Explico melhor como nasceu em mim a idéia de luta.
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Plinio no Colégio São Luís -
1921 |
Muito menino ainda, com 10 anos de idade, justamente
na minha entrada para o Colégio São Luís, tive um choque enorme no contato
com o mundo moderno, porque percebi a diferença que havia entre o espírito
de minha família e o espírito que dominava os meus colegas de colégio, em
geral de famílias mais avançadas no processo revolucionário [1].
Eu era um menino magro, muito alvo, muito cordato nas
maneiras, muito gentil, de boa disposição para com todo o mundo, muito
cordial, disposto a tratar todos muito bem, amável e muito cerimonioso, o
que eu continuei a ser até hoje, pois só gosto do trato cerimonioso. Ainda
quando o trato tenha de ser íntimo, eu só gosto dele quando conserva um
tônus cerimonioso [2].
Educado numa atmosfera de extremo afeto, de extrema
proteção, de extremo carinho; afeto e carinho esses levados a um grau de
delicadeza, de dedicação, de envolvimento, por assim dizer, aveludado de
sentimentos a todo momento; habituado, portanto, a que me quisessem bem, e
muito voltado, eu também, a querer bem aos outros; eu me encontrei de
repente, no Colégio São Luís, com o animalis homo do século XX [3].
Lembro-me do meu atordoamento! Foi o meu primeiro
contato com o igualitarismo [4].
Iniciava-se assim a grande luta da minha vida [5].
2. Formam-se minhas primeiras idéias de Revolução e Contra-Revolução
As aulas do Colégio São Luís em geral terminavam às
16:30 horas.
Os alunos saíam, só permanecíamos aqueles cujas
famílias pagavam um suplemento ao Colégio para fazerem ginástica.
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Pátio do Colégio São Luís
em 1929. Ao fundo o bambuzal (?) |
Toda a cidade ainda estava cheia de luz, e o pátio do
recreio, cercado por bambuzais enormes, ficava muito interessante.
Olhando para aquele bambuzal, olhando para aquela luz
esplêndida que descia, olhando para o Colégio onde havia pouca gente,
viam-se os padres de batina, com aquele barrete em cima da cabeça, andando
pelo recreio e rezando o breviário. Era um ambiente muito recolhido e
muito direito.
Eu pensava: “Como é bonito o que Deus fez na ordem
da natureza e na ordem da Igreja Católica. Mas ninguém aqui aprecia isto.
Entre os alunos, ninguém ou quase ninguém. Ninguém tem amor à Igreja,
ninguém tem amor a Deus enquanto autor da natureza” [6].
Enquanto ia fazendo aquele exercício de respiração,
aquela ginástica toda, punha-me a pensar no estado em que se encontrava o
mundo: quantos pecados, quanto horror! E nascia em mim uma certa noção de
que esta situação não vinha apenas de um mundo de pecados isolados, à
maneira de um quinquilhão de gotas d’água, mas constituía um rio. Havia um
todo nisso, que era como que um pecado imenso, que só mais tarde eu vim a
chamar de pecado de Revolução. E se fixou em meu espírito a ideia de que
deveria haver uma Contra-Revolução para vencer esse pecado [7].
Em todas essas reflexões havia sementes de seriedade:
era uma oposição a esse estado de coisas, e foi por onde eu me curei da
moleza [8].
Eu tinha então 11-12 anos. Mas foram as primeiras letras de um livro
chamado Revolução e Contra-Revolução que eu começava a compor, ao
mesmo tempo em que me preparava para a grande luta do futuro, que era a da
Contra-Revolução [9].
* *
*
Entre os jovens do Colégio São Luís comecei a
procurar alguém que tivesse um pouquinho pelo menos de semelhança de
idéias comigo.
Procurei, procurei a mais não poder de procurar.
Durante esse tempo de procura, não encontrei um sequer [10].
O que de imediato encontrei no meu caminho foi o
desdém, o afastamento, a humilhação, o fracasso. O fracasso, porque tentei
em várias direções, mas não consegui nada e não encontrei ninguém [11].
Foi um dos períodos mais terríveis de minha vida. Eu
tinha que resistir à tentação de achar que nunca encontraria ninguém que
pensasse como eu, e que eu estava correndo atrás de uma meta absurda. De
outro lado, alguma coisa me dizia no fundo da alma: “Não desista! Faça,
porque aparece; faça, que você encontra” [12].
3. O problema da pureza
Intercorreu ainda outro problema.
Na França, no meu tempo, segundo ouvi dizer, o
problema da pureza se punha para os meninos aos 15 ou 16 anos. Aqui no
Brasil aos 7-8 anos esse problema já nascia. E eu conheço caso de
precocidade ainda maior.
Resultado, certo dia um de meus primos me chama de
lado e diz:
— Você sabe como nascem as crianças?
— A cegonha traz, não é?
— Está vendo que você é um bobo!
Aí ele me deu a explicação completa. Eu não quis
aceitar. Percebi — para falar a linguagem crua — que entravam aí em cena
coisas muito pouco asseadas fisicamente... E depois pensei: assim são
eles; é a tal coisa que está por detrás deles! E eu quis surrá-lo, dizendo
que ele estava caluniando os maiores de minha família.
Eu conto o fato em sua infantilidade, para verem como
de uma infantilidade absoluta, e até ridícula, pode ter germinado alguma
coisa boa.
Percebi então que muitos de meus companheiros nessa
idade já estavam podres de corrupção moral. Mas, podres!
Imediatamente verifiquei a solidariedade existente
entre essas realidades todas que eu via neles e a impureza. E compreendi
também que, do outro lado, estava a Religião.
E compreendi ainda o seguinte: ou aceito de ser como
eles e me entrego inteiramente, ou a vida toda eu vou ser um pária, um
homem diferente dos outros, completamente perseguido.
4. A grande resolução tomada aos pés de Nossa Senhora
Nossa Senhora ajudou-me muito nessa dificuldade.
Devido a um certo conjunto de circunstâncias sobre as
quais não vale a pena entrar, e por uma graça muito especial de Nossa
Senhora, rezando diante de uma imagem de Nossa Senhora Auxiliadora, que se
encontra no altar lateral da Igreja do Sagrado Coração de Jesus, em São
Paulo, e também diante da imagem de Nossa Senhora do Bom Conselho, que
estava na capela do Colégio São Luís, eu consegui, aos 12 anos, a graça de
entrar para a Congregação Mariana de meninos do Colégio São Luís. E fiz o
seguinte propósito:
— Aconteça comigo o que acontecer, eu serei contra
esse mundo. Esse mundo e eu somos irreconciliavelmente inimigos. Eu serei
a favor da pureza, a favor da Igreja e a favor da monarquia. Serei a favor
da hierarquia, serei a favor da compostura, ainda que eu tenha que ser o
último dos homens, pisado, esmagado, triturado. Esses valores confundem-se
comigo, confundem-se com minha vida. Aconteça o que acontecer com os
outros, isso vai ser a minha vida, isso eu vou seguir.
Aos 12 anos, portanto, essa fixação estava
inteiramente formada na minha cabeça [13].
* *
*
A minha mocidade passou-se na tristeza, na
indignação, na resolução de lutar, e na alegria — notem bem isto — da
esperança de meu futuro.
Refugiava-me no futuro, na convicção de que a
Revolução um dia iria cair [14].
E fui conduzindo um estilo de vida em que eu aparecia
muito na vida de sociedade, mas ao mesmo tempo mantinha-me muito retraído [15].
E assim eu caminhava para a situação francamente
penosa e “vergonhosa” de um moço sem amigos, o que na São Paulinho [16]
daquele tempo não se tolerava. Essa era uma espécie de fatalidade para a
qual eu rumava [17].
No meio em que eu vivia não havia moços
autenticamente católicos. Todo moço, quando chegava à adolescência, parava
de freqüentar os sacramentos, por causa dos maus costumes [18].
Como na minha camada social os moços estavam quase
todos completamente desviados, eu era levado a pensar que nas outras
classes sociais era a mesma coisa. E que as pessoas eram igualmente sem fé
e de má conduta [19].
Levei uma vida assim até que, numa certa noite do ano
de 1928, entrando de bonde na Praça do Patriarca, olho maquinalmente para
a igreja de Santo Antônio. E vejo uma faixa de pano, enorme, tomando a
igreja de uma ponta a outra, que dizia: “Congresso da Mocidade Católica
- De 9 a 16 de setembro” [20].
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Anúncio do Congresso da
Mocidade Católica, na Igreja de Santo Antonio da Praça do Patriarca,
São Paulo |
Eu fiquei tão espantado ao ver uma faixa falando em
Congresso de Mocidade Católica, me abriu um horizonte tão enorme, era uma
coisa tão colossal que se abria diante de mim, que meu primeiro movimento
foi o de descer do bonde e ir me inscrever no Congresso [21].
Mas já era tarde da noite, o secretariado estava fechado e eu deixei para
o dia seguinte.
No dia seguinte fui efetivamente me inscrever.
Atendeu-me um homem pobre, modesto, direito, muito reto e de muito
caráter.
Ele recebeu-me com enorme simpatia.
O Congresso da Mocidade Católica iria começar dois ou
três dias depois.
Este senhor deu-me um distintivo que deveria ser
portado por todos durante o Congresso. Era uma fitinha cor azul celeste,
da qual pendia uma medalha muito bem cunhada de Nossa Senhora. Não me
lembro de que invocação da Vigem era.
Eu fiquei numa alegria imensa e guardei aquilo.
* *
*
Na noite da abertura [22],
mandei servir o jantar mais cedo, jantei sozinho e me meti num bonde para
ir à igreja de São Bento, onde se realizaria o evento [23].
Mas eu estava numa tal excitação, que já no bonde tirei a medalha e a pus
no peito. Pressas da juventude...
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Sessão do Congresso na igreja de
São Bento, em São Paulo |
Cheguei lá. Era de se esperar que houvesse gente do
lado de fora: nada.
Pensei: “Será outro desaponto?”
Abro a porta e se evola de dentro um cântico de
talvez umas quinhentas vozes de jovens. A igreja de São Bento estava
repleta de rapazes, ocupando as três naves! E em cima, uma galeria de cada
lado, também cheia de jovens que não couberam embaixo.
No fundo, um cenário que eu nunca tinha visto e que
me pareceu realmente muito bonito: um pano grande cobrindo o altar, como
símbolo de que o caráter sagrado da igreja estava velado de momento e os
leigos podiam falar ali.
E vi sentados, com as costas voltadas para esse pano,
todos os Bispos do Estado de São Paulo, vestidos como os prelados daquele
tempo usavam: batinas entre roxo e lilás, correntes de ouro, cruz peitoral
com pedras preciosas, em geral ametista, na qual estava incrustado um
fragmento mínimo da Santa Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Eram aproximadamente em número de dez. Presidindo a
solenidade, estava a figura hierática de Dom Duarte Leopoldo e Silva,
Arcebispo de São Paulo.
* *
*
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O Congresso foi presidido pela
figura hierática de Dom Duarte Leopoldo e Silva, Arcebispo de São
Paulo |
Dom Duarte era um homem reto, magro, teso [24],
esguio, com uma cabeça pequena, rosto pequeno, olhar fulminante e
dominador, maneiras muito discretas [25],
com um ar de merecida superioridade, mas de uma superioridade que não se
fundava na inteligência (que ele a tinha bem boa), nem nos dotes oratórios
(que ele os tinha notáveis), mas no fato de que ele era revestido de uma
autoridade sagrada que lhe dava a responsabilidade, o direito e o dever de
mandar [26].
Espalhavam contra ele que era muito autoritário,
impopular, orgulhoso, um homem que não compreendia a bondade pastoral.
Tanto mais que ele tinha adotado para si, em seu brasão de armas, uma
expressão latina que dizia: Ipsis autoritas et firmitas mea (O
próprio Cristo é a minha autoridade e a minha firmeza). E ele tinha
conseguido, durante sua vida, dar manifestações de autoridade e de
respeito extraordinários [27].
Tinha o cabelo todo branco, mas abundante e muito bem
alinhado. Parecia uma estátua vestida de Bispo e não propriamente um ser
vivo, porque tinha uma cor granítica e quase não se movia, acompanhando
tudo com os olhos. Possuía uma superioridade enorme [28].
Tinha uma presença majestosa.
O Tristão de Athayde comentou-me que quando Dom
Duarte entrava em algum ambiente, ainda que fosse um lugar muito modesto,
ele tinha a impressão que toda a sala se enchia de damascos. E era a
impressão que eu tinha também. Ele causava essa impressão [29].
* *
*
Eu chegara um pouco atrasado, os discursos já
correndo, mas peguei quase todo o programa, o qual me pareceu eximiamente
planejado.
Eu tive um susto [30]
ao descobrir que em um setor de São Paulo, que não era o meu, havia um
enorme movimento de moços castos, direitos, católicos apostólicos romanos
verdadeiros, e verdadeiros devotos de Nossa Senhora!
Eu tinha esperado por anos, sem encontrar nada. E
numa volta de esquina, de repente, encontro centenas! [31]
Eu caía das nuvens [32].
* *
*
Creio que o primeiro a falar foi o professor
Alcebíades Delamare Nogueira da Gama [33],
professor universitário do Rio de Janeiro e de muito boa família. Trazia
uma comenda da Santa Sé no peito.
Falava sem microfone e sua voz enchia o ambiente. Era
fogosíssimo, mas não de um fogo vazio: era o fogo de um homem inteligente,
que sabia o que dizia e sabia como dizer, de maneira a inflamar o
entusiasmo, o que é propriamente uma definição da eloqüência. Falou muito
bem e foi muito aplaudido.
* *
*
O segundo orador da noite foi um personagem que mais
tarde seria professor da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco:
professor Alexandre Correia.
Era um homem da região de Ribeirão Preto, de face
avermelhada, magro sem ser magérrimo, olhos azuis pequeninos, mas
cintilando de vivacidade e de inteligência.
A família o havia mandado estudar filosofia em uma
das universidades católicas de maior fama do mundo, a Universidade de
Louvain, na Bélgica.
Era um homem de uma lógica férrea, mas de um humor
agressivo. Quando começou a falar, cativou as pessoas.
* *
*
Quando terminou o evento, os Bispos se levantaram e
saíram em fila hierárquica, os mais novos primeiro, até fechar com Dom
Duarte, que era o Arcebispo.
O coro e o público cantavam a todos os pulmões o hino
do Congresso da Mocidade Católica [34].
Eu achei aquilo muito bonito, fiquei entusiasmado [35].
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Concentração mariana no pátio do Colégio Sagrado Coração de Jesus,
em julho de 1935 |
Depois foi anunciado que na manhã seguinte haveria
Missa celebrada por Dom Duarte no pátio interno da Igreja do Coração de
Jesus.
Eu fui à Missa. O pátio estava cheio, um interesse
enorme e verdadeiro entusiasmo [36].
Sendo que, para as mentalidades hollywoodianas e igualitárias, o
número tinha um peso fundamental: o que muitos fazem ninguém ousa negar [37].
Eu saí resolvido a me inscrever na Congregação
Mariana da igreja Santa Cecília, porque aqueles rapazes todos pertenciam a
Congregações Marianas.
Nisto, um rapaz que também saía do Congresso, veio me
procurar e disse:
— Estamos esperando você para entrar em nosso
automóvel (um automóvel para rapazes, então chamado baratinha).
Deixamos você em sua casa.
Eu disse: “Está muito bem, então vamos. Onde está
o automóvel?”
Eu simulei que nos conhecíamos, para facilitar as
relações. E o automóvel foi direto — eram uns cinco ou seis quarteirões —
para a minha casa. Notei que eles me conheciam de vista dos lugares da
sociedade onde freqüentávamos, e que eram do mesmo meio social que eu.
Ora, a descoberta das Congregações Marianas abria a
possibilidade de movimentar toda aquela onda de gente das outras camadas
da sociedade, e ainda lançar uma ponte de conquista sobre o meio em que eu
me movia.
Eu pisava nas nuvens, alegre como não imaginam! Os
rapazes da baratinha eram da Congregação Mariana e, portanto,
seriam muito naturais amigos para toda espécie de relacionamento. O
importante era não quererem (e nenhum deles quis; eram muito sensatos
neste ponto) bancar os senhorezinhos, embora se visse que eles sabiam bem
quem eles eram [38].
As Congregações Marianas eram associações fundadas há
séculos pela Companhia de Jesus na Europa. Elas se trasladaram para todos
os lugares onde havia jesuítas e, portanto, também para o Brasil.
Havia em São Paulo, inicialmente, apenas duas
Congregações Marianas: a da igreja de São Gonçalo, na Praça João Mendes, e
a de Santa Ifigênia, que era naquele tempo catedral provisória de São
Paulo, enquanto se construía a catedral muito maior que se encontra hoje
na Praça da Sé.
Essas duas Congregações Marianas há muito tempo
existiam, mas estavam coarctadas e empurradas de lado na vida de São
Paulo, exatamente pelo respeito humano e pela agressão que lhes faziam, de
fora para dentro, todos aqueles que, segundo a opinião geral, consideravam
que um jovem não devia ser católico ou pelo menos ocultar a prática de sua
fé.
Foram heróis, portanto, esses congregados marianos da
primeira hora, pois durante muito tempo só eles praticavam a religião
denodadamente, numa São Paulo positivista.
Com o êxito extraordinário do Congresso da Mocidade
Católica, muitos jovens católicos verificaram que eram numerosos — coisa
de que não tinham noção anteriormente, por se sentirem isolados, não se
conhecerem, por estarem esparsos e emudecidos pela pressão do ambiente.
Então tomaram alento.
E, ao som do hino do Congresso da Mocidade Católica,
resolveram unir-se e entrar em massa para as Congregações Marianas,
constituindo um pujante movimento de jovens católicos, que ostentavam o
distintivo de congregado mariano e compareciam em quantidade às missas
dominicais.
Ali, em fileiras ordenadas, recebiam a Comunhão e
davam o exemplo da profissão oficial — eu diria quase escandalosa — da Fé
Católica Apostólica Romana.
A sede de fé que animava a juventude era tal que,
como um rastilho de pólvora, em pouco tempo as congregações se
multiplicaram por todo o Estado de São Paulo e depois por todo o Brasil.
Constituíram em nosso País uma verdadeira potência.
O Hino da Mocidade Católica continha palavras muito
expressivas nesse sentido:
Mocidade vibrante e
sadia,
Deixa a inércia em que
estás,
Renuncia à inação
criminosa,
De pé, de pé!
Deu a voz de comando
Pio XI,
Carrilhonam os sinos
de bronze,
Descem do alto seus brados de fé.
Percebe-se aí qual era a mentalidade e o ardor com
que o hino da Mocidade Católica ia acompanhando o vôo do espírito e do
entusiasmo mariano por todo o território brasileiro [39].
* *
*
Os Bispos não só davam apoio às Congregações
Marianas, mas as empurravam para a frente. E ficou uma espécie de vergonha
para um vigário não ter Congregação Mariana na sua paróquia.
Mais ainda, o bom tom de todo líder mariano era de
ser muito exigente, selecionar os bons, expulsar os maus. O bom tom era
ser de um catolicismo radical.
Uma frase característica era: “A Congregação
Mariana tem portas estreitas para entrar e portas largas para sair”.
O assunto da castidade era tratado com franqueza, com
coragem: combatiam-se os bailes, combatiam-se todas as diversões mundanas.
Promoviam-se retiros enormes durante o carnaval. O que podia haver de bom
estava lá [40].
Todos os congregados marianos assistiam em comum à
Missa aos domingos, em bancos reservados na igreja e portando uma grande
fita azul, cantando em latim os Salmos de Maria, alternados com o coro. O
que determinava uma diferenciação e uma quebra violenta do respeito
humano.
O bom congregado mariano comungava todas as semanas,
mas o congregado de elite comungava todos os dias [41].
E assim era freqüentíssimo o número de congregados de
comunhão diária e oração também diária do terço. Muitos faziam meditação,
leitura espiritual.
Os elementos de elite dessas Congregações Marianas se
conheciam e faziam uma só roda, em São Paulo e fora de São Paulo. O que
criava, dentro do movimento mariano, uma corrente de pensamento religioso
cheia de pujança [42].
E, de ardor em ardor, o movimento mariano foi
crescendo no Brasil, não só em quantidade, mas em qualidade [43].
E isso “quebrou o queixo” da impiedade em São Paulo
de um modo inimaginável, mas também, dentro de pouco tempo, no Brasil
inteiro [44].
1. A Congregação Mariana da igreja de Santa
Cecília
Eu não sei bem quantos membros chegou a ter a
Congregação Mariana de Santa Cecília, na qual eu entrara. Creio que no seu
apogeu alcançou 120 ou 130 membros.
Infelizmente, havia muitos que entravam e muitos que
saíam. A Congregação mantinha um núcleo fixo de cerca de 70 pessoas, não
mais do que isso, e o resto era gente em rotação.
A média das idades variava entre 16 e 26 anos,
portanto pessoas na força da mocidade. Havia umas dez pessoas mais velhas,
de trinta para quarenta anos. Eu me situava na média-média: entrei para a
Congregação Mariana com 20 anos.
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Prédio da
Rua Imaculada Conceição onde Plinio se reunia "com aqueles que
julgava suscetíveis de ter um espírito católico mais aberto para os
grandes problemas contemporâneos" |
Com aqueles que eu julgava suscetíveis de ter um
espírito católico mais aberto para os grandes problemas contemporâneos, eu
procurava conversar, e formávamos então uma rodinha.
Essa rodinha começou a reunir-se na sala da
biblioteca da Congregação de Santa Cecília, situada no prédio da rua
Imaculada Conceição n° 59. Era uma sala muito bem escolhida para isso. Em
primeiro lugar, por ser a única que possuía uma mobília verdadeiramente
cômoda, na qual as pessoas podiam passar duas horas sentadas. Ademais, era
um lugar isolado, no terceiro pavimento [45].
Ali formamos um grupinho que se reunia toda a noite
durante uns dois ou três anos [46],
e todas as noites nós nos encontrávamos nessa sala para conversar [47].
As conversas duravam duas horas, duas horas e meia,
em geral versando sobre temas dos quais nasceria de futuro o livro
Revolução e Contra-Revolução [48].
Entravam também em pauta assuntos de piedade, leitura espiritual,
religião, comunismo, aristocracia, Revolução Francesa e outros mais [49].
3. Reuniões todas as noites. Gesta-se a TFP
Os anos 1928, 29, 30 foram portanto um dos mais belos
períodos de nossa vida. Lembravam um pouquinho as tardes de Adão no
Paraíso, quando Deus descia e conversava com ele (Gen. 3,8) [50].
Como éramos poucos, eu insistia em que deveríamos
fazer estudos afins, para podermos exercer uma ação intelectual comum.
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Na
Congregação Mariana |
O que havia de extraordinário é que era palpável
nessas conversas uma alegria, um bem-estar de alma, um vôo de intuição. De
tal maneira isto era assim, que como já disse, tomamos o hábito de ir
todas as noites à sede da Congregação Mariana para conversar. O papel da
graça nessas conversas era brilhantíssimo! [51]
A Contra-Revolução, que havia nascido no meu espírito
como um propósito a realizar, ali já estava viva e começava a andar [52].
Ali formou-se a semente de nosso Grupo [53].
Em outros termos, dentro do movimento das
Congregações Marianas, os mais duros, os mais rijos, os mais enérgicos, os
que tinham idéias mais contra-revolucionárias, formamos um núcleo interno.
Esse núcleo interno tornou-se a parte motriz desse movimento magnífico.
Esse núcleo veio, mais tarde, a constituir-se na Sociedade Brasileira de
Defesa da Tradição Família e Propriedade (TFP) [54].
Alguns dos que pertenciam àquele primeiro grupo da
Congregação de Santa Cecília, com o tempo se afastaram [55].
4. Componentes do grupo inicial
Esse grupo inicial, composto por Dr. Paulo Barros de
Ulhôa Cintra, Dr. Fernando Furquim de Almeida, Dr. José de Azeredo Santos,
Dr. José Fernando de Camargo, Dr. José Carlos Castilho de Andrade, Dr.
Adolpho Lindenberg, Dr. José Benedito Pacheco Sales tomou um prestígio
maior quando fui mais tarde eleito deputado [56].
Dada a minha facilidade de falar, de exprimir-me em
público, fazer discursos, eu era muito convidado para pronunciar
conferências [57].
Comecei a fazer discursos [58]
sobre temas polêmicos [59],
nas mais variadas paróquias de São Paulo, nas do interior de São Paulo, e
nas de várias partes do Brasil. Estava continuamente em viagem falando
para esses, aqueles e aqueles outros, mantendo as melhores relações com
Arcebispos, Bispos e padres. [60]
Tudo isso contribuiu para colocar-me mais ou menos em
evidência dentro do movimento mariano daquele tempo [61].
É preciso esclarecer que, entrando para esse
movimento, naturalmente aconteceu o que se dá com todos os outros
movimentos: os mais ardorosos tomaram o realce e a dianteira.
Como entrei para ele com todo o ardor de minha alma,
aconteceu que a generosidade dos que comigo lutavam empurrou-me para
lugares de realce, que não disputei nem procurei [62].
5. Espírito aguerrido e apoio aos “cristeros”
O que fez esse Grupo entre 1928 e 1931? [63]
No México, a perseguição religiosa lavrava. O heróico
movimento dos cristeros levantara-se contra a ditadura mais ou
menos comunista de Calles e Obregón. Os cristeros fizeram uma
revolta católica, que se transformou depois numa revolução e numa guerra
civil. Morreram inúmeros mártires, um dos quais o jesuíta Padre Pró
[Miguel Agustin Pró], beatificado há pouco tempo.
Lembro-me de que movemos um protesto contra o governo
ateu do México, que foi levado ao Consulado daquele país em São Paulo.
Protesto tão caloroso e polêmico, que esse Consulado,
ele também animado pelo espírito polêmico do tempo, recusou-se a receber,
dizendo que não podia encaminhá-lo a seu país, de tal maneira era
injurioso. O que, de nossa parte, determinou também outros revides [64].
Foi também nessa época que fundamos a Ação
Universitária Católica.
Pelo ano de 1931, nosso grupo estava na direção do
movimento mariano. E o movimento mariano era o mais pujante dos movimentos
católicos de todo o Brasil [65].
Dois anos antes de eu entrar na Faculdade de Direito,
houve um grande abalo em São Paulo com a revolução do General Isidoro Dias
Lopes [66].
Foi bombardeado o Palácio dos Campos Elíseos, sede do
governo estadual, obrigando o então Presidente de Estado, Carlos de
Campos, a fugir para o interior.
Como era o mês de férias, eu estava em Santos (local
pelo qual eu tinha verdadeira loucura), hospedado na casa de meu tio
Nestor.
Eu vinha da praia — naquele tempo as praias ainda não
se haviam transformado em lugares de nudismo ou seminudismo como ficaram
depois —, quando observei uma pessoa que, do alto da casa, dizia para as
pessoas em baixo: “Arrebentou uma revolução em São Paulo”.
Eu me detive e perguntei:
— Mas como? Arrebentou uma revolução em São Paulo?
— Arrebentou, sim. Você não sabia?
— Não [67].
Fui fazer a toilette e, quando desci,
encontrei o ambiente completamente diferente, e os boatos a chegar dentro
de casa: todos os membros do Governo estavam cercados no Palácio Campos
Elíseos; o General Isidoro Lopes tinha efetivamente se revoltado, e de
fora de São Paulo, não sei de que arredor, dava canhonaços sobre a cidade;
uma bala já havia atingido o Palácio dos Campos Elíseos, embora felizmente
ela não tivesse deflagrado; e notícias horríficas de bombas que atingiram
isso, aquilo e aquilo outro.
Dentre esses boatos, um especialmente remexeu com Dª
Lucilia, e também a mim: uma bomba teria derrubado a torre da igreja do
Sagrado Coração de Jesus (na São Paulinho de outrora, era um dos mais
altos edifícios). E a imagem dourada do Sagrado Coração de Jesus tinha
caído por terra e se partido.
Logo em seguida, outro boato: o povo havia invadido o
palácio, seqüestrado o Presidente, e os quatro Secretários de Estado
haviam sido degolados. As cabeças deles estavam nas pontas de lanças, na
entrada do portão.
Ora, um desses Secretários era meu tio [68].
Então, naturalmente, terror. Não se podia telefonar
para São Paulo, porque as ligações estavam cortadas. E os boatos ferviam.
Afinal, já tarde da noite ouço bater na porta de meu
quarto: “Plinio, acorda! acorda!”
Saí do meu profundo sono da adolescência e disse:
“O que há?”
— Os Secretários de Estado não morreram,
conseguiram fugir, e o governo também fugiu para Guaraúna.
* *
*
Logo depois da revolução, o presidente do Estado,
Carlos de Campos, voltou para São Paulo. Já o General Isidoro fugiu em
várias composições ferroviárias da companhia inglesa São Paulo Railway
(naquele tempo havia poucas estradas de rodagem). E embarcou com muita
tropa em trens que ele requisitou pelo interior do Brasil*.
* Os rebeldes
retiraram-se para Bauru, de onde Isidoro Dias Lopes seguiu para Três
Lagoas, no atual Mato Grosso do Sul, entrando em confronto com as tropas
federais ali sediadas e foi derrotado. Marcharam então rumo a Foz do
Iguaçu, no Paraná, onde se uniram ao chefe comunista Luís Carlos Prestes.
Como estava velho, Isidoro fugiu para a Argentina e
deixou Luís Carlos Prestes como comandante dessas tropas.
Luís Carlos Prestes, a partir daí, formou uma coluna
de exército em trem que percorreu o Brasil inteiro disseminando a
revolução.
Começava dessa maneira a Coluna Prestes, que
foi o primeiro e arcaico sintoma da revolução comunista no Brasil.
2. Em 1930, ainda o perfume da era São Pio
X
O golpe de 1924 culminou com outra revolução, a de
1930. Aí a República aristocrática foi jogada ao chão e subiu Getúlio
Vargas [69],
que governou longamente o Brasil por quinze anos [70].
Quando estourou a Revolução de 1930, as condições
religiosas no Brasil eram profundamente diferentes das de hoje.
Já na época de meu ingresso nas Congregações
Marianas, encontrei o Brasil ainda dentro da atmosfera do pontificado de
São Pio X e sob a ação benfazeja deste [71].
Era uma atmosfera religiosa extremamente
conservadora, no melhor sentido da palavra, com muita piedade e pureza de
costumes, dentro de um meio católico praticante [72].
São Pio X tivera que lutar, durante o seu
pontificado, contra uma heresia que nascera sob o nome de modernismo.
Esta heresia tinha como intenção infiltrar-se na
Igreja de modo clandestino, fazer com que seus adeptos ganhassem postos na
Hierarquia e, afinal, modificá-la no sentido herético, não de fora para
dentro como fez Lutero, mas de dentro d’Ela mesma, usando o nome da Igreja
e ocupando postos na sua direção, para transformá-la num sentido
heretizante.
Essa heresia não era apenas teológica (relativizava
todo o Magistério da Igreja, dando um sentido falso, e no fundo gnóstico,
à religião católica), mas tinha repercussões no terreno social.
Se São Pio X não houvesse reagido, as idéias dos
adeptos da heresia modernista teriam levado a Igreja, no campo social, a
uma posição francamente socialista, com tendência comunista.
Todos esses males foram vistos pelo Santo Pontífice
com um olhar angelicamente límpido, o que o levou a fulminar contra essa
heresia modernista vários documentos, dos quais o mais famoso foi a
encíclica
Pascendi Dominici Gregis. Nesta, o problema modernista
era exposto e levado ao conhecimento de todos os fiéis.
Denunciada essa conspiração, os elementos vivos e
sadios da Igreja puderam iniciar uma ação antimodernista a fundo, que
deixou inerte por muitos anos (na América do Sul por muitas décadas) o
adversário falacioso que procurara infiltrar-se na Igreja.
Em conseqüência, estabeleceu-se na Igreja uma grande
paz interna. Reinava n’Ela a paz de Cristo. A paz de Cristo, sim, no Reino
de Cristo. Todos estavam reunidos em torno do mesmo Pastor Supremo, dos
respectivos Episcopados nacionais, do mesmo Direito Canônico, da
normalidade eclesiástica. E a união entre o Clero e os fiéis era completa,
assim como a dos clérigos entre si.
Eu portanto alcancei a Igreja apresentando esse
aspecto edificante. E, como filho de uma senhora eminentemente católica,
cuja influência em minha formação religiosa foi das mais profundas, desde
muito cedo comecei a amar a Igreja com transportes de entusiasmo em minha
alma.
A Igreja Católica Apostólica Romana era, sem dúvida,
uma das grandes forças do Brasil, cujo papel jamais será suficientemente
encarecido pelos historiadores brasileiros.
3. Reticências à prática religiosa para os homens
Quanto ao mundo de fora da Igreja, verifiquei que
estava dividido em dois.
Havia uma parte da opinião pública (e uma parte bem
considerável nas camadas altas da sociedade) que era nitidamente reticente
em relação à Igreja.
Para ela, só ao sexo feminino ficava bem praticar a
fé. Para o homem, a opinião pública exigia, contraditoriamente, que não
deveria ter fé, deveria não ser católico.
A profissão oficial da fé pelo homem qualificava-o
entre os maricas, carolas, de capacidade intelectual e
humana subsuficientes; enfim, entre os idiotas.
Atemorizados por esse julgamento geral, os homens
frequentemente não tinham a coragem de manifestar a sua fé. E um católico
jovem que a quisesse professar ficaria extraordinariamente isolado no seu
meio.
A quase totalidade dos moços de minha geração, no
ambiente social em que eu vivia, eram por causa disso propensos a deixar a
fé.
4. Na Faculdade de Direito e a cova dos leões
|
Faculdade de
Direto do Largo São Francisco, década de 1920 aprox. |
Foi nesta situação que, no início de 1926,
inscrevi-me como aluno da histórica Faculdade de Direito do Largo de São
Francisco, em São Paulo, foco famoso de laicismo e de positivismo
jurídico, oposto à doutrina católica [73].
Ser estudante de Direito nessa Faculdade era mais ou
menos sinônimo de ateu e freqüentador de casas de perdição [74].
Haviam me avisado que, se o aluno se dissesse contrário à Revolução
Francesa, podia ser perseguido. E se se afirmasse monarquista era tido,
então, como um animal antediluviano.
Ora, eu era tudo isso ao mesmo tempo. E carregava
sobre mim o fardo daquilo que os outros odiavam e que eu mais amava [75].
De maneira que, no meu ingresso na Faculdade de
Direito, tive a impressão de ser um Daniel entrando na cova dos leões [76].
Renovei o propósito de manter-me puro e católico
militante até o fim do curso. E, aparecendo a oportunidade, virar essa
situação de pernas para o ar dentro da Faculdade [77].
Eu me lembro que quando fui me matricular, tive tal
medo da luta que, na fila para apresentar o requerimento, sentia o meu
coração bater na garganta, pelo receio de que essa luta pudesse não ser
bem sucedida [78].
Minha família teve sempre professores ali, e tinha
muitas afinidades com o espírito da Faculdade de Direito. Além do mais, eu
tinha primos estudando também ali.
Desse ponto de vista, ela não me trouxe nada de novo.
Detestei-a e estimei-a desde o primeiro momento em que nela ingressei [79].
Eu tinha então 17 anos [80].
Ali fiz todo o meu curso de Direito, formando-me em
1930 [81].
Quando terminei o meu curso, estava com 22 anos [82].
Nos primeiros anos de Faculdade, minha atuação não
foi marcada por manifestações ostensivas de fé.
Mas, sempre que atacavam a doutrina católica em minha
presença, eu intervinha e dizia que não estava de acordo por tais e tais
razões. E depois acrescentava: “Isto porque a doutrina católica impede,
proíbe, condena”.
Os colegas perguntavam:
— Mas então você é católico assim?
— Sim, senhor, sou exatamente assim, católico.
Naquele tempo eu já era muito encorpado. Engordei
ainda mais depois. E, para a minha geração, era também uma pessoa alta,
com um timbre de voz seguro que produzia força de impacto.
O resultado foi que já não me procuravam para
conversar. Se eu chegasse em uma roda, ninguém fugia; se eu não chegasse,
ninguém me chamava. Quando eu me aproximava, recebiam-me com um olhar
neutro, nem de desdém nem de atração. Depois mudou [83].
6. Minhas discussões com o Paxá
Havia na Faculdade um estudante de Direito, de boa
família, que se chamava Antonio Mendes de Almeida. Era comunista e tinha,
não sei por quê, o apelido de Paxá. Eu mantinha grandes discussões
anticomunistas com o Paxá. O Paxá falava contra a Religião Católica, eu
falava a favor.
Íamos para um café em frente à Faculdade, e em torno
de nós se formava uma roda enorme [84].
A discussão atraía o público e eu tinha oportunidade de fazer apostolado
católico junto aos estudantes.
Muitos colegas já iam ao café para ver a discussão do
católico com o comunista. Era uma novidade [85].
No meu quarto ano de Faculdade (1929), começaram a
entrar, como calouros, muitos estudantes congregados marianos [86].
Eu não os conhecia, eram de outras congregações
espalhadas por São Paulo, mas apareciam lá com o distintivo de congregado
na lapela [87].
Pensei: “Chegou a hora da política!”
Comecei a procurá-los, coordená-los, e formamos um
grupo [88]
de quatro rapazes, se não me engano. Comigo fazíamos cinco* [89].
* Na verdade era um
total de nove, contando com Dr. Plinio.
O desconcerto dos revolucionários vendo que eu tinha
seguidores foi uma coisa sem nome! Aí começou a contra-ofensiva.
Criei o hábito de me encontrar com os congregados
durante os intervalos e conversar com eles.
Então, presença volumosa e voz ainda mais volumosa do
que a presença. Na laica Faculdade de Direito, um colega passar pelo
claustro e ouvir a pergunta: “Mas então, a novena lá em sua igreja,
quando é?”, era uma bomba!
Os adversários cometeram o erro de se aproximarem da
nossa roda e fazer cara de riso. Quando começavam a fazer cara de riso, eu
aumentava o tom da voz e conduzia a conversa para o terreno da doutrina.
Diziam: “Diga lá, Plinio, você acha então que tal
coisa é assim?”
Eu: “É claro que é, pois imagine!”, e com a
voz alta.
A discussão atraía público, fazia roda; e na roda
ficava implantado o estandarte de Nossa Senhora, isto em plena Faculdade
de Direito [90].
Isso produziu uma mudança no ambiente. Explico.
Quando entrei para a Faculdade, pude observar que
três veios de alunos ali se destacavam e gozavam de prestígio: os
intalactas (expressão depreciativa para indicar os intelectuais de
espírito cartesiano), que eram os primeiros da turma e conversavam entre
si com ar de superioridade; os grã-finos, que se isolavam num círculo
fechado; e os pândegos, que contavam piadas e coisas pornográficas.
Propositalmente eu me punha fora do circuito desses
admirados, e me colocava na linha dos alunos comuns, com um pouco de
acesso junto aos intalactas, um pouco de acesso junto aos grã-finos
e nenhum acesso junto aos debochados (eu não os procurava e eles não me
procuravam).
Quando viram a minha contra-ofensiva, o que fizeram os
intalactas, os grã-finos e os pândegos?
Coisa curiosa, os grã-finos se tornaram um tanto
menos gélidos. Quanto ao mais, fingiam não perceber o que estava se
passando.
Os intalactas se viram obrigados a tratar das
matérias religiosas. E assim entrava o tema proibido, o tema religioso.
Os pândegos, o que fizeram? Eles, que antigamente
faziam do centro do claustro o seu teatro de operação, passaram a escolher
os cantos, e o público deles diminuiu, porque ficava debochado demais,
diante de nós, imergir naquela pândega [91].
1. Constituição da “A.U.C.”
|
(Clique
sobre a imagem para ir ao "Manifesto AUCISTA") |
Depois de formarmos esse pequeno grupo de amigos,
propus a eles que lançássemos um jornal chamado O A.U.C., Ação
Universitária Católica [92].
Seria uma publicação de luta a favor da Religião Católica dentro da
Faculdade.
Meus amigos ficaram desde logo muito entusiasmados
com a idéia. Tive então uma alegria e satisfação enormes com isto.
Com a aprovação do diretor da minha Congregação
Mariana, Monsenhor Paulo Pedrosa [93],
formamos uma organização com o mesmo nome, chamada Ação Universitária
Católica, a A.U.C. [94].
Logo que fundada (junho de 1930), a Ação
Universitária Católica tomou o mesmo colorido intransigente das
Congregações Marianas [95].
Não se tratava ainda da Ação Católica, mas de um
movimento, de uma liga de congregados marianos universitários que faziam a
propaganda católica dentro da Faculdade de Direito e, como veremos, de
outras Faculdades [96].
2. Jornal “O A.U.C.” nas Arcadas
Resolvemos distribuir O A.U.C. na Faculdade [97].
Era um jornalzinho sustentando idéias católicas desde a primeira letra até
a última [98].
Como a Faculdade de Direito era um antro de ateísmo,
os meus companheiros ficaram inicialmente com receio de distribuir o
jornal. Então eu combinei com eles: [99]
— Vamos fazer o seguinte: a Faculdade tem várias
portas. Vocês ficam em tal, tal e tal porta (eram portas secundárias), e
eu fico na porta principal.
Pela porta principal passavam os filhos da alta
burguesia esquerdista, quase todos meus conhecidos, alguns meus parentes,
e outros mais ou menos amigos.
Peguei um maço do jornal, pus em baixo do braço e
coloquei-me nessa porta.
Começaram então a chegar os automóveis trazendo
alunos, a maior parte em automóveis ricos.
Quando o colega descia do automóvel, eu me
apresentava e dizia: “Olha aqui, um jornal da organização dos jovens
católicos da Faculdade” [100].
Eu falava isto com cara séria, mas de modo amável,
sem provocação [101].
Confesso que eu sentia o coração bater dentro da
garganta. Porque o perigo era que eles fizessem debique, me arrancassem os
jornais da mão, queimassem ali mesmo e aprontassem uma palhaçada. A
qualquer momento podia sair isso. E não adiantava eu reagir fisicamente,
porque era um contra quinhentos.
Nossa Senhora protegeu-me e não houve nenhum que
dissesse qualquer palavra desagradável, não houve nenhum que jogasse o
jornal no chão. Nada! Todos o receberam cortesmente, alguns agradeciam e
levavam o jornal para dentro [102].
Durante a aula, todo mundo leu o jornal. Terminada
esta, bateu o sino, todas as portas das salas de aulas se abriram, os
alunos se encontraram no pátio.
Circulei pelo meio para ver se alguém dizia qualquer
coisa. Não! Normais, sem encrenca nenhuma.
Eu caí das nuvens! E pensei: “Sim, senhor.
Eles já perceberam que tem um movimento mariano pujante aí fora e que não
podem mais abordar as coisas como abordavam antigamente”.
Os meus mais jovens companheiros de ação, vendo que
eu fazia a distribuição do jornal e não acontecia nada, tomaram-se de
coragem e começaram a distribuir também. E o jornal católico foi espalhado
por toda a Faculdade.
Estava dado o passo para a frente [103].
Estava fundada a Ação Universitária Católica [104].
E a famosa Faculdade de Direito, bastião do ateísmo, recuava [105].
O jornal passou a ser, se não me engano, mensal [106].
Aproximaram-se depois mais alguns, e eu me sentindo
nas nuvens de satisfação. Foi quando tomei a primeira punhalada pelas
costas da minha vida.
Dois dos que tinham entrado na A.U.C.
começaram a fazer propostas e sugestões meio derrotistas, sugerindo pôr
alguma coisa de socialista no jornal e outras matérias do gênero.
Eu espumei:
— Socialista?! Onde é que vocês estão com a
cabeça? Um católico não pode ser socialista, menos ainda comunista etc.
etc. etc.
— É, você é muito intransigente. Olha como você
está querendo impor a sua opinião! Nós não pensamos como você.
— Não, não se trata disso, vejam os documentos dos
Papas.
— Você está vendo? Você fica indignado com isso.
Seja amável, admita que eu esteja errado e dê um lugar para o meu erro.
— Como dar lugar ao erro?
Afinal, acabei percebendo que eles não estavam sendo
sinceros.
Confesso que tive um abatimento dos maiores da minha
vida. E pensei o seguinte: “Lutar contra inimigos, vá lá. Mas lutar
contra amigos, enquanto se tem inimigos pela frente; sentir o arranhão do
punhal da traição na nuca, isto é uma vida que não faz vida, é uma coisa
horrorosa”.
Nossa Senhora me ajudou e me veio a idéia de que Ela
mandaria outros, de que essa situação teria remédio, de que afinal eu já
havia vencido outros obstáculos. E me reanimei.
O fato é que esse grupo de congregados foi crescendo
cada vez mais.
Qual foi a repercussão de nossa atuação na Faculdade? [107]
No período de meu quarto ou quinto ano de Faculdade,
houve eleições para o Centro Acadêmico [108].
Eram eleições importantes, porque ser presidente do
Centro Acadêmico era um modo de se lançar na carreira de deputado,
promotor público e outras [109].
Havia dois candidatos. E eu me dava bem com ambos.
Certo dia, saindo da Faculdade, um deles veio em
minha direção. E saudou-me com uma amabilidade maior que a costumeira:
“Ilustre amigo, como vai?”
“Ilustre amigo?” era uma coisa que não se
dizia entre moços. Eu respondi:
— Ah! bem, e você como vai?
— Ah! Venha cá. Quero falar com você uma coisa.
Ele me puxou para dentro de uma loja e disse:
— Estou concorrendo ao cargo de presidente do
Centro Acadêmico XI de Agosto e quero que você me garanta a votação dos
marianos. Você garante?
De um só relance percebi que, entre os alunos não
congregados, os congregados tinham muito prestígio. E que, se adotássemos
um certo candidato, muitos votariam conosco.
Eu imediatamente respondi:
— Olha, Fulano, você sabe
que eu sou seu amigo. E por amizade eu mandaria votar em você. Mas a
questão não é tão simples: não posso dispor dos votos deles dando como
argumento que você é meu amigo. Para levá-los a votar em você, tenho que
provar a eles que a sua candidatura seria vantajosa para a causa católica.
Aí eles podem se mover. Mas, assim, só porque você é meu amigo, não se
moverão.
Se você tomar posição a favor dos seguintes
pontos, eu indico você: 1°) no caso de uma campanha a favor do divórcio,
você toma uma atitude contra, como presidente do Centro Acadêmico; 2°) se
houver um trabalho a favor do ensino religioso nas escolas, você toma
atitude a favor; 3°) e também tomará posição a favor da capelania nas
Forças Armadas e nas prisões do Estado.
Ele disse:
— Você faça a carta que eu assino.
Eu:
— Olhe, a coisa não é tão simples, porque tenho
que consultar o outro candidato. Porque se ele der mais do que você, terei
que mandar votar nele.
Ele sorriu, como sorriem os políticos, e me disse:
— Bem, você fale com o outro, é um direito seu.
Procurei o outro.
— Venha cá, Fulano.
— O que você quer?
— Olha, Sicrano acaba de me oferecer isso assim e
eu acabo de responder a ele tal coisa. Se você me der mais tal ponto, eu
dou preferência a você, porque neste ponto ele não cede. Você topa a
parada?
Na hora ele disse:
— Pois não. Não tem dúvida nenhuma. Você faça a
carta que eu assino.
Procurei o primeiro e disse:
— Olhe, Fulano ganhou. Em tal ponto que você não
cede, ele cede, e é um ponto conveniente à Igreja. Eu lamento que você não
ceda.
O outro não quis ceder. Despedimo-nos amigos. Aliás,
ficamos amigos até o fim da vida.
Conseqüência: venceu o candidato apoiado por nós. E
para a São Paulinho daquele tempo, ficou constando que os dois candidatos
lançaram chapas católicas, quando até então era uma vergonha ser católico.
Ademais, o programa mais marcadamente católico venceu [110].
Foi um escândalo, pois de um presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto
se esperava que fosse divorcista, socialista. Não! Pelo contrario, ele se
pronunciava contra o divórcio. Era do outro mundo [111].
Quer dizer, aquilo foi um triunfo de primeira ordem
para a Religião católica!
5. Formatura: Missa no pátio da Faculdade
|
Plinio
formando na Faculdade |
Nisto terminou o meu curso. E chegou a hora da
formatura.
No dia da formatura (11 de Dezembro de 1930), no
pátio interno da Faculdade de Direito aconteceu uma coisa que nunca se
tinha visto em cento e tantos anos de vida da Faculdade.
Até então, a Missa de formatura era realizada na
igreja de São Francisco, ao lado da Faculdade de Direito.
Eu pensei: “Vou reivindicar que se faça a Missa
dentro da Faculdade de Direito. E convidarei o Arcebispo (Dom Duarte) para
celebrar a Missa. Mas primeiro convido Dom Duarte, e depois digo na
Faculdade que Dom Duarte está disposto a ir celebrar a Missa lá dentro”.
Fui com uma comissão visitar Dom Duarte e perguntei
se estaria disposto a celebrar dentro da Faculdade. Ele ficou muito
contente, mas hesitou um pouco, permanecendo na dúvida de aceitar ou não.
Por fim disse:
— Eu lamento, mas não posso ir, por causa de
anteriores atritos meus com a Faculdade. Mas dou autorização para que a
Missa seja rezada lá dentro.
Eu mantinha correspondência e relações pessoais com
um famoso pregador jesuíta daquele tempo, o Padre Leonel Franca [112].
Era uma sumidade, tinha fama no Brasil inteiro [113].
Escrevi-lhe uma carta dizendo: “Padre Franca, o
Sr. está sendo convidado, por meu intermédio, pelos alunos da Faculdade de
Direito que colam grau este ano, para vir fazer um sermão aqui. O Sr.
vem?”
Ele mandou-me uma resposta muito amável, aceitando o
convite.
Em seguida procurei a direção da Faculdade e disse:
— Aceitou de vir falar na Faculdade o célebre
Padre Leonel Franca. Dom Duarte concedeu licença para que a Missa fosse
rezada dentro da Faculdade pelo Vigário Geral de São Paulo, Monsenhor
Gastão Liberal Pinto [114].
A turma de formandos está de acordo e eu quero saber se os senhores dão
licença.
— Bom, pode ser.
E realizou-se a Missa.
Quando, no dia da Missa, cheguei na Faculdade de
manhã, de fraque e cartola como mandava o cerimonial, eu esperava
encontrar os alunos, o Padre e mais ninguém.
Qual não foi a minha surpresa quando me deparei com
um estrado em forma de “U”, armado no pátio em torno do altar.
Em cima, em poltronas grandes, solenes, de veludo
vermelho (porque vermelho era a cor dos advogados), todos os professores
da Faculdade de Direito, de beca e alguns de rosário na mão.
Ao ver aquilo, caí das nuvens. Mas fingi achar que
era a coisa mais natural do mundo. Não manifestei surpresa e entrei em
companhia do Padre Leonel Franca.
Quando chegou o Monsenhor Gastão Liberal Pinto,
paramentou-se e começou a Missa.
Na hora da comunhão, um grande número de rapazes que
iam se formar aproximaram-se para comungar. Também nunca imaginei isto.
Quer dizer, enquanto o Movimento Católico crescia no
Brasil inteiro, o ateísmo fugia.
Quando terminou a Missa, o Padre Leonel Franca saiu
imediatamente. Em seguida procurou-me o Secretário da Faculdade de
Direito, aliás muito estimado na Faculdade, chamado Júlio Maia, o qual me
disse:
— O café está preparado em cima.
— Que café?
— Sim! O Monsenhor celebrou Missa, a Faculdade
oferece a ele um lanche lá em cima.
Eu disse ao Monsenhor:
— Monsenhor, há um lanche em cima, para o senhor.
Subimos, e o Secretário sentou-se diante de nós.
Voltando-se para mim, disse:
— Então Plinio! É a primeira vez que vejo você
chegar antes da hora na Faculdade de Direito.
— Mas Dr. Júlio, como é isso?
— Nas aulas, ou você chegava à última hora, ou
entrava atrasado, driblando o bedel, e eu bem sabia disso e deixava
passar. Adiantado você nunca chegou.
Ele tinha razão, nunca, nunca.
— Agora, hoje, na hora de comungar, mudou tudo. E
o primeiro a se levantar para ir comungar foi você.
— Dr. Júlio, é isso mesmo.
Ele resmungou mais um pouco [115].
Mas no mau-humor dele havia qualquer coisa de amistoso, e era dito para me
colocar bem no conceito do sacerdote, para que Monsenhor soubesse que,
quando se tratava de coisas relativas à religião, eu não relaxava [116].
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Foto de
formatura da turma de Plinio Corrêa de Oliveira (círculo), dezembro
de 1930. |
6. “A.U.C.” depois que saí da Faculdade
E assim terminou a vida acadêmica.
Era costume, naquele tempo, o aluno não voltar mais à
Faculdade após a formatura. E era considerado de mau tom voltar para
conversar com os colegas na Faculdade.
O que aconteceria com a A.U.C.? [117]
Eu não podia continuar a presidir a organização.
Então pedi demissão [118].
Infelizmente a entidade decaiu. Não houve continuação
da luta.
Cerca de sete meses depois, tive que ir à Faculdade
para carimbar um diploma, uma coisa assim. Quando entrei, muitos dos
estudantes que me conheciam começaram a gritar “Pliniooooo, Pliniooooo”,
por brincadeira cordial. E um deles gritou bem alto: [119]
— Pessoal, cuidado! O Plinio voltou! O Plinio
voltou!
Mas ele dizia isso com a intenção de me agradar.
E depois acrescentou:
— E agora a A.U.C. vai voltar a ser uma potência,
que já não é mais! [120]
Infelizmente a A.U.C. foi virando cor de
fumaça e desapareceu* [121].
*
Ela foi absorvida
em 1938, por decisão da autoridade eclesiástica, pelo setor correspondente
da Ação Católica, isto é, a Juventude Universitária Católica (JUC). Esta
tomou itinerário ideológico próprio, e veio a se tornar mais tarde
tristemente célebre na história do catolicismo brasileiro como
propulsora do esquerdismo católico o mais radical (cfr.
Um homem, uma obra, uma gesta — Homenagem das TFPs a Plinio
Corrêa da Oliveira, Edições Brasil de Amanhã, Artpress, 1988).
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