1. Laicismo anterior a 1930
Concluído o meu curso universitário, continuei a me
dedicar ao Movimento Católico.
Eu sentia que alguma coisa deveria ser feita contra o
laicismo que dominava toda a legislação e toda a vida oficial do Estado, o
qual abstraía olimpicamente do fato básico que era a esmagadora
predominância católica da população. Mais de 90% dos brasileiros
pertenciam então à Igreja [1].
No tempo do Império, a Igreja era reconhecida pelo
Estado como a única religião verdadeira. Proclamada a República,
afirmou-se oficialmente no Brasil o espírito da Revolução Francesa. E, com
o espírito da Revolução Francesa, o laicismo de Estado inerente a essa
mesma Revolução.
A separação da Igreja e do Estado trouxe para a
Igreja enormes e ponderáveis desvantagens, e também grandes e ponderáveis
vantagens.
A Igreja ficou mais livre das ingerências do Estado.
Mas, de outro lado, uma onda de laicismo — de ateísmo, no fundo, porque o
laicismo não é senão uma formulação um pouco mais atenuada do ateísmo —
varreu todo o Brasil.
E assim permaneceu de 1889 até 1930.
2. Circunstâncias propícias para uma reviravolta
Veio a Revolução getulista de 1930. E dois fatos
marcaram uma mudança nessa ordem de coisas, para os quais nem todo mundo
teve os olhos abertos na época.
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Concentração
mariana no pátio do Colégio Sagrado Coração de Jesus, em julho de
1935 |
O primeiro fato, que datava de três ou quatro anos
antes, era a enorme expansão do Movimento Católico no Brasil e, sobretudo,
das Congregações Marianas. Essa expansão começou a tornar habitual um
homem freqüentar os sacramentos, sendo que antigamente apenas as mulheres
o faziam.
Em segundo lugar, Getúlio Vargas baixou um decreto
estendendo o voto às mulheres e instituindo assim o voto feminino (decreto
n° 21076, de 24/2/32).
Até 1930, as mulheres não votavam porque se
considerava que a função política era privativa dos homens. E a quase
totalidade dos homens daquela época não freqüentava os sacramentos e tinha
uma mentalidade laica. E a quase totalidade das mulheres, que eram
fervorosamente católicas, não votava. Isso garantia a manutenção do
laicismo no corpo eleitoral e em todos os graus da hierarquia política,
eleita pelos homens.
Ruminando essas coisas, eu me perguntei se não seria
possível tirar proveito disso para alterar a atmosfera de laicismo no
Brasil.
Mas não sabia como fazer, porque as autoridades
eclesiásticas tinham um verdadeiro horror à idéia de formação de um
partido católico [2].
A Hierarquia eclesiástica agia naquele tempo com
muito cuidado, com muito esmero na definição e na divulgação da doutrina
católica, sobretudo no que diz respeito às verdades concernentes à moral e
à vida eterna.
Ela fazia a difusão dessa doutrina sobretudo por meio
da pregação explícita feita do alto dos púlpitos e da ação pessoal
desenvolvida nos confessionários. E também por meio dos estabelecimentos
católicos: colégios e outras entidades atuando sobre a massa dos fiéis.
Esta ação era uma ação certamente indispensável,
legítima portanto. Mas ela deixava de lado um mundo de outros campos de
ação utilizados pela Revolução.
Não preciso dar como exemplo senão uma coisa, para se
ter a idéia do descompasso que se estabelecia assim: a Revolução
Industrial.
Tudo o que a Revolução Industrial trouxe para tornar
pelo menos incomodíssima a prática dos Mandamentos e a profissão da fé no
mundo novo que se criava, foi uma coisa de um vulto enorme.
Nada disso foi suspeitado pela Hierarquia e ela
continuou na velha rotina [3].
Daí o grande receio dos Bispos. Eles diziam que um
partido católico criaria uma série de problemas, sendo o primeiro deles o
fato de padres quererem se candidatar. E depois, o aparecimento de uma
porção de hipócritas, os quais haveriam de se declarar católicos apenas
para fazer carreira. E isto encheria de oportunistas as fileiras das
associações religiosas [4].
1. A «Fédération National Catholique» do general
Castelneau
Lendo uma revista francesa chamada La
documentation catholique [5],
eu vi referências um general francês, Visconde de Castelnau [6],
que se distinguira muito durante a I Guerra Mundial e que fora um dos
grandes generais da resistência francesa nessa guerra [7].
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Visconde de
Castelnau |
Eu pensei: “Castelnau tem jeito de ser um homem
duro, um Visconde dos antigos tempos: deve ser um firme
contra-revolucionário. Vejamos o que ele diz”.
Mais tarde vim a saber que o Visconde de Castelnau
era liberal. Mas a Providência às vezes faz coisas com as quais não
contamos [8].
Ainda em La documentation catholique encontrei
a notícia de uma Fédération Nationale Catholique, fundada pelo
mesmo general de Castelnau [9].
Então resolvi escrever para essa Fédération
Nationale Catholique, pedindo os estatutos deles. E eles me mandaram
os estatutos [10].
Li os estatutos e percebi que Castelnau elaborara um
jogo político muito interessante.
Ele tinha influência sobre um certo setor católico.
E, para atuar favoravelmente sobre o eleitorado católico, ele dirigia aos
candidatos um pequeno interrogatório:
— “Qual o seu pensamento a respeito de tal ponto,
de tal ponto, de tal outro ponto? Se o seu pensamento nesses pontos
estiver de acordo com a doutrina católica, eu o recomendarei aos meus
eleitores. Se não estiver, direi que o senhor se manifestou contra. Se não
me responder, direi no meu boletim que o senhor não me respondeu. O senhor
perde votos se não me responder; e ganha votos se me responder
favoravelmente” [11].
Com isto ele conseguia fazer entrar um bom número de
católicos nas Câmaras, no Senado, nas prefeituras, e aumentava uma certa
influência da Igreja no jogo político, sem que a Igreja se transformasse
propriamente num partido político.
Achei a idéia muito interessante [12]
e guardei-a na memória.
2. Getúlio convoca eleições: oportunidade única para os católicos
Nisto eclode em São Paulo a Revolução
Constitucionalista de 1932 [13].
Derrubando o Governo Washington Luís, Getúlio Vargas
tornara-se o senhor do Poder. Em vez de proceder de imediato à
democratização política — que era a finalidade declarada da revolução por
ele chefiada — tentou ir se perpetuando na Presidência da República.
Sua atuação à testa do Governo foi sentida pelos
elementos representativos de São Paulo como fundamentalmente
anti-paulista. Era de ampla liberalidade para com outras unidades da
Federação, ao passo que se revelava muito restritivo para com São Paulo. E
isto até de modo afrontoso.
Por exemplo, soou como depreciativa em São Paulo a
nomeação de um ex-líder tenentista do exército revolucionário, João
Alberto Lins de Barros [14],
para as altas funções de interventor federal. Tanto mais quanto ele se pôs
desde logo a tratar com displicência os principais chefes dos dois
partidos políticos, o Partido Republicano Paulista (PRP) e o Partido
Democrático (PD).
Além da liderança que exerciam sobre a vida pública
do grande Estado brasileiro, é de notar que esses próceres políticos
possuíam considerável prestígio individual, quer na vida intelectual, quer
na vida social ou econômica de São Paulo. A maneira desenvolta e até
arrogante do jovem interventor não poderia deixar de chocá-los, produzindo
neles a impressão de que João Alberto Lins de Barros não agiria dessa
maneira se não contasse com o apoio do Presidente da República.
Aos olhos dos chefes políticos, da imprensa e das
principais figuras do Estado, foi tomando corpo a convicção de que o
Presidente Getúlio Vargas desejava eternizar-se no poder, enquanto
ditador. E que, para chegar a esse resultado, queria quebrar antes de tudo
o poder político e econômico de São Paulo, estado líder do ponto de vista
produtivo.
Numerosos episódios da atuação do interventor João
Alberto Lins de Barros, como do próprio Governo federal, foram dando
ensejo a que essa opinião se consolidasse. E o mal-estar profundo daí
originado na população paulista teve conseqüências gravíssimas [15].
Assim foi que eclodiu em São Paulo a Revolução
Constitucionalista de 1932. Mesmo derrotada, criou ela em todo o País um
ambiente que tornava impossível ao Governo Federal não efetuar, por fim, a
eleição de uma Constituinte [16].
Foi então que Getúlio convocou as eleições para o ano
de 1933 [17].
Neste contexto, Getúlio promulgou — além da
lei do voto feminino — uma lei eleitoral pela qual, para escolher
deputados em São Paulo, o eleitor poderia compor uma chapa com os
deputados que quisesse, dos vários partidos que houvesse. Cada eleitor
compunha a sua chapa à vontade. Assim sendo, se nós aplicássemos o sistema
inventado pelo general de Castelnau, os católicos poderiam expurgar os não
católicos. E poderiam colocar um grande número de católicos dentro da
Constituinte, montando uma chapa composta só de católicos dos diversos
partidos [18].
3. Conversas com Heitor da Silva Costa e com Tristão de Athayde
Nessa ocasião eu estava no Rio de Janeiro e era
íntimo amigo do engenheiro Heitor da Silva Costa [19].
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Heitor da
Silva Costa |
Era ele filho de um Conselheiro do Imperador Dom
Pedro II, José da Silva Costa [20],
casado com uma senhora de muito boa família do Rio de Janeiro, Dª
Elisa Guimarães da Silva Costa. Tinha um cunhado deputado, homem
com quem eu me dava muito bem, o Professor Leitão da Cunha [21].
Era fino, inteligente, de trato agradável [22]
e trinta a quarenta anos mais velho do que eu, mas condescendia em
conversar comigo.
Logo que eu chegava ao Rio, eu o avisava: “Dr.
Heitor, estou no Rio de Janeiro”. E ele vinha logo conversar. Vinha
também a São Paulo me visitar. Tínhamos muito boa amizade.
Era um homem muito focalizado naquele tempo, por ter
sido o arquiteto, incumbido pelo Cardeal Dom Sebastião Leme de construir a
imagem do Cristo Redentor, uma obra de engenharia muito ousada.
Conversando com o Silva Costa, eu disse:
— Getúlio propôs uma eleição da Constituinte.
Sugiro tal e tal coisa que li na revista La documentation catholique
do general de Castelnau.
Silva Costa tinha ouvido falar do Castelnau e gostou
muito do plano.
Disse-me que tinha pensado em coisa semelhante e
propôs falarmos com o Tristão de Athayde [23]
e recomendarmos a ele levar o assunto a Dom Leme, Cardeal Arcebispo do Rio
de Janeiro [24].
4. Dom Leme recomenda ao Episcopado a fundação da LEC
Tristão tinha uma entrada muito grande junto ao
Cardeal [25].
Falou com ele e o Cardeal também gostou do plano [26].
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Cardeal D.
Sebastião Leme |
Saiu daí uma correspondência entre o Tristão e o
Silva Costa de um lado, e eu de outro lado. Fiz umas duas ou três viagens
ao Rio, nos entendemos a respeito dos estatutos [27].
Pediram-me então que eu redigisse os estatutos.
Inspirei-me evidentemente no texto do general Castelnau, devidamente
adaptados à lei e às circunstâncias brasileiras. Tristão e Silva Costa
fizeram algumas emendas e mandaram a Dom Leme.
Dom Leme, que era um homem decidido, transformou o
texto numa circular para todos os Arcebispos e Bispos do Brasil,
recomendando a fundação desse organismo, para o qual eu propus o nome de
Liga Eleitoral Católica [28].
Isso formaria, naturalmente, uma organização
colossal. E como toda organização grande, deveria ter uma certa
representação: o presidente devia ser um homem de relevo, de alguma
importância, que tivesse ar de ser alguém. Quanto ao secretário geral,
entendia-se que deveria ser um homem de ação [29].
5. Vaivéns do projeto
Após isto, as coisas ficaram andando nos bastidores
da Igreja. E eu não tive mais informações do que havia sido feito do nosso
projeto [30].
Entrementes, eu ia vendo a tirania do Getúlio a todo
momento desmantelar aquela São Paulo que eu amava — tradicional, rural,
agrícola, estratificada, bem paulista — para fazer a São Paulo
cosmopolita, ambígua, indefinida, desmedida, sem fisionomia caracterizada
e super-industrializada que nasceu do bafejo dele.
Eu sempre julguei que metrópoles industrializadas
eram o sorvedouro da civilização e, portanto, não queria que no Brasil
tivéssemos essas grandes metrópoles industrializadas.
Minha idéia era a de uma América do Sul produzindo
víveres e produtos agrícolas às toneladas. A Europa e Estados Unidos que
fabriquem, nós pagamos os seus produtos. Fiquem eles com as suas fábricas.
Nós ficamos com a agricultura, ficamos com a fartura, ficamos com o
bem-estar, ficamos com o equilíbrio, ficamos com as condições propícias ao
florescimento de uma Cristandade.
Ao mesmo tempo eu percebia as manifestações de
desagrado em São Paulo contra o Getúlio. E pensava:
— Onde foi parar a LEC? Ela está no fundo da minha
gaveta, no fundo da gaveta do Tristão e do Silva Costa. São Paulo vai água
abaixo. Aquela esperança está jogada no chão. Bem, o que eu posso fazer é
estudar, estudar, estudar e esperar que Nossa Senhora intervenha no caso [31].
1. Dr. Plinio é escolhido secretário geral da LEC em São Paulo
Mas por fim as coisas deslancharam.
Dom Duarte fundou a Liga Eleitoral Católica em São
Paulo e todos os outros Bispos fundaram Ligas Eleitorais Católicas em suas
dioceses [32].
A Liga Eleitoral Católica não era propriamente um
partido político [33].
Era um organismo de grande representação existente em cada uma das
dioceses do interior de São Paulo. Havia uma LEC local, em cada paróquia,
ligada à respectiva diocese. Depois, as LECs das dioceses todas do
interior do Estado de São Paulo eram ligadas à LEC da cidade de São Paulo.
No Brasil inteiro, em cada Estado, havia um organismo igual [34].
* *
*
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Extrato do
anúncio da criação da Liga Eleitoral Católica no "Legionário" de 15
de janeiro de 1933 (clique sobre a imagem para ler o manifesto
completo) |
Um dia, Monsenhor Gastão Liberal Pinto, Vigário Geral
de Dom Duarte, me chama e diz:
— Olha aqui, nos papéis que nos chegaram sobre a
questão da LEC está constando que você foi, com o Silva Costa, o autor do
documento que lhe deu origem.
— É verdade.
— Está bom. Dom Duarte quer saber se você aceita
ser o secretário geral da Liga Eleitoral Católica para o Estado de São
Paulo, em vista das próximas eleições para a Constituinte.
— Posso ser, perfeitamente.
— Bom, mas veja a responsabilidade que você toma.
Porque vai haver uma diretoria e o Arcebispo quer pôr homens de bom nome,
de boas famílias; quer pôr também alguns líderes católicos, todos já de
cinqüenta anos para cima. Mas quem vai ter que escorar o trabalho é você.
Você escora?
— Desde que ele pague as despesas. Porque boa
vontade eu tenho, dinheiro eu não tenho.
Ele deu risada e disse:
— Não, não! A Cúria paga as despesas e você fica
sendo o pé de boi que arca com a carga do trabalho.
— Pois não, então vamos fazer [35].
Dom Gastão Liberal Pinto me expôs então o seguinte:
— Dom Duarte espera então de você, com as relações
que você tem no meio mariano e no meio católico em geral, que seja
realmente um elemento propulsor dessa campanha e organize a inscrição
eleitoral dos católicos. A LEC abrirá um escritório para facilitar essa
inscrição. E nós todos, do Clero, vamos trabalhar para que o maior número
possível de católicos, e sobretudo de católicas, se inscrevam como
eleitores. Esse serviço vai ser feito, através da LEC, sob sua
responsabilidade [36].
2. Escolha do presidente da LEC: Estêvão de Souza Rezende
Aí ele me perguntou quem eu propunha para compor a
diretoria da Liga Eleitoral Católica, e me disse: [37]
— Precisamos de um homem representativo, que tenha
um grande nome, para ser presidente [38].
Lembro-me de ter proposto dois homens de família
tradicional de São Paulo, e dois líderes católicos de famílias mais novas,
mais modestas, mas católicos praticantes e verdadeiramente beneméritos do
Movimento Católico [39].
E sugeri como presidente um senhor cujo nome ele
agarrou de imediato, e do qual eu me recordo com saudades: Estêvão
Emmerich de Souza Rezende [40],
um velho gentil-homem dos antigos tempos [41],
neto do Marquês de Valença, e ele mesmo um marquês perfeito [42].
Era um homem de muita projeção em São Paulo [43].
Dom Gastão:
— O Estêvão Rezende está excelente! [44].
Estêvão Emmerich de Souza Rezende era da Ordem
Terceira do Carmo e reconhecido por todos como pessoa muito direita. Não
era especialmente rico, mas tinha o suficiente para viver com decência,
com dignidade.
Levei muito tempo para entender o que queria dizer
Emmerich. Pensei que fosse algum antepassado alemão ou húngaro. Não
era. Emmerich era o nome do filho de Santo Estêvão, Rei da Hungria.
Emmerich em alemão é Américo em português [45].
A respeito dele, lembro-me ainda hoje do seguinte: eu
comungava todos os dias às 10 horas, na igreja de Santa Cecília. E via
sempre comungar também neste horário um senhor de meia altura, com um
bigode de estilo português, algo alourado, olhos claros, muito bem
penteado, muito limpo, muito bem arranjado e com ares afidalgados. Eu não
o conhecia pessoalmente, mas observava-o e pensava: “Que homem
simpático, que homem composto, que homem fino, distinto, tranqüilo e
plácido! Como deve ser fácil tratar com esse homem!” [46]
Agradava-me ver a ausência de respeito humano com que ele comungava,
num tempo em que nenhum homem de representação o fazia [47].
Não posso me esquecer de um fato [48].
Comungava também, à mesma hora, uma mulher já de idade, mulata, que tinha
uma perna inchada ou algum outro problema assim, coitada!
E na igreja de Santa Cecília, a capela do Santíssimo
Sacramento ficava dois ou três degraus acima do nível do chão.
Ela então tinha que subir, comungar, e depois descer
e sair. Subir, ela subia: agarrava-se à grade da capela, que permanecia
aberta. Mas, descer era muito difícil para ela.
Nessa hora, Dr. Estêvão Rezende, com muita bondade,
com muita distinção, dava-lhe a mão [49],
como se fosse ajudar uma marquesa. Ela se apoiava nele e descia [50],
meio gemendo, meio sorridente diante da atitude em relação a ela daquele
fidalgo. Ela agradecia. E ele voltava para as orações dele [51].
Era bonito ver a caridade cristã com que ele fazia isso todos os dias [52].
Não houve gentilezas que eu não fizesse para esse
homem amabilíssimo. Não houve gentilezas que ele não me retribuísse. As
nossas relações eram relações de conto de fadas. Ele acabou ficando muito
meu amigo [53].
3. Demais diretores da LEC
Dom Gastão:
— Quem mais você sugeriria?
Eu tinha conhecido também, nas cerimônias da Ordem
Terceira do Carmo da Ladeira, onde eu comparecia para as novenas, o Prior,
que era também um homem de boa família de São Paulo, chamado Mário Egídio
de Souza Aranha. Eu disse:
— Mário Egídio de Souza Aranha.
— Está bem: Mário Egídio de Souza Aranha [54].
Propus para vice-presidente um professor
universitário, economista muito entendido na sua matéria, muito católico,
chefe de família, muito direito, homem muito circunspecto. Era uma das
inteligências do Movimento Católico de São Paulo. O nome dele talvez cause
um pouco de estranheza: José Papaterra Limongi [55].
Por fim, indiquei o Dr. Vicente Melillo, advogado,
católico muito fervoroso, bom orador [56].
Dom Gastão disse:
— Vou indicar dois.
— Pois não.
— Dr. Adolfo Greff Borba e Dr. Esdras Pacheco
Ferreira.
Eu disse:
— Perfeitamente [57].
Esses todos constituíram a direção da Liga Eleitoral
Católica [58].
4. A LEC em plena atividade
Com a colaboração de vários congregados marianos que
passaram a trabalhar comigo na Secretaria Geral, constituiu-se uma rede
enorme de núcleos da Liga Eleitoral Católica nas várias dioceses da
Província Eclesiástica de São Paulo.
Estava a LEC bem organizada e estruturada [59].
E eu percebia que ela tinha diante de si um futuro imenso. E que, se o
Episcopado soubesse aproveitar a força da Liga, poderia instaurar no
Brasil uma sociedade verdadeiramente católica [60].
Tomamos três salões em um prédio da Cúria [61],
na rua Venceslau Brás.
Havia a minha sala e, num canto dela, Dom Duarte
mandou colocar uma boa mobília, com escrivaninha, tinteiro e demais
apetrechos, para as reuniões da diretoria.
Havia também outra sala grande, destinada
propriamente para o movimento eleitoral. No fundo, um salão de
fotografias, onde se tirava fotografias para os títulos eleitorais.
Facilitava muito ao eleitor já ter o fotógrafo ali.
Nós encaminhávamos depois os títulos para o Tribunal
Eleitoral, e acompanhávamos o processo. Se alguma coisa encrencasse,
mandávamos avisar [62].
Convidei Dr. Paulo Barros de Ulhôa Cintra para
dirigir esse serviço de recrutamento eleitoral [63].
Ele trabalhou muito nessa ocasião, trabalhou como um mouro,
verdadeiramente. Ele ainda era, nesse tempo, estudante de Direito. Eu já
havia me formado [64].
O datilógrafo era um estudante católico da Faculdade
de Direito, que depois ficou deputado pelo Estado de Goiás: Benedito Vaz [65].
Começamos a propaganda no meio católico, anunciando a
todos os católicos que quisessem se inscrever como eleitores, que nós
providenciaríamos os trâmites do título eleitoral deles. E eles ficariam
comprometidos a votar em quem a Liga Eleitoral Católica indicasse.
Foi uma movimentação enorme, o elevador não parava.
Entrava gente, saía gente, e o movimento encheu e floresceu [66].
Nós chegávamos de manhã e saíamos só à noite [67].
Em pouco tempo a Liga formou um movimento colossal!
Em grande parte, isto se deveu ao apoio do Clero. Mas em alguma medida,
também, à popularidade de que eu gozava junto aos católicos militantes, e
que era uma popularidade enorme [68].
5. Chapa Única por São Paulo Unido
A propaganda eleitoral ia assim mar alto, quando um
dia me chama Dom Gastão: “Eu quero contar a você uma novidade
estritamente confidencial”.
Ele tinha uns olhos de verruma, cravados em mim. E
ele completou: “A LEC não vai concorrer às eleições”.
Nós estávamos com um eleitorado enorme! Dominei o meu
movimento de decepção e ele disse:
— O Arcebispo foi procurado por políticos de São
Paulo que resolveram fazer uma chapa única de todas as correntes
paulistas. Vão entrar quatro candidatos pelo Partido Republicano Paulista,
quatro pelo Partido Democrático, quatro pela Associação Comercial,
representando as classes conservadoras, e quatro pela LEC representando a
Igreja”. E também dois ou três designados por outras entidades.
E completou:
— Agora você vai ter que trabalhar para os
candidatos que forem designados para essa chapa.
— Pois não! Está muito bem. Se vão entrar quatro
representantes da Igreja, está esplêndido. Eu não tenho outra coisa para
desejar.
— Então guarde isto por enquanto para você. No
momento oportuno vai ser dito a você quais são os candidatos da LEC [69].
1. Dom Gastão comunica a lista dos candidatos
Algum tempo depois, veio um novo chamado de Dom
Gastão: “O Senhor Arcebispo constituiu a lista dos quatro candidatos
católicos”.
Ele era meio sério, meio brincalhão. Acho que ele
tinha querido, na primeira conversa, pôr-me à prova e saber se eu estava
torcendo para ser candidato ou não.
E me disse: “Os quatro candidatos são: Plinio
Corrêa de Oliveira, José de Alcântara Machado, Rafael de Abreu
Sampaio Vidal e Manuel Hipólito do Rego” [70].
Na qualidade de Vigário Geral de São Paulo, Dom
Gastão era o primeiro homem abaixo de Dom Duarte. Tinha uma grande
influência. E concorreu muito para que Dom Duarte me indicasse como
candidato a deputado.
Também trabalhou muito para eu ser eleito. E mais ou
menos até a sua morte, conservei muito boas relações com ele [71].
|
"... no ato de generosidade e confiança com o qual o
Arcebispo deliberava pôr aquela responsabilidade sobre os meus ombros,
entrava a idéia de que a minha presença na Chapa acarretaria um grande
entusiasmo em todas as Congregações Marianas. " Na foto visita
de Congregados Marianos do interior de São Paulo à
sede da Congregação Mariana de Santa Cecília e redação do Legionário , em 1935 |
Bem, Plinio Corrêa de Oliveira eu conhecia... [72]
E era visível que, no ato de generosidade e confiança com o qual o
Arcebispo deliberava pôr aquela responsabilidade sobre os meus ombros,
entrava a idéia de que a minha presença na Chapa acarretaria um grande
entusiasmo em todas as Congregações Marianas. E que estas levariam atrás
de si o laicato católico inteiro.
Portanto, o peso eleitoral da Liga Eleitoral Católica
se afirmaria muito com a minha presença entre os candidatos [73].
Outro candidato era José de Alcântara Machado [74].
Homem de muita fama na São Paulo daquele tempo, bem rico, fazendeiro no
interior [75],
tinha sido meu professor na Faculdade de Direito [76].
Ele dava aulas muito interessantes numa matéria que eu julgava
desinteressante, Medicina Legal [77].
Era um homem com um bom dote literário, e que acabara
de ser eleito membro da Academia Brasileira de Letras.
Filho do Barão Brasílio Machado, nomeado barão pelo
Papa São Pio X, fora um católico de grande expressão e era um político,
creio eu, de importância média no antigo PRP (Partido Republicano
Paulista). A projeção do pai enquanto expoente católico, a rigor podia ser
interpretada como refletida também no filho.
Era um homem de vontade muito forte, com olhos entre
cinzento e verde-claro. Ligeiramente alourado. Quando se tornava hostil,
tinha qualquer coisa de fera; quando estava em seu estado comum, era de um
trato agradável.
O terceiro candidato, Rafael Sampaio Vidal [78],
era um antigo Ministro da Fazenda do governo Artur Bernardes, este
antecessor de Washington Luís na Presidência da República.
Eu o conhecera razoavelmente em casa de um tio meu,
de quem Rafael Sampaio Vidal era amigo. Ele ia aos domingos conversar com
meu tio e eu fazia parte da algazarra dos filhos e dos sobrinhos. Nessas
ocasiões, apenas passávamos pelos mais velhos, os cumprimentávamos e
trocávamos com eles duas palavras. A esse título muitas vezes eu estivera
com Rafael Sampaio Vidal.
Sua nomeação me espantou, porque nunca percebi nele
qualquer nota de catolicidade.
Por fim, o quarto candidato, Manuel Hipólito do Rego,
advogado de destaque no Fórum de Santos e muito amigo do Bispo local [79].
Líder católico santista, um bom homem. Fiquei amigo dele até o fim da vida [80].
Tinha sido indicado pelo Bispo de Santos. Mais tarde vim a saber que tinha
haveres lá pelo lado do município de São Sebastião.
Estes eram os deputados indicados pela LEC.
* *
*
Eu disse a Dom Gastão:
— Fico muito agradecido ao senhor, ao Senhor
Arcebispo, é uma grande honra a confiança que depositam em mim.
— Não, não está tudo resolvido. Agora é preciso
que você convoque uma reunião da Junta Arquidiocesana da LEC, e que eles
aprovem esses nomes.
— Mas, Monsenhor Gastão, eu não posso estar
presente na reunião, porque vai coibir a eles.
— Então esteja ausente.
Telefono, convoco a reunião, e digo:
— Estou incumbido, pela autoridade eclesiástica,
de comunicar aos senhores esta lista de deputados, mas como sou candidato,
não quero assistir aos debates, para dar liberdade aos senhores de
inclusive vetarem meu nome. Eu me retiro.
Eles disseram: “Pois não, pode se retirar, que
vamos deliberar” [81].
Retirei-me. E eles ficaram deliberando ali durante
algum tempo. Eu fiquei andando pelo corredor, inteiramente vazio a essa
hora, rezando as minhas orações do dia e pedindo ao mesmo tempo a Nossa
Senhora que dispusesse o que quisesse a meu respeito [82].
Ao cabo de uma hora de discussão, na qual eu não sei
o que se passou, eles mandaram me chamar. Entrei e eles disseram que eu
podia comunicar ao Sr. Arcebispo que a lista estava aprovada por
unanimidade [83].
Era uma oportunidade ótima para batalhar pela Igreja [84].
2. Católico-monarquista em chapa republicana: dificuldades
Procurei depois Dom Duarte, agradeci muito a
gentileza, mas expus a ele uma dificuldade:
— Dom Duarte, eu sou monarquista. E não posso
admitir sem mais que o meu nome seja posto dentro de uma chapa
republicana.
— Oh! Vossemecê é monarquista?
— Sou.
— Bobagem de menino! Deixa disso.
— Não, Dom Duarte. Isto é uma coisa muito séria:
eu sou monarquista e aliás não compreendo como não se possa ser
monarquista. E só estou disposto a aceitar a inscrição do meu nome nessa
chapa se o presidente da Liga me escrever uma carta em que fica atestado
que foi a pedido da Igreja, para fazer bem à causa católica, que eu ponho
entre parêntesis, no momento, as minhas idéias monárquicas e entro para o
jogo político. Do contrário, não aceito.
— Bom. Pode escrever a carta, não tem nada, está
bom.
Fui então me entender com Dr. Estêvão de Souza
Rezende: não encontrei a menor dificuldade.
Dias depois, acordo de manhã, toco a campainha para a
criada me trazer o jornal. E ela me diz:
— Dr. Plinio, recebi de madrugada um telefonema da
casa do Dr. Estêvão de Souza Rezende (vejam até onde pode ser levada a
amabilidade da gente de estirpe antiga) avisando para não acordar o
senhor antes da sua hora de costume, mas quando o senhor acordasse, avisar
que o Dr. Estêvão Rezende morreu”.
— Mas morreu o Dr. Estêvão Rezende?
Bem, houve o enterro, fiz todas as cortesias cabíveis
e possíveis [85].
Novo presidente da Liga, quem? Vicente Melillo [86].
Vou, exponho a mesma coisa ao Dr. Vicente Melillo,
que me diz:
— Todo esse problema é muito complicado, eu não
entendo bem. Mas faça você a carta e me dê para assinar que eu assino.
Ponha todo o seu caso de consciência ali, que eu resolvo como você quiser.
Eu fiz a carta, e ele me devolveu passada à mão com
uma linda caligrafia vicentina e rigorosamente assinada [87].
3. Um escrúpulo de consciência
Na mesma ocasião em que fui visitar Dom Duarte para
agradecer a indicação, ele, paternalmente, mas muito distante, me disse:
— Vossemecê foi indicado porque Monsenhor Gastão
Liberal Pinto disse que Vossemecê arca com qualquer responsabilidade.
— Senhor Arcebispo, o que eu puder fazer, não tem
dúvida nenhuma, eu faço.
— Bom, agora a questão é: Vossemecê mobilizará
todos os congregados marianos nessa eleição?
— Mobilizo. Não tenha dúvida nenhuma que eu
mobilizo.
— Porque a propaganda deve ser feita pelos “maríanos”.
Ele tinha a pronúncia um pouco peculiar. Ele não
dizia marianos, mas “maríanos” [acento tônico no i],
não sei por quê.
— Os “maríanos” é que devem fazer isto. E é
preciso que Vossemecê ponha esses milhares de “maríanos” todos lutando
pelo mesmo ponto.
— Senhor Arcebispo, nesse ponto eu garanto.
* *
*
Quando cheguei à rua, veio-me um escrúpulo à
consciência.
Eu pensei: "Dom Duarte está me pondo como
candidato só para movimentar os marianos [88].
Se me nomeia só por causa de meu prestígio, é porque ele
gostaria de nomear um outro. Não serei eu obrigado em consciência a
procurar por ele e dizer o seguinte: ‘V. Excia. nomeie um outro que eu
trabalharei por esse outro como trabalharia por mim, porque assim se faz a
vontade do meu Arcebispo’?" [89].
Passei assim uns dois ou três dias na indecisão. E
resolvi consultar o Padre José Danti, jesuíta do Colégio São Luís.
Eu me lembro de entrar no quarto do Padre Danti, ele
sentado diante da escrivaninha, de perfil, olhando para a frente, e eu
numa cadeira. Parecia uma figura de moeda.
— Então, Dr. Plinio, o que há?
— Padre Danti, tem isto assim, assim. Não seria
mais perfeito eu procurar Dom Duarte, e dizer assim, assim? Ele não estará
iludido a meu respeito, pensando que se ele não me der esse cargo, eu não
movimento os congregados marianos? E, portanto, não estarei praticamente
comprando esse cargo, quando na realidade ele tem o direito de dispor dele
como Arcebispo? Não é uma espécie de roubo meu aceitar esse cargo, quando
não é preciso?
Lembro-me até hoje da atitude do Padre Danti, olhando
para o horizonte. Quando acabei de falar, ele não teve a menor reação.
Parou um pouquinho e depois disse, inclinando um pouco a cabeça:
— O senhor pediu o cargo?
— Não.
— O senhor fez alguma pressão para ser nomeado?
— Nenhuma. Para mim isso caiu de surpresa.
— Pode ser que o Arcebispo tenha feito esse
cálculo. Mas não foi o senhor que sugeriu o cálculo a ele. Isso é da
cabeça dele e quem é responsável perante Deus pelos atos dele é ele, e não
o senhor. O senhor não tem que se meter na cabeça dele para pensar o que
ele pensou, para daí ver se nasce um dever para o senhor.
Depois acrescentou:
— Pode ser que ele lhe tenha dado esse cargo para
o senhor levar os votos de todos os marianos [90].
Mas o senhor deve apresentar-se, o senhor mesmo, como
candidato. Porque, se eu vejo que o senhor tem tanta vontade de obedecer
ao Arcebispo e é tão fiel à Igreja Católica, a Igreja não pode ter melhor
representante. E se o senhor deixar vago o lugar, de repente vem um que
não tem a mesma fidelidade. Então, é melhor o senhor mesmo ficar [91].
Eu achei que estava muito bem pensado. Agradeci,
desci e fui tratar de minha candidatura [92].
4. Comunicação da candidatura à família: surpresa e insegurança
Em casa eu não disse uma palavra.
Pensei com meus botões: “Eu só direi alguma coisa
em casa ou na Congregação Mariana, ou em qualquer outro lugar, se sair
pelos jornais. Porque acho uma coisa extraordinária, eu, com 23 anos, ser
indicado a deputado federal, e isso pode fracassar. Então vou ficar
quieto”.
Dias depois, os jornais todos [93]
davam com manchetes: “Designados os candidatos etc. etc.”, e
apresentavam a lista da Chapa Única por São Paulo Unido. Era a
chapa antigetulista. E entre os nomes, em ordem alfabética, Plinio Corrêa
de Oliveira.
Eu li os jornais e fui calmamente de bonde para
jantar [94].
Quando cheguei em casa, eu disse: “Sabem que foi
constituída a Chapa Única por São Paulo Unido?”
Todos perguntaram com curiosidade: “Quem são os
candidatos?”
Mas ninguém ali supunha que eu fizesse parte da
lista. Nem mesmo Mamãe.
Eu era dos mais moços e ficava, portanto, no fim da
mesa. Mamãe, que era das mais velhas, ficava próxima à cabeceira ocupada
por minha avó, que jantava prestando muita atenção, mas sem voltar a
cabeça para ver o que eu dizia. Era nela um modo de ouvir e de se
concentrar mais.
Eu disse: “Os candidatos são tais”. E nomeei
os políticos indicados pelos outros partidos. E depois completei: “E eu
também.”
— Ah! mas você é candidato?
— Eu sou candidato.
Eu notei uma espécie de perplexidade na mesa inteira [95],
uma espécie de surpresa meio satisfeita e meio desolada. Eles não tinham
idéia da força do movimento da LEC.
Notei também a insegurança de Mamãe, como quem diz:
“Como foi que ele pulou dentro disso assim e aceitou essa candidatura?” [96].
Eu soube que depois correu o zum-zum entre os
familiares de que era uma temeridade eu me apresentar como deputado: um
rapaz com 24 anos, que conhecia pouca gente, de uma família que não era de
políticos, há muito tempo não tinha mais fazenda no interior, não tinha
base eleitoral nenhuma. Como é que eu ia me eleger? Portanto, na avaliação
deles, a minha candidatura era muito honrosa, mas caminhava para um
fracasso, e eles se perguntavam se não teria sido um erro.
Essa opinião era acompanhada por Mamãe com muita
incerteza, porque ela não tinha nenhuma segurança sobre a vida política [97].
Mas, apesar disso, naquela hora procuraram me
estimular:
— Oh! Muito bem, veja só. Agora trate de conseguir
os eleitores, hein?
— Vamos ver. Eu não perco nada por correr o risco
da eleição.
No jantar, durante a sobremesa, minha avó mandou
servir uma champanhe em honra do futuro deputado. Mas eu vi que havia uma
espécie de pena diante do meu próximo e irrefragável fracasso [98].
Terminado o jantar, vi minha mãe combinando com uma
tia, irmã dela, algumas providências para arranjar votos para mim. Iam
telefonar para Santos, para o Hotel Parque Balneário, onde a minha família
ia passar os meses de inverno, e pedir a um diretor, senhor Fracarolli,
para que os copeiros votassem em mim. Elas calculavam que isso alcançaria
uns quinze votos.
Depois, confabulavam elas, havia as antigas criadas
de casa, que estavam empregadas noutros lugares: mandariam avisar para
votar em mim, e também falar com as amigas delas.
E ficaram combinando umas coisas assim, que no
conjunto não dariam cem nomes. Mas era com lista feita, telefones, para
começar uma propaganda. A meta delas era a de que eu não tivesse uma
votação vergonhosa [99].
Eu estava achando graça no negócio e pensei: “É
melhor que elas peçam do que não peçam. De repente, entram 5 ou 10 votos
por aí que podem ser decisivos”.
À noite, quando fui me despedir de mamãe [100],
notei-a muito reservada. Então perguntei a ela:
— Meu bem, o que a senhora achou dessa
candidatura?
— Meu filho, eu não entendo de eleições. Mas o que
os seus tios me dizem é que você não é conhecido de ninguém, só é
conhecido em algumas sacristias. É verdade que você tem um nome
tradicional, mas é tradicional em Pernambuco. Aqui em São Paulo ninguém
conhece os Corrêa de Oliveira, não te adianta nada. E seus tios acham que
você não tem condições de ser eleito. Você terá dado um passo bem
judicioso?
— Meu bem, olhe: é melhor eu ser um candidato
derrotado do que nunca ser candidato. Porque ao menos eu varei esta
situação, e já é qualquer coisa. Então vamos para a frente!
— Está bem, e que Deus te ajude.
— A senhora reze também para as coisas correrem
bem, eu acho que poderei prestar muito bons serviços à Igreja.
E continuei a trabalhar. Dr. Paulo Barros de Ulhôa
Cintra continuou a trabalhar junto comigo. Fizemos viagens e tomamos
várias providências [101].
1. Alcântara Machado convoca o “benjamim”
Dias depois, à tarde, estava eu no meu escritório [102],
numa roda de membros do pré-grupo do Legionário proseando (era para
o que servia o meu escritório: prosear e fazer apostolado), quando toca o
telefone [103].
Atendi. Era tão curto de dinheiro que não tinha
office boy, atendia eu mesmo os telefonemas [104].
— Pronto.
— De onde fala?
— Do escritório do Dr. Plinio Corrêa de Oliveira.
Do outro lado respondem: “Aqui fala Alcântara
Machado”.
— Ah! Dr. Alcântara Machado, como vai o senhor?
Está passando bem? [105]
— Eu queria avisar ao senhor que vai haver uma
reunião na rua São Bento, número 19, num prédio da Ordem dos Advogados, às
tantas horas, do dia tanto, para discutirmos os programas da Chapa Única.
O senhor, como nosso mais jovem colega, está convidado.
Ele nem perguntou se eu podia. Era a hora marcada
para o “benjamim”, para o pirralho.
— Pois não. O senhor esteja certo que eu estarei
lá.
2. Separação Igreja-Estado, ponto não aceitável
Chegada a hora, compareci ao prédio da Ordem dos
Advogados, no qual nunca tinha entrado na minha vida. Era um prédio antigo
em que havia morado outrora o Conselheiro Antonio Prado*.
*
Nessa época, o prédio tomara o nome de
Casarão Elias Pacheco Chaves.
A localização atualmente corresponde aos números 189, 195 e 197 da rua São
Bento, no Centro Velho de São Paulo (cfr.
http://www.oabsp.org.br/portaldamemoria/destaque/primeira-sede-da-oab-fica-na-sao-bento/).
A reunião realizou-se na antiga sala de jantar dele.
O papel de parede era bonito, mas os móveis todos muito feios. Uma mesa
enorme e um marcante ambiente de politicagem antes de começar a reunião,
todos falando.
Entrei e veio logo ao meu encontro o Professor José
Joaquim Cardoso de Melo Neto [106],
grande amigo do Alcântara Machado e que fora meu professor de Economia
Política.
Acontece que a família do Cardoso de Melo se dava
muito com a minha família, de maneira que ele veio falar comigo assim como
quem fala com um sobrinho.
— Oh! como vai você, Plinio? Vem cá, eu quero te
apresentar para este, para aquele, para aquele outro.
E entre esses outros, eu conheci José Carlos de
Macedo Soares [107],
o qual, pelas razões que explicarei, estava indignado, furioso com a minha
candidatura.
Começa a reunião, o Alcântara Machado toma a
presidência. Sentei-me na última cadeira, porque era de longe o mais moço,
mas bem em frente ao presidente, vis-à-vis do líder.
— Bem, vai ser feita a leitura do programa dos
candidatos à Chapa Única por São Paulo Unido. Primeiro ponto: separação da
Igreja e do Estado. Segundo ponto: isto, aquilo, aquilo outro.
E enumerou outras coisas de política que não vêm ao
caso.
As reivindicações da LEC estavam contempladas: quebra
do laicismo no Brasil; proibição do divórcio; ensino religioso nas
escolas; capelanias nos hospitais, nas prisões do Estado e nas Forças
Armadas.
Terminada a leitura, diz o Alcântara Machado:
— Os senhores querem fazer alguma objeção?
— Eu quero, Dr. Alcântara Machado.
Todas as cabeças se voltaram para mim [108]:
como é que o pintainho de 24 anos se mete agora a discutir com o chefe? [109]
— Eu tenho um desacordo quanto ao primeiro ponto:
separação da Igreja e do Estado. Eu sei que não é desejo do Episcopado
restaurar a união da Igreja com o Estado. Mas nós não podemos afirmar que
seja um regime bom. É um mal menor. Como está aqui, fica parecendo um
regime ideal.
Um dos candidatos a deputado, o Dr. João Sampaio
- naquele tempo ainda mocetão, de
barba grisalha -, quando eu falei
isto, nem se voltou para olhar o que eu dizia: fechou a carranca [110],
empurrou a cadeira dele para trás, como quem se retira daquele circuito
indignado e como que dizendo: “Está vendo? Admitiram esse carola aqui
dentro e já vai criar complicação!”
Eu continuei [111]:
— Não que eu pretenda que a Chapa Única por São
Paulo Unido deva restaurar a Idade Média...
Isto já era uma hipótese de eles caírem de costas...
— .. mas declarar que a separação da Igreja e do
Estado é um bem, isso eu não declaro. É mais fácil eu desistir de ser
candidato, sair da Chapa Única, do que o meu nome figurar nesse programa [112].
Eu devo dizer com toda a clareza que, se for aprovado isso, eu terei de
consultar a Liga Eleitoral Católica, porque não fomos sondados antes sobre
essa proposta. Estou, portanto, em desacordo, e peço que o senhor registre
esse desacordo. A lealdade da articulação entre as correntes componentes
da Chapa Única exigiria que fôssemos consultados antes.
Vários fizeram cara de tempestade [113].
Houve um suspense, pois estava para estalar a Chapa
Única. E eles precisavam do eleitorado católico, que já sabiam colossal.
Enquanto eu falava, Alcântara Machado (eu me lembro
dele com um lápis e um papel na mão) me olhava pensativo.
3. Componenda e distensão
Quando terminei, ele disse:
— Bom, vamos dar um jeito nisso. Vamos pôr assim:
“Uma vez separada a Igreja do Estado, concórdia entre os dois poderes
civil e eclesiástico”. É condicional, porque tanto pode dizer que
deve ser separada a Igreja do Estado, quanto pode ser entendida noutro
sentido. Caso seja separada, nem o senhor se compromete, nem nós [114].
Eu percebi a sagacidade dele e achei que estava muito
bem jogado. Então logo eu disse [115]:
— Aí está bem, eu concordo. Pode ser.
— Ahhh! Distensão.
Daí a pouco estava terminada a reunião, abraços etc.
etc. [116].
O João Sampaio se desmobilizou todo [117].
E a LEC tinha ganho esse primeiro tento. Pela mão do caçula, tinha dado
uma freada no trem, e o trem tinha parado.
Quer dizer, ficou entendido perfeitamente que, quando
fizessem a política deles, eu não criaria dificuldades. Mas quando se
tratasse de um interesse católico, a coisa ia até qualquer conseqüência.
4. O susto de Dom Duarte
Dias depois estive com Dom Duarte e contei a ele a
reunião [118].
Ele tinha uma dignidade episcopal extraordinária. Eu
ia contando e ele ouvindo com um ar marmóreo (aquela estátua que há em
frente à igreja Santa Cecília não dá nem de longe idéia do que ele foi).
Ele era muito magro e cruzava uma perna sobre a outra
de tal maneira que a perna que cruzava ainda batia no chão também. Ele
fechava a cara, mas não controlava o pé. E pela batida do pé eu percebia
se ele estava gostando ou não. De maneira que eu, discretamente, tomava o
pé como sismógrafo quando ele cruzava as pernas.
Eu narrei tudo desde o início da reunião: quem falou
isso, quem falou aquilo, quem disse que conhecia minha família. Ele
ouvindo tudo, achando normal, batendo o pé.
Quando chegou no tal assunto e eu disse: “O
Alcântara Machado propôs assim”, ele aproximou as mãos do coração como
quem pega a cruz (ele estava velho e morreria pouco tempo depois de doença
cardíaca). Eu disse que não aceitei o ponto da separação da Igreja do
Estado.
Ele disse:
— Vossemecê disse isso?
— Disse. E o Alcântara Machado propôs isso assim e
eu aceitei.
Ele deu um suspiro de alívio.
Quer dizer, era para a Religião uma vitória brilhante [119].
Como era a primeira vez que eu agia em nome da Cúria,
como candidato, gostei que ele visse que eu dava prova de firmeza, mas não
de uma firmeza estúpida. E que eu sabia ladear também as coisas. E já que
o jeitoso Alcântara Machado tinha encontrado essa solução, eu tinha sabido
ver que a solução era boa e tinha aceito a coisa [120].
Nesse período tinha havido uma coisa verdadeiramente
complicada.
Eu estava fazendo a minha propaganda eleitoral, ainda
antes da morte do Dr. Estêvão Rezende, quando apareceu a querela do José
Carlos de Macedo Soares contra a minha pessoa.
José Carlos de Macedo Soares era íntimo e fraternal
amigo de Dom Duarte, desses de entrar na casa de Dom Duarte quando
quisesse. De outro lado, ele era muito ligado ao Getúlio e levava a fama
de católico praticante [121].
Até tinha o Santíssimo Sacramento na casa dele.
Ele estava na Europa quando foi formada a Chapa Única [122].
Voltando, encontrou-me candidato a deputado indicado
pela Igreja [123].
E ele achou um desaforo o fato de ele, um “grande católico”, não ter sido
indicado como candidato pela Igreja, mas pela Associação Comercial [124].
Foi procurar Dom Duarte e disse que ele fazia questão
fechada de ficar presidente da Liga Eleitoral Católica, e a Liga Eleitoral
Católica passar a ser dirigida por ele.
Dom Duarte reuniu a direção da Liga e disse: “Bem,
os senhores resolvam”.
Nós nos reunimos e eu comuniquei a Dom Duarte que a
Liga tinha resolvido que, se ele, Dom Duarte, quisesse, nós obedeceríamos
e deixaríamos os cargos de direção da Liga. Eu mesmo iria trabalhar até
como datilógrafo da Liga, para auxiliar o serviço. Mas ter participação na
diretoria com um homem como o José Carlos de Macedo Soares, não.
Dom Duarte comunicou isto ao Macedo Soares. E o
Macedo Soares pulou, injuriou Dom Duarte, disse as piores coisas, brigou e
cortou relações.
Isto ocasionou até uma vinda do Tristão de Athayde do
Rio de Janeiro para tentar consertar as relações de Dom Duarte com o
Macedo Soares. Não adiantou nada.
De outro lado, tendo Dom Duarte ido a Itaipava passar
alguns dias com Dom Leme, Macedo Soares ameaçou escrever um artigo contra
Dom Duarte.
Eu então telegrafei para Dom Duarte avisando-o da
ameaça. Dom Duarte veio para São Paulo. Foi uma estralada medonha entre os
dois [125].
Mas a minha candidatura estava lançada. Não era mais
retroagível [126].
6. Tentativa de impugnação da candidatura
Apareceu outra dificuldade. Eu estava vendo que havia
quem trabalhasse para criar dificuldades [127].
Era o resultado do papel de espadachim que eu tinha
feito na primeira reunião da Chapa Única, em que fui obrigado em
consciência a tomar aquela atitude.
O fato é que, certo dia, apareceu no alto dos jornais
diários: “Impugnada a candidatura do Senhor Plinio Corrêa de Oliveira”.
Subtítulo: “Não tem idade suficiente para ser deputado.”
Pela lei eleitoral, era preciso ter 24 anos
completos. E eu tinha ainda 23, quando fui indicado como candidato.
O problema era: um homem que tem 23 anos quando se
registra como candidato a deputado, mas que terá 24 quando a eleição se
realizar [128],
pode ou não ser deputado? [129]
Como se deve interpretar a lei? [130]
Eu estranhei, indignei-me muito, mas o que fazer?
Eu vi que precisava de um arrazoado, de um parecer
jurídico a respeito de como interpretar a lei eleitoral, mas feito por um
jurista de grande fama, de grande nomeada, para encostar o Tribunal
Eleitoral na parede, e por esta forma obrigar o Tribunal a declarar que o
meu direito era indiscutível [131].
Estava neste impasse, quando recebo um telefonema em
minha casa: era de um dos candidatos a deputado, que me mandava dizer que,
se eu quisesse, arranjava-me o parecer de um grande jurisconsulto a favor
do meu ponto de vista.
Eu disse: “Sim, claro, de bom grado”.
Ele: “Passe pela minha casa às tantas horas que eu
trato da questão com você”.
Eu passei pela casa dele, conversamos um tanto e
perguntei:
— Bem, mas quem é o jurisconsulto?
— É o Professor Sampaio Dória, da Faculdade de
Direito (tinha sido meu professor de Direito Constitucional): você
quer o parecer dele?
— Quero!
Ele foi ao telefone e combinou com o Sampaio Dória [132]
um encontro no dia seguinte, que era feriado, num café da rua XV de
Novembro, quase em frente à Secretaria da Educação, perto do Pátio do
Colégio.
O café se chamava, se não me engano, Café Guarany.
Ele falaria lá comigo, explicando-me o caso.
Fui para o Café Guarany na hora certa.
Cumprimentamo-nos, sentamo-nos. Sampaio Dória parece que se lembrava de
mim.
E entramos no assunto.
Disse ele:
— Eu acho que você tem toda a razão. Eu vou fazer
um parecer para você.
E depois acrescentou:
— Eu sou contrário à participação da Igreja na
política. Mas, no caso concreto, como está o Brasil, eu sou favorável. E
por isso eu me ofereço para dar um parecer a seu favor. Amanhã, passe a
tal hora assim, e pegue o parecer.
Mandei pegar o parecer, que estava excelente,
completamente a meu favor.
Tratava-se agora de mandar o parecer para o Tribunal
Eleitoral no Rio de Janeiro. O Rio era a capital federal naquele tempo.
Foi para lá o Dr. Paulo Barros de Ulhôa Cintra, que era um ano e meio mais
moço do que eu, mas muito hábil.
* *
*
Certa noite eu estava em casa jantando com um amigo,
presidente da Congregação de Santa Cecília, de uma família dinamarquesa
rica aqui de São Paulo. Ele se chamava Svend Kok. Estavam presentes também
outras pessoas.
De repente, vem um telefonema do Rio:
— ‘Seu’ Paulo quer falar com o Dr. Plinio.
Disse eu: “É o assunto do Tribunal Eleitoral.
Vamos lá ”.
Não me lembro quem era no Rio de Janeiro que estava
levantando oposição à minha candidatura. Eu esbravejei no telefone,
dizendo que se devia responder de tal e tal jeito.
O Paulo ia-me dando os argumentos levantados por
aquela pessoa. Quem ouvisse a conversa, vendo a minha réplica,
compreenderia quais eram os argumentos do meu adversário no Rio.
Minha mãe, perto do telefone, ia ouvindo com toda a
atenção. O Svend Kok também.
E aqui aconteceu uma coisa curiosa em relação ao
Svend Kok.
Quando na conversa telefônica transpareciam aquelas
coisas contra mim, o Svend esfregava as mãos. Como eu estava atento àquele
assunto todo, que era muito importante, nem prestei atenção ao que o Svend
estava fazendo. Mas notei que minha mãe lhe tinha dito alguma coisa. Notei
também que ele respondeu amavelmente.
No fim da noite, disse-me minha mãe:
— Você percebeu o que se deu com o Svend, enquanto
você falava ao telefone?
— Não, não notei bem.
— Quando vinha a notícia do argumento que lhe
prejudicava, ele esfregava as mãos como quem torcia contra você. Eu então
eu lhe disse: "Svend, eu pensei que você fosse amigo do Plinio. Será que
eu estava enganada e que devo reformar o meu juízo"? Ele então respondeu:
"Não, Dª Lucilia, eu faço assim antegozando a resposta que Plinio vai
dar".
Essa atitude dele já era prenunciativa da atitude
triste que mais tarde ele iria ter, por ocasião do meu embate com os erros
da Ação Católica.
Dias depois, notícia nos jornais: “Tribunal
Eleitoral do Rio de Janeiro deu ganho de causa ao Senhor Plinio Corrêa de
Oliveira” [133].
1. Primeira experiência eleitoral
Preparam-se as eleições e eu não tinha a menor idéia
da votação que eu teria.
Eu percebia que o movimento católico era grande. Mas
eu não sabia se aqueles eleitores, na hora de votar, seguiriam ou não a
orientação da Liga Eleitoral Católica [134].
Além disso, não tinha nenhuma idéia de qual era o
eleitorado real da Liga Eleitoral Católica [135].
Não tinha também a menor idéia da votação que conseguiria [136]
e não sabia que parte do eleitorado levavam consigo os outros três
candidatos indicados pela LEC [137].
Era certo que eu nunca havia feito a política dos
homens. Mas já há tempos havia me adestrado no bom combate das lutas de
Deus, fazendo parte das Congregações Marianas, fundando a Ação
Universitária Católica e escrevendo há um bom tempo na imprensa católica.
Sobretudo eu tinha a convicção de que minha
candidatura não era a candidatura de Plinio Corrêa de Oliveira, mas sim a
de todo o laicato católico, que "non aestimator meriti, sed veniae" [138],
eu representava no momento [139].
A única jogada política que eu fiz foi passar uma
circular explicando para as nossas diretorias do interior que a Liga
Eleitoral Católica tinha entrado na Chapa Única e dando os motivos.
Tudo isso deve estar nos arquivos da Liga Eleitoral
Católica, na Cúria Metropolitana, pois quando a Liga fechou eu entreguei
os documentos da LEC para a Cúria [140].
* *
*
|
"Eu já
manifestava nessa época dotes de orador..." |
Nenhum dos candidatos indicados pela LEC para a Chapa
Única havia me procurado para pedir apoio. E eu, que estava fazendo minha
primeira experiência eleitoral, me julgava um candidato fraquíssimo, de 23
anos, não tendo quase tempo de fazer relações fora do meio católico.
Então pensei: Vou fazer a minha propaganda, e eles
fazem a deles [141].
Eu já manifestava nessa época dotes de orador, pois
tinha começado a falar por toda a parte há dois anos [142].
E fazia discursos mostrando que se deveria seguir a orientação da Liga
Eleitoral Católica, mostrando que vantagens havia naquelas reivindicações
para os católicos. E concluía dizendo que os católicos deveriam votar nos
candidatos que a Liga indicasse [143].
2. Bispos apóiam
Os Bispos, com medo de sofrerem uma derrocada,
encamparam a tal ponto a minha candidatura, que a reunião da Liga
Eleitoral Católica era feita dentro das igrejas. Por respeito, corriam um
pano para separar o Santíssimo Sacramento do povo, e a igreja ficava
transformada num salão, onde então podiam falar os leigos. E eu, muitas
vezes falava do próprio púlpito; ou então da mesa colocada na capela-mor.
Não compareciam padres, para marcar a não-intervenção
do Clero, mas a propaganda se fazia dentro da igreja. Mais uma vez,
bonomia brasileira. E enchia de gente.
Eu fiz campanha em vários bairros de São Paulo,
igualmente em igrejas. Mas fiz campanha notadamente no interior, e a zona
onde tomei mais contatos foi aquela zona em volta de Aparecida, então
pertencente à Diocese de Taubaté.
O Bispo, Dom Epaminondas Nunes de Ávila e Silva [144],
homem com fama de santidade, muito sagaz no bom sentido da palavra, era
verdadeiramente muito meu amigo. Eu esperava de Dom Epaminondas um efetivo
e dedicado apoio. Por causa disso, especializei minha campanha naquela
zona.
Depois, Aparecida naquele tempo se irradiava muito
mais. Era a capital daquela zona, porque as comunicações com São Paulo
eram muito difíceis [145].
* *
*
Eu detestava viajar
- até hoje não gosto - e
ainda mais viajar de trem. O que eu viajei nesse tempo de propaganda da
LEC foi uma enormidade, em todas as direções. Algumas viagens Dr. Paulo
Barros fez comigo [146].
Eu me hospedava na casa paroquial, fazia discursos,
seguia viagem, mas era sempre discursos em igrejas.
Discurso em praça pública não fiz. Mas era
absolutamente como se fosse discurso em praça pública, com tropos de
oratória como se gostava naquele tempo. Muito menos conversado do que
hoje, muito menos causerie do que hoje e muito mais discurso,
porque naquele tempo se gostava desse gênero.
Terminado o ato, o povo batia palmas como para todo
discurso [147].
Como eram meus discursos?
Eu chegava e falava. Eu nunca fui de preparar muito
as coisas. O que na hora me parecia cabível, mais adequado de dizer, eu ia
falando [148].
1. Dia tranqüilo
No dia da eleição, votei cedo. Era muito fácil votar,
porque sendo candidato, tinha o direito de chegar na cabine eleitoral e
furar qualquer fila.
Depois fui com o meu staff para o escritório,
para estar à disposição do que desse e viesse. E passei o dia lá, até
acabarem as votações.
Era feriado e um dia relativamente tranqüilo na Liga.
Apenas, a um certo momento, o telefone chama e eu
ouço uma voz cava que me diz:
— Quem fala?
Pensei de mim para comigo: conheço essa voz, mas não
estou reconhecendo...
Respondi:
— É da Liga Eleitoral Católica.
— O Dr. Plínio está?
— É ele quem está falando.
— É o Arcebispo que fala.
Eu pensei que fosse brincadeira de algum rapaz das
congregações Marianas e disse:
— Deixe de brincadeira e diga logo o que é que
você quer.
Ele disse:
— É o Arcebispo!
Aí, pelo tom de voz, reconheci que era ele.
Eu disse:
— Ah, Sr. Arcebispo, me desculpe.
Ele passou por cima do equívoco e disse:
— Acabo de receber a notícia de que estão faltando
cédulas em Campinas (era intriga de alguém) e que eleitores que
estão procurando cédulas para votar não encontram. Estou aflitíssimo por
causa disso.
— Não, Sr. Arcebispo, a remessa para Campinas foi
feita normalmente, como para todas as sedes de Dioceses do interior. Essas
sedes de Dioceses distribuem para as outras cidades. E isto foi feito.
— Pois me dizem de fonte muito segura [149]
que Vossemecê descuidou completamente do setor de Campinas, e que o
setor de Campinas está sem cédulas, e que a LEC em Campinas fracassou. O
que é que há de real?
— Sr. Arcebispo, um instantinho eu já vou lhe dar
a informação.
Fiz uma ligação para Campinas e veio a notícia de que
estava tudo normal. Era uma intriga [150].
Telefonei ao Sr. Arcebispo e disse:
— Sr. Arcebispo, acabo de receber telefonema de
Campinas, de Fulano de tal etc. (era pessoa que ele conhecia, e pessoa
de toda confiança) informando-me que tudo corre normalmente.
Ele me disse: — Ah bom, então está bem etc.
Foi o único incidente do dia.
Terminaram as eleições, terminou a votação com muita
calma, e eu fui assistir o mês de Maria. Ainda deu tempo.
Depois fui para a sede da Congregação, e por fim para
casa. Foi portanto um dia comum [151].
2. Primeiros sinais dos resultados
Dias depois eu encontrei com um candidato, Azevedo
Marques [152],
antes de começar a apuração. Ele era um senhor idoso. Veio ao meu
encontro:
— Oh! aqui está o mais votado de nós, o candidato
já eleito.
— Oh! Dr. Azevedo Marques, eleito é o senhor, um
homem já conhecido, ilustre e não um novato como eu.
— Não, eu tenho informações. Todas as Filhas de
Maria do interior do Estado votaram em você [153].
Bem, aparece em casa um primo que tinha sido mesário.
Todas as seções eleitorais eram marcadas por uma letra do alfabeto: letra
N é em tal prédio, letra tal em tal outro prédio etc. E ele era da letra
M.
Ele entrou em casa e disse:
— Eu fui mesário, e tudo quanto é Maria votava lá [154].
Maria de Lourdes, Maria Aparecida, Maria Salete, todas votavam lá. E elas
só queriam votar no Plinio! E quando acabavam os votos do Plinio, elas não
votavam em outro: ficavam paradas dentro da cabina, até que eu mandasse
vir mais cédulas do Plinio, do depósito em cima (vejam onde é que ele
guardava isso). Aí recomeçava a votação. De maneira que, pela minha
cabine, o Plinio está estrondosamente eleito [155].
3. Apuração das urnas e queixas dos outros candidatos da LEC
Começam a abrir as urnas, e foi aquela história:
Plinio Corrêa de Oliveira, Plinio Corrêa de Oliveira. Todas as urnas
Plinio Corrêa de Oliveira, de cá, de lá [156].
E de todos os lados do Estado, foguete: “Plinio Corrêa na ponta” [157].
E a votação foi crescendo.
Os três outros candidatos foram à Cúria interpor uma
queixa: “A LEC não trabalhou por nós”.
Monsenhor Gastão Liberal Pinto me chamou e disse:
— Olhe, Rafael Sampaio Vidal vai ser derrotado. O
Alcântara Machado está tendo a metade dos seus votos. Um homem ilustre, o
Hipólito do Rego, está mal conseguindo a eleição por Santos. Como é que
você fez essa distribuição dos votos?
— Monsenhor Gastão, vou ser inteiramente franco.
Usei o seguinte critério: ninguém me procurou, ninguém me pediu um voto,
nem o senhor pediu para trabalhar por ninguém. Eu julguei que os outros
estavam muito seguros de sua votação. Seguro não estava eu, um candidato
novo. Se o trabalho deu resultado, estou aqui para servi-lo.
— Está bem, está bom. E o Rafael Sampaio Vidal?
— Ele não se moveu! Quem não se move... Há um
ditado romano: “Tarde venientibus ossa” — “Para quem chega
atrasado, os ossos” [158].
* *
*
Uma coisa eu não disse para Monsenhor Gastão, mas era
a pura realidade. Dos quatro candidatos, o único católico militante era
eu. Os outros três eram políticos que, no seu foro privado, seriam ou não
católicos. Os outros eu não conhecia, a não ser um deles, que eu via
freqüentar a casa de um parente e que era dos tais católicos no mundo da
lua.
Quando se tratou de pleitear os interesses da Igreja
em face do Estado, o único que estava disposto a lutar pela causa católica
até o sangue era eu.
O resultado é que toda a votação dos católicos se
concentrou em minha pessoa. Se levei toda a votação católica era porque eu
era católico e representante da Liga Eleitoral Católica. E o que se podia
esperar de mim na minha idade, eu fiz. E assim fiquei na frente.
4. Primeira comunicação da vitória
A primeira notícia do reconhecimento oficial que tive
de minha eleição não foi dado por minha mãe. Minha mãe acompanhou tudo
muito serena, muito comprazida, manifestamente alegre, mas muito discreta,
e muito desapegada, sobretudo.
E eu percebia que ela queria me ensinar que não nos
devemos apegar a cargos, a coisas dessas; que acima de tudo está a
consciência e o serviço de Deus. Ela recebia bem a notícia, mas
comedidamente.
Eu sempre muito plácido, muito sereno, nunca me
levantei mais cedo para pegar os jornais e ver qual era a minha votação.
Eu dormia até passar a vontade de dormir, daí me levantava, me preparava
para ir comungar (naquele tempo a comunhão era só de manhã e eu era
obrigado a ficar em jejum desde a meia-noite); ia comungar e voltava para
tomar café.
Antes de ir comungar, quando havia tempo (porque a
partir de dez horas não se comungava mais), eu dava uma vista d’olhos nos
jornais; se não, eu dava essa vista d’olhos quando voltava da comunhão.
Eu estava saindo para ir comungar, e minha irmã, que
se encontrava na sala onde se expunham os jornais, deu um sorriso, simulou
uma espécie de reverência e disse: “Senhor Deputado, meus parabéns”.
Eu não entendi a brincadeira e perguntei: “Como
assim?”
Ela, muito viva, um espírito muito mais ágil do que o
meu, disse:
— Você não viu? Você já passou o número de votos
necessário para ser deputado. Você já é deputado.
Eu disse: “Eu não quero é perder a comunhão, está
na hora”, e fui correndo comungar. Foi assim que eu soube que tinha
sido eleito deputado [159].
5. Candidato mais novo e o mais votado
Eu já estava com a eleição garantida, mas ainda iam
aparecendo todos os dias votos, votos e mais votos das várias cabines
eleitorais, até chegar ao total, exorbitante para a época, de 24 mil votos
para mim [160].
|
Indicado
pela LEC na Chapa Única por São Paulo Unido, Plinio Corrêa de
Oliveira foi o deputado mais votado do Brasil, obtendo o dobro dos
votos do segundo colocado. |
Isso representava, para a população de São Paulo
daquele tempo, um resultado enorme [161].
Era o dobro do segundo deputado mais votado. Portanto, era prova do
prestígio de nossa corrente, uma coisa fantástica. Uma Liga Eleitoral
Católica organizada há dois anos alcançava um resultado sem precedentes [162].
Eu era o candidato mais moço do Brasil, e, ao mesmo tempo, o candidato
mais votado.
Os jornais noticiaram esse resultado sem elogios,
apenas constataram o fato. Mas o fato era sumamente prestigioso para as
forças católicas. De maneira que comentassem ou não os jornais, dava na
mesma.
* *
*
Eu saía à rua e encontrava candidatos da Chapa Única,
mas que não foram indicados pela LEC, que me diziam: “Oh! Plinio, como
vai? Meus parabéns. Que vitória brilhante! Nunca ninguém pensou que você
tivesse essa votação. Você sabe? Fulano, Beltrano e Mengano, que foram
derrotados, estão até sentidos com você. Porque você devia ter repartido
com eles os votos da Liga Eleitoral Católica. Aí teriam entrado também.
Eles não entraram porque você tomou toda a votação da Liga” [163].
José Carlos de Macedo Soares não tinha sido eleito.
Era da Chapa Única, candidato pela Associação Comercial, mas não conseguiu
a vitória por causa do sistema eleitoral, que não admitia que o voto de
legenda favorecesse outros deputados [164].
Nisto houve o caso de umas urnas anuladas, que
levaram à convocação de uma eleição suplementar.
E o Jose Carlos de Macedo Soares tempesteando:
— Os católicos elegem esse meninote, esse
franguinho... E eu, um homem célebre, fui derrotado. Eu faço questão que
nessas eleições suplementares a LEC trabalhe por mim.
Dom Duarte chamou-me:
— Olhe, o senhor deve estar muito queixoso com o
Soares, ele anda falando muito mal do senhor, mas eu queria pedir-lhe que
o senhor trabalhasse a favor dele.
— Senhor Arcebispo, com todo o empenho. Vou me pôr
na votação pelo José Carlos a fundo.
Trabalhei, e graças a Deus eu pude dar essa prova de
disciplina: o José Carlos entrou para deputado, o que o distendeu um pouco
em relação a mim [165].
6. Convite para ser diretor do “Legionário”
O Legionário foi fundado em 1927, bem antes de
eu ser diretor dele [166],
mas eu já era, há anos, desde 1929, seu colaborador [167].
Era no seu início um mensário paroquial, e nascera em um período ainda
combativo, em que os inimigos da Igreja eram declaradamente inimigos, e os
católicos eram declaradamente católicos, e as relações entre estes e
aqueles eram polêmicas [168].
Tornando-me deputado, convidaram-me para ser diretor [169].
Convite compreensível, uma vez que o Legionário era um órgão de
congregados marianos, e eu era um dos líderes mais conhecidos das
Congregações Marianas [170].
Eu aceitei e disse: “Podem pôr o meu nome desde
já. Mas só exercerei a direção quando acabar meu mandato de deputado, não
é possível fazer tudo junto. Mas, quando deixar de ser deputado, exercerei
o cargo” [171].
1. Papel providencial do livro de Dom
Chautard
Passaram-se alguns meses antes de reunir-se a
Constituinte, porque naquele tempo as coisas se faziam devagar [172].
Confesso que o livro chave para mim, nesse período,
não foi só o de
São Luís Maria Grignion de Montfort (sobre a sagrada
escravidão a Nossa Senhora), foi também o de Dom Chautard,
A alma de
todo apostolado. Porque Dom Chautard serviu de muralha contra a
grande, a tremenda tentação a que eu poderia estar exposto nesse tempo,
que era a tentação do amor próprio [173].
Qualquer um coloque-se na minha situação: 24 anos, o
deputado mais moço e o mais votado do Brasil, com toda a publicidade
colocada em cima de mim como uma espécie de celebridade. E com uma
possibilidade de carreira indefinida à minha frente.
De outro lado, sentindo em torno de mim o coro da
bajulação que surgia, com fama de muito bom orador, isto, aquilo, aquilo
outro [174].
O instinto humano leva o indivíduo a ficar vaidoso:
“Que colosso eu sou! Como eu, moço, já consegui tantos milhares de
eleitores!” [175]
E viria logo depois o demônio com um oferecimento: [176]
— Quem sabe você dar um jeito e se pendurar na
política? Veja a vantagem de ser deputado: honras oficiais por toda a
parte [177].
Não estou pedindo que você faça nenhuma ação má... Não, eu só lhe peço,
para lhe dar isto, que você deixe o meio mariano no qual vive, e passe a
viver nesse meio. Mas, claro! conservando seu vocabulário limpo,
conservando seus costumes sem mancha, conservando o que você quiser, mas
venha viver no meio deles, no meio
deles, no meio deles! [178]
Nas ocasiões em que aquele aroma de importância me
poderia subir ao espírito, eu me lembrava de Dom Chautard. Era o meu anjo
da guarda que me fazia lembrar dele. E eu dizia: “Não, eu tenho que
fazer o contrário. E se tiver que sacrificar a minha vida, a minha
carreira política, eu a sacrifico a qualquer hora, para viver
exclusivamente para a Igreja Católica!” [179].
Se eu não agisse assim, o resultado seria um
embriagamento de mim para comigo mesmo. E na hora em que me fosse posta a
alternativa: apostatar ou renunciar a ser reeleito, teria optado pela
apostasia. Foi o livro de Dom Chautard que me auxiliou [180].
Dom Chautard punha os pingos nos "is": ou o apóstolo
é completamente desapegado, não ambicionando carreira e visando
exclusivamente o serviço da Igreja, ou a pessoa enterra a causa que ela
quer servir.
Eu via bem que vitória da Igreja na Constituinte
poderia encerrar a atmosfera de laicismo que tomava conta do Brasil, e
poderia afirmar de um modo esplêndido a força da Igreja, quarenta anos
depois de separada do Estado.
Mas essa vitória, no que tocava a mim, consistia em
que eu não consentisse em nenhum movimento de vaidade, por menor que
fosse. E em estar pronto a entregar meu cargo a qualquer momento, a
renunciar a minha carreira, a voltar a ser zero, desde que a causa
católica o exigisse.
Eu via, portanto, pela frente, um enorme apostolado a
fazer. Mas sabendo que essa missão trazia consigo, em germe, uma bênção e
uma maldição. Uma bênção se eu fosse inteiramente desapegado, uma maldição
se eu fosse apegado.
E começou então a luta contra o amor próprio. Todo
mundo concebido no pecado original tem impulsos de amor próprio. Era bem
evidente que eu os tinha também [181].
A capital do país era o Rio de Janeiro e a
Constituinte se reuniria lá.
Eu estava certo de que, chegando ao Rio, eu deveria
estar preparado para discussões, polêmicas a respeito dos pontos
levantados pela Liga Eleitoral Católica.
E li então, nos meses que decorreram da eleição até a
minha posse, muitos livros católicos a respeito do divórcio e outros
temas, para ir com uma argumentação cerrada. A eficácia do mandato que me
era confiado pedia isto.
Não podia imaginar que justamente nesse terreno eu
iria ser cerceado e impedido de me manifestar, como direi adiante [182].
3. Apoio a Armando Sales por orientação de Dom Duarte
Mas aqui em São Paulo a política não parava.
Havia um governador militar não-paulista, o já
referido João Alberto Lins de Barros, e era preciso substituí-lo por um
governador civil, nomeado pelo Getúlio.
Começou a partir daí uma série de problemas a
respeito da designação do governo de Estado.
O Getúlio queria a indicação de um paulista assinada
por todos os deputados de São Paulo, para ter garantia de que esse
governador representasse São Paulo.
Mas o documento deveria ser ultra confidencial,
porque São Paulo oficialmente ainda estava rompido com Getúlio, e o
primeiro passo da aproximação era o Getúlio nomear um governador civil
paulista.
Então os políticos paulistas designaram Armando Sales
de Oliveira [183],
que depois foi candidato à Presidência da República e posteriormente foi
expulso pelo Getúlio.
Como Dom Duarte queria o Armando Sales, eu assinei a
lista também.
* *
*
Pouco depois de nomeado, o Armando Sales deu um
banquete aos deputados paulistas em um grande clube de São Paulo.
Eram restos da República aristocrática. Ele, aliás,
era um homem de muita linha. Os deputados deviam comparecer de smoking.
Havia razões para eu ir, mas havia razões para eu não
ir. Então mandei um telegrama agradecendo com urbanidade o convite,
dizendo que me solidarizava com a atitude de simpatia de meus ilustres
colegas em relação a ele.
Eu soube depois que, como ato inicial do banquete, um
orador levantou-se e disse: “O deputado Plinio Corrêa de Oliveira, que
não pôde comparecer por motivo de saúde, manda ao senhor Interventor
Federal o seguinte telegrama ...”
E o telegrama foi lido e depois reproduzido por
vários jornais [184].
4. A partida para o Rio: numeroso público na Estação
Nas vésperas da abertura da Constituinte, anunciaram
que todos os deputados eleitos por São Paulo iriam juntos para o Rio de
Janeiro, em um trem de luxo que fazia o trajeto São Paulo-Rio e se chamava
Cruzeiro do Sul [185].
Acontece que nesse dia eu não poderia ir, pois um
grupo de congregados marianos mais proeminentes me havia oferecido um
jantar [186]
marcado para dois ou três dias depois [187].
Era um jantar só de congregados marianos, que se realizou numa das
melhores confeitarias de São Paulo. O dono era um velho senhor italiano,
que a cedeu de muito bom grado.
|
Jantar com
Congregados Marianos muito provavelmente semelhante ao narrado
acima. |
Foi um jantar que encheu a confeitaria [188].
Saiu notícia com fotografia dos oradores e
pormenores. E nessa notícia se dizia que eu iria partir para o Rio da
Estação do Norte dia tal, às tantas horas.
No dia aprazado (dia 13/11/33), fui para a Estação do
Norte e, quando cheguei lá, a Estação estava cheia de gente. Na
plataforma, vivas, palmas.
Embarcamos no trem minha mãe, meu pai, minha irmã e
eu. Os membros de minha família se acomodaram na cabine, mas eu permaneci
naquela entradinha do vagão, agradecendo com o chapéu às pessoas ali
presentes, enquanto o trem se afastava. E logo depois fui dormir também [189].
1. Minha chegada ao Rio
Cheguei de manhã ao Rio de Janeiro, o Tristão de
Athayde esperando-nos, muito amável, muito gentil. Ele era muito
cavalheiro.
Descemos, ele logo apresentou-se, ofereceu o braço a
minha mãe e saiu com ela como se estivesse numa sala de baile.
Eu olhava em volta para ver se aquela cena causava
estranheza, porque em São Paulo causaria. No Rio de Janeiro não causou
nenhuma. Mas ele fazia aquilo com muita elegância.
Para manter a representação, fui com Mamãe, Papai e
Rosée (minha irmã) para o Hotel Glória, de grande luxo naquele tempo [190].
Para dar a minha mãe uma satisfação completa,
arranjei para ela um quarto magnífico, dando de frente para a Praia do
Flamengo. Naquele tempo, a água do mar chegava quase até o paredão do
hotel.
Eram noites muito bonitas, e ela tinha um gosto
enorme por panoramas. Jantava conosco embaixo e depois subia e permanecia
no quarto vendo a lua prateada bater na praia, observando as palmeiras.
Ela se enlevava muito com coisas desse gênero [191].
E eu queria proporcionar a ela a estadia a mais
confortável possível, tanto mais que seria curta, porque a mãe dela (Dª
Gabriela) estava muito mal de saúde. Morreu pouco depois. E ela era uma
filha extremosíssima [192].
Meus pais e minha irmã permaneceram dois ou três dias
comigo no Rio, e depois voltaram. E eu fiquei para trabalhar na
Constituinte [193].
2. Episódio com Heitor da Silva Costa
Lembro-me de meu encontro com Heitor da Silva Costa
logo depois de chegar ao Rio. Telefonei a ele dizendo que já estava no Rio
e convidei-o a passar pelo Hotel Glória para nos vermos.
Era uma noite de calor medonho e ele propôs que
fôssemos conversar nos bancos que havia numa espécie de jardinzinho, entre
o Hotel Glória e o mar.
Eu me lembro do jeito dele se sentar e me dizer:
— Então, Plinio! Que criatura privilegiada é o
Alceu! E como eu quisera ser o Alceu!
Eu, para ser amável, disse:
— Mas, Dr. Silva Costa, o senhor tem tanta coisa
para se alegrar de ser o senhor mesmo!
Ele disse:
— Tanta não tenho. O Alceu e eu temos um jovem
amigo Plinio, e o Alceu é de tal maneira uma criatura de eleição, que o
jovem Plinio telefona ao Alceu avisando que ia chegar ao Rio e não
telefona para mim.
Aí me lembrei que tinha me esquecido de avisar o
Silva Costa: “Meu Deus! Como vou me sair dessa?”
Fiquei muito incomodado. E saí-me com aquelas
desculpas que a gente diz numa emergência assim e que não querem dizer
nada.
Eu vi que ele me olhou com afeto, teve pena do
incômodo em que eu estava, e me disse:
— Não falemos mais nisso, vamos mudar de assunto,
e tocou a conversa para outro lado [194].
3. Ambiente da sessão de abertura
No dia da inauguração da Constituinte, fomos todos
para lá [195].
Chegando ao Palácio Tiradentes (prédio da atual
Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro), havia duas entradas
diferentes, uma para os deputados e outra para as famílias dos deputados,
as quais tinham lugar em tribunas de honra, junto com o corpo diplomático
e outras personalidades de relevo, na parte mais alta, em uma espécie de
camarote.
Entrei e me apresentei ao presidente da Constituinte,
Antonio Carlos Ribeiro de Andrada [196].
Dirigi-me para a bancada paulista e ali pude formar
uma idéia da situação que, sob alguns aspectos, me esperava lá [197].
O paulista era naquele tempo (hoje já não é mais)
muito cerimonioso, gostando do protocolo, da educação, da grande linha. E
como era o Estado mais rico do Brasil, naturalmente todos se vestiam
melhor, tinham os mais bonitos automóveis, hospedavam-se nos grandes
hotéis, levavam uma grande vida.
E eu tinha recebido recado da liderança, ou seja, de
Alcântara Machado, que eu deveria apresentar-me de fraque e cartola [198].
E me encontrei em dificuldade.
Eu nunca fizera questão de me vestir bem. Sempre fui
desatento e não tinha a menor idéia sobre que modas, que roupas eu usava.
Por exemplo, eu não tinha noção se uma roupa caía bem em mim ou não.
Então minha irmã se incumbiu de escolher as roupas,
as qualidades de camisas e outros apetrechos. E, pelos comentários que
ouvi, desempenhou-se eximiamente da tarefa, porque ela era ultra entendida
nesse gênero de coisas, que são o domínio próprio das senhoras [199].
* *
*
Naquela inauguração, todos os deputados paulistas
estavam de fraque preto engomado, abotoaduras de ouro, gravatas prateadas
como se usava naquele tempo, calças de casimira inglesa listradas de cinza
e preto.
|
Sessão
plenária da Constituinte. Acima, Plinio, com 24 anos, deputado mais
jovem da Assembléia |
Já os deputados dos outros Estados vestiam roupas
mais comuns, de passeio [200]
e usavam chapéu de feltro (naquele tempo, todo mundo usava chapéu). Os
paulistas eram os únicos que tinham ido de cartola [201].
Aquele grupo paulista, todo alinhado,
teso, de cartola, era o símbolo da antiga ordem de coisas. A bancada era
constituída quase exclusivamente por membros da São Paulo antiga e
pelo menos oficialmente antigetulista. Antigetulista até o
fundo da alma era eu, em todo caso.
E mais ou menos todo o resto da
Constituinte era getulista [202].
Para completar, deram as duas primeiras fileiras aos
deputados paulistas. Era, portanto, a posição de máxima visibilidade, à
direita do presidente da Constituinte [203].
Do outro lado, as outras bancadas. E na extrema
direita, a bancada do Rio de Janeiro, com alguns homens célebres, muito
educados, finos: Fernando Magalhães, Leitão da Cunha e outros, mas também
de roupa comum.
A bancada paulista se cercava de certa importância,
mas não comunicava simpatia. Sabemos o que é um aparecer de fraque e
outros de paletó e roupa comum: o de fraque impõe-se mais, mas na hora da
simpatia, é discutível... [204]
Eu compreendi tudo quanto isso poderia trazer
consigo: prestígio, naturalmente. Mas uma certa ponta de ressentimento.
No entanto, seguindo a orientação do líder da
bancada, eu coloquei fraque e cartola.
Por cima do fraque costumava-se pôr condecorações. Eu
não as tinha, era novinho em folha. Nenhum governo havia me condecorado...
Não tive dúvida: peguei o distintivo de congregado mariano e pus ali!
Bancada paulista na Constituinte de
1934
* *
*
Eu trazia o meu diploma de deputado, dado pelo
Tribunal Eleitoral de São Paulo.
Tudo naquele tempo era mais bonito. Esse diploma era
feito de um pergaminho lindo, escrito com caracteres bonitos, em fórmula
solene, com selo de lacre. Hoje seria um papelucho com um carimbo qualquer [205].
4. Holofotes, fotografias, aparece o Getúlio
A sala de sessões estava toda bem ornamentada, muito
bem arranjada, florida.
De repente as luzes se apagam, começam a colocar
holofotes de cinema, a fotografar a sessão, com o Antonio Carlos
presidindo.
Afinal aparece o Getúlio.
Todos tivemos que nos levantar. Era o Chefe de Estado
que chegava, e era natural que eu também me levantasse.
Ele fez um discursinho qualquer, em que nem prestei
atenção, com uma mãozinha colocada no colete (era o sistema dele), numa
voz incolor e olhando para tudo como quem não dava importância nenhuma ao
que estava sendo feito. Em seguida retirou-se.
Aí as luzes foram acesas, o presidente da Assembléia,
Antonio Carlos, disse ainda algumas palavras antes de encerrar a sessão [206].
1. As esperanças de luta com que fui para
a Constituinte
Já nos primeiros dias, verifiquei que havia deputados
eleitos pela LEC mais ou menos de todo o Brasil. E que numa Assembléia
Constituinte de 200 ou 300 parlamentares, seria possível formar uma
bancada entre 30 e 50 deputados católicos [207].
Também me parecia que a minha eleição — numa idade
tão precoce — representava evidentemente um caminho da Providência. E se a
Providência quis essa eleição, eu haveria de me sair bem naquilo que Ela
queria de mim.
Eu estava realmente decidido a meter o peito, ainda
que ficasse sujeito a passar quartos de hora amargos. Seriam amargos na
superfície, porque no fundo meu coração confiava [208].
Essa esperança da beleza da luta se desdobrava diante
de mim magnificamente.
Por isso é que, como já disse, no intervalo entre
minha eleição e minha posse, preparei-me e afiei-me, se não calculo mal,
durante uns seis meses. E fui para a liça esperando encontrar batalha em
campo raso, liso e aberto. Afinal, as esperanças se realizavam!
2. Ducha de água fria: proibido falar em plenário sobre as
reivindicações católicas
Para minha decepção, cedo compreendi que a batalha
começava a se engajar em condições com as quais eu absolutamente não
contava [209].
|
Alceu Amoroso Lima - (Tristão de Athayde) |
O Alceu de Amoroso Lima, que usava o pseudônimo de
Tristão de Athayde, era o homem de confiança do Cardeal Leme. Por outro
lado, tinha muitas relações comigo. Mas muitas. Eu já tinha estado mais de
uma vez em casa dele, e ele na minha. Dávamo-nos muito bem. Ele era o
líder católico máximo do Brasil.
Por sua vez, Dom Leme tinha uma espécie de liderança
sobre todo o Episcopado Nacional, porque era naquele tempo o único Cardeal
brasileiro. Ele punha e dispunha como bem entendia.
Quando eu chego ao Rio [210], sou convocado pelo Tristão de Athayde para
uma reunião dos deputados católicos na sede do Centro Dom Vital, na qual
funcionava a LEC do Rio, e que ficava perto da Câmara dos Deputados [211],
num prédio pertencente à Cúria [212].
Apareço lá, vejo muitos deputados que eu nem
conhecia. Cumprimentos, apresentações etc. e por fim sentamo-nos todos.
Diz o Alceu:
- O Sr.
Cardeal Leme resolveu que, primeiro, não vai haver uma bancada de
deputados católicos. Os Srs. devem estar dispersos nas bancadas dos
respectivos Estados. Por causa disso, não vai haver líder católico. O
líder católico dos deputados vou ser eu, do lado de fora da Câmara. Os
Srs. venham aqui receber as diretrizes do Cardeal Leme, por meu intermédio [213].
E nos comunicou a seguinte palavra de ordem do
Cardeal: [214]
- Nenhum
deputado católico deverá fazer discurso a respeito das reivindicações
católicas [215].
O Cardeal Leme faz questão que vocês não façam nenhum discurso nessa
linha, porque, por detrás dos bastidores, já está tudo combinado com o
presidente da República (Getúlio Vargas), que tem de seu lado a maioria
dos votos. Este assegura que, se não houver debates, na hora da votação
manda todos os deputados dele votarem em todos os pontos que a Liga
Eleitoral Católica quisesse. Portanto, os deputados católicos que queiram
falar, falem sobre outras coisas que nada tenham a ver com as
reivindicações católicas. Sobre estas não devem dizer uma palavra. Isto
Dom Leme espera da dedicação de vocês [216].
Por fim, ele acrescentou:
- Ah!
outra proibição: os senhores estão proibidos de contar que estão proibidos
de falar [217].
Eu senti nisso um baque medonho. Pois esta proibição
criava para mim uma dificuldade insolúvel, porque o eleitorado que tinha
votado em mim, tinha-o feito por causa da razão religiosa. E eu não podia
contar em público que eu estava proibido de falar por Dom Leme.
Assim, ficava impossibilitado de justificar esta
coisa incompreensível: um deputado que tinha sido eleito para fazer passar
as emendas católicas, e que não fazia nenhum discurso a respeito [218].
Eu me senti posto em uma situação semelhante à de um
guerreiro que entra no campo de batalha, puxa a espada à espera do
adversário, e recebe de um estafeta do primeiro ministro a seguinte ordem:
“Ponha a espada na bainha e fique aí em pé, de couraça e tudo, tomando
sol no campo de batalha, até vir um recado em sentido contrário. Por
enquanto não se mova” [219].
* *
*
Minha atuação ficou assim limitada a lutar nos
bastidores para a bancada apoiar unanimemente as emendas católicas [220].
De manhã, participava da reunião dos deputados por
São Paulo, para discutir os assuntos que seriam tratados à tarde na Câmara [221].
À tarde, ia para a reunião plenária da Câmara dos
Deputados.
À tardinha, reunião dos deputados católicos na LEC do
Rio, no prédio da Coligação Católica [222].
Nessas reuniões, tínhamos que nos entender com o Tristão de Athayde e
receber as diretrizes que vinham de Dom Leme. No dia seguinte, era apenas
executar aquilo. Não se podia nem sequer ter contato com Dom Leme, porque
estava dado a entender que não fôssemos amolá-lo, uma vez que ele tinha um
representante ali [223].
Percebi então, desde logo, que no Rio de Janeiro as
coisas não iriam correr como em São Paulo se esperava, porque eu não tinha
nenhuma possibilidade de falar [224].
Eu tinha a impressão de estar murado vivo [225],
eu me sentia atarraxado [226].
3. Zum-zum desleal: gago, com medo da tribuna e com falta de coragem
Pouco tempo depois, percebo dentro do movimento
católico um zum-zum de que eu não falava na Constituinte porque não tinha
coragem, porque era muito moço e ficava intimidado. Chegaram a dizer que
eu era gago [227].
Mais ainda: que eu não ia quase à tribuna porque tinha medo de falar de
público: eu era muito tímido!
Ora, contra mim pode se fazer muitas acusações. A de
que eu sou tímido, não! Meu natural é ser muito desembaraçado, muito
falante. Talvez meu sangue nordestino ajude nisto. Eu digo o que eu tenho
que dizer, e logo [228].
Além do mais, dos muitos defeitos que se possam
atribuir a mim, o de ser gago, positivamente não possuo [229].
|
"...eu tinha
falado em público em quase todas as grandes igrejas de São Paulo
durante o período eleitoral. E falava abundantemente,
torrencialmente..." |
Aí medi em toda a sua extensão a má fé de quem
espalhava isto, porque eu tinha falado em público em quase todas as
grandes igrejas de São Paulo durante o período eleitoral. E falava
abundantemente, torrencialmente.
Eu havia também falado em várias outras cidades do
interior e era muito conhecido como orador. Como então espalhar uma coisa
dessas?!
Mas eu não tinha saída. Não podia dizer de público
que Dom Leme proibira os deputados católicos de falarem. Sairiam por cima
de Dom Leme e isto me queimaria junto a ele.
E eu não podia me queimar com Dom Leme [230].
Dom Leme tomaria isto, aliás a justo título, como uma traição, porque ele
tinha pedido confidência. Portanto, eu não podia dizer nada [231].
Assim, não pude absolutamente sair desse cerco. Era
um cerco fechado.
A única coisa que eu poderia fazer era tomar uma
atitude de quem não percebia. Não dizer nada e agüentar firme a história
Foi a primeira vez que eu percebi um trabalho à
maneira de boato organizado contra mim. E os que espalhavam esses boatos
eram em geral pessoas com simpatias pelo nazismo e pelo fascismo, e que
tinham entre si uma ligação política. Como eu colaborava no Legionário,
que era contra o fascismo e o nazismo, percebi que era uma vindita [232].
4. O cerne do problema: embate interno entre espírito de luta e
espírito de acomodação
Nos meios católicos eu não encontrava hostilidade,
mas comecei a notar, nos seus mais altos escalões, um vazio esquisito que
ia se fazendo em torno de mim.
Percebi desde logo que me isolavam, por eles quererem
o contrário do que eu desejava. Eu queria lutar e dedicar-me a eles, mas
esperava em contrapartida que eles também entrassem na luta comigo.
No fundo, eles não queriam a luta. Pelo contrário,
queriam permanecer inseridos dentro de uma época histórica como aquela,
que não convidava ao excepcional. O desejo deles era manter-se numa vida
comum, na vidinha de todos os dias, e não entrar nas batalhas, na cruzada
e na luta heróica que eu desejava empreender — luta com aventuras, por
certo, mas que era propriamente vida! [233]
À vista dessa situação que se delineou em torno de
mim no Rio, eu me dei conta de que havia um estado de espírito e um
conjunto de circunstâncias radicalmente opostos a irradiar aquilo que
poderíamos chamar o espírito da Congregação de Santa Cecília, ou o
espírito do Legionário.
Ficou claro para mim que, ainda que eu começasse a
freqüentar assiduamente alguma Congregação Mariana no Rio, dificilmente
poderia se formar ali um grupo combativo afim com o que havia em São
Paulo.
Esse grupo não teria nenhuma possibilidade de
expansão, nenhuma possibilidade de irradiação, porque o curso das coisas
no Rio rumava num sentido oposto ao de São Paulo. Daí o esforço que eu
fazia de não deixar de vir a São Paulo, porque, se deixasse de vir, isto
representaria a imolação do que em São Paulo estava estruturado.
Se eu ficasse no Rio de Janeiro alguns fins de
semanas consecutivos, eu perderia o fio da meada em São Paulo.
Como eu poderia sacrificar uma coisa promissora, que
estava em franco desenvolvimento, por uma coisa que não era promissora e
não tinha nem sequer um começo de desenvolvimento?
Assim, fui obrigado a renunciar naquele momento à
possibilidade de expansão de um grupo no Rio, eu que tanto queria ter um
grupo ali [234].
Desta forma, como no sábado não havia sessão da
Câmara, eu embarcava às sextas-feiras à noite para São Paulo*.
* Na época, o
trajeto Rio-São Paulo era feito normalmente de trem. A aviação estava
ainda pouco desenvolvida e viajar de avião era raro e caro.
Chegava sábado cedo, passava o sábado e o domingo, e
às vezes a segunda-feira em São Paulo, partindo de volta para o Rio de
Janeiro no trem noturno.
E, uma vez em São Paulo, absolutamente todas as
noites eu freqüentava a sede da Congregação Mariana de Santa Cecília [235].
5. Novos sintomas de que o cerco apertava:
comentários sem seriedade
Outro episódio mostra bem esse
ambiente de surda hostilidade que ia se criando em torno de mim.
Certo dia, ao entrar na Constituinte, vários
deputados vieram correndo falar comigo: “Você viu a reportagem do Ary
Pavão?”
Eu perguntei: “Quem é Ary Pavão?”
— É um jornalista que costuma escrever sobre a
Constituinte no diário tal, e que deu uma reportagem caçoando de você de
todos os modos. Você não viu, não? [236]
Era um jornal do José Eduardo de Macedo Soares,
deputado também, mas pelo Estado do Rio de Janeiro, e irmão de José Carlos
de Macedo Soares, este, como sabemos, deputado por São Paulo [237].
Respondi: “Não, não vi”.
Ali perto estava o tal repórter, que logo me
mostraram: “Ary Pavão é aquele”, como quem diz: “Se você quiser
falar com Ary Pavão, vá”.
Eu pensei: “Não vou dar a menor importância a ele.
Ele não tem nada de grave a dizer de mim, e se forem meras brincadeiras ou
tontices, eu passo por cima como se ele não existisse. Não vou dar a ele a
menor satisfação”.
E deixei para ler em casa o diário em questão: era de
alto a baixo uma brincadeirada a meu respeito.
* *
*
Quais eram as acusações, os temas da brincadeira?
Havia um hábito dos deputados abreviarem os seus
nomes. Chamando-me Plinio Corrêa de Oliveira, eu deveria adotar um
nome parlamentar: Plinio de Oliveira, ou Plinio Corrêa, ou
Corrêa de Oliveira. Mas eu nunca dei o meu nome parlamentar.
Esse Ary Pavão então caçoava que só dois deputados
mantinham o nome inteiro: eu e um indivíduo que ele dizia que era
catraieiro no Estado do Rio de Janeiro (catraieiro era um homem que puxa
barco; devia ser um deputado trabalhista). E que isto era muito
ridículo.
Um comentário desses era uma banalidade, uma tontice
a que não se dá a menor importância.
Outra coisa era caçoar porque eu era muito gordo. Eu
cheguei a pesar cento e vinte quilos. Tinha realmente um apetite
valentíssimo, que não perdi.
Outra crítica ainda era de que eu estava perdendo o
cabelo prematuramente.
E ia dizendo coisas assim que não tinham qualquer
significado sério. Eu absolutamente não me importei com ele.
Outra caçoada: certa noite eu estava indo para o Rio
de trem, ou vindo de lá, e bati com toda a força com o dorso da mão numa
trave. Na hora nem liguei, mas dias depois formou-se uma saliência feia e
desagradável.
Ary Pavão então caçoou dizendo que eu era o único
deputado que tinha uma pinta na mão [238].
Depois, notícias dessas: “Chegou mais uma vez
atrasado à Constituinte o deputado Plinio Corrêa de Oliveira. Dava todos
os sinais de sentir muito calor, e enxugava a sua fronte esfregando o
lenço e indo açodadamente para o seu lugar. Teria ele esperança de que não
percebessem que estava entrando a sua volumosa pessoa?”
Era verão no Rio, e isso era uma coisa que todo o
mundo fazia, era até banal. Mas eu sentia nesses comentários todos mais um
sintoma de que o cerco ia se apertando em torno de mim.
Outro fato na mesma linha.
Um deputado paulista que tinha relações muito
cordiais comigo e que morava no mesmo hotel telefonou-me pedindo licença
de ir até o meu quarto para falar comigo. Eu morava na parte dos fundos do
Hotel.
Eu disse: “Pois não, venha, eu recebo”.
Logo ele chegou, eu ofereci uma cadeira e ele tratou
de qualquer coisinha que precisava mesmo tratar. Mas notei que ele
prestava muita atenção em todo o quarto.
Depois ele comentou: “Que esplêndido quarto esse
em que você mora! É muito melhor e mais barato do que o meu”.
Eu achei que era dessas banalidades naturais em uma
conversa e disse:
— Realmente, aqui é mais sossegado, tem mais
vantagens.
— É, da próxima vez que vier aqui, vou me hospedar
com minha senhora nesta parte.
E depois completou:
— Você não imagina o que é que eu ouvi falar: que
você morava num verdadeiro antro, num quarto sujíssimo, completamente sem
categoria, mal arranjado, com cama revolta.
Ora, quem tinha feito circular isso?
Era a mesma história: não tendo o que falar contra
mim, procuravam caluniar-me; não tendo o que caluniar, diziam bagatelas
difamatórias dessas.
Quem tinha interesse em estar criando essas histórias
de que eu sou gago, que moro num quarto sujo, que tenho ferida na mão, e
outras bobagens dessa natureza, e a maior parte delas mentirosas?
7. Uma sondagem esquisita
Este cerco se definiu ainda mais
quando, num domingo à tarde, a portaria do hotel me telefona avisando que
o senhor “W” queria falar comigo.
Quem era esse senhor “W”? [239]
Era um homem de seus trinta e tantos ou quarenta anos [240],
que Tristão tinha encontrado em estado de mendicância na porta de uma
igreja, e o tinha levado diretamente para ser seu secretário, sem que o
conhecesse antes.
Nos arredores do Tristão eu tinha ouvido dizer que
ele havia logo de início depositado tal confiança nesse homem que o
colocava a par dos assuntos mais reservados [241].
Este senhor se dizia católico, e eu não tinha razões
especiais para duvidar disso [242].
Quando ele apareceu, eu pensei que se tratava de
algum recado do Tristão. Desci, recebi-o em uma das salas do hotel [243].
— Oh, “W”, como vai você?
— Bem, e você como está?
E começamos a conversar a respeito de bagatelas. O
tempo corria e não saía nada de sério.
Eu pensei com os meus botões: “Este homem veio
aqui com a incumbência de alguém para me sondar. E não está tendo coragem
de fazer essa sondagem.”
Era um dia de calor no Rio, desses de verão, uma
coisa medonha!
Depois de falarmos muito, ele disse:
— Bem, Plinio, afinal chegou a hora de eu falar o
que eu tenho que lhe dizer.
— Pois não, “W”.
— O que você pretende fazer de sua vida no futuro?
Quais são seus planos? Você quer ser deputado ou não? Você, se não for
deputado, que cargo você pretende em São Paulo? Seus planos de carreira
quais são? O que você pretende fazer de sua vida? Você quer me contar? [244]
Ora, estas eram perguntas que se fazem entre amigos.
Mas entre pessoas que se conhecem por alto, era uma pergunta muito
esquisita [245].
Ninguém pergunta isso a um outro.
Eu disse:
— “W”, entram tantas incógnitas nesse assunto, que
eu também não sei. Eu pergunto: você tem um conselho para me dar?!
— Absolutamente nenhum.
— Então, desassistido assim de quem me aconselhe,
eu também não tenho o que responder.
— Bom, então, Plinio, me desculpe ter tomado tanto
o seu tempo!
— Não, absolutamente!
Eu o acompanhei até meio caminho, despedi-me e nunca
mais nos vimos. Anos depois ele morreu. Mas isto me reforçou a idéia de
que zumbia alguma coisa em torno de mim [246].
8. Abafamento de alma com o progressismo que desponta
Concomitantemente a esse cerco, comecei também a
perceber o progressismo que estava entrando. Portanto, uma ofensiva
terrível que era o contrário do que eu queria, mas exatamente o contrário.
E dei-me conta de que uma corrente inimiga maquinava
toda espécie de calúnias, intrigas e combates contra minha pessoa,
justamente porque eu não queria saber de modernização da Igreja,
modernização esta que eu via como um vagalhão que ia destruir tudo quanto
eu tinha esperado.
Porque eu só concebia a Igreja como Nosso Senhor
Jesus Cristo fundou-a, e como Ela será até o momento em que a Igreja
militante deixará de ser militante, uma vez que Nosso Senhor baixará à
terra, acompanhado de uma legião de anjos e de justos, para declarar o fim
da História do mundo e começar o julgamento final. Até lá a Igreja será a
mesma.
E eu tinha a resolução de combater todas essas
modificações que A desfiguravam de um modo inominável.
Era o quadro de um cerco completo e de uma coisa que
se pode chamar uma tragédia, isto aos 24-25 anos de idade [247].
Não se pode calcular o abafamento de alma, o desnorteamento que essa
situação me trouxe [248].
9. Alguns discursos fora dos temas
proibidos
Em algumas ocasiões eu falei na Assembléia, mas
sempre fora dos assuntos proibidos pelo Cardeal Leme.
Nas comemorações do IV Centenário de José de
Anchieta, fui designado como orador oficial na Constituinte [249].
Fiz um discurso e a mídia de São Paulo
publicou com bom destaque
[clique aqui para ler o discurso] .
Fiz outros três ou quatro
discursos do gênero. Mas esses discursos eram em número insuficiente para
convencer as pessoas que esperavam uma atuação parlamentar brilhante de
minha parte [250].
10. Interpelação veemente ao Zoroastro de Gouveia
Outras intervenções minhas se davam durante os
debates.
Havia alguns deputados comunistas na Assembléia [251].
Um desses deputados comunistas havia sido eleito pelo
Partido Socialista, em oposição à Chapa Única por São Paulo Unido.
Seu nome era Zoroastro de Gouveia [252].
Era um homem de tez morena, mas ao mesmo tempo muito
sanguíneo, e com cabelos já brancos e cortados à escovinha [253].
Certo dia ele subiu à tribuna numa atmosfera de tédio
geral. Todos já tinham falado, estávamos fazendo os últimos discursos
daquele dia [254].
De repente, ele fez um ataque à honra dos deputados
católicos, dizendo que nós éramos homens que não tínhamos ideal de pátria,
que éramos exclusivamente vendidos para o Vaticano [255];
e que, portanto, o Brasil não podia contar com o verdadeiro patriotismo
dos católicos. Só deles, comunistas, podia.
Quando eu vi o homem sair-se com isto [256],
pulei como um jaguar em cima dele [257].
Eu me levantei, e da primeira fileira que ficava a dois passos da tribuna,
bradei com uma voz verdadeiramente tonitruante: [258]
- Senhor
deputado, eu protesto! Protesto com toda a minha indignação! Em meu nome
estão protestando contra V. Excelência 95% da população brasileira, que V.
Excelência está insultando do modo mais vil etc.!
Foi um tal estouro, foi uma tal história, que o
Zoroastro ficou pálido, me olhou assim como quem diz: "Dessa como é que
eu escapo?!" E levei algum tempo descompondo a ele [259].
Os deputados que cochilavam, quando saiu aquele
barulho todo, levantaram os ouvidos: “O que é isso aí?!” [260]
Ele quis interromper-me, mas a minha voz cobria a
dele completamente. Ele percebeu que não tinha o que dizer, parou de falar
e eu acabei de dizer o que queria.
No fim, ele escapou. E deixei o episódio morrer [261]
[sobre o Zoroastro veja comentários do "Legionário"
aqui e
aqui].
Depois disso, nunca mais se ouviu dizer que eu era
gago. Essa forma de maledicência acabou.
Se eu não tivesse feito essa intervenção, iam me
difamar: “Quando Zoroastro falou a respeito dessas coisas contra a
Religião, o Plinio estava lá e não disse uma palavra. Ele não está
defendendo a Religião” [262].
* *
*
Isto foi em 1934 [263].
Em 1963, portanto trinta anos depois, fui à Câmara dos Deputados, já então
funcionando em Brasília, para entregar um abaixo-assinado de fazendeiros
contra a Reforma Agrária* [264].
* Esse
abaixo-assinado, iniciado em Bagé (RS), obteve a adesão de 27 mil
agricultores de vários Estados brasileiros.
Fui com Dom Sigaud, Dom Mayer [265]
e vários membros da TFP.
Abordamos lá o chefe dos funcionários e explicamos a
ele do que se tratava.
Enquanto escrevia, ele às vezes parava, me olhava e
continuava. Em certo momento ele perguntou: [266]
— O senhor é...
Eu pensei: “Vai sair algum negócio”. E fiquei
quieto.
— ... o senhor é o deputado que fez aquela
encrenca com o Zoroastro de Gouveia?
Eu dei uma risada e disse:
— O senhor ainda se lembra daquilo?
— Oh! lembro-me muito bem. Foi um trovão na
Câmara!
Os meus colegas paulistas, pelo jeito cerimonioso e
quieto deles, mantinham pouco contato com as bancadas de outros Estados.
Eu, pelo contrário, de temperamento mais expansivo,
falava muito e com isso fiz muito boas relações com deputados de mais ou
menos todas as bancadas [267].
Cumprimentava-os, conversava com eles, ia ao café,
falávamos longamente. Relacionei-me largamente com os meus colegas.
* *
*
Lembro-me até hoje da primeira pessoa com quem fiz
relações na Constituinte.
Na disposição dos deputados na sala da Assembléia,
logo depois da bancada de São Paulo, vinha outra bancada que eu nem sabia
qual era. As nossas cadeiras eram giratórias e distraidamente pus meu
braço na escrivaninha do deputado que ficava atrás.
De repente vejo uma mão bater na minha e dizer com
uma voz cantante: “Minha flor!” [268].
Voltei-me para atrás, pronto a me zangar. Tratar-me
de “minha flor”, a mim?
Mas deparei-me com a fisionomia de um homem
aproximando-se dos sessenta anos, fino, educado, olhar inteligente,
benévolo, demonstrando estar muito cheio de simpatia e de estima, com ar
mais ou menos malicioso, divertindo-se de antemão com o caso que estava
criando. Era um deputado pela Bahia.
Aí eu percebi que seria uma verdadeira estupidez
zangar-me, voltei-me para ele e disse:
— O senhor quer que eu tire o braço?
— Não, minha flor, não seja tão arisco assim.
Eu não tirei a mão. Aí ele começou a prosear comigo.
Ele falava sobre pequenas banalidades com uma tal
inteligência, que eu pensei:
— Essa aí é a famosa Bahia! Numa palavra, é a
Bahia do charme, da graça! [269].
* *
*
E assim, de ponto em ponto, eu ia passeando pelas
bancadas: na pernambucana, conversava sobre Pernambuco, eles conheciam
parentes meus. E me relacionei com a Constituinte inteira [270].
12. Atuação numa crise espinhosa
Lembro-me de que uma noite fui acordado pelo telefone
do Hotel [271].
Atendo. Ouço a voz habitualmente solene e afirmativa do deputado Alcântara
Machado, falando desta vez com voz sumida: [272]
— Dr. Plinio, aqui fala Alcântara Machado.
— Pois não, Dr. Alcântara, o que o senhor deseja?
— Eu queria lhe pedir o favor de vir com urgência
aqui em minha casa, porque a situação política se tornou muito grave, e eu
vou precisar do senhor.
Fiquei espantado, porque a bancada paulista não
ligava para as minhas relações fora da bancada.
Fui à casa dele. Ele, como meu líder, estava no
direito de me chamar; depois, era um homem muito mais velho do que eu. Eu
tomei imediatamente um taxi, fui à casa dele e encontrei-o apreensivíssimo [273].
Ele me disse:
— Dr. Plinio, preciso lhe contar o que aconteceu à
tardezinha na Constituinte. O senhor ainda ignora, mas tive uma briga na
comissão tal [274].
Eu queria uma certa coisa, os deputados do Nordeste não queriam. A
discussão cresceu. De repente, eu perdi a paciência [275],
e o deputado nordestino João Alberto Lins de Barros declarou [276]
que assim não ia [277],
que iria arrancar o Antonio Carlos Ribeiro de Andrada pelas orelhas do
lugar de presidente, e que ia fechar a Constituinte à força junto com uma
série de oficiais nordestinos que ele tinha [278].
Depois de explicar isto, ele me pediu:
— Como o senhor e o Dr. Macedo Soares são os dois
deputados mais relacionados da bancada paulista, eu queria pedir a cada um
dos senhores, ainda esta noite, percorrer o maior número possível de
deputados não paulistas, e conseguir colocar do lado da bancada paulista
esses deputados. Só assim conseguiremos fazer uma pressão forte amanhã
para não ser dissolvida a Câmara.
Tomei imediatamente um automóvel, e fui percorrendo
as casas dos deputados católicos com os quais eu era mais relacionado,
contando o que havia.
* *
*
No dia seguinte, abre-se a Câmara num ambiente de
expectativa.
Antonio Carlos estava pálido como um castão de
bengala de marfim [279].
E os olhos dele, grandes, passeando de um lado para outro com preocupação,
esperando a todo o momento uma encrenca qualquer.
Ele mantinha um ventilador funcionando bem no rosto,
porque era um desses dias de calor intenso no Rio de Janeiro, desses de
acabar com qualquer um que não esteja habituado. Além do mais, trazia um
aparelhinho, creio que para efeito cardíaco, do qual ele inalava algum
remédio [280].
João Alberto andava com ares de soldadão pelo meio da
Constituinte, e todo mundo apreensivo... Até que, afinal, a crise se
aplacou [281].
O Antonio Carlos se levantou trêmulo. Tinha acabado o
dia do perigo dele. Ele desceu quase apoiado, sumiu pela Câmara adentro,
tomou um automóvel e foi-se embora. O seu dia “D” havia
passado [282].
Perguntei ao Alcântara Machado como estava a
situação.
Ele disse: “Foi possível, graças à ajuda do senhor
e de outros, acalmar a situação. Sou-lhe muito agradecido.” [283].
Talvez por isso, quando ele, Alcântara Machado,
escreveu um livro sobre os trabalhos da Constituinte, enviou-me com uma
dedicatória, algo mais ou menos assim: “A Plinio Corrêa de Oliveira,
cujo trabalho na Constituinte, reservado na aparência, foi notável na
realidade. Alcântara Machado” [284].
* *
*
Esse trabalho de articulação era tão intenso que
vários deputados (Cardoso de Melo, Barros Penteado e outros), conversando
com padres chegados à Cúria de São Paulo, diziam isso: “Olhe, vocês
mandaram um representante esperto para lá, e ele luta mesmo pela causa
católica!”
Certo dia apareceu o próprio Monsenhor Gastão Liberal
Pinto na Câmara, creio que para observar meu trabalho. Eu não percebi que
ele estava lá, pois sentara-se numa tribuna especial.
Quando terminou a sessão, ele me procurou e disse:
— Meus parabéns. Eu vi você trabalhar o dia
inteiro, falando com uns, com outros, e estou muito satisfeito do deputado
que nós pusemos neste lugar.
As emendas católicas foram sendo votadas uma a uma e
todas entraram na Constituição. Entraram até duas outras que não constavam
de nosso programa [285].
Enquanto a Constituição de 1891 não pronunciava o
nome de Deus, a de 1934 começava por dizer: “Nós, os representantes do
povo brasileiro, pondo a nossa confiança em Deus etc...” [286]
Foi uma vitória católica enorme! *
* Votaram a favor da
inclusão do nome de Deus 168 deputados constituintes, e contra apenas 57
deputados (v. Legionário n° 145, 13 de maio de 1934).
O panorama católico no País ficou largamente mudado:
a Igreja aparecia como uma potência dentro do Brasil.
As leis brasileiras tinham perdido, não tudo, mas uma
boa parte da carranca laicista que as caracterizava anteriormente.
* * *
Seria muito exagerado dizer que tudo isso se deveu ao
deputado mais votado da Constituinte.
Nossa Senhora havia se servido de mim como
instrumento para lançar a idéia da Liga Eleitoral Católica e para fazer
com que andassem as negociações para o lançamento da LEC. E também Ela se
serviu de mim como um dos propulsores do movimento mariano que estava na
raiz da vitória da LEC.
Mas, de fato, havia muitos outros deputados católicos
dedicados [287].
Lembro-me, entre eles, do meu amigo Barreto Campelo,
deputado por Pernambuco e católico fervoroso, professor na Faculdade de
Direito de Recife. Lembro-me também de outro amigo, Adroaldo Mesquita da
Costa, pelo Rio Grande do Sul, que foi mais tarde Ministro da Justiça, e
que durante toda a sua existência manteve uma atitude católica
desassombrada. E lembro-me ainda de vários outros: Luís Sucupira, pelo
Ceará; Furtado de Menezes e Polycarpo Viotti, por Minas Gerais, entre
tantos outros de vários Estados [288].
Um deputado católico sozinho não teria conseguido o
que foi conseguido.
Tenho, graças a Deus, a alegria de ter trabalhado
muito para que isso se conseguisse e de ter alcançado uma larga rede de
relações que serviriam enormemente, de futuro, para a causa católica [289].
Um dos que colaboraram estreitamente
comigo, o tempo inteiro, e de um modo muito discreto mas sempre eficaz,
foi um deputado que eu considero poder chamar de católico no sentido
profundo da palavra.
Era um antigo professor meu chamado
Moraes de Andrade, que depois foi deputado ainda por muitos anos, e que
freqüentava a igreja do Imaculado Coração de Maria. Ele era um dos chefes
da guarda noturna de orações.
Senhor de idade, de cabelos brancos,
usando barba, ele se fez eleger porque tinha força eleitoral no bairro das
Perdizes, fruto do prestígio político dele próprio, e talvez de alguns
votos da paróquia, a que ele tinha bem direito, porque era um paroquiano
exemplar.
Durante todo o tempo, sendo eu o
deputado eleito pelos católicos, para efeito religioso ele sempre me
considerou líder dele, embora eu tivesse sido seu aluno. E nunca deu um
passo para a frente sem eu pedir; e deu para a frente todos os passos que
eu pedi a ele [290].
14. Encerramento da Constituinte
A Constituinte tinha poderes para dispor se
continuaria durante mais quatro anos, como legislativa, ou se seria
dissolvida imediatamente. Veio ordem do Getúlio para todos os deputados
getulistas votarem a favor da dissolução da Constituinte. Como tinham a
maioria, ganharam. E deram apenas mais seis meses de vida legislativa a
ela.
Chegou por fim o dia do encerramento da Constituinte [291].
A sessão de encerramento foi como na inauguração:
sala toda enfeitada de rosas, com música tocando, Hino Nacional [292],
corpo diplomático presente, altas autoridades etc. [293].
Aparece afinal o Getúlio pronunciando o seu discurso,
com os holofotes percorrendo todos os ângulos da Câmara, isto para depois
a propaganda dele ser passada nas salas dos cinemas de todo o Brasil (não
havia ainda televisão).
E mais uma vez a bancada paulista foi a única que
compareceu de fraque, cartola e tudo mais [294].
O Getúlio, pequenino, também vestido de fraque,
sempre com a mãozinha no colete. Eu votei, junto com Chapa Única, contra a
continuidade dele, mas a Constituinte o elegeu Presidente da República.
Nesse mesmo dia da
promulgação da Constituição, recebi telegramas em separado de Dom Duarte,
e também de todos os Bispos da Província Eclesiástica do Estado de São
Paulo, agradecendo-me em termos calorosos os serviços que eu tinha
prestado.
1. Necessidade de continuar a luta parlamentar e o fechamento da LEC
Antes mesmo de a sessão tomar um fim, eu me retirei:
guardei o meu fraque, guardei a minha cartola e na noite seguinte
embarquei para São Paulo [295].
Eu tinha naquele tempo 25 anos [296].
* *
*
Uma semana antes de sair do Rio, eu havia escrito uma
carta a Dom Duarte apresentando-lhe o balanço das atividades e as
perspectivas futuras da Liga Eleitoral Católica* [297].
* Esta carta, datada
de 9 de julho de 1934, dizia:
"É justo
[...] que eu venha prestar contas a V. Ex. Revma. da situação em que a
Liga vai enfrentar a segunda etapa, a da regulamentação das conquistas
obtidas, por via da lei ordinária e da reconstitucionalização do Estado.
[...] O total de requerimentos [de alistamento eleitoral]
que deram entrada na Liga, quer na Capital, quer no interior da
Arquidiocese, é de 16.296. Todos estes 16.296 requerentes assinaram um
compromisso de disciplina eleitoral em relação à Liga. Cada um deles tem
em nossa secretaria uma ficha própria, com o respectivo nome, idade,
naturalidade, residência, estado civil etc. [...] Como vê V. Ex.
Rev., é um eleitorado perfeitamente arregimentado e que conhecemos até os
menores detalhes".
Em outra carta, comuniquei a ele uma estranheza: eu
vinha notando com certa freqüência, mesmo da parte do Clero, a idéia de
que a vitória das teses católicas na Constituinte havia representado o
termo final das atividades da Liga. E que, dado o triunfo obtido,
dificilmente se justificaria a continuação de sua atividade [298].
Ora, todas as reivindicações que havíamos conseguido
introduzir na Constituição estavam dependentes de uma boa ou má legislação
complementar [299].
Com o que eu não contava, era que o próprio Dom
Duarte tivesse a intenção de paralisar as atividades da Liga. O fato é
que, pouco depois, recebo uma convocação dele, que me comunica:
— Queria dar um duplo aviso a Vossemecê. A Liga
Eleitoral Católica não tem mais que atuar, porque já obteve tudo quanto
tinha que obter. Nessas condições, não precisamos mais da Liga. O senhor
pode até fechá-la. Não havendo Liga, o senhor não vai poder ser candidato
dela. Agora, dos dois partidos que há em São Paulo, Partido Republicano
Paulista e Partido Constitucionalista, qual é que prefere? [300]
Ele sabia bem que eu não tinha afinidade com nenhum
dos dois partidos. O prefere tinha, portanto, um sentido relativo,
que seria “qual o partido que lhe desagrada menos?”
O Partido Republicano Paulista era dos velhos
coronelões, fazendeiros do interior, portanto, com uma certa nota
aristocrática [301],
de centro-direita. O Partido Constitucionalista era de tendência
centro-esquerda [302].
Espantado, respondi que não tinha simpatias por
nenhum. Mas a ter que preferir um, preferiria o PRP, que era o Partido
Republicano Paulista [303].
Ele insistiu:
— Vossemecê quer ter um cargo de deputado federal
no Partido Republicano Paulista, ou no Partido Constitucionalista? Em
qualquer dos dois, se Vossemecê quiser, eu falo para o convidarem como
candidato.
Eu disse a ele:
— Senhor Arcebispo, agradeço o seu interesse, mas
sou obrigado a dizer a Vossa Excelência que prefiro não entrar em partido
nenhum [304].
Dom Duarte pediu-me que eu ainda pensasse.
Respondi:
— Não mudo de opinião [305].
Ele disse:
— Está bem. Não diga então que eu me desinteressei
de Vossemecê.
— Eu agradeço o interesse que Vossa Excelência
está tomando por mim.
E terminou nisso* [306].
* Em carta a Dom
Epaminondas, Bispo de Taubaté, confidenciou: "Até o último momento,
esperei que o Exmo. Sr. Arcebispo [Dom Duarte] mudasse de
deliberação, segundo me parecia que exigiam as circunstâncias. Vendo,
porém, que tal não se dá, vou agora sair a campo com minha iniciativa
individual" (Carta a Dom Epaminondas, sem data, provavelmente de
setembro ou outubro de 1934).
2. Pressões e convites de partidos políticos. Razões da recusa
Depois dessa conversa com Dom Duarte, comecei a
receber pressões para me anexar à carreira política fora dos quadros
católicos. A essas pressões eu respondi categoricamente não [307].
Essas pressões estavam sendo exercidas porque, de
acordo com o mecanismo da organização democrático-representativa e federal
no Brasil, o natural era que, terminada a Constituinte, o eleitorado fosse
convocado para a eleição de uma Câmara Federal e de uma Câmara Estadual.
Os políticos se entregaram empenhadamente a isso [308].
E então deputados do PRP e do Partido
Constitucionalista começaram a insistir para que eu aceitasse candidatura
em suas chapas [309].
Um dia recebo um telefonema: “O Partido
Republicano Paulista quer falar com o senhor”.
Fui ao telefone e um deputado cujo nome não me lembro
me disse: “Dr. Plinio, nós queríamos convidar o senhor para deputado
estadual, portanto, queríamos que o senhor marcasse uma hora”.
Eu marquei na minha própria casa. Esse deputado foi
até em casa, conversamos muito cordialmente. Ele me convidou com muita
insistência para ser deputado pelo PRP.
Eu agradeci muito, disse por cortesia que ia pensar.
Deixei passar alguns dias e telefonei para ele:
“Fulano, sou muito agradecido, mas não convém eu entrar no partido”. E
descartei o convite.
Dias depois aparece o Dr. Antonio Cintra Gordinho,
presidente da Associação Comercial de São Paulo, homem muito rico, muito
influente, de um trato aliás muito simpático, dizendo que queria me falar [310].
Ainda me lembro dele na saleta da minha casa, na
época situada na rua Marquês de Itu, n° 124, me dizendo: [311]
— Plinio, em nome do Partido Constitucionalista eu
venho insistir junto a você para se eleger deputado federal em nossa
chapa.
Eu respondi:
— Dr. Gordinho, muito obrigado. É muito amável de
sua parte, mas eu não posso aceitar essa candidatura.
Levou muito tempo tentando me persuadir. E, no fim,
disse:
- "Olhe, a convenção está reunida. E estão só
esperando o “sim” ou o “não” de você para votarem a chapa. Estão todos lá
fazendo discursos para entreter os convencionais [312],
enchendo o tempo à espera da sua resposta [313].
Se o senhor aceitar, eu daqui telefono dizendo que o senhor aceitou. O
senhor vai comigo de automóvel para a convenção e é aclamado candidato lá.
Se o senhor não aceitar, será uma tristeza.
Eu voltei a dizer: “Dr. Gordinho, eu lhe sou muito
agradecido, o convite me honra muito, mas não é minha intenção aceitar”.
Bom, afinal ele se despediu e foi comunicar que eu
não tinha aceito [314].
É de se notar que o partido que eu preferia
ofereceu-me um cargo de deputado estadual, menos bom do que o de deputado
federal. E o Partido Constitucionalista, de centro-esquerda, fez
insistência para eu ser deputado federal, portanto, uma situação
politicamente melhor, mas que não me convinha.
São os eternos paradoxos [315].
* *
*
Foram motivos imperiosos que me levaram a recusar as
cadeiras que me ofereceram os Partidos Republicano Paulista e
Constitucionalista.
De tais motivos, o mais imperioso se resumia no
seguinte: se a ação católica devia ser desenvolvida fora e acima dos
partidos, estaria em más condições para servi-la um católico filiado
diretamente a uma corrente partidária qualquer, máxime se este católico,
graças à carência de elementos melhores, estava destinado a ocupar —
como no meu caso — cargos de grave responsabilidade no comando do
laicato católico [316].
Enquanto eu me conservasse alheio a dissídios
partidários, estaria em bons termos com ambos os grupos em que se dividia
a representação paulista na Câmara dos Deputados. Pelo contrário, desde
que eu assumisse qualquer atitude partidária, teria contra mim a facção
hostil ao meu grupo. E só quem teria a padecer com isto seria a causa
católica, pois que o grupo a quem eu hostilizasse tomaria suas represálias
contra os princípios que eu encarnava [317].
3. Candidato avulso, sem partido
Tendo, pois, recusado os dois partidos, lancei a
minha candidatura como deputado estadual independente [318].
Aluguei um escritório de uma sala só (sala 211), de
bom tamanho, situada no segundo andar da rua Libero Badaró n° 10, quase
esquina com a avenida São João. Ali montei meu comitê eleitoral.
Mandei imprimir cartazes, que mandei colar em vários
lugares de São Paulo. E fiz toda uma montagem de envio de correspondência
para o interior do Estado: cartas para padres, para congregados marianos,
para listas de amigos e outros fichários de que eu dispunha. Tudo isso foi
mandado em quantidade [319].
Mandei também uma circular a todo o Clero do Estado
de São Paulo [320].
E ainda publiquei um manifesto anunciando a minha candidatura [321].
O escol da mocidade católica mariana de São Paulo apoiou-me, assinando o
manifesto.
Ao mesmo tempo pedi ao Tristão uma carta a respeito
de meu trabalho na Constituinte, para apresentar ao público como modo de
prestigiar a candidatura. Ele mandou a carta mais fria e sabotante que se
possa imaginar [322].
Organizei caravanas de cerca de vinte rapazes,
congregados marianos, e evidentemente de membros do grupo do
Legionário, que iam por essas paróquias afora pedindo votos, fazendo
propaganda. Distribuí centenas de milhares de cédulas [323].
O consumo de cédulas foi fantástico.
Tudo indicava que a eleição correria bem [324].
Mas aí entraram algumas circunstâncias que atrapalharam a minha votação [325].
4. Uma circular inesperada prejudica a candidatura de Dr. Plinio
Dom Duarte, na conversa que tivera comigo, fez-me
sentir que não combateria nem apoiaria a minha campanha eleitoral.
Outros elementos eclesiásticos com que eu contava
também se desinteressaram completamente. Dos Bispos, a única exceção foi
Dom Epaminondas Nunes D’Ávila e Silva, Bispo de Taubaté [326].
Um dia, apareceu em minha casa o vigário de Santa
Cecília. Era o Padre Paulo de Tarso Campos, mais tarde nomeado Bispo de
Santos e posteriormente Arcebispo de Campinas [327].
Eu tinha boas relações com ele, visto que era vigário
de Santa Cecília e eu congregado ali também.
Ele chegou à minha casa vibrante, dizendo que tinha
tomado contato com um grupo de padres e que estava simplesmente indignado
com o que estava acontecendo.
E então me contou que Monsenhor Pereira Barros
passara uma circular a todos os padres de São Paulo, dizendo que o Partido
Republicano Paulista havia indicado para deputado estadual o médico
Tarcísio Leopoldo e Silva, irmão de Dom Duarte. E — alegava ele
— como ficaria muito mal para o prestígio do Arcebispo que esse médico
não fosse eleito, ele pedia a título individual, a todos os padres, que
fizessem votar no irmão de Dom Duarte.
O Padre Paulo de Tarso Campos então mostrou-me a
carta e disse-me, vibrante de indignação:
— Se você quiser, nós vamos constituir uma
comissão de padres e fazer um protesto junto a Dom Duarte. E vamos com
você fazer esse protesto.
Eu tinha um grande respeito pessoal por Dom Duarte. E
não queria fazer nada que representasse uma pressão sobre ele.
Então disse ao Padre Paulo de Tarso que ficava muito
agradecido. E se eles quisessem fazer esse protesto, eu igualmente lhes
ficaria grato, mas que eu não podia me associar.
E a coisa morreu como espuma. Mas a circular de
Monsenhor Pereira Barros circulou... [328]
5. Atacado em coluna religiosa
Outro fato estranho aconteceu na mesma linha.
O Estado de S. Paulo publicava a seção
Movimento Religioso, muito lida pelo público católico e redigida por
um velho católico militante chamado Júlio Rodrigues.
E saiu um artigo desse Júlio Rodrigues, pouco antes
das eleições, deblaterando violentamente contra os candidatos avulsos [329].
Essa seção era muito lida pelo público católico.
Eu li de manhã isso, e como sabia que essa seção era
escrita por um particular e não exprimia a voz da Cúria, não liguei e saí
para o meu trabalho eleitoral. Tudo isso antes das eleições [330].
Mas na realidade aquele artigo me prejudicou, e
prejudicou-me não pouco [331].
6. Trabalho abnegado dos congregados marianos
Os congregados marianos que trabalhavam comigo eram
pessoas de condições econômicas ainda mais deficientes do que a minha.
Vários deles tinham pedido férias nos seus empregos para poder trabalhar
pela minha eleição. E isso não se paga. Nem eu tinha dinheiro para
pagá-los, nem eles quereriam. Era um trabalho desinteressado, de bons
congregados marianos.
Eu procurava compensar isso rezando por eles e
dispensando-lhes toda a minha amizade. Era só o que eu tinha.
Lembro-me que, quando foi encerrada a campanha
eleitoral, à noite, já um pouco tarde, os congregados marianos afluíram
para o escritório eleitoral para comentar as disposições do eleitorado [332].
E eu disse a eles:
— A todos, muito obrigado. Foi uma luta que
mantivemos pela causa católica e há muitas possibilidades de vencer. Se
essas possibilidades se verificarem, nós teremos vencido para a causa de
Nossa Senhora. Se não se verificarem, estou com minha carreira política
quebrada. Estamos jogando o tudo pelo tudo. Se eu for reeleito, será por
pouco; se for derrotado, será por pouco. Não foi, portanto, uma
temeridade, eu não dei trabalho a vocês por uma tentativa vã. A tentativa
tem todo o cabimento. Os números o dirão. Agora, se ela será coroada de
êxito, não sei. É a Providência que sabe.
Despedimo-nos muito amistosamente e ficamos
aguardando a apuração eleitoral.
7. Apurações suspeitas: urna aberta com
chave de papelão
Estranhamente, a apuração não começou logo depois. Os
votos ficaram empilhados em não sei que prédio do Parque Dom Pedro II,
expostos: todo mundo podia vê-los através de uma grade [333].
Comecei a ficar preocupado: “Como é essa história?
O que é que vão fazer com isso?” [334]
Começa a apuração. Os resultados são completamente
diferentes do que todo o mundo esperava. Era esperada a vitória do Partido
Republicano Paulista e esse partido recebeu votações muito menores nos
lugares onde havia os melhores motivos para esperar grande vitória.
E começou a correr o boato de que as urnas tinham
sido forçadas [335]
e que tinha havido fraude nas eleições.
E um deputado oposicionista, inimigo
do governo, homem rico, político importante de Limeira, o Major Levy [336],
deu uma declaração pelo rádio de que o cadeado daquelas urnas era tão
vulnerável, que ele se responsabilizava perante o público paulista de
abrir qualquer uma delas com uma chave de papelão que ele cortaria na
hora. E foi marcada essa demonstração.
Chega na hora, sensação em torno do
caso: o Major Levy corta uma chave de papelão, mete dentro da fechadura e
esta se abre.
Ele disse: “Agora me tragam outras
urnas, eu abro todas”. E de fato abriu, diante das autoridades e
outras testemunhas.
Imediatamente telefonaram para a
Gazeta, que era naquele tempo o jornal audacioso de São Paulo, e que
tinha uma sereia cujo som, na São Paulo pequena daquele tempo, cobria toda
a zona onde morava o centro decisivo da cidade.
A sereia normalmente só tocava ao
meio-dia e às seis da tarde. Desta vez, a sereia da Gazeta tocou,
digamos, às dez da manhã.
Tocou, tocou, a cidade toda ficou em
polvorosa: “As urnas foram abertas, as eleições estão fraudadas”.
Deveriam ter anulado as eleições, não
anularam [337].
* *
*
Antes de arrebentar esse escândalo, bem no começo da
apuração, eu tive que tratar um negócio qualquer com o presidente do
Tribunal Eleitoral de São Paulo, a respeito de meu título eleitoral.
Entrei numa sala cheia de gente e notei a fisionomia
dele ser tomada de certa angústia ao me ver. Não dei importância ao fato,
apenas o registrei.
Depois tive todas as razões para suspeitar que meus
votos foram retirados das urnas em quantidade, por um fato indiscutível
que vim a saber mais tarde: Dom Mayer, que eu ainda não conhecia e que na
época era simples sacerdote, votara em mim, mas na sua seção eu não tive
sequer um voto computado [338].
8. Prestígio intacto e até crescente
Nesse período pós-deputado, eu dava sempre as minhas
noites ao cultivo daqueles amigos da Congregação Mariana e ao
relacionamento com o movimento mariano em geral.
Era muito convidado para discursos e conferências no
Movimento Católico. Quase todo mês havia duas ou até três conferências
para fazer.
Fazia-as com grande aplicação, o mais bem feito que
eu conseguisse. E isto naturalmente multiplicava os convites.
Vinham convites também do interior, para as festas de
Bispos e outras ocasiões.
Eu ia, comparecia, falava, discursava à vontade.
Faziam de mim o que queriam.
Neste sentido, minha influência como líder católico
cresceu ainda mais depois de ser deputado. E também porque estava um pouco
mais velho, e, portanto, com mais respeitabilidade do que um moço de
vinte e cinco anos.
Era muito freqüente haver reunião católica em
teatros, lotando-os inteiramente. Quando eu entrava (não tinha mais cargo
nenhum) a sala toda se levantava e batia palmas.
Não havia possibilidade de eu comparecer a uma
reunião dessas sem ser convidado a fazer um discurso no fim. Não passava
pela cabeça de ninguém.
Antes de ser deputado já era assim. No meu período de
deputado, era e às vezes não era. Depois de eu ser deputado, não sei por
que disposições da Providência, isto subiu muito mais [339].
Esse prestígio pessoal, humanamente falando, me valia
muito pouco, dada a estrutura aristocrática de São Paulo naquele tempo.
Mas como meio de apostolado era um meio excelente, e a esse título,
naturalmente, eu o prezava muito e procurava cultivar,
para dispor de influência junto aos católicos para os objetivos que eu
tinha em vista [340].
NOTAS
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