras de São Bento [13].
Uma das cadeiras é de História e há três ou quatro cátedras: História
Antiga, História Medieval, História Moderna e História Contemporânea.
Precisamos de apresentar nomes que impressionem bem o Ministério da
Educação. Serão professores catedráticos, logo de uma vez. O senhor
aceitaria de ser catedrático de duas cadeiras? Como deputado, seu nome
impressiona.
Depois acrescentaram as amabilidades: “E o senhor
é conhecido como bom orador”.
— Pode ser. Se os senhores precisam, pode ser [14].
— O senhor está informado de que ganhará pouco? O
Estado paga por volta de mil e quinhentos por mês a um professor
universitário. A Igreja tem menos dinheiro que o Estado, pois Ela não
arrecada impostos. Portanto, vai pagar só duzentos e cinquenta.
Eu pensei com os meus botões: “É melhor do que
nada” e respondi:
— Não, não. Eu aceito de bom grado [15].
E assim fiquei professor catedrático da Faculdade São
Bento.
Avisei-os de que, enquanto fosse deputado, não teria
tempo de lecionar.
Ainda exercendo a legislatura, eu ia recebendo deles
convites para reuniões, para isto e para aquilo outro. Não podia
comparecer, mas ficava bem claro que eles se lembravam bem de que eu
estava inscrito no Ministério da Educação como catedrático.
|
Primeira turma de formandos e professores (193?) diante da Basílica
Abacial Nossa Senhora da Assunção do Mosteiro de São Bento em São
Paulo. Foto:
Acervo CAPH / FFLCH
N.R.: A
referência não indica a faculdade dessa primeira formatura. |
4. Convite da Faculdade Sedes Sapientiae
Algum tempo depois recebo outro convite: “As
freiras do Colégio Santo Agostinho (da rua Marquês de Paranaguá) convidam
o senhor para ser professor de uma faculdade que vão fundar, a Faculdade
Sedes Sapientiae, e da qual farão parte os melhores intelectuais do País.
Pedem para o senhor aceitar como deputado quatro cátedras”.
Evidentemente aceitei e fiquei muito contente [16].
De fato, pouco depois, as cônegas regulares de Santo
Agostinho abriram em São Paulo essa Faculdade especial para moças: a
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Sedes Sapientiae,
reconhecida pelo Ministério de Educação [17].
A grande propulsora da fundação dessa Faculdade foi
uma belga, pessoa de grande valor, disseram-me que de uma família rica,
distinta, a Mère Saint-Ambroise, que eu conheci
pessoalmente. Inteligente, culta, muito realizadora, capaz de fazer o que
queria, sabendo bem o que visava e a quem as superioras deram uma
liberdade muito grande na direção da Faculdade [18].
Já a minha nomeação para o Colégio Universitário foi
uma verdadeira epopéia [19].
Eu ainda era deputado. E estando em uma sala da
Congregação Mariana de Santa Cecília, um congregado mariano
pôs-me a par de uma informação que
ele ouvira de um amigo que trabalhava numa repartição de
determinada Secretaria do governo de São Paulo: iam ser criados postos de
professores para o Colégio Universitário da Faculdade de Direito de São
Paulo [20].
Esse Colégio Universitário seria uma espécie de
ensino secundário ministrado no próprio prédio do ensino superior, para
elevar o curso secundário ao nível do ensino superior [21].
Era, portanto, um curso de introdução à Faculdade de Direito.
Ser professor lá era muito honorífico. Era quase ser
catedrático da Faculdade [22].
Davam-se aulas no mesmo prédio, faziam-se reuniões na mesma sala dos
professores da Faculdade de Direito, usavam-se nos intervalos as mesmas
salas.
Portanto, tudo muito misturado e num contato contínuo
com os professores da Faculdade. Era o mesmo diretor, o mesmo secretário,
a mesma secretaria [23],
direito do tratamento de Excelência em aula, quase os mesmos vencimentos [24].
* *
*
De posse desta informação, dias depois fui falar com
o Governador, Dr. Armando Sales de Oliveira.
Como deputado, eu tinha o privilégio de ser recebido
logo.
Cheguei e disse:
— Quero falar com o Governador.
— Ah! pois não [25].
Entrei:
— Dr. Armando, como vai o senhor?
Eu não estava habituado aos estilos governamentais,
não os conhecia. Quem trata com o governador deve dizer: “Senhor
Governador”, e não “Dr. Fulano”. Sobretudo não se deve tratá-lo
pelo primeiro nome, mas pelo sobrenome: “Dr. Sales de Oliveira” ou
qualquer coisa assim.
— Dr. Armando, como vai o senhor?
— Como vai, Dr. Plinio? [26]
Encontrei o Governador meio intrigado com o que eu
quereria.
Recebeu-me muito amavelmente e uma das primeiras
coisas que me disse foi:
— Essa Constituinte está demorando muito tempo,
precisava andar mais depressa, o senhor precisava trabalhar para isto
acabar logo.
Pensei: “É mais do que a hora de apertar esse
homem para me dar o cargo, senão eu fico a pé”.
Eu disse:
— Dr. Armando, eu não tenho nada a objetar ao que
o senhor diz, mas eu vim aqui tratar de outra coisa. Eu o apoiei quando se
tratou de indicar o seu nome para Interventor Federal em São Paulo. E vim
pedir ao senhor um favor.
— Pois não, Dr. Plinio [27].
Ele estava sentado de lado, mas olhando para a
frente, muito calmo, com as mãos em cima da escrivaninha.
Eu:
— Soube que se anda cogitando em fundar uma seção
anexa à Faculdade de Direito de São Paulo.
— Ah! pois não, Dr. Plinio.
Não negou.
— Eu queria dizer ao senhor que vim pedir-lhe para
ser nomeado professor de História da Civilização.
— História da Civilização! Que bonita matéria,
não?
— Muito bonita matéria, e eu a desejo muito.
Conversou mais um pouco comigo e depois [28]
me disse:
— Bom, eu vou tomar uma nota e vamos ver o que é
possível.
— Bem, então, Dr. Armando, não vou lhe tomar mais
tempo. Aqui está o meu pedido, que deixo nas suas mãos [29].
Eu me levantei, ele se levantou também.
Cumprimentamo-nos e eu saí.
* *
*
Bom, passaram-se uns dias, eu fui para o Rio, voltei
e o meu amigo veio me dizer que meu pedido havia causado uma polvorosa:
“Na roda da Secretaria [30]
acham que você vai emporcalhar a Universidade com clericalismos, vai dar
aula com água benta debaixo do braço etc. [31].
Mas o Governador declarou que não podia contrariá-lo, por causa dos
compromissos políticos com a Liga Eleitoral Católica. Os deputados viviam
enchendo o Governo de pedidos. O senhor nunca lhe havia pedido nada, e
estava pedindo só aquilo. Ele então mandou lavrar o decreto de sua
nomeação [32].
Dias depois eu estava no Rio [33],
chego à Constituinte e vieram vários deputados de São Paulo me
cumprimentar, me abraçar, felicitar.
Eu disse:
— Mas o que aconteceu?
— Você não viu? O Diário Oficial publicou um
decreto do governador Armando Sales de Oliveira, nomeando-o professor do
Colégio Universitário da Faculdade de Direito de São Paulo, História da
Civilização, vitalício e inamovível.
Telegrafei logo para São Paulo, agradeci e pensei:
“Bem, essa preocupação desapareceu” [34].
Depois disso, fui visitar o Armando Sales para
agradecer.
Ele me disse: “Por favor, entre. O que o senhor
deseja?”
— Eu vim agradecer a nomeação que lhe pedi.
Abraços [35].
6. Tomada de posse na Faculdade de Direito
Faltando alguns meses para começarem as aulas na
Faculdade de Direito, eu ainda tinha certa dúvida se me acolheriam como
professor [36].
Não foi, portanto, sem uma certa ansiedade que me apresentei lá.
A Faculdade estava em obras. A diretoria estava
instalada numa saletinha, só se conseguia entrar pelos fundos, era toda
uma bagunça.
Eu me apresentei para falar com o diretor, Dr. Rafael
Correia de Sampaio, que se não me engano tinha sido o meu professor de
Direito Processual.
Entrei na sala, ele estava lendo qualquer coisa,
sentado em uma cadeira. Não quis interromper a leitura dele e me dirigi ao
secretário, que eu não conhecia.
Então disse:
— Quero falar com o secretário.
— Sou eu.
— Sou Plinio Corrêa de Oliveira [37],
e aqui está o decreto do governador Armando Sales nomeando-me professor do
Colégio Universitário [38].
Agora vão começar as aulas e vim avisar que quero assumir meu cargo.
Eu falava alto, e o diretor me ouviu. Baixou o jornal
e me disse:
— Plinio, como vai?
— Oh! Dr. Rafael Sampaio, como vai o Sr.?
— Vem cá [39]
e deu-me um abraço [40].
Então, você vem assumir seu cargo? Está muito bem, vamos dar posse a você.
E lavrou o termo de posse [41].
Tive que preencher as formalidades de praxe: idade
etc. Uma vez feitas todas as declarações, percebi que não era oportuno
mais conversas, pois estavam em hora de trabalho. Então despedida,
abraços, e para o secretário: “Muito prazer em conhecê-lo”.
E fiquei esperando o primeiro dia de aula. Mas aí já
não havia mais dúvida nenhuma. Pelo menos nesse ponto eu podia ficar
tranqüilo [42].
7. Tomada de posse na Sedes Sapientiae
|
Edifício do
Colégio Des Oiseaux, onde funcionou a faculdade Sedes Sapientiae, na
rua Caio Prado |
Depois que as cônegas do Colégio Santo Agostinho me
convidaram para ser professor da Faculdade Sedes Sapientiae, eu não
havia tomado mais contato com elas. Deixei que a coisa caminhasse no
Ministério da Educação e que me registrassem como catedrático vitalício.
Passado certo tempo, apareço lá e digo:
— Madre, sou o professor Plinio Corrêa de
Oliveira.
— Ah! sei.
— Eu queria saber se está registrado o meu nome.
— Está registrado.
— Eu vim dizer à senhora que gostaria de vir dar
as aulas que correspondem à minha matéria.
— Oh! mas que ótimo, professor.
E comecei a lecionar lá [43].
A Faculdade Sedes Sapientiae ficava na rua
Caio Prado, bem mais perto de minha casa que o São Bento.
8. Meus dias como professor e como advogado
Na Faculdade de Direito eu tinha aulas, se não me
engano, quatro dias por semana e duas aulas de cada vez. Na Faculdade
Sedes Sapientiae, creio que eram três aulas por semana.
Eu dava, portanto, onze horas de aulas semanais.
Por indicação do Padre Leonel Franca, astro da
intelectualidade católica daquele tempo, mandei comprar uma História
Universal em 10 ou 12 volumes, e que era a mais recente e a mais famosa,
cujo autor era João Baptista Weiss, um austríaco de boa orientação
católica.
De manhã, eu comungava, voltava para casa e
preparava as aulas. À tarde, dava as aulas. Ia da Faculdade de Direito
para o Sedes Sapientiae sempre de bonde, porque nunca tive jeito
para guiar automóvel. E ônibus não os havia. Ia a tarde quase inteira
nisso.
Nas tardes que eu tinha livres, ou depois das aulas,
eu movimentava o meu escritório de advocacia [44].
O escritório ficava perto das Faculdades, de maneira que, acabadas as
aulas, eu ia atender os meus clientes.
Depois, vinha cedo para casa, para ler antes do
jantar e preparar minha aula para o dia seguinte.
As noites, depois do jantar, eram livres. E estas eu
dedicava ao apostolado. Tinha reunião com o grupo do Legionário
mais ou menos até à meia-noite [45].
A essa hora voltava para casa. E no dia seguinte recomeçava a mesma
faina.
9. Aulas diferentes para públicos
diferentes:
a) na Sedes Sapientiae
A Faculdade Sedes Sapientiae era uma faculdade
de moças [46],
mas com o corpo docente composto de professores homens e mulheres [47].
Testemunho
de aluna do Sedes Sapientiae recolhido por um estudioso da
vida do Prof. Plinio
A propósito do período
em que o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira lecionou na Faculdade
Sedes Sapientiae, da PUC de São Paulo, recordo-me que em 1980
visitei uma senhora, residente no bairro de Higienópolis na
capital paulista, que fora sua aluna.
Depois de certo
tempo de conversa, ela disse que se lembrava, como se tivesse
sido ontem, de algumas aulas do Prof. Plinio e narrou alguns
episódios daqueles tempos em que estudava no Sedes Sapientiae.
De dois deles me recordo perfeitamente por serem inéditos para
mim.
Contou que em uma
das aulas o Prof. Plinio falava das catedrais góticas da Idade
Média. Mas fez uma descrição tão viva da catedral de Chartres
(França), que parecia um filme. E que naquele dia, quando
acabou o tempo de sua aula — justo no momento em que começava
a comentar os vitrais da catedral —, algumas alunas lhe
pediram que continuasse a narrativa até terminar, pois em
seguida seria o intervalo para o recreio, que elas
sacrificariam. E assim aconteceu. Mas como o período do
recreio também não foi suficiente para terminar, elas lhe
pediram então que ocupasse o tempo da aula seguinte.
A referida senhora
apenas não se lembrava de um detalhe: se ocupou o tempo da
aula seguinte porque o professor escalado não compareceria
naquele dia, ou se tal professor cedera seu tempo para que o
Prof. Plinio pudesse terminar sua exposição. Mas de uma coisa
ela tinha certeza: ele ocupou todo o tempo de sua aula, mais
o do recreio, mais o da aula seguinte, falando com tal
vivacidade daquela catedral medieval, que todas as alunas
ficaram o tempo todo com a atenção presa de um modo
impressionante.
*
* *
Outro episódio que ela
narrou: como era costume naqueles tempos, quando um professor
entrava na sala de aula, todos os alunos se levantavam e
ficavam de pé até que o mestre desse autorização para que se
sentassem. Mas certo dia, uma aluna que não gostava do Prof.
Plinio (talvez por alguma divergência entre as famílias), não
se levantou quando ele entrou, colocou os cabelos para frente
e ficou debruçada sobre os braços na carteira como se
estivesse dormindo.
A senhora que narra esse
fato disse que pensou consigo: “Mas que ousadia dessa
menina! O Prof. Plinio vai sem dúvida repreendê-la duramente!”
Entretanto, o Prof.
Plinio, de início, somente olhou em direção à aluna, que
continuava sentada fingindo dormir, e não disse nada. Depois
ele, que era muito forte, encheu os pulmões — parecendo assim
ainda mais forte — e apenas disse: “É muito difícil não
perceber que eu entrei na sala, não é?”. Foi tão sonora a
gargalhada geral das colegas, que a dita menina encenou que
estava como que acordando, arrumou os cabelos e se colocou de
pé. O mestre deu autorização para que todas se sentassem e
começou a aula como se nada tivesse ocorrido...
|
Depoimento recolhido por Paulo Roberto Campos, Jornalista
freelancer (Reg. API 2.258), colaborador voluntário da Revista
"CATOLICISMO" (mensário de Cultura e Atualidades) e da "ABIM"
(Agência Boa Imprensa). |
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Manter a disciplina na aula não era difícil. O
problema era manter a atenção, fazer com que prestassem atenção.
Para isto, era necessário que as aulas tivessem
substância (eu não as ia dar sem substância, era uma questão de
honestidade: se estou ganhando, tenho que dar uma aula bem dada). Além
disso, era também necessário que fossem feitas um pouco em tom de discurso
e tivessem muita clareza.
Procurei tanto quanto possível adestrar-me nisso,
pondo em minhas aulas para as moças um pouquinho de literatura, às vezes
enfatizando os pormenores da História mais significativos, dando-os para
saborear.
As aulas corriam sem nenhuma dificuldade. Até
corriam muito bem. Durante quase todo o meu curso de professor correram
muito bem [48].
b) na Faculdade de Direito
Na Faculdade de Direito, já era inteiramente
diferente o meu modo de lecionar, porque o corpo discente era diverso [49].
Eu tinha naquele tempo 25 anos. E cinco anos antes eu
havia sido aluno na mesma Faculdade. Meus alunos eram, portanto, de uma
idade muito próxima da minha.
Naturalmente, eles julgavam, devido a isso, que
tinham muito mais liberdade do que com um professor de uma idade provecta [50].
E poderia ocorrer-lhes a idéia de serem indisciplinados comigo.
Eu sabia que existia toda uma corrente anticatólica
lá, quadrada e declarada. E todos sabiam que eu era católico e que [51]
estava no extremo oposto do esquerdismo [52].
Percebi desde logo que o esquema que porventura
usassem contra mim seria de me desmoralizar, começando por vaiar as minhas
aulas. Como a Faculdade de Direito naquele tempo era de predominância
atéia, havia clima para começar a chamar-me de carola, cantar cançõezinhas
de igreja durante a aula, distribuir caricaturas minhas rezando o rosário
e coisas assim [53].
Eu tinha dois caminhos a escolher para conquistar a
disciplina na aula: ou ser muito simpatizado por eles, ou me impor. Qual
seria a melhor solução?
Não era certo que eu conseguiria conquistar a
simpatia. E, se a conquistasse, eu perderia o respeito deles. Então, eu
teria que me impor.
* *
*
Lembro-me de que, no primeiro dia de aula, subi à
cátedra sem olhar para os alunos. Subi olhando para a frente.
Sentei-me. E eles fazendo bagunça, visto que tinham
entrado há pouco na sala. Eu quieto, com cara de pouca amizade. Eles
viram que era uma coisa diferente que vinha entrando em cena [54].
A entrada da aula era a chave do que ia acontecer
depois. Se eu entrasse com a cara alegre: “Boa tarde, meus alunos, boa
tarde!”, estaria arrasado, o respeito estaria destruído. Se entrasse
com a mesma cara que a gente faz para tomar ônibus, quer dizer, de nada,
seria a mesma coisa. Então entrei, não com uma cara zangada, mas com uma
cara séria de quem está pensando em coisa muito superior à aula. Mas isso
era preciso fazer em todas as aulas, da primeira até à última [55].
Nessa primeira aula eu disse: “O primeiro ponto de
meu programa é este. Eu vou passar a discorrer sobre esse assunto”.
E comecei a discorrer.
Passada a primeira surpresa, eu vejo um:
ppssstttt, pppsssttt de um para outro.
Eu, tok-tok-tok, batendo com a mão na mesa:
“Silêncio!”
Dali a pouco outro, mais adiante, fala.
Eu, tok-tok-tok: “Silêncio!”
E eles quietos e com aquele silêncio de ninguém se
mexer [56].
Entendiam bem que era melhor parar porque [57]
percebiam que eu faria um berreiro [58].
Quando tocou o sino (era sempre o sino da igreja de
São Francisco que regulava os horários), eu interrompi a aula dizendo:
“Na minha aula de amanhã vou continuar”. Ia embora e estava acabada a
aula.
Eu notei que eles perceberam que a coisa não seria
fácil.
De outro lado, notaram que a aula era clara e
sentiram certa atração [59].
* *
*
Nos dias seguintes, eu entrava com a mesma cara
patibular, subia à cátedra sem olhar para eles, e me instalava.
Já aí alguns se sentavam antes de eu ter me sentado.
Eu: “Levante-se!”, batendo na cátedra. “Não
lhe dei o direito de sentar-se!”
Mas era uma agressão ocular e verbal tão categórica
que o sujeito se levantava meio aturdido.
Depois de eu correr os olhos pela sala e ver que toda
a sala estava de pé, eu me sentava e dizia: “Podem sentar-se”. Mas
era um choque [60].
* *
*
No desenvolvimento do curso da História eu entrava em
matéria religiosa; e político-social atingindo o campo religioso [61].
Eu começava a falar e saía desde logo com coisas
catolicíssimas, mas dessas de aturdir [62].
Dava tudo quanto tinha de mais reacionário e mais católico que se
possa imaginar. E de vez em quando dizia:
— Se os senhores quiserem perguntar-me alguma
coisa, ou mesmo fazer uma objeção, podem.
Mas não era com a afabilidade com que eu digo isto
num auditório amigo. Era ali! [63].
Apesar da severidade, o modo de eu tratar meus alunos
era sempre cortês. E dava as aulas com um cuidado enorme de fazê-las bem
demonstradas, cercando-as de respeitabilidade e fazendo com que essa
respeitabilidade tivesse certa beleza, um certo pulchrum da frase
bien tournée, bem torneada.
Além disso, empregando um timbre de voz alto, e
comunicando a impressão de que eu não receava nada da parte deles. Por
esta forma, eu dominava a sala de aula [64].
No total, o relacionamento com meus alunos acabou
sendo muito cordial. Eu sempre dei a eles a liberdade de objetarem.
Tinha alunos que se levantavam, que pediam licença
para objetar, faziam discursos dentro da aula etc. [65].
Eu ouvia com serenidade e dava resposta calma, mas
fazendo entender que argumentar, sim, faltar ao respeito, não. Argumentava
e a coisa corria [66].
Por outro lado, as minhas relações com o corpo
docente foram sempre muito boas, muito agradáveis [67].
10. Inesperadas repercussões, trinta anos depois
Trinta anos depois, ou talvez mais, eu estava
jantando num restaurante muito bom aqui de São Paulo, o Ca D’Oro, e
um ex-aluno encontrou-me lá [68].
Ele estava sentado em uma mesa, jantando com uma
jovem que era evidentemente sua esposa.
Quando ele terminou seu jantar, levantou-se, e
enquanto a senhora dele saía, dirigiu-se à minha mesa e me disse:
— Professor, o senhor me permite dizer-lhe uma
palavra?
Eu disse de uma maneira amável:
— Pois não, com muito gosto.
— Eu me chamo Fulano, e queria dizer-lhe que eu e
o meu grupo de amigos fizemos muita oposição ao senhor, quando o senhor
era nosso professor na Faculdade de Direito. Mas outro dia estávamos
conversando e dizíamos que nós devemos ao senhor mais do que a muitos
outros professores, porque aprendemos do senhor noções de disciplina que
nunca jamais ninguém nos havia dado.
Eu fui amável, estendi a mão cordialmente e
despedimo-nos [69].
* *
*
Eu soube de outra coisa curiosa.
Numa casa “x” da sociedade paulista comemorava-se o
aniversario do dono. Fez-se uma roda, e a esposa do aniversariante entrou
para tomar alguma providência, essas coisas de dona de casa.
Ao sair, ela se descolou da conversa na roda.
De repente, da copa ou da cozinha onde estava, ela
ouve uma brigaria na sala, mas uma coisa medonha: uns achavam que “sim”,
outros que “não” e tal.
Ela ficou um pouco preocupada e voltou para ver o que
era.
Ela disse:
— Por que é que vocês estão brigando aí, o que
é que arranjaram?
Tinham-se formado dois partidos, um a meu favor e
outro contra.
Essa senhora interveio:
— Mas o que é isto?! Vocês, num dia de
aniversário, dia de descanso, vocês brigarem, e brigarem pelo Plinio
Corrêa de Oliveira?! Por favor, vamos tratar de outro assunto.
Todo mundo deu risada, tomou como brincadeira e mudou
o assunto.
Vários ali eram meus antigos alunos [70].
Como já disse anteriormente, eu ainda era deputado
quando fui convidado pela Faculdade de São Bento para ser professor de
História. E aceitei a cátedra, mas não pude aceitar a docência imediata. A
Faculdade se fundou, começou a funcionar, sendo eu apenas professor
titular.
Nisto funda-se a Universidade Católica de São Paulo,
na década de 1940.
Por uma razão de conveniência da Igreja, o Cardeal
Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Motta, naquele tempo o Arcebispo, vendo
que já havia alguns institutos superiores oficiais e reconhecidos
existentes em São Paulo, resolveu agregá-los, formando uma Universidade.
A Universidade Católica de São Paulo — atual PUC —
abrangia duas espécies de faculdades: uma eram as faculdades diretamente
dependentes da Reitoria; e outra eram as faculdades agregadas, que gozavam
de uma certa autonomia. A Faculdade de São Bento era diretamente
dependente da Reitoria. A Sedes Sapientiae era faculdade agregada [71].
Da fundação da Universidade Católica eu não tomei
parte. Quando o Cardeal resolveu constituí-la, eu era apenas professor
titular da Faculdade de São Bento e, como tal, entrei para ela. E quando
ele resolveu agregar o Sedes Sapientiae, deixei-me agregar também
como elemento do corpo docente.
* *
*
Havia outro problema de fundo.
Como na década de 1940 eu me tinha empenhado muito
numa posição de direita categórica, portanto de combate aberto ao
comunismo, esta minha posição tornava embaraçosa para Dom Carmelo a minha
participação como um dos mentores da Universidade Católica. E então não
tive parte ativa na formação da Universidade.
Da criação da Universidade eu só soube o que deram os
jornais, e o que se comunicou aos professores nas reuniões de congregação
do Sedes Sapientiae. Exatamente pela razão que mencionei, eu estava
inteiramente afastado disso [72].
12. Pedido para assumir a cátedra na Faculdade São Bento: receios do
Cardeal
Somente quando eu li no jornal que a Faculdade de São
Bento ia passar por uma reorganização de professores, e que estava sendo
convocado o corpo docente, é que escrevi uma carta ao Reitor da
Universidade Católica, que era Dom Paulo de Tarso Campos, Arcebispo de
Campinas, com quem eu tinha tido boas relações. Na carta eu dizia a ele
que eu queria assumir a minha cadeira. E como ele era meu amigo, eu pedia
a ele para levar o assunto ao conhecimento do Cardeal.
Mandei a carta para Campinas. Não muito tempo depois
recebo um telefonema dele: “Plinio, você quereria passar pelo palácio
Pio XII para falar comigo às tantas horas?”
Eu: “Pois não. Vou lá”.
Pensei que fosse algum encontro com o Cardeal, em que
ele estivesse presente. Não. Era só com ele, Dom Paulo de Tarso, mas no
palácio do Cardeal, certamente para eu sentir bem que o Cardeal estava de
acordo com o jogo todo.
Ele me disse:
— Olhe, recebi sua carta e você tem realmente
direito à cátedra. Acontece que se você for introduzir nas suas aulas de
História os temas da Ação Católica, ou falar contra Jacques Maritain, você
cria toda uma polêmica dentro da Universidade que vai pôr a Universidade
pelos ares. Neste caso, nós preferimos ter uma demanda com você. Você fica
alguns anos sem assumir, porque a demanda levará anos, e depois iremos ver
o que faremos, caso você ganhe a demanda.
Ganhar a demanda era difícil. O peso da Arquidiocese
era colossal.
Eu disse:
— Dom Paulo, se o único compromisso for este e eu
ficar inteiramente livre de ensinar História como eu entenda, eu aceito.
Ele, olhando-me bem de frente, perguntou:
— Eu posso contar com sua palavra de honra?
Eu disse:
— Pode contar com minha palavra de honra e de
católico.
Ele ficou muito sorridente e me disse:
— Então apareça na Universidade Católica a tal
hora assim e trate com o Padre tal, que vai empossar você na cátedra e
você começará a lecionar.
Retirei-me amável, ma non tropo, e
alguns dias depois fui lá e procurei o Diretor:
— Eu queria falar com o Diretor, eu sou Plinio
Corrêa de Oliveira.
— Ah! pois não.
Atendeu-me um Padre, íntimo de uma corrente já
progressista de beneditinos e que era o diretor da Faculdade. Eu já o
conhecia.
Eu disse:
— Dom Fulano, o senhor me conhece, sou Plinio
Corrêa de Oliveira.
— Pois não! O que o senhor quer de mim?
— Eu combinei tal coisa com Dom Paulo de Tarso e
vim aqui para assumir minha cátedra.
Ele disse: “Pois não”, mas de modo sombrio, e
começou a tratar comigo questões de horário e assuntos congêneres, por
onde vi que ele tinha recebido ordem de me receber.
Ele me disse qualquer coisa e eu respondi: “Pois
não”, que é uma alocução corrente em português.
Ele voltou-se para mim com uma cara de fera e disse:
“Pois não, pois sim, pois sim, pois não, dá na mesma coisa, ouviu?!!!” [73].
Percebi que ele queria arranjar motivo para criar
uma briga.
Eu me fiz de doce. E ele, não tendo com quem brigar,
me disse:
— Bem, o senhor então começa as aulas depois de
amanhã.
— Está bem, estou de acordo.
— A tantas horas o senhor começa as suas aulas [74].
Comecei a lecionar [75]
e cumpri religiosamente o compromisso que havia assumido com Dom Paulo de
Tarso.
Na Faculdade eu dizia o que eu queria, sem referência
concreta a nada da situação do Brasil. Mas os alunos percebiam que, o que
eu dizia em matéria de História, tinha relação com o que eu fazia como
homem público.
E ensinei sempre o que julgava dever ensinar. Nem
aceitaria o curso em outras condições.
Por exemplo, o meu ensino era muito contrário à
Revolução Francesa, muito contrário à Revolução Russa de 1917. A nova
orientação da Universidade, da qual haveria de sair a esquerda católica,
era diversa dessa.
Portanto, havia uma divergência, mas tocada com muita
cortesia de parte a parte, quase até o fim.
No fim de minha estadia na Universidade, senti uma
certa pressão da esquerda. Mas foi uma pressão episódica, pequena, num
momento em que eu já estava resolvido a sair e pensava em deixar o ensino
para me colocar numa situação de homem público, intervindo oficialmente
nos debates do País através da organização que eu fundaria depois, a TFP [76].
13. Lógica que mete medo
Certa vez, houve um desentendimento entre os
professores e a parte administrativa da Universidade Católica por causa
dos salários insignificantes que a Universidade pagava. Era uma coisa que
não tinha nada que ver com doutrina. E reuniu-se o conselho universitário,
do qual eu fazia parte.
O presidente do conselho era adversário de minha
posição. Pediram que eu tomasse uma atitude qualquer saliente nesse
protesto, e eu disse bem claramente:
— Olhe, eu preciso ver. Vocês sabem que estou em
polêmica com o Cardeal e com sacerdotes que dirigem a Universidade a
respeito de temas teológicos e filosóficos. Se eu for atuar nessa questão
salarial, crio a impressão de que estou explorando a questão salarial como
pretexto para azedar a questão teológica. E isto é contrário à própria
eficácia da questão salarial, porque eles, então, vão embirrar e não
conceder.
O presidente do conselho disse:
— Não faz mal, qualquer que seja o tropeço que
haja no caminho, a sua lógica é tal que mete medo neles.
Esse presidente era íntimo amigo deles, estava em
desacordo só em matéria de salário. E era professor de Lógica da
Universidade [77].
Afinal de contas, Nossa Senhora me favoreceu e eu
exerci durante uns 15 anos o magistério [78].
Antes de ser eleito deputado pela Chapa Única em
1933, eu tinha um escritório de advocacia [79].
Quando fui eleito deputado, eu o mantive fechado [80].
O escritório tinha uma sala muito boa, muito grande.
O prédio ficava na esquina da rua Líbero Badaró com a Ladeira de São João,
onde está hoje o Banco do Brasil.
O prédio pertencia à minha avó. São Paulo estava
naquele tempo numa crise tremenda, com muitas salas desalugadas. Então eu
a procurei e perguntei se me autorizava a ocupar uma das salas
desalugadas. Ela naturalmente consentiu [81].
Após o encerramento da Constituinte, com o meu
ordenado de professor e com o resto de rendas de aluguel de prédios que
minha mãe tinha em comum com as irmãs dela, dava para irmos vivendo.
Meu pai advogava em São José do Rio Preto, vinha com
freqüência para São Paulo. Mas qualquer pequena encrenca, qualquer pequeno
incidente, qualquer pequena inflação, já poderia desequilibrar o orçamento
e eu precisava cuidar de minha vida.
Certo dia, Dr. Paulo Barros de Ulhôa Cintra me
perguntou: “Por que você não pede a Dom Duarte uns prédios da Cúria
para administrar?”
Escrevi então a Dom Duarte uma longa carta.
Recebi logo um telefonema do secretário dele, dizendo
que ele mandava me perguntar se estava bem às tantas horas assim para ele
me receber. Eu disse que sim.
Fui lá e ele me disse:
— Olhe, a sua carta eu recebi de muito bom grado.
Eu vou dar para Vossemecê administrar tais e tais prédios da Cúria”.
Era uma boa soma de prédios.
— E o senhor ganhará tanto.
Não era nada de brilhante, mas razoável, e eu já dava
graças a Deus de ter o razoável.
— E Vossemecê então poderá começar a trabalhar.
E começamos então.
Aí passei a receber clientes, minha vida profissional
começou a se desenvolver, a tomar corpo, e uma grave preocupação saiu do
meu espírito [82].
Depois mudei o escritório para um conjunto na rua
Quintino Bocaiúva 176, num dos melhores prédios de escritório de São Paulo
naquela época. Era um prédio muito grande e com boas salas.
Advoguei ali por muitos anos. Eram duas salas: uma a
minha, a outra era sala de espera e sala do Dr. Paulo.
* *
*
Nesse conjunto havia um ângulo, um cantinho do
corredor que não era aproveitado.
Nesse cantinho plantou-se uma semente, de início de
tamanho insignificante.
O Dr. Adolpho Lindenberg, recém-formado, pôs ali uma
espécie de biombo, e montou o seu escritório de engenharia. Mas tão
inicial que a mesa de desenho desse escritório era a folha de uma porta
que ele arranjou não sei onde e que servia para fazer os desenhos. Entrou
depois como sócio dele um rapazinho extremamente vivo chamado Plinio, e
que era o Plinio Xavier da Silveira [83].
Lá por volta de 1940, Dr. Paulo e eu começamos a
advogar para a Ordem do Carmo [84].
Fomos advogados dessa Ordem durante uns 10 ou 15 anos [85].
Não pensem que os carmelitas me procuraram por eu ser
um católico conhecido [86].
Foi uma coisa diferente.
Eu estava no meu escritório, ouço baterem na porta:
“Entre!”
Entraram pela sala [87]
um Padre magro, alto, simpático, já idoso, com uma fisionomia respeitável,
mas de não brasileiro. E, junto, um brasileiro mais velho [88],
cearense de olhar vivo, baixinho, com chapéu de coco na cabeça [89].
Eu não conhecia nenhum dos dois. O padre se revelou
desde logo de muito poucas palavras. E pelo contrário, o meu nordestino
de
muitas palavras.
Ele avançou rumo a mim, estendendo a mão, que eu
naturalmente apertei.
Vi que era uma pessoa de consideração. Depois vim a
saber que tinha sido um líder católico, mas tão anterior à minha
militância no movimento católico, que eu não me lembrava dele [90].
Ele disse:
— Dr. Plinio, eu sou o Desembargador Primitivo
Sete, já aposentado [91].
E me apresentou ao padre:
— E este aqui é Frei Canísio Muldermann, holandês,
Provincial da Ordem do Carmo.
— Ah! muito prazer em conhecê-los, tenham a
bondade de sentar-se.
Frei Canísio:
— Prazer...
Só. Mas era um bom homem [92].
O senhor mais velho, que era visivelmente o que
promovia os fatos, saiu-se com uma tirada que eu nunca imaginei:
— Eu até aqui advoguei para a província
carmelitana fluminense, aqui representada pelo Frei Canísio Muldermann. E
eu queria entregar para o senhor o último cliente meu e encerrar todas as
minhas atividades de advogado. Para mim este meu ato tem um valor
simbólico, pois é uma ocasião para prestar homenagem a um homem ao qual eu
tive a maior admiração, e que era o seu tio-avô, o Conselheiro João
Alfredo Corrêa de Oliveira. Fui um grande admirador do Conselheiro por
isso, por aquilo, por aquilo outro. E eu, dando ao senhor o meu último
cliente, eu o faço ao portador do mesmo sangue que o Conselheiro e com
isto homenageando o Conselheiro [93].
Eu nunca imaginei que através do Conselheiro João
Alfredo algum dia me viesse um cliente. Era a coisa que eu menos podia
imaginar no mundo [94].
Eu disse:
— Oh! Desembargador, quanta honra, quanta bondade,
eu me sinto muito honrado.
E disse a ele todas as amabilidades que se dizem
nessas ocasiões.
E dirigindo-me a Frei Canísio:
— Espero que eu possa ser um sucessor do
desembargador Primitivo Sete à altura do nível de advocacia a que ele
habituou o senhor; espero desempenhar-me bem.
Despedimo-nos e ficou combinado um encontro com Frei
Canísio para começar o serviço.
* *
*
Frei Canísio era um holandês alto, quieto. Era uma
torre [95].
Já idoso, cabelo branco, tinha uma particularidade curiosa: umas
sobrancelhas com uns fios compridos, que pareciam bigodes colocados sobre
os olhos [96],
formando dois tufos. Tinha um sotaque holandês muito acentuado e quando
era dito qualquer coisa que o deixasse perplexo, ele dizia: “hhomem,
hhomem” e coifava a sobrancelha [97].
Não era de muita conversa: tratava dos assuntos dele,
mas era muito cordial, amigo [98].
Era um homem imensamente apreciável, respeitável, tal como alguns padres
da antiga geração: muito direito, muito honesto, levando os negócios da
Ordem do Carmo no fio, e sabendo zelar pelos interesses dela [99].
Ficou muito nosso amigo, convivíamos muito bem, ele ia muito ao escritório
porque precisava tratar dos negócios da Ordem.
Um dia eu disse a ele:
— Frei Canísio, tal Companhia está querendo
comprar tal ilha assim, que a Ordem tem em tal lugar. Eles oferecem tal
preço, e o preço é muito bom.
— Ho, ho! Pode ser, pode ser...
Perguntei ao Frei Canísio como fazer para entregar a
escritura para eles.
Resposta de Frei Canísio:
— Ah! é difícil. Não pode ser. Eles têm que
examinar a escritura em casa.
— Mas Frei Canísio, não é o hábito comercial. O
indivíduo entrega ao advogado os títulos e o advogado entrega-os para o
comprador.
— Não. É um título de doação que vale mais do que
a ilha.
— Como é essa história?
Ele disse:
— É um título assinado pelo próprio rei Filipe II,
quando era rei do Brasil, dando a ilha de presente para Ordem do Carmo!
Eu dei risada e disse para a companhia: “Se os
senhores quiserem, mandem lá um advogado. Mas ele não permite que esse
título saia lá do convento”. E expliquei a situação.
Eles também acharam graça e parece que mandaram lá o
advogado. O negócio fez-se em Santos [100].
De repente ele morreu e vieram outros mais moços. E
os mais moços eram bem mais falantes. Então, longas conversas sobre
política brasileira. Mas o tema predileto deles era a Holanda. Adquiri
mais conhecimento da Holanda nesse tempo do que em toda a minha vida!
Conversas sobre Holanda, colônias da Holanda, iam longe! [101]
4. Serviços advocatícios para o Mosteiro
São Bento
Havia também a advocacia do Mosteiro de São Bento,
que me fora dada por meio de Monsenhor Pedrosa.
Os dois procuradores do Mosteiro eram Dom Desidério
Schmitz e Dom Aidano Ebert, ambos alemães, muito amáveis [102].
Dom Aidano era muito gordo. Mas tinha maintien
(postura), longamente ensinada nos noviciados e conventos beneditinos [103].
Já Dom Desidério era esguio, alto [104],
muito delicado, muito fino, tinha sido banqueiro antes de ser monge
beneditino. Mas tinha rompido com o mundo do banco, e resolveu entrar para
um mosteiro da Ordem na Alemanha [105].
Era bem moço ainda, parecia uma figura medieval, com uma cabeça bem
proporcionada para o corpo, cabelo rapado à beneditino, alourado,
de olhos azuis, inclinações agradáveis, homem inteligente [106].
Ambos iam tratar de negócios comigo na hora em que o
escritório estava fechando. Os dois, em geral, entravam muito risonhos.
Mas eu, já conhecendo bem o estilo alemão, mandava vir sanduiches do bar e
umas cervejas [107].
Tratavam dos negócios, mas estavam muito mais
interessados na conversa.
E os dois tomaram o hábito de, cada vez que vinham
fazer uma consulta, terminada esta, ficarmos conversando por horas.
E a conversa às vezes ia até tarde. Eles já vinham
com a provisão de cigarros (fumavam como uma chaminé).
Às vezes eles estavam em desacordo comigo em matéria
de doutrina, pois já eram meio liturgicistas [108].
E nós nos atracávamos, discutíamos. Mas eles, com largueza de espírito,
gostavam, achavam interessante e também me atacavam.
Eles diziam que a minha espiritualidade era
espanhola. Eu respondia: “Está muito bem. Espanhola, seja o que os
senhores quiserem: mas é católica! Agora vamos ver” [109].
O gosto dos dois padres pela conversa era tão
fenomenal, que uma vez eles foram visitar a Congregação Mariana e o
Legionário, chegaram por volta das 8:30 da noite e a conversa se
prolongou até as 4 horas da manhã.
Como de costume, eu tinha mandado vir cervejas e
outras coisas. Mas a partir da meia-noite vigorava a lei do jejum. Eles
iam celebrar, eu ia comungar e, portanto, não podíamos comer.
Assim, depois da meia-noite, a conversa foi a seco
até as 4 horas da manhã.
5. Calúnia soez de um parente de Dom Motta
Um dia, os dois beneditinos foram me visitar e
entraram na sala com uma certa solenidade que não tinham normalmente. Eu
percebi que havia surgido algum problema.
|
Cardeal Dom
Carlos Carmelo de Vasconcelos Motta |
Dom Desidério tomou a palavra:
— Uma coisa desagradável tenho para lhe dizer.
Parece que as nossas relações estão abaladas, porque realizamos um grande
capítulo dos beneditinos sob a presidência do Arquiabade. E apresentou-se
o Sr. Fulano de tal, católico militante, comendador da Santa Sé, um
medalhão do Movimento Católico, o qual declarou que, pela simpatia que nos
tinha, iria fazer uma comunicação a respeito do senhor. Ele recomendou que
nós tivéssemos cuidado, porque o senhor é muito bom católico, pessoa muito
agradável de trato, mas ignora completamente a advocacia. E contou-nos que
o Padre Riou, Provincial dos jesuítas em São Paulo, tinha uma queixa muito
grande contra o senhor. Os jesuítas quiseram reformar os estatutos legais
deles, o senhor meteu a mão e foi um tal desastre que ficaram ameaçados de
fechamento, de perda de propriedade, de tudo. Ora, o grande serviço que
temos para o senhor no momento é exatamente a reforma dos nossos
estatutos. Então o Capítulo Geral, muito impressionado com isto, mandou
dizer ao senhor que lamenta muito, mas que não pode continuar a tê-lo como
advogado.
Eu:
— Só isso, Dom Desidério?
Dom Desidério:
— Não é pouco!
Eu:
— Não é nada! Eu conheço o Padre Riou, e exijo que
os senhores venham comigo falar com ele amanhã, para ouvir da boca do
Padre Riou que isto é uma mentira, uma calúnia torpe. Eu nunca fui
advogado deles.
Grande alívio deles.
Dom Desidério:
— Mas nós nunca pensamos que tal homem houvesse de
mentir assim.
Respondi:
— Bom, o senhor vai ouvir do Padre Riou.
Peguei o telefone, liguei para o Padre Riou no
Colégio São Luís e pedi uma hora. O Padre Riou marcou o encontro e no dia
seguinte fomos os três falar com ele.
Entrou o Padre Riou na sala, não se conheciam. O
Padre Riou era francês, eles dois (os beneditinos) alemães. Foram feitas
as apresentações. Nenhum calor de parte a parte. Sentaram-se e eu disse:
— Fulano de tal disse em tal lugar, a meu
respeito, tal coisa. Foi isso que os senhores me disseram, ou não?
Os beneditinos: “Sim, foi”.
Eu:
— Agora, Padre Riou, o senhor irá dizer o que há
de verdade nisso.
O Padre Riou respondeu:
— Depois que falei com o senhor pelo telefone, eu
estive pensando. Estou como Provincial aqui apenas há três ou quatro anos
e o Sr. está formado há mais tempo do que isso. Então fui me informar com
meus antecessores se havia alguma coisa com o senhor, e eu posso confirmar
que o senhor nunca advogou para nós, nunca mexeu nos nossos estatutos,
nunca lhe consultamos. Aliás, os estatutos são de 1900 e até agora estão
intatos.
Dei um sorriso e disse:
— Bem, foi num ano em que eu nem havia nascido.
Os dois deram risada, ficaram contentes e disseram:
“Vamos comunicar a quem de direito”.
Eu:
— Não. Isso não pode ficar assim. Eu quero pedir
ao Padre Riou o favor de me dar uma carta dizendo isto tudo e esta carta
os senhores vão ler para o Capítulo Geral e mostrar.
Padre Riou escreveu a carta, eles levaram e ficaram
de mostrar no Capítulo.
* *
*
Depois do Capítulo, à tarde aparecem os dois
beneditinos no meu escritório de advocacia.
Perguntei como tinha sido o Capítulo Geral e
disseram:
— Foi um desaponto como o senhor não queira saber.
Chegamos lá, perguntaram se havíamos despedido Dr. Plinio, e respondemos
que não, que tínhamos feito uma coisa melhor ainda: o tínhamos conservado.
Exclamação geral:
— Mas, como?!!! Diante de fatos narrados por um
homem de uma veracidade indiscutível, o senhor ainda o conserva?!
Dom Desidério tira então a carta do Padre Riou e
mostra* [110].
* Esta carta foi
encontrada entre os documentos guardados por Dr. Plinio e tem o seguinte
teor:
“A pedido de V.
Rvma. venho declarar que, tendo a Companhia de Jesus, há muitos anos, um
profissional a quem encarrega de seus serviços jurídicos, jamais se nos
ofereceu oportunidade para solicitarmos ao Dr. Plinio Corrêa de Oliveira
qualquer consulta ou trabalho de natureza profissional. Carece, pois, do
menor fundamento a afirmação de que Dr. Plinio Corrêa de Oliveira teria
cometido algum erro técnico em negócios concernentes à Companhia de Jesus,
a qualquer obra, associação ou instituição por ela mantida ou dirigida.
“Com referência
aos nossos estatutos civis, mais particularmente, cumpre-me informar que
datam de 15 de agosto de 1900, época em que o Dr. Plinio Corrêa de
Oliveira não era nascido. Até agora tais estatutos não foram reformados e
sobre eles jamais foi ouvido o mesmo senhor.
“Esperando que
esta declaração elimine qualquer versão desairosa em sentido contrário,
apresento a V. Rvma. os sentimentos de minha religiosa estima,
recomendando-me às suas orações e SS. Sacrifícios.
“De V. Rvma. etc.
etc.” (Carta do Padre Riou a Dom Aidano Erbert O.S.B., 18/6/43).
— Era uma
calúnia tão clamorosamente injusta, e inserida dentro do contexto de uma
campanha surda de difamação que soprava contra Dr. Plinio, que Dom Antonio
de Castro Mayer, na época apenas Monsenhor, sentiu-se na obrigação moral
de relatar o acontecido ao Sr. Núncio Apostólico, Dom Aloisi Masella, em
carta datada de 9/9/44, e da qual destacamos o seguinte tópico:
"Talvez em toda
esta campanha não esteja alheio também o Comendador "X". Pois, como é
sabido, este senhor, abusando da confiança que seu exterior religioso cria
nos meios católicos, tem desenvolvido ultimamente uma campanha de
difamação contra o Dr. Plinio, e, em geral, [contra] nós do
Legionário. Mais especialmente ainda, depois da nomeação do novo
Arcebispo, em quem talvez pense poder contar devido ao parentesco de Sua
Excia. com sua senhora. Já em tempos atrás, para ver se prejudicava ao Dr.
Plinio nos negócios de advocacia, não teve dúvida de falsificar um texto
de lei, no intuito de convencer aos RR. Monjes Beneditinos de que o Dr.
Plinio era um incapaz em questões jurídicas. Nesta mesma ocasião, andou
propalando que o Dr. Plinio tinha prejudicado enormemente aos Jesuítas em
negócios semelhantes, quando é certo que o Dr. Plinio jamais teve negócios
de advocacia com os RR. PP. Jesuítas. Sobre todo esse tristíssimo
caso R. P. Riou pode dar testemunho, porque sabe de fatos, e viu
documentos que o deixaram definitivamente convencido".
* *
*
Não quero dar o nome do homem que me havia caluniado.
Não guardei o mínimo rancor e resolvi não brigar com ele.
Lembro-me que tempos mais tarde, estando eu na Cúria,
vi uma roda constituída pelo novo Arcebispo de São Paulo, Dom José Gaspar
de Affonseca e Silva [111],
pelo Arcebispo de Belo Horizonte, Dom Antonio dos Santos Cabral (o qual
tomaria depois atitudes virulentas contra o meu livro Em Defesa da Ação
Católica), e por esse leigo que me caluniou.
E vi Dom José Gaspar apresentar esse leigo ao
Arcebispo de Belo Horizonte, como grande amigo:
— Ele é grande amigo meu e parente do Arcebispo de
Maranhão, Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Motta.
O Arcebispo de Belo Horizonte, ao saber que ele era
parente de Dom Motta, abriu os braços e se abraçaram efusivamente [112].
6. Amizade sólida com Dom Desidério e Dom Aidano, apesar das
diferenças
Em várias ocasiões, Dom Desidério deu prova cabal de
verdadeira sustentação a minha pessoa.
E Dom Aidano entrou na luta contra Dom Pedrosa, isto
mais tarde, por ocasião do affaire em torno do livro
Em Defesa
da Ação Católica, por solidariedade comigo.
|
O mosteiro
beneditino de Santos em cartão postal de 1902 (Acervo da
historiadora Wilma Therezinha Fernandes de Andrade in "Presença da
Engenharia e Arquitetura - Baixada Santista" de janeiro de 2001) |
Dom Aidano era prior de um convento de beneditinos
muito gracioso em Santos, localizado numa zona montanhosa. Acima dele só
tinha o Arquiabade.
Certa vez fui lá visitá-lo e encontrei logo na
entrada uma imagenzinha de madeira de Nossa Senhora da Imaculada
Conceição, inundada de gáudio e pisando aos pés uma série de cabecinhas de
padres.
Eu dei risada e disse:
— Que é isso, Dom Aidano? A gente entra no seu
convento e logo de saída vê um acesso de anticlericalismo?
— Doutor, estes são os heresiarcas, quase todos
padres... Então tem Nossa Senhora pisando cabeça de padres. Veja um pouco.
Aparecia a cabeça daqueles heresiarcas até o pescoço,
e podia-se distinguir a ordem religiosa a que pertenciam pelo pedaço de
hábito que ficava em cima. Então havia beneditinos, dominicanos,
agostinianos — entre eles Lutero, naturalmente.
Eu disse a ele:
— O senhor me daria licença de publicar uma
fotografia dessas no Legionário?
— Pois pode, Doutor, é a verdade histórica! [113].
* *
*
Não muito tempo depois, deixei de dar aulas e também
de advogar, para dedicar meu tempo inteiramente à causa católica e comecei
então a aplicar-me full time ao apostolado [114].
1. Remodelagem: de publicação paroquial a semanário com projeção
nacional
No ano de 1935, eu me tornei diretor efetivo do
Legionário [115].
Uma vez que a Liga Eleitoral Católica
tinha sido fechada, escrevi a Dom Duarte pedindo o mobiliário da LEC para
o Legionário. Era um bem bom mobiliário. Eram bonitas cortinas,
escrivaninhas, tapetes, móveis de couro. E mandei instalar esse mobiliário
na sala da diretoria do Legionário, para comunicar a esta uma certa
categoria, um certo prestígio, e assim fazer entender que não era um
jornalzinho religioso qualquer.
|
Após assumir efetivamente a direção do
Legionário,
Plinio Corrêa de Oliveira, mobilizando o seu grupo de amigos,
reformulou completamente o jornal, abrindo-o a todos os ventos da
política nacional e internacional, e aos problemas culturais,
filosóficos, teológicos da época. |
Obtive do vigário de Santa Cecília
quase todo o andar térreo da sede da Congregação Mariana de Santa Cecília,
e mobilizei um grupo de amigos para me ajudar a reformular completamente o
jornal, numa tentativa de transformá-lo no primeiro jornal católico do
Brasil, combatendo na direção que nós queríamos [116].
Um certo número de padres combativos colaborava no
jornal. Entre outros, o padre jesuíta Arlindo Vieira, que manifestava para
conosco uma extraordinária simpatia. Tinha a cultura de grande classe dos
jesuítas. Escrevia artigos muito combativos contra Maritain [117],
contra Tristão de Athayde e contra toda a escola liberal-católica que ia
se formando.
Igualmente Monsenhor Ascânio Brandão, que escrevia a
coluna Pregando e martelando, cujo título já indica o caráter
polêmico dela. Ele era de Pindamonhangaba. Depois passou a ser vigário de
São José dos Campos. Pertencia á diocese de Taubaté, que abrange toda
aquela zona. Bem alto, tez morena, com todo o modo afável dele, era um
homem realmente polêmico e combativo [118].
Também Monsenhor Antonio de Castro Mayer, que fazia a
Coluna Católica comentando o Evangelho. Era uma seção muito
apreciada, na qual os padres se baseavam para fazer o sermão.
Convidei, dentro da Congregação Mariana de Santa
Cecília, todo mundo que era intelectualizável, como também convidei
congregados de nível universitário de outras Congregações para fazerem o
Legionário junto conosco.
E assim alguns outros colaboradores se destacaram
desde logo [119].
Os católicos verdadeiramente corajosos, amigos da
polêmica e de espírito batalhador, apoiavam o jornal.
Também pessoas de espírito mais acomodatício, que não
faziam muita questão da luta, mas ainda não eram “ecumênicas” como as de
hoje, apoiavam-nos igualmente, porém com menos entusiasmo.
Tínhamos então um núcleo seguro de partidários, e
depois pessoas que aplaudiam e assinavam, mas que não levavam a batalha
até o ponto que deveriam levar [120].
* * *
Foi assim que, em torno do
Legionário, começou a se desenvolver a semente da TFP [121].
Entre os que desde a primeira hora me seguiram
estavam [122]:
Paulo Barros de Ulhôa Cintra, Adolpho Lindenberg, Fernando Furquim de
Almeida, José de Azeredo Santos, José Benedito Pacheco Sales, José Carlos
Castilho de Andrade, José Fernando de Camargo, José Gonzaga de Arruda [123].
Pode-se dizer que a TFP nasceu do Legionário [124].
2. Meta do “Legionário”
A meta que tínhamos para o
Legionário era a
seguinte.
Os jornalistas católicos daquele tempo, com exceção
de uns poucos, tinham horror à polêmica e viviam de arranjos com a
Revolução. Não a elogiavam mas também não a atacavam. Fingiam que não
percebiam que ela existisse.
Eu ouvira falar de dois jornalistas que constituíam
exceção, mas que eram anteriores à minha entrada no Movimento Católico:
Jackson de Figueiredo e Carlos de Laet.
O gênero vigente era, chegado o mês de Maria,
publicar por exemplo um artigo intitulado:
Açucena, com umas
florezinhas desenhadas à mão em volta, e dentro uma poesia de uma Filha de
Maria. Nesse estilo era redigida a maioria dos jornais católicos, lidos
apenas pelos que freqüentavam a sacristia e aquele meiozinho paroquial.
Eram na verdade boletins internos para satisfazer o ambiente da paróquia.
Assumindo a direção do
Legionário, eu formei o
projeto de abrir todas as janelas, todas as portas, fazer entrar
largamente os ventos da política nacional, internacional, dos problemas
culturais, filosóficos, teológicos. E de tratar esses temas em estilo
combativo, escrevendo com a ponta da espada, e mantendo uma polêmica
contínua com mais ou menos todo o mundo oposto ao espírito católico [125].
*
* *
Inicialmente, o
Legionário teve uma certa
tendência de se dirigir ao grande público, com o interesse de
conquistá-lo. Era portanto em parte escrito para converter aqueles que não
eram católicos, e em parte feito para afervorar e orientar os que já eram
católicos.
Lendo o jornal
Sept, que, apesar de servir à
corrente liturgicista, tinha muita
garra, compreendi que essa
visualização teria de ser retificada. E percebi que um jornal pequeno, ou
ele se dirige para um público especial, pequeno mas influente, e através
desse público influencia todo o conjunto, ou não conseguiria vingar.
Sept era um semanário francês com
aproximadamente o mesmo número de páginas do Legionário. E era
organizado de um modo vivaz, possuía paginação atraente, tratava de temas
atuais, candentes e delicados da França daquele tempo, intervindo assim
nos acontecimentos, influenciando-os [126].
Seguindo este exemplo, o Legionário deixou de
ser um jornal feito para converter os não-católicos, e passou a ser um
jornal destinado a orientar os que eram católicos. Não quaisquer
católicos, mas os participantes do Movimento Católico, então constituído
pelos católicos mais fervorosos, que iam sempre à Missa dos domingos e
que, em geral, pertenciam a associações religiosas: formavam um conjunto
que dedicava uma parte de seu tempo, ou todo o seu tempo, a favorecer por
sua atuação a Igreja Católica, a expansão da Fé.
Eu entendia bem que, agindo sobre esse público,
orientando-o, formando sua mentalidade, teríamos possibilidade de
influenciar o conjunto dos acontecimentos no Brasil [127].
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Redatores do Legionário com o Arcebispo
D. Duarte, janeiro de 1936.
Plinio está à esquerda do Arcebispo. |
3. Órgão oficioso da Arquidiocese de São Paulo
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O
Legionário
tomou atitudes muito polêmicas
contra o comunismo e o nazifascismo, como também contra a penetração
do progressismo que despontava sob a forma de liturgicismo e Ação
Católica.
Havia uma confiança intuitiva no
Legionário, por onde
uma opinião dada por este era tida pelo laicato católico como
indiscutível. Os católicos verdadeiramente corajosos e de espírito
batalhador apoiavam o jornal. |
O Legionário começou assim a se difundir muito [128].
Em pouco tempo transformou-se em uma das publicações mais expressivas da
imprensa católica do Brasil, sendo lido de ponta a ponta do País por causa
das atitudes que tomava [129].
Quando Dom José Gaspar foi nomeado Arcebispo de São
Paulo, no começo as relações nossas com ele eram cordiais. E eu obtive
dele com facilidade que o Legionário fosse elevado à condição de
“órgão oficioso da Arquidiocese”.
De maneira que o Legionário transmitia até
certo ponto a voz e o pensamento do Arcebispo, característica esta que lhe
dava muito prestígio [130].
4. Ponto de referência dos católicos do Brasil inteiro
O Legionário começou, assim, a pesar na vida
interna dos movimentos católicos e nas discussões dos católicos do Rio, de
Minas, de Porto Alegre, de Recife.
Além disso, repercutia em Montevidéu, Buenos Aires,
um pouco em Santiago do Chile, que já ficava mais distante. Algumas
repercussões na Europa também. Muito raramente nos Estados Unidos.
Tendíamos a transformá-lo em diário, que era a minha
meta: ter um cotidiano.
O Legionário transformou-se assim em um meio
para o exercício de influência de nosso grupo e de nossas idéias
contra-revolucionárias no Brasil [131].
5. Visita de rigor para os católicos estrangeiros
Era de rigor que, vindo qualquer grande personalidade
estrangeira católica a São Paulo, ela fosse visitar o Legionário. A
visita ao Legionário era ponto de honra para um estrangeiro
católico.
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Plinio
Corrêa de Oliveira com o Almirante Yamamoto na redação do Legionário |
Recebemos assim a visita do famosíssimo teólogo
dominicano Padre Garrigou-Lagrange. E também a do Almirante Shinjiro
Yamamoto (ele era católico e líder religioso no Japão).
Também éramos visitados por pessoas de relevo do meio
católico brasileiro.
Por exemplo, tendo Dom Cabral [132],
Arcebispo de Belo Horizonte, constituído um diário naquela cidade, o
Diário Católico, no qual colaborava um bom número de intelectuais
mineiros, certa noite fui surpreendido pela visita de todo o corpo de
direção daquele jornal. Tinham vindo de Minas para combinar comigo uma
colaboração e uma linha comum de ação entre o Legionário e O
Diário. Até que surgisse a crise da Ação Católica, as relações foram
assíduas e cordiais [133].
Em São Paulo, a Federação Mariana congregava e
dirigia todas as Congregações Marianas do Brasil. Mas o elã estava no
Legionário, que representava de longe a aile marchante do
Movimento Católico em São Paulo [134].
Havia, no geral do Movimento Católico, uma espécie de
confiança intuitiva no Legionário, por onde uma opinião dada por
este era tida pelo laicato católico como indiscutível [135].
* *
*
Muitos anos depois, conversando com um diretor da
TFP, um Arcebispo de Belo Horizonte fazia essa queixa: que foi necessário
me derrubarem, porque quando eu aparecia em público, em reuniões nas quais
havia também Bispos, eu era mais aclamado que os Bispos [136].
Dizia ainda que tinha sido necessário quebrar a minha autoridade moral,
pois eu havia adquirido tal influência pessoal que, se um leigo soubesse
que eu estava em desacordo com um Bispo, o leigo teria escrúpulos de
entrar em desacordo comigo e não teria escrúpulos de entrar em desacordo
com o Bispo. É possível que ele tenha exagerado. Mas o exagero tinha certo
fundo de verdade. O povo já desconfiava um tanto dos Bispos silenciosos
(naquela época ainda não eram progressistas) e amava os chefes duros e
fortes, que desejavam entrar em combate [137].
Se a autoridade eclesiástica continuasse a nos
prestigiar, nós poderíamos transformar a ala intermediária dos católicos e
obter que ficasse realmente contra-revolucionária. As portas estavam
abertas para tudo!
Pode-se calcular como o Brasil, cujo papel no século
XXI está se delineando com tanta clareza, estava apontando para um ponto
muito alto. E imaginem o bem que teria feito à Europa e aos Estados Unidos
saberem que, num país tão novo, havia esse potencial de Contra-Revolução [138].
6. O “Legionário” denunciou reiteradamente a aliança comuno-nazista
Dentro dessa orientação, o
Legionário tomou
atitudes muito polêmicas, de combate a dois males que, além do comunismo,
se vinham formando e que marcariam os tempos futuros.
Um deles é a penetração do progressismo
no Brasil e
outro a penetração do nazifascismo.
O progressismo, embora assumindo aparências e usando
formulações primeiras mais moderadas, era uma corrente que haveria de
chegar nitidamente, de futuro e nos seus extremos, a uma posição análoga à
do modernismo condenado por São Pio X.
Já a corrente nazifascista haveria de suscitar no
Brasil, sobretudo entre os anticomunistas, um grande entusiasmo, devido ao
espírito polêmico da época, o qual levava à convicção de que acabar com o
perigo comunista à paulada e pela violência era uma legítima defesa do
País.
Desta forma, numerosos eram os católicos que viam no
nazismo e no fascismo uma solução. Menos o
Legionário.
Complicava ainda mais a situação o fato de que essas
duas correntes (o progressismo e o nazifascismo) pareciam opostas entre
si.
Essa visualização errônea trouxe como conseqüência
uma tríplice polêmica, travada muitas vezes dentro dos meios católicos,
entre progressistas, nazifascistas e católicos ortodoxos da antiga linha [139].
A grande tragédia da luta entre nazismo e comunismo,
entre fascismo e democracia, não foi tanto o extravio completo dos que já
eram maus, mas a ruína, a confusão, a dilaceração interna entre os que
eram bons [140].
[N.R.: Sobre o
combate ao Nazi-fascismo do "Legionário" pode-se ver um substancioso -
embora conciso - resumo na obra
"O Cruzado do Século XX", do Prof. Roberto Demattei, no Capítulo
II, itens
6 - A Denúncia do paganismo nacional-socialista e
7 - Fidelidade à Igreja e independência intelectual.
Também, de uma fonte inteiramente insuspeita, pois da
esquerda, pode-se ver a confirmação do papel preponderante do Prof. Plinio
e do grupo do "Legionário" no combate ao nazi-fascismo:
"O
conservadorismo de matriz católica representado no Brasil pela Sociedade
Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP)",
tese de mestrado em História Social de Luiz Felipe Loureiro Foresti –
Mestre em História Social pela PUC-SP e pesquisador do Núcleo de Estudo
sobre Trabalho, Ideologia e Poder da PUC-SP (NETIPO). O Cedem, Centro de
Documentação e Memória da UNESP, promoveu no dia 30 de abril de 2015 o
debate: Contradições da direita contemporânea: diferentes linhagens do
pensamento conservador brasileiro em sua história recente.
Esta tese de mestrado
pode ser lida aqui. O debate
pode ser visto aqui.]
* *
*
Um exemplo dessas dificuldades: quando em certo
momento o Legionário entreviu que haveria uma aliança entre
nazistas e comunistas, e publicou que devia estar em gestação um pacto
entre a Rússia e a Alemanha [141],
houve uma reação de desagrado muito acentuada, sobretudo da parte das
direitas, porque a nossa previsão tomava um caráter de crítica ao nazismo,
que então se apresentava como o partido condestável da luta anticomunista [142].
Daí a alguns dias deu-se o pacto Ribbentrop-Molotov [143].
Os dois diplomatas pactuaram uma porção de pontos,
incluindo o domínio da Rússia sobre as pequenas nações do Báltico.
Aí foi um “escândalo”: como os do Legionário
adivinharam isso? [144]
Produziu naturalmente um murmúrio geral. O próprio
Arcebispo, Dom José Gaspar, que não simpatizava com a nossa posição,
convidou-me a passar pelo Palácio para uma explicação: como é que eu tinha
sabido disso antes de acontecer?
Eu disse: “Senhor Arcebispo, eu não sei dizer. O
que eu sei dizer é que isso me veio ao espírito naturalmente, pensando”.
Ele ficou quieto, não disse mais nada; não gostou
nada também [145].
Essas e outras previsões do gênero foram um dos
marcos que serviram para assinalar a ascensão do Legionário
como órgão de expressão nacional no Brasil, passando assim de órgão
paroquial e arquidiocesano, para órgão de expressão nacional [146].
7. Persistência de uma difamação
O fascismo e o nazismo morreram. Mas alguns
adversários da TFP ainda afirmam que ela foi fascista e nazista.
Como resposta, nós apresentamos a eles as coleções do
Legionário, para que possam ver com os próprios olhos a polêmica
contínua entre a pré-TFP e os fascistas e nazistas do tempo, bem como
contra os comunistas. Ficam sem ter o que dizer, pois a polêmica era
contínua [147].
* *
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O fato concreto é que se estabeleceu dessa forma uma
seleção [148].
E formou-se toda uma corrente em torno do Legionário,
notória em todo o Brasil [149].
O Legionário
teve horas de grande brilho, de grande eficácia, de grande glória [150].
Mas ruiu pelas razões que vamos ver. E das ruínas dele nasceu a TFP.
De maneira que, em nossa história,
cada ruína deixava uma semente maior. E aprouve a Nossa Senhora que, de
ruína em ruína, e de “rio chinês” em “rio chinês” [151],
chegássemos até o nascimento da TFP [152].
NOTAS
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