Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Minha

 

Vida Pública

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Parte XI

Livros e Campanhas de grande repercussão na década de 1980

 

Capítulo III

Denúncia mundial do socialismo autogestionário francês muda a História do Ocidente (1981)

1. Caráter universal do Projet socialista: as TFPs entram na liça com a Mensagem

Em dezembro de 1981, nosso raio de ação se ampliou enormemente, em uma campanha de grande repercussão internacional que envolveu treze TFPs e atingiu os cinco continentes.

Foi o lançamento da Mensagem O socialismo autogestionário: em vista do comunismo, barreira ou cabeça-de-ponte? à opinião pública ocidental [28].

Constituiu ela ampla exposição e análise crítica do programa autogestionário de Mitterrand, então recém-eleito Presidente da República Francesa.

Esse trabalho, redigido por mim, foi endossado e divulgado em nome próprio pelas treze TFPs então existentes.

Para aquilatar o alcance do mencionado estudo, é preciso ter em conta que, no período que precedeu à primeira eleição do Presidente François Mitterrand, a expressão socialismo autogestionário correspondia a uma espécie de primavera propagandística mundial, de maneira a tornar-se moda nos ambientes da esquerda.

Todo intelectual que se quisesse mostrar “aggiornato”, isto é, “em dia”, dizia-se socialista autogestionário*.

* Também no Brasil, a onda autogestionária vinha chegando com força. Nesse sentido é curioso, por exemplo, o depoimento do conhecido jornalista de esquerda Paul Singer: Militantes exilados na Europa trouxeram de lá, depois que a anistia permitiu que voltassem ao Brasil, as experiências de socialismo autogestionário que floresceram na França” (cfr. Em dez anos de governo, nada é acaso, in Democracia Socialista, 13/3/2013).

Tal se devia ao fato de que as palavras “socialismo” e “socialista” estavam em franco processo de envelhecimento, o qual se tratava de sustar mediante um disfarce qualquer. Algo à maneira de uma senhora cujos cabelos estão branqueando, e que por isso procura tingi-los.

Assim, o socialismo, velho de tantas e tantas décadas, e já com o prateado de sua velhice estampado nos cabelos, refazia seu semblante chamando-se “autogestionário”. Era o modo de revitalizar-se e rejuvenescer [29].

O Projet Socialiste pour la France des années 80 — com base no qual o PS concorreu àquelas eleições — se inseria explícita e até ufanamente neste movimento geral.

*   *   *

Poder-se-ia estranhar que treze associações, sendo doze de outros países que não a França, se julgassem no caso de dar a público em todo o Ocidente uma Mensagem cujo tema essencial era um comentário das então recentes eleições francesas.

Mas tal objeção só seria concebível da parte de quem ignorasse o inteiro alcance do Projet socialiste de Mitterrand, a natureza do PS francês, bem como a inevitável e ampla repercussão da vitória socialista na vida política e cultural dos vários povos do Ocidente.

10 de maio de 1981: Mitterand presidente da República e, com ele, o projeto autogestionário se implanta na França

O gênio francês, ágil em conscientizar, lúcido no pensar, brilhante no exprimir, sabe debater esses problemas numa clave que os relaciona, em numerosas conjunturas históricas, com as cogitações universais da mente humana.

Ademais, o Projet afirmava ter como uma de suas metas a interferência na política interna, e mais especialmente na luta de classes dos demais países. Portanto, uma vez que o socialismo havia se assenhoreado do Poder, era de temer que utilizasse os recursos do Estado francês, e da irradiação internacional da França, para levar a cabo tal propósito

Assim, tratando da situação na França, as sociedades que subscreviam esta Mensagem se davam claramente conta de que muitas questões, naquela época em fermentação mais ou menos latente em seus respectivos países, poderiam ter seu curso apressado e quiçá arrastado ao ponto crítico, em função da repercussão mundial do que na França viesse a se passar [30].

Era uma Mensagem de alerta sobre a incompatibilidade entre os princípios perenes da civilização cristã, de um lado, e, de outro lado, a reforma autogestionária, na qual o PS prometera engajar a França, quando das eleições de 1981. Reforma esta gradual, mas também total, demolidora do direito de propriedade sobre o solo, a empresa, a escola privada, invadindo a família para organizar os filhos contra os pais, e não poupando sequer, em seu termo final, os lazeres, o aménagement doméstico (isto é, o arranjo interior da casa) e a própria pessoa de cada francês [31].

2. Oportunidade única: o socialismo mostra sua verdadeira face

A que título se ocupavam as TFPs de uma problemática à primeira vista toda ela francesa, e ante a qual, por conseguinte, só competiria à TFP francesa tomar posição? [32]

Há 50 anos, pela graça de Nossa Senhora, eu estava na luta contra-revolucionária [33]. Ao longo desse tempo, eu nunca tinha visto o socialismo apresentar-se com tanta clareza e tanta precisão como nos documentos do Partido Socialista francês [34]. Nunca tinha visto os revolucionários dizerem tão claramente e tão cruamente tudo aquilo que, segundo as conveniências do jogo deles, não deveriam dizer. E nunca vira um documento em que esse adversário se comprometesse tanto, quanto no conjunto de documentos que serviram de estaqueamento à nossa Mensagem.

Sem essa documentação, nossa denúncia não teria valido nada [35].

Tudo aquilo que o socialismo viveu de não dizer com clareza, viveu de manter na ambigüidade, o Partido Socialista francês, por razões que ignoro, declarou com uma precisão, com uma força de coerência extraordinárias, em vários congressos sucessivos, em vários manifestos, em vários documentos.

De maneira que o fundo radical não apenas comunista, mas transcomunista da meta autogestionária foi confessado e proclamado como próprio pelo socialismo francês.

Pela primeira vez em minha vida, eu via o socialismo inteiramente desmascarado por si próprio. E com a grande vantagem de ser desmascarado, não pelo livro de um intelectual qualquer, a respeito do qual o partido pudesse dizer que não representava o seu pensamento, mas por resoluções públicas e oficiais do próprio Partido Socialista autogestionário vencedor.

Apresentava-se diante de mim, portanto, uma oportunidade única de arrancar a máscara do socialismo internacional.

Então me atirei à denúncia desse socialismo, bem certo de que os meus leitores saberiam ver que, entre socialismo e socialismo, poderia haver diferenças de matizes, mas havia sobretudo identidade de corpo doutrinário, de metas e de ação. E que, portanto, o que de um deles se dissesse, do outro também se poderia dizer.

Tudo isso nos convidava a dar o grande lance, que de fato foi dado [36].

3. Estupor: seis páginas, 52 países, 33,5 milhões de exemplares

Comecei o trabalho de redação algum tempo depois de Mitterrand ter sido eleito presidente em maio de 1981.

Uma das minhas preocupações era surpreender a autogestão em seu nascedouro. O mito da autogestão começava a nascer e o mérito estaria em denunciar o mito enquanto ele ainda fosse pequenino [37].

Um trabalho desses não se faz da noite para o dia. Foi um documento trabalhosíssimo. Demorei, no meio de minhas ocupações, uns três ou quatro meses para acabá-lo.

Às vezes eu viajava para uma cidade do interior e ali redigia algumas partes. Outras vezes trabalhava em São Paulo mesmo. E em São Paulo era um trabalho quase diário [38].

A Mensagem ficou pronta, e no dia 9 de dezembro de 1981 ela foi publicada simultaneamente nos Estados Unidos, no Washington Post; e na Alemanha, no Frankfurter Allgemeine Zeitung; e posteriormente reproduzida em 45 diários de maior circulação de 19 países da Europa, América e Oceania.

Um resumo foi publicado depois em diversos países dos cinco continentes.

No total, a Mensagem saiu em catorze idiomas, atingindo uma tiragem total de 33,5 milhões de exemplares, em 155 publicações de 69 países, alcançando repercussões em 114 nações [39].

Esse grande lance foi dado pelas treze TFPs então existentes, dirigindo-se solidariamente à opinião universal e utilizando para isto um meio de propaganda especial: publicando em seis páginas de jornal a matéria de um pequeno livro de condensação.

Não me consta que se tenha feito algo com tanta audácia de publicidade. E, de uma vez, nos principais jornais dos principais países do mundo [40].

Até então, em escala internacional, o socialismo autogestionário ainda não fora questionado em seus últimos fundamentos filosóficos.

Inegavelmente a Mensagem das treze TFPs abriu uma brecha no silêncio geral a tal respeito. Pondo em evidência a incompatibilidade do programa do PS francês com a doutrina tradicional do Supremo Magistério Eclesiástico, e questionando gravemente o sistema autogestionário, a Mensagem concorria para dissipar a “lua-de-mel” com a opinião pública, na qual se expandia tão favoravelmente o prestígio da autogestão.

*   *   *

No Brasil, a Mensagem só foi publicada um mês depois. É que a crise polonesa de fins de 1981 concorreu fortemente para desviar a atenção mundial do êxito eleitoral do Partido Socialista francês* [41].

* Essa crise de 1981 quase envolveu o risco de uma terceira guerra mundial, pela reação causada no Ocidente por uma ameaça soviética de intervenção na Polônia, a pretexto do crescimento das greves e reivindicações sindicais de fins de 1980. E galvanizou de tal forma as atenções que, nessas circunstâncias, o esforço publicitário da Mensagem seria inútil. Passada a crise, e cessada a atmosfera de superexcitação por ela causada, a Mensagem foi por fim publicada na Folha de S. Paulo do dia 8 de janeiro de 1982.

4. Grande parte da mídia se mostra incomodada; houve exceções

Antes dessa publicação, era de esperar que os órgãos da mídia brasileira se mantivessem em atitude de simpática expectativa. Pois não seria outro o sentimento que lhes seria natural, vendo um compatriota atuar como porta-voz de tantas entidades de vários países, em um esforço publicitário de escala mundial.

Pelo contrário, em lugar de nos pedir que antecipássemos algo sobre o conteúdo da Mensagem, sobre a sua essência, sobre o seu pensamento, o que se viu foi, na maioria dos casos, investirem raivosamente como quem se sentisse mordido na carne viva.

Esses meios apresentaram sobre o fato um noticiário carregado de insinuações, as quais fugiam inteiramente ao tema tratado, num empenho em arrastar a discussão para o campo do mero fuxico [42]. Foi só sair a notícia de que as TFPs iniciaram essa campanha, que se levantou a zoeira: “De onde vem o dinheiro”?

Interessante notar que não se procurava saber de onde vinha o dinheiro do Partido Comunista Brasileiro. Nem de onde vinham os recursos, incomparavelmente maiores, que serviram para a campanha de Mitterrand na França e que propiciaram a vitória dele.

Aos jornalistas que me perguntavam sobre isto, eu respondia que as TFPs eram treze, e todas administrativa, jurídica e economicamente autônomas. Cada uma tinha as suas próprias finanças. Para saber de onde vinha o dinheiro, era preciso perguntar a cada uma delas no respectivo país.

Eu só podia, portanto, falar da TFP brasileira: os recursos para a difusão da Mensagem provinham de sócios e amigos da nossa entidade. E nenhuma entidade fornece a terceiros a nominata de seus doadores. Se, no tocante à TFP brasileira, um órgão do Poder Público, com competência jurídica para se informar, nos pedisse esses nomes, responderíamos no mesmo instante e com a maior facilidade. Tal órgão, de sua parte, ficaria obrigado ao sigilo próprio a uma repartição oficial.

Eu ainda interpelava esses jornalistas: a Mensagem das TFPs versava sobre um alto tema, que era a situação da França, a filha primogênita da Igreja, uma das nações mais ilustres da Terra. A partir dessa nação, começava a soprar sobre o mundo uma ideologia que, por uma série de razões, tinha todas as condições para prosperar.

Assim, era todo o mundo ocidental que estava no risco de ser posto em jogo, como resultado da vitória socialista na França. Sobre esse tema, a mídia não tinha nada a perguntar? Ela não se alarmava com essa perspectiva? Não a preocupava? O grande problema do mundo para a mídia era saber onde as TFPs tinham arranjado dinheiro para essa publicação?

Quando alguém levanta a questão do dinheiro antes mesmo de ter levantado a questão do mérito de um documento, dá mostras de que tal documento o está incomodando. Por que não o refutavam? Por que silenciavam sobre o seu mérito? [43]

Houve exceções nessa reação de certa mídia, como por exemplo um repórter da Folha que me entrevistou. Ele de fato fez perguntas sérias sobre o mérito do documento. Mas, fora dele, muito poucos.

5. Publicada no mundo inteiro, proibida na França

Em nenhum dos países encontraram as TFPs obstáculos para publicar, como matéria paga, sua Mensagem. De par em par, abriram-se para elas os órgãos de imprensa [44].

Não na França, onde a imprensa inteira se fechou, eriçada como um porco-espinho que levou um toque de lança [45].

Abstração feita dos órgãos declaradamente socialistas ou comunistas, foi oferecida sucessivamente a seis diários franceses de grande porte, de tiragem superior a cem mil exemplares, a publicação do texto.

Dois desses jornais chegaram até a se comprometer formalmente a publicar a Mensagem. Tão firme era esse compromisso que, na perspectiva de tal publicação, e de acordo com ambas as partes, uma agência publicitária chegara, no dia 11 de dezembro, a receber integralmente o preço estipulado.

Tudo isto não obstante, no dia 6 de janeiro de 1982 essa agência prevenia às TFPs que os dois cotidianos em questão acabavam de se recusar a cumprir o compromisso assumido. Motivo alegado: nenhum.

6. Governo francês e esquerdas: reações furibundas mas esquivas

Mas a Mensagem foi abrindo seu caminho largamente pelo mundo afora [46].

Em 12 de dezembro de 1981 (ou seja, três dias após a publicação do mencionado documento), o International Herald Tribune assim descreveu a reação do governo socialista francês face à aludida análise do Projeto Socialista para a França dos anos 80:

“Em Paris, fontes governamentais autorizadas disseram que não estavam preparadas para reagir a esta publicação, mas que a estavam estudando. ‘Absolutamente não há pânico, e estamos bem mais interessados em saber quem ou o que se encontra por detrás desta publicação’, declarou [...] um porta-voz do Eliseu, acrescentando que ‘mais tarde’ poderia haver alguma reação”.

Reação esta que em vão se esperaria, pois que não houve [47].

No dia anterior, eu havia lido a correspondência de Paris, enviada para a Folha pelo Sr. J. B. Natali.

Nos círculos que o sr. J. B. Natali quis ouvir, isto é, no Quai D'Orsay (Ministério do Exterior) e o PS (Partido Socialista), as reações foram intensas. Surpreendentemente intensas.

No Quai D'Orsay, um porta-voz disse que "as críticas da TFP ao governo francês são abusivas e excessivas". Mas acrescentava que “contra elas a França não levantará sequer um dedo por respeitar a liberdade de expressão”*.

* Esse “respeito” pela liberdade de expressão por parte do governo Mitterrand recebeu um desmentido pelos fatos, face à negativa maciça dos jornais franceses de publicar a Mensagem. Ficou patente que a máquina governamental francesa levantou não apenas um dedo, mas exerceu uma pressão de bastidores que teceu uma pesada cortina de silêncio publicitário para impedir o estudo das TFPs de circular na França.

Nessa linha, ainda foi mais longe o sr. Philippe Parrentir, do Partido Socialista: “os senhores da TFP são loucos delirantes”.

E uma das fontes latino-americanas do serviço de Relações Exteriores do primeiro-ministro disse: “uma organização com essa sigla (TFP) já evoca algo que provoca nos franceses uma enorme repulsa porque lembra ‘Trabalho, Família, Pátria’, slogan de Pétain”.

O Sr. J. B. Natali abordava ainda outros assuntos: preço pago pela campanha, o enorme “mistério” mantido por meu inteligente e valoroso amigo Caio Xavier da Silveira, diretor da TFP brasileira presente em Paris, acerca das demais cidades onde seria publicada a Mensagem etc. Evidentemente, temas colaterais, feitos para acirrar a polêmica, desviando-a ao mesmo tempo do ponto essencial, isto é, da análise das teses e dos argumentos contidos na Mensagem * [48].

* Houve outras reações dignas de nota, registradas no livro Um homem, uma obra, uma gesta; Um resumo dessas reações pode dar alguma idéia delas:

“A imprensa esquerdista desatou-se em fúria contra ‘as seis páginas de divagações anti-Mitterrand’ (Le Canard Enchainé, Paris, 16/12/81), verberando o ‘pavé indigesto’ ofertado pelo ‘professor brasileiro’ (Le Matin, Paris, 11/12/81), bem como a ‘publicidade de ditadores’ proveniente desse movimento de ‘iluminados integristas’ (Libération, Paris, 19/12/81), e outros insultos do gênero.

L’Humanité (11/12/81), órgão do Partido Comunista francês, saltando de cólera, se perguntava: ‘Quem permite a não se sabe que associação, mais ou menos brasileira, espalhar, a golpes de bilhões, idiotices destinadas a dar uma imagem repugnante do governo da República francesa? [...] É preciso não dramatizar esta barulhenta campanha internacional’.

“De fontes do Governo e do PS, a linha de conduta foi, de um lado, se esquivar sistematicamente da análise do cerne doutrinário da Mensagem. Uma das fontes do Ministério das Relações Exteriores chegou mesmo a declarar que ‘neste gênero de situações [...] sempre é mais conveniente não dizer nada’ (Jeune Afrique, Paris, 3/3/82).

“O primeiro-ministro Pierre Mauroy, em debate na Assembléia Nacional, referindo-se indiretamente à Mensagem, disse que, “quando a direita quer parecer nova, ela escava o arsenal das doutrinas anti-igualitárias e anticristãs [sic], que produziram ao longo da primeira metade deste século os resultados que todos conhecemos. Tornar-se-ia grave que, por simples hostilidade para com o governo, democratas se deixassem assim enganar por falsas idéias novas” (Le Monde, Paris, 18/12/81).

“Em Buenos Aires, a embaixada da França acusou a TFP, em nota oficial publicada em La Nación (20/1/82), de ter ‘insultado’ o programa do governo francês e a divisa ‘Liberdade, Igualdade, Fraternidade’, que — segundo o comunicado da representação diplomática — estaria ‘inscrita’ na bandeira de seu país. (Onde? Na bandeira tricolor francesa não há qualquer inscrição...). A TFP argentina respondeu em nota publicada no mesmo La Nación (24/1/82), pedindo a dita Embaixada que exibisse onde, na Mensagem, se encontrava o tal ‘insulto’. A embaixada manteve-se em explicável silêncio”.

*   *   *

Eu não estava disposto absolutamente a cooperar, de minha parte, para que a contenda descambasse para esse nível.

Escrevi então um artigo para a Folha de S. Paulo em que adiantei para o público as teses essenciais que a Mensagem das TFPs continha* [49].

* Este artigo tinha como título Autogestão, dedo e fuxico, e foi estampado na Folha de S. Paulo do dia 11 de dezembro de 1981.

*   *   *

A certa altura me chegou ao conhecimento que o diretor do Ufficio Stampa do Vaticano, em contato com um representante do Ufficio da TFP na Cidade Eterna, afirmara que a Mensagem havia causado em Roma uma impressão profunda, e pedira um exemplar [50].

7. Exorcizando o socialismo enquanto filho da Revolução Francesa

O socialismo autogestionário francês se proclamava inteiramente coerente com a trilogia da Revolução de 1789: Liberdade-Igualdade-Fraternidade. Para ele, a abolição do patronato na empresa era a conseqüência lógica da instauração da República. Ele apontava no patrão um pequeno rei que remanesce no interior da empresa, e no rei o grande patrão que a república democrática eliminou.

Por isso, o PS francês traçava, entre a vitória final do socialismo autogestionário e a Revolução Francesa, toda uma genealogia de revoluções: 1848, 1871 e a Sorbonne-1968 [51].

E o que estava dito na Mensagem era precisamente isto: que o socialismo autogestionário se dizia, ele próprio, a continuação da Revolução Francesa. E, no proclamar este fato, ele denunciava a Revolução sua mãe.

Também denunciava a si mesmo, e com argumentos tão bons, que foi com as próprias palavras do socialismo autogestionário que fizemos, como que num exorcismo, o monstro da Revolução bradar para o mundo: “O socialismo é filho da Revolução Francesa”!

De fato, há qualquer coisa na Revolução Francesa que faz dela a tradução, para a ordem temporal, de todos os erros do Protestantismo na ordem espiritual (cfr. Revolução e Contra-Revolução, cit.).

E como o que se passa na ordem temporal abala muito mais a mentalidade das pessoas de nossa época do que aquilo que se dá na ordem espiritual, uma bombarda jogada na Revolução Francesa seria muito mais nociva ao dinamismo geral da Revolução do que a bombarda jogada na própria fronte já envelhecida, já empergaminhada e sem expressão do velho Protestantismo. Portanto, era ali que a Revolução tinha que ser ferida.

E era o que estava dito na Mensagem.

Com isso fizemos uma Mensagem que tocava no essencial do espírito da TFP, que é o espírito católico enquanto denunciante da Revolução. Nós fizemos disso algo que de fato atingiu todas as extremidades da Terra [52].

8. “Laborem Exercens”, um endosso ao socialismo autogestionário?

A Mensagem estava acabando de ser redigida quando saiu a lume, em 14 de setembro, a encíclica Laborem Exercens, de João Paulo II. Os mais importantes meios de comunicação social do Ocidente a acolheram com ampla e simpática publicidade.

Sem dúvida, a Encíclica apresentava ensinamentos novos, nem todos desenrolados até suas últimas conseqüências, doutrinárias e práticas.

Isto propiciou que, o mais das vezes, a publicidade dada ao documento difundisse a impressão de que, conforme João Paulo II, o regime socializado, propugnado pelo PS francês, encontraria na Laborem Exercens importante respaldo [53].

Seria ela uma versão católica do socialismo autogestionário francês?

Compreende-se o alcance da pergunta, especialmente na perspectiva católica, que era a das TFPs e da Mensagem lançada por estas*.

* Esta pergunta foi abordada de frente na Nota 29 da Mensagem.

Ela apresenta um resumo da doutrina tradicional da Igreja que fundamenta o direito de propriedade a partir da apropriação daquilo que não tem dono, ou da remuneração do seu trabalho, ou ainda da herança adquirida por sucessão hereditária.

Traz então textos pontifícios que trataram do assunto, como a Rerum Novarum, de Leão XIII, a Quadragesimo Anno, de Pio XI, e a Radiomensagem de Pio XII, de 14 de setembro de 1952, ao Katholikentag de Viena.

Depois explica que o Estado, sem exorbitar de sua função específica, pode também, de modo restrito e em circunstâncias especiais, possuir e administrar bens por razões de interesse comum. Entretanto ele deve deixar os demais bens nas mãos do domínio privado. E esta é a ordem natural das coisas.

Já o Projet do PS francês hipertrofiava a propriedade coletiva dos grupos sociais, transformando cada um destes, em relação a seus componentes, em um mini-Estado totalitário. E o Projet qualificava de privada a propriedade autogestionária, se bem que esta fosse instituída — em larga medida imposta — e até regulada discricionariamente pelo Estado.

Ora, a publicidade que se tinha feito em torno da encíclica Laborem Exercens comunicava a impressão de que João Paulo II afirmara já não ser um imperativo da ordem natural que a propriedade privada (portanto a não-estatal) fosse habitualmente individual. E que, em princípio, era legítimo e até preferível ser um direito, o de propriedade, normalmente exercido, não por proprietários individuais, mas por grupos de pessoas, para melhor atender à sua finalidade social. Nisto consistiria a socialização da propriedade.

A ser aceita essa intelecção do documento de João Paulo II, seria preciso concluir que tal socialização estaria em forte contraste com os princípios do Magistério Pontifício tradicional, e que a encíclica dava importante respaldo ao regime socializado propugnado pelo PS francês.

Ao católico zeloso, seria penoso carregar nos ombros a responsabilidade de fazer sobre a encíclica de João Paulo II essas afirmações. Pois teriam um alcance incalculável no plano religioso e socioeconômico.

Com efeito, a se admitir semelhante oposição entre o referido documento pontifício e os documentos tradicionais do Supremo Magistério da Igreja, daí se desdobrariam conseqüências teológicas, morais e canônicas sem conta.

O PS francês afirmava a conexão lógica entre a reforma autogestionária da empresa, por ele preconizada, e a da economia em geral, a do ensino, a da família e a do próprio homem. Essas múltiplas reformas não eram, para os socialistas franceses, senão aspectos de uma só reforma global.

E tinham razão: “Abyssus abyssum invocat” - “Um abismo atrai outro abismo” (Ps. 41, 8).

Portanto, não se via a possibilidade de que um Pontífice Romano, abrindo as comportas à autogestão pleiteada pelo socialismo francês, apoiasse implícita ou explicitamente essa reforma global.

*   *   *

A Mensagem punha muito em realce o imperialismo doutrinário que marcava a política exterior do PS, e portanto também do governo socialista francês. Ela mostrava que a expansão internacional do socialismo autogestionário era meta relevante da diplomacia do Sr. François Mitterrand [54].

O Presidente francês já havia dado os primeiros passos nesse sentido, manifestando o seu apoio ao governo da Nicarágua e à guerrilha em El Salvador [55].

9. A Mensagem quebra a “aura” da autogestão. Conseqüências em cadeia

O fato inegável é que o socialismo autogestionário francês foi a seu tempo a ponta de lança da Revolução e o mito lançado para se impor como uma mentirosa terceira solução entre o capitalismo e o comunismo [56].

E a autogestão socialista era a meta internacional a serviço da qual o PS francês prometera instrumentalizar o governo, as riquezas, o prestígio, o rayonnement (ou seja, a irradiação) mundial da França [57].

Era, portanto, a ave de rapina mais recente saída dos antros do comunismo. E era também a tentativa de conquista mais falaciosa, mais soez, mais ágil, mais reluzente que a propaganda comunista havia imaginado.

Aí veio a campanha da Mensagem [58].

Sem camuflagem, o imperialismo comunista não conseguiria caminhar no mundo.

A opinião pública francesa, fortemente alertada, percebeu que a autogestão não era senão camuflagem e a rejeitou nas eleições cantonais de março de 1982.

Por sua vez, a rejeição da camuflagem autogestionária na própria terra que lhe servia de foco de irradiação enregelou e pôs de sobreaviso todas as áreas da opinião mundial que, logo depois dos êxitos socialo-comunistas de 81, vinham se deixando contaminar por ela.

Essa contaminação caminhava despreocupada. O primeiro documento com publicidade internacional que contra ela se ergueu — a Mensagem das TFPs — saiu a lume quando ainda os tenores e as primadonas de esquerda entoavam, por toda parte, a ária da autogestão.

Eles — e elas — diminuíram um tanto o volume de voz porque, mais sutis do que Mitterrand e sua equipe, sentiram que no público havia gente que não os ia acompanhando. Com o insucesso e o brado de alerta na França, a autogestão ficou congelada no mundo* [59].

* Ressentindo-se fortemente dos efeitos da Mensagem, a autogestão não pôde evitar um processo de decadência.

Onze anos depois (1992), a ministra socialista da Habitação, Marie-Noèlle Lienemann, declarava: “O Partido Socialista acabou. Nós temos que criar uma nova estrutura, um novo partido” (Folha de S. Paulo, 22/10/92). Essas declarações equivaliam a um verdadeiro atestado de óbito do sonho autogestionário dos socialistas franceses, confirmado pela substituição do radical programa de 1981 pelo anódino Novos Horizontes, adotado pelo Congresso do PS francês de 15/12/91.. Neste último se lia: “Já não se trata, como ocorria no que concerne à antiquada autogestão [sic!], de eliminar os empresários para substituí-los por dirigentes designados pelo Estado ou eleitos pela base [...] Os representantes dos assalariados não devem substituir os chefes na direção da empresa” (cfr. Michel Charzat, Un Nouvel Horizon, pp. 94, 96 e 97). Era o socialismo autogestionário se declarando decrépito pelos seus próprios dirigentes e partidários.

Chegamos a 2014 e vemos Manuel Valls, primeiro-ministro socialista do governo Hollande, defender uma mudança de nome do partido, para retirar o termo “socialista” (cfr. Clóvis Rossi, in Folha de S. Paulo, 3/4/2014). É preciso ter em vista que, em face da anterior decadência do Partido Comunista francês, que se tornou um pequeno partido de quinta categoria, a grande esperança das esquerdas francesas era o PS.

Manuel Valls posteriormente foi ainda mais longe, e lamentou o estado terminal da esquerda francesa, da qual o PS era o grande representante. Em pronunciamento feito na reunião do Conselho Nacional do Partido Socialista, em 14 de junho de 2014, afirmou ele que, diante das preferências que vêm sendo manifestadas pelos eleitores, nós poderíamos chegar “a uma era na qual a esquerda pode também desaparecer [...] sim, a esquerda pode morrer [...] Nós sentimos que chegamos ao fim de algo, ao fim talvez mesmo de um ciclo histórico para o nosso Partido [...] A esquerda nunca esteve tão fraca” (cfr. Journal du Dimanche, 14/6/2014; La Croix, 23/6/2014).

O golpe dado pela Mensagem de Dr. Plinio no socialismo autogestionário, no momento em que o PS se encontrava no auge de seu prestígio político, teve um papel chave na derrocada da influência socialista e das esquerdas em geral.

 


NOTAS

[31] Na França: o punho estrangulando a rosa, Catolicismo n° 376, abril de 1982.

[32] Autogestão, dedo e fuxico, Folha de S. Paulo, 11/12/81.

[33] CSN 21/11/81.

[34] Entrevista a supporters da TFP norte-americana, 1/6/92.

[35] CSN 21/11/81.

[37] CM 28/4/85.

[43] Mensagem telefônica, dezembro de 1981.

[45] CSN 16/1/82.

[48] A propósito da Mensagem das TFPs, coluna A palavra do leitor, Folha de S. Paulo, 15/12/81.

[50] CSN 16/1/82.

[51] Autogestão, dedo e fuxico, Folha de S. Paulo, 11/12/81.

[52] SD 30/7/82.

[55] Mensagem telefônica, dezembro de 1981.

[58] SD 30/7/82.

[59] Jeito, trejeito ou estertor, Folha de S. Paulo, 15/4/82.

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