1. Aos vinte anos, mentalidade ultramontana
inteiramente formada
Quando entrei para a
Congregação Mariana de Santa Cecília e comecei a participar do movimento
católico, posso dizer que já era inteiramente um
ultramontano [1],
e quase todas as idéias que tenho hoje, na sua raiz eu já as tinha [2].
Aos 20 anos, quanto ao mundo contemporâneo, eu já havia tudo visto,
contado, medido e pesado. De lá para cá houve torrentes de explicitações,
em vista dos fatos que se sucediam, porém não mais do que explicitações [3].
Quais eram essas minhas
idéias?
-
Eu era partidário convicto de
uma catolicidade radical, e convicto de que um catolicismo de meias-tintas
não resolveria absolutamente nada.
-
Convicto também de que só se é
católico, sendo absolutamente fiel ao Papado, e é nessa fidelidade
absoluta ao papado que está a substância do catolicismo.
-
Profundamente convicto
igualmente de que a Igreja é propriamente a coluna do mundo, da ordem
temporal, da ordem civil e da ordem moral. E que, portanto, só da Igreja e
da doutrina da Igreja, dos Mandamentos e dos ensinamentos dela poderia
decorrer alguma solução efetiva para a crise mundial.
-
Convicto ainda de que toda a
organização político-social decorrente do protestantismo, e de tudo que se
lhe seguiu, até o comunismo, representava a destruição da civilização.
-
Convicto também de que nos
encontrávamos muito adiantados nesse fenômeno de decomposição, e de que
deveria explodir uma grande crise que determinaria o fim da civilização
moderna.
-
Por cima de tudo, estava
convicto da importância da devoção a Nossa Senhora, embora não conhecesse
ainda o Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, de São
Luís Maria Grignion de Montfort, o qual me forneceu a expressão definitiva
do assunto devoção a Nossa Senhora. Mas compreendia bem que a devoção a
Nossa Senhora constituía o lado saliente da doutrina católica em matéria
de piedade e de minha vida espiritual.
-
Por fim — e aqui está
propriamente o traço característico da mentalidade que graças a Deus eu já
adquirira nesse tempo — tinha uma noção muito viva da diferença entre o
bem e o mal, da luta do bem contra o mal dentro da História, embora a
influência das forças organizadas do mal nesse combate eu conhecesse muito
deficientemente naquela época; tinha apenas uma certa noção intuitiva do
papel delas dentro dessa luta.
Como essas idéias
surgiram em minha cabeça? Como explicar que um brasileiro, nascido no ano
de 1908, numa cidade como São Paulo, vivendo inteiramente dentro do
ambiente brasileiro, aos 20 anos já as tivesse adquirido?
Para um não-brasileiro,
especialmente o europeu, creio que estas questões podem apresentar um lado
interessante, para ajudá-los a compreender o modo peculiar de como se
formam as idéias na cabeça de um brasileiro.
Isto ajudará também a
compreender o que se pode esperar de um país como o Brasil, enquanto
potencialidade ultramontana.
2. Minhas idéias nasceram, não dos
livros, mas da observação da realidade
Todas essas idéias se
formaram dentro de minha cabeça, não propriamente lendo a doutrina em um
livro e aplicando-a aos fatos, mas tomando uma atitude instintiva em face
dos fatos e como que adivinhando a doutrina contida nesses fatos.
Por conseguinte, esse
conhecimento não se deu por meio de dedução, mas de uma primeira intuição
que já continha em si tudo o que eu iria explicitar depois.
Não se tratava,
portanto, de um processo dedutivo, mas de um processo intuitivo em que,
num primeiro olhar, se via tudo, e depois crescia como uma árvore de
dentro da semente. Mas no primeiro olhar já estava tudo contido. É assim
que funciona uma cabeça brasileira [4].
Bem entendido, isto não
significava de minha parte um desprezo pelo livro. Mas eu julgava um erro
palmar considerar a cultura como mera resultante da quantidade de livros
que se leu. A leitura é proveitosa, não tanto em função da quantidade, mas
da qualidade dos livros lidos, e principalmente em função da qualidade de
quem lê, e do modo pelo qual lê.
Sustento que uma pessoa
muito lida, muito instruída — ou seja, informada de muitos fatos ou noções
de interesse científico, histórico ou artístico — pode ser bem menos culta
do que outra de cabedal informativo menor.
É que a instrução só
aprimora adequadamente o espírito quando seguida de uma assimilação
profunda, resultante de acurada reflexão. E por isto quem leu pouco, mas
assimilou muito, é mais culto do que quem leu muito e assimilou pouco.
A reflexão é o primeiro
dos meios desta ação positiva. Mais do que um repositório vivo de fatos e
datas, nomes e textos, o homem de cultura deve ser um pensador. E para o
pensador, o livro principal é a realidade que ele tem diante dos olhos, o
autor mais consultado é ele próprio, e os demais autores e livros são
elementos preciosos mas nitidamente subsidiários.
Contudo a mera reflexão
não basta. O homem não é puro espírito. Por uma afinidade que não é apenas
convencional, existe um nexo entre as realidades superiores que ele
considera com a inteligência, e as cores, os sons, as formas, os perfumes
que atinge pelos sentidos. O esforço cultural só é completo quando o homem
embebe todo o seu ser dos valores que sua inteligência considerou [5].
3. Meu temperamento nativo, calmo e
afetivo
|
Plinio aos dez anos |
Eu nasci, por
disposição natural, muito afetivo, muito propenso a gostar das pessoas [6].
Na minha candura infantil, imaginava que todo mundo era muito bom [7].
Em pouco tempo percebi que isso era uma ilusão [8].
Não pretendo aqui fazer
minhas confissões, muito menos a minha apologia. Mas talvez faça uma
indiscrição. Por tudo o que ficou dito aqui, o fundo de quadro da
narrativa deverá começar pela descrição de meu temperamento. Notem bem:
começo por falar, não de idéias, mas de temperamento, o que já é uma
característica bem brasileira.
O meu temperamento eu o
classificaria nativamente como muito calmo, calmo quase até à indolência;
muito equilibrado, equilibrado até o incrível e o inconcebível; mas ao
mesmo tempo muito rijo em uma coisa: naquilo que me convém, deito todo o
meu peso.
Por outro lado, é um
temperamento muito tendente à moleza, detestando a luta, detestando
brigas, detestando qualquer coisa assim. Mas também um temperamento que,
para um homem concebido no pecado original, e portanto com todas as
reservas que isto comporta, era fundamentalmente temperante.
Por fim, desde pequeno,
com um feitio de espírito muito voltado para a lógica, gostando muito da
lógica.
4. Ambiente familiar cerimonioso, calmo,
equilibrado, harmônico; papel de Dª Lucilia
Esse temperamento, esse
feitio de espírito, foi muito bem servido pelas condições de minha
educação.
Quando comecei a dar
acordo de mim, os primeiros contatos temperamentais e emotivos que tive
foram com a minha família materna. A minha família paterna era de
Pernambuco e eu quase não a conhecia [9].
Nasci da conjunção de
duas famílias trazendo, tanto da parte de meu pai como de minha mãe, uma
herança católica um tanto mais fervorosa e mais séria do que a comum,
junto com uma herança monárquico-liberal — mas liberal mesmo! — sem nada
de ultramontano*.
|
Lucilia e João Paulo,
genitores de Plinio.
Ela, uma Ribeiro dos
Santos, família dos “paulistas de quatrocentos anos”.
Ele, um Corrêa de Oliveira, descendente dos primeiros
colonizadores do Brasil e senhores de engenho em Pernambuco. |
* Dava-se nessas duas famílias a confluência
de duas aristocracias que marcaram a fundo a história do Brasil: a dos
senhores de engenho do Estado de Pernambuco, representada pelo pai de Dr. Plinio, o advogado João Paulo Corrêa de Oliveira, e a aristocracia dos
"barões do café" do Estado de São Paulo, da qual fazia parte sua mãe, a
tradicional dama paulista Lucilia Ribeiro dos Santos.
Os Corrêa de Oliveira descendiam dos
primeiros colonizadores do Brasil, "os bem-nascidos, os nobres do seu
tempo", segundo expressão do conhecido sociólogo Fernando de Azevedo
(cfr. "Obras Completas", 2a. ed., vol. XI, Edições Melhoramentos, São
Paulo, 1958, p. 107). Dentre seus membros ilustres destacou-se o Conselheiro
João Alfredo Corrêa de Oliveira, deputado em várias legislaturas durante o
Império, ministro e conselheiro de Estado, senador vitalício e finalmente
presidente do Conselho de Ministros, sob cuja vigência foi assinada pela
Princesa Isabel a Lei Áurea, libertando os escravos.
Já os Ribeiro dos Santos pertenciam
ao grupo tradicional dos "paulistas de quatrocentos anos",
fundadores da cidade de São Paulo e descendentes dos famosos bandeirantes,
os indômitos desbravadores do Brasil.
Entre os antepassados ilustres destacava-se
o avô de Dª Lucilia, Gabriel José Rodrigues dos Santos, deputado que se
afirmou no Parlamento imperial como brilhante orador e refinado homem de
salão. Sua filha, Dª Gabriela Ribeiro dos Santos,
mãe de Dª Lucilia, com sua forte personalidade e com seu grande estilo,
dava brilho à vida de salão do palacete de Dª Veridiana Prado, uma das
senhoras mais influentes da sociedade paulista, bem como do palacete do
Conde Antonio Alvares Penteado, ambos centros da vida social e intelectual
de São Paulo de então.
Dª Gabriela nasceu no dia 18 de dezembro de
1852, e faleceu no dia 5 de janeiro de 1934 com 81 anos. Era casada com
seu primo, o Dr. Antonio Ribeiro dos Santos, um dos melhores advogados de
seu tempo.
Como é natural, essa ilustre ascendência
teve ponderável influência na formação da personalidade e no modo de ser
do então jovem Plinio.
Eu formei meu espírito
nesse ambiente [10].
Eu vivia numa casa
muito ampla pertencente à minha avó, Dª Gabriela Ribeiro dos Santos. Ela
era viúva e nessa casa moravam dois casais: meus pais com dois filhos (Rosenda,
conhecida familiarmente como Rosée, e eu); e uma tia minha com o marido
dela e uma filha (Nestor Barbosa Ferraz e Brasilina Ilka Ribeiro Barbosa
Ferraz, conhecida como Zili, respectivamente cunhado e irmã de Dª Lucilia;
e a filha Ilka). Ocupavam apartamentos inteiramente diferentes num casarão
enorme.
A casa era freqüentada
por muitos parentes de fora. E essa primeira quadra de minha vida foi
caracterizada pela harmonia em todos os terrenos.
Em primeiro lugar,
harmonia do ponto de vista financeiro. Não era gente riquíssima, porque
nunca foi, mas rica. Tinha essa forma de conforto, essa grande largueza
que chegava quase até ao desperdício. E uma distinção que chegava quase ao
luxo.
Não era propriamente
luxo, nem era propriamente desperdício. Sem que nenhuma despesa fosse
irracional — todas as despesas eram racionais — gastava-se sem se perceber
que existia o dinheiro. Não existiam questões financeiras. Era tudo muito
harmonioso, muito lógico, muito igual.
Todas as pessoas da
família de mamãe tinham tendência para o formalismo. De maneira que eram
muito corteses umas com as outras, e com uma intimidade cerimoniosa, o que
exatamente tornava a intimidade agradável. Eu nunca assisti, no meu tempo
de pequeno, briga em casa — mas absolutamente nunca! Nunca briga nem
discussão.
Por outro lado, todos
eram muito alegres. Não no sentido de que se dessem risadas a todo o
momento, o que não é a verdadeira alegria. Às vezes se dava risada, mas
também, especialmente nas refeições, se tratavam assuntos sérios ou até
assuntos tristes.
Tudo isso comunicava um
tom de calma, gravidade, serenidade, bem-estar. E eu, na minha casa, tinha
a impressão do homem que repousa propriamente no ambiente feito para ele,
ou, se preferirem, da tartaruga dentro de sua casca e na sua lagoa.
Havia também na minha
família muita facilidade nas relações sociais, estas muito numerosas, mas
sem se entrar na intimidade de ninguém. O círculo doméstico era muito
diferenciado do círculo público.
* *
*
Minha avó era uma
grande dame até o último ponto. As tardes dela podiam ser postas em
música. Ela ficava sentada em uma poltrona, balançando-se, e com uma
pessoa cortejando-a; vinha um chazinho, ela se servia... Durante 40 anos,
ela viveu nessa espécie de redoma. Ela era amiga da Princesa Isabel e com
ela se correspondia [11].
Quanto à minha mãe,
Lucilia Ribeiro dos Santos Corrêa de Oliveira, ela tinha um modo de ser
afrancesado, junto a uma afetividade brasileira colocada em termos
afrancesados.
O afeto dela era
delicadíssimo, educadíssimo, nobre e de salão, até na maior intimidade. Eu
me sentia envolto por aquele afeto e sentia a conaturalidade desse afeto
com o ambiente criado pela Madame de Grand-Air*.
|
Bécassine e sua senhora, Mme.
la Marquise de Grand'Air |
* Uma das personagem das histórias em
quadrinhos da série Bécassine, desenhadas pelo cartunista Joseph
Pinchon e publicadas então pela revista infantil francesa La Semaine de
Suzette. Constituíam essas histórias verdadeiras aulas de sociologia,
e retratavam a doce e harmônica mescla, altamente catolicizada, dos
ambientes aristocrático e popular da França da Belle Époque
(1871-1914).
Ela era para mim,
repito, uma versão ao vivo do mundo da Madame de Grand-Air, como,
aliás, era também a seu modo minha avó [12].
Devido ao aspecto adamado e distinto de Dª Lucilia, durante muito tempo
chamei-a de Marquesinha.
Era a sua elevação de
alma que dava a clave de tudo o que ela fazia na sua intimidade. E essa
elevação de alma era imponderável.
Em uma alma sem
elevação, tudo isto seria banalidade [13].
Eu a venerei e amei em todo o limite do que me era possível. E, depois de
sua morte, não houve dia em que não a recordasse com saudades indizíveis [14].
|
Da. Lucilia,
em Paris, 1912 |
Encantava-me nela —
dentro dessa clave de elevação de alma — um misto de mansidão generosa
levada até o inacreditável, ao lado de uma firmeza inquebrantável quando
se tratava de princípios. Quer dizer, a justaposição desses dois
contrastes harmônicos realmente me atraía no mais alto grau [15].
Tudo isto formava em
casa uma espécie de mundo afrancesado, misturado com a influência
portuguesa pelo lado de meu pai, João Paulo Corrêa de Oliveira.
Ele era pernambucano da
cidade de Goiana, que fica hoje a pouco mais de uma hora de Recife. Ele
estudou na Faculdade de Direito do Recife e as ligações de Pernambuco com
Portugal eram muito mais freqüentes e intensas do que aqui no Sul. E o
pólo de Recife não era Paris, mas Lisboa.
Sabia canções e poesias
portuguesas, era muito lido em autores portugueses, e a sua formação
jurídica tinha uma nota portuguesa muito forte.
Não era um grande
advogado, mas era um muito bom advogado. E ele representava a nota
brasileira e portuguesa, que se juntava sem conflito à nota francesa dos
Ribeiro dos Santos, formava um todo só.
Ele tinha uma voz forte
e de timbre agradável. Quando ria, o seu riso cobria a casa e era pessoa
muito saudável. Quando tratava com minha mãe e com vovó, era muito
respeitoso. Foi este, enfim, o ambiente dentro do qual eu me formei [16].
* *
*
A esse quadro assim, eu
me aferrei em pequeno instintivamente, com todas as forças, porque ele
correspondia a todas as minhas qualidades e a todos os meus defeitos.
Todas as qualidades, as que estão vendo: a temperança, a lógica, o
equilíbrio etc. Todos os meus defeitos, porque eu era tendente à moleza.
5. As primeiras noções da existência do
mal
Nesta "história do
Chapeuzinho Vermelho", não havia entrado ainda o lobo. E a história do
lobo podemos defini-la assim:
Eu tinha dois tios — um
tio por afinidade e uma tia — de famílias de fazendeiros. Os filhos, na
época das férias, eram levados para a fazenda. Na fazenda eles montavam a
cavalo, faziam grandes raids, entravam no mato, se sujavam na
terra, gostavam de jogar pedras uns nos outros.
Eu me lembro de minha
estranheza. Por um lado, eu tinha implicância com essa maneira de ser, mas
por outros aspectos eu tinha loucura pela companhia deles.
Eu sentia uma desordem
robusta ali dentro. Eu representava uma ordem verdadeira, mas meio fraca.
Eu me sentia menos robusto, menos forte do que eles, eu não tinha aquela
seiva. E isso me deixava pouco seguro de mim.
Formou-se então em mim
uma primeira idéia de que essas influências representavam o mal e que a
oposição a isso representava o bem [17].
1. No choque com o ambiente, a idéia da
necessidade da luta
Minha meta inicial era
manter com os outros uma vida cordial. Em casa, com os meus primos, com
meus parentes, eu me dava perfeitamente bem.
|
Vista interna do Colégio São
Luís, 1924 |
Mas entrando para o
Colégio São Luís [18]
em 1919, aos 10 anos de idade, observando o comportamento dos outros
meninos, eu reformulei essa minha meta.
Fazendo elucubrações
ainda infantis, meio subconscientes, meio conscientes, dizia de mim para
comigo:
—
Meus colegas se dão cômoda e agradavelmente uns com os outros. Por
temperamento não sou briguento, sou cordato. E gosto da vida cômoda, da
vida agradável; gosto de levar as coisas por bem e de resolvê-las de
maneira conciliatória. Mas vejo também que, pelo caminho conciliatório,
faça eu a gentileza que quiser, tome eu a atitude cordial que entender, em
relação a eles eu levo a pior, isto porque sou casto, porque sou católico,
porque sou monarquista. Como não quero deixar de ser católico, não quero
deixar de ser casto, não quero deixar de ser monarquista, o caminho que se
abre diante de mim é o da luta. Vou aprender a lutar, e se só posso viver
lutando, viverei lutando. Mas hei de me impor, descobrindo o lado fraco
deles. Vamos para a frente!
2. Como nasceu em mim a idéia da
estratégia contra-revolucionária
Mas, como lutar?
Alguns princípios de
luta eu os deduzi ao observar o modo pelo qual as crianças de espírito
revolucionário sufocavam no colégio qualquer tentativa de um colega se
mostrar um pouco casto, um pouco católico, um pouco monarquista. Por pouco
que esse colega se manifestasse nesse sentido, isto determinava uma
pressão e uma caçoada de todo mundo contra ele.
Então fiz o seguinte
cálculo: “O verdadeiro não é dizer
que sou um pouco católico, um pouco casto, um pouco monarquista, porque
cai o mundo em cima de mim. Vou fazer o contrário: vou dizer que sou muito
católico, muito casto, muito monarquista”.
Com isto chegamos —
meus colegas e eu — a um regime de paz armada, em que eles não me
atacavam, mas faziam gelo em torno de mim. Era um regime de paz
armada que conduzi depois para um regime de paz cortês de parte a parte,
mas de garra de fora. Naquelas circunstâncias, eu não poderia querer coisa
diversa.
Tudo isto levava a
modelar em mim um espírito de luta contra-revolucionária, e bem cedo
percebi que a diplomacia fazia parte dessa luta [19].
Percebi também que os
alunos mais revolucionários procuravam impor-se com extremos de habilidade
e de força, mas viam-se ao mesmo tempo obrigados a esgueirar-se para
conseguir dominar a situação.
E pensava:
“Eu poderei mudar essa situação”.
Era uma consideração
calma, sem apegos, sem torcidas, feita com sagacidade, mas também com
resolução. E, pela ajuda de Nossa Senhora, foi assim que consegui
construir um conjunto enorme de observações, de análises e de conclusões —
tudo muito lógico, muito honesto e muito sério [20].
1. Na Universidade, batalha contra o
laicismo; boletim “O A.U.C.”
Comecei minha atuação
pública quando estudante da Faculdade de Direito do Largo São Francisco. O
ambiente que ali encontrei era de tal maneira laico que parecia não haver,
no meio estudantil de São Paulo, qualquer possibilidade de apostolado.
Inscrevi-me aos 20 anos
no movimento mariano, que então começava sua grande expansão. E iniciei
uma luta dentro da própria Faculdade de Direito em favor do apostolado
católico.
Fundamos na ocasião um
movimento chamado Ação Universitária Católica [21],
primeiro movimento universitário católico constituído naquela época em São
Paulo [22].
Fui depois eleito
deputado pela Liga Eleitoral Católica, na Assembleia Constituinte de 1934
— candidatei-me a deputado só para assegurar a vitória das reivindicações
católicas [23].
2. Mudança de tônica: a batalha contra o
progressismo e a esquerda católica
Entretanto, no começo
dos anos 40, a nota dominante de minha atuação se alterou.
Em vez de voltar-se
exclusivamente para os que não são católicos, fui posto diante da
realidade da penetração do progressismo e do esquerdismo nos meios
católicos.
Dei-me conta
imediatamente de que a salvaguarda do futuro do Brasil estava nas mãos dos
que lutassem para que os meios católicos não se deixassem envolver por
essas duas más tendências.
Foi então que,
escrevendo o livro
Em Defesa da Ação Católica, abri fogo dentro do
Movimento Católico contra o esquerdismo filosófico-teológico, bem como
contra o esquerdismo socioeconômico.
Minha luta, de lá para
cá, tem sido uma defesa da opinião católica contra a investida — ora
aberta, ora velada — dessas correntes de opinião.
Assim, defender a
civilização cristã e o Brasil contra esse perigo passou a ser o sentido
dominante de minha atuação [24].
Todas as pessoas,
instituições e doutrinas que amei durante minha vida, e que atualmente
amo, só as amei ou amo porque eram ou são segundo a Santa Igreja, e na
medida em que eram ou são segundo a Santa Igreja. Igualmente, jamais
combati instituições, pessoas ou doutrinas senão porque — e na medida em
que — eram opostas à Santa Igreja Católica [25].
E Nossa Senhora tem
sido pródiga comigo. Numerosos católicos têm-me dado a sua confiança [26].
Nossa Senhora foi sempre a Luz de minha vida, e de sua clemência espero
que seja Ela minha Luz e meu Auxílio até o último instante da existência [27].
3. Crise na Igreja, o grande sofrimento
de minha vida
O grande sofrimento de
minha vida foi a crise da Igreja. Ver essa crise trouxe-me um sofrimento
sem nome.
Assim, numa carta que
escrevi ao Cardeal Dom Carlos Carmelo de Vasconcellos Motta [28]
— em que eu pedia a ele para ser julgado por causa do livro Em Defesa
da Ação Católica, e da qual tratarei adiante — eu historiava
minha vida e dizia a ele que [29]
vivíamos em uma época de geral conturbação, e que fatos acontecidos
naqueles dias (referia-me à apostasia do Bispo de Maura) mostravam que as
próprias estrelas podiam cair do Céu, pois a alma nacional havia
estremecido ao fragor de uma coluna da Igreja que se partira [30].
As minhas maiores
aflições foram causadas por essa crise progressista na Igreja, pelo
processo de autodemolição a que ela era submetida, cada vez mais
acentuado, e pela abominável e pestilencial fumaça de Satanás que nela se
difundia [31].
Ver a Igreja traída foi
meu calvário durante toda a vida [32].
* *
*
Segundo o conceito
comum, vida feliz é a de um homem que consegue determinada coisa que lhe
satisfaz todas as apetências. E encontra nisso a sensação da estabilidade
daquilo que conquistou.
Mas há outra concepção
de felicidade que inclui a luta e o holocausto como elementos de
felicidade, por exemplo nas minhas lutas estudantis e universitárias e,
depois, quando fui professor de Universidade. Eu sabia que afirmar-me
ufanamente católico apostólico romano certamente me traria antipatias,
porque as pessoas não gostavam disso. Mas eu me afirmava tal.
Uma pessoa que tenha
lutado assim a vida inteira, na hora de morrer poderia parafrasear São
Paulo e dizer: “Bonum certamen certavi, cursum consummavi, fidem
servavi. In reliquo reposita est mihi corona justitiae, quam reddet mihi
Dominus in illa die justus judex” — “Combati o bom combate, corri a
corrida inteira, conservei a fé. De resto, está-me reservada a coroa da
justiça que me dará naquele dia o Senhor, justo Juiz” (2 Tim 4,7).
Quem puder dizer a Deus, na hora de morrer: “Dai-me, Senhor, justo
Juiz, a coroa da justiça que Vós me reservastes”, esse foi feliz [33].
NOTAS
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