Instituto Plinio Corrêa de Oliveira

 

A Inocência Primeva e a Contemplação Sacral do Universo

no pensamento de

PLINIO CORRÊA DE OLIVEIRA

© 2008 - Todos os direitos desta edição pertencem ao

INSTITUTO PLINIO CORRÊA DE OLIVEIRA

Dezembro de 2008

Clique para adquirir a obra impressa

 

Parte I

 

Capítulo 4

 

A inocência primeva

pode atingir a plenitude

no meio-dia da vida

 

1. A inocência no adulto

«Espírito inocente!». Essa expressão não raro produz um movimento de prevenção: «É um ingênuo!». «Um espírito infantil!». «Um homem fora da realidade!».

— Não necessariamente, é a resposta. O verdadeiro espírito inocente não é assim.

A inocência não é privilégio da infância e pode prolongar-se até o fim da vida. Pois todos os homens têm, no fundo do espírito, o padrão, os modelos ideais de todas as coisas. E — se não cometeram infidelidades revolucionárias, contra a ordem estabelecida por Deus na Criação — são capazes de encontrar em si esses modelos ideais. Feito isto, não é tão difícil alcançar a harmonia interna da alma que caracteriza a inocência.

À medida que o homem vai se tornando adulto, ‘começa a pensar em sua biografia, no que ele quer, no que vai dar, o que vai ser. Esse horizonte novo lhe dá uma idéia arquitetônica de si e do tempo que vai correr diante de si. Este fato tende a dissociá-lo dos pássaros e das borboletas da infância’.

Vem então a idéia de que as imagens da inocência eram fantasia, uma vez que para nada servem. «A realidade é saber se você vai ser ou não um grande profissional. Portanto viva para isso. Deixe ou amorteça todas as anteriores cogitações, inclusive suas batalhas da juventude. Eram sonhos da infância». E vem a obsessão: ‘ser advogado próspero, comerciante rico, engenheiro bem colocado, médico de boa clientela, jornalista ilustre ou prestigioso professor’.[1]

Ele se compara com os colegas: «Os elementos de sua geração vão galgando em marcha cadenciada a montanha do tempo, e você, ocupa a posição adequada?».

É a crise da maturidade. Mas, nessa crise, qual o papel da inocência?

‘Então a inteligência já está mais madura e os passarinhos da inocência — exprimamo-nos assim — podem cantar para nós uma canção nova. A vitória na crise da maturidade já leva o homem a pensar muito mais na outra vida.

‘A inocência é, então, como a flecha da Igreja de Notre-Dame, apontando para cima’.[2]

 

2. O verdadeiro inocente é sagaz

A inocência — no sentido específico aqui adotado — não consiste apenas em não cair em falta, como já foi dito, mas numa ordem interna do espírito: harmoniosa, calma, cheia de idealismo.

Põe-se então uma pergunta: que relação há entre essa ordem interna posta pela inocência e a visão externa das coisas? Que relação há entre essa visão e a felicidade? Pois é claro que a ordem interna necessariamente influi na visão externa, e reciprocamente.

Por um jogo de afinidades, o inocente procura fora de si aquilo que combina com seu estado interno. Assim, ele vai buscar o bom, o verdadeiro, o belo.

E tem, em relação ao mau, ao errado e ao feio, uma rejeição como que instintiva, simétrica à atração que sente pelo bem, pela verdade e pela beleza. E, por esse lado, ele pode ser um crítico severo, no que dá mostras de sagacidade.

Portanto, o espírito verdadeiramente inocente não é um ingênuo e não se deixa levar pelas aparências. As sirenas de alarme de sua alma são sensíveis, e disparam com facilidade. Se alguém tiver verdadeira inocência, não será fácil enganá-lo.

Vale uma comparação: o homem saudável, dentro de sua saúde, compreende melhor o estado de doença que o doente; e assim como não é preciso adoecer para aprender a evitar a doença, não é necessário perder a inocência para não ser ingênuo. Da mesma forma, um homem muito reto compreende melhor a desonestidade do que aquele que é semi-desonesto; e o inocente compreende melhor o mal que o não inocente.

O espírito admirativo pode ter grande perspicácia, mas para isso é preciso ‘ser adamantinamente límpido, áureo e reto’.[3]

Para se ser muito sagaz, não é preciso ter o temperamento oblíquo. Por ter amor ao bem, o inocente compreende como é a sinuosidade do mal e, sem inalar nada de sinuoso em sua alma, percebe de longe a serpente chegar, e sabe como desfechar o golpe fatal nela.

‘Há duas formas de a pessoa ser sagaz: ficar no mesmo plano que o inimigo sinuoso que avança, ou colocar-se como que no alto de uma montanha. Assim, sem percorrer os caminhos sinuosos, vê-se o sinuoso chegar: «Ah, eu te conheço e sei bem de onde vens. Conheço-te bem, não porque simpatizei contigo, mas porque te detestei»’.[4]

Esta deve ser a sagacidade do inocente de todas as idades.

Este tipo de sagacidade é semelhante à de Nosso Senhor quando disse: «Dai a César o que é de César»... Jesus Cristo retrucou aos fariseus como que do alto de uma montanha. E retrucou ‘em toda lealdade, porque a resposta é de uma lealdade exímia, se bem que de uma dialética apropriada para responder a um fariseu’.[5]

Há, portanto, na inocência, uma luz de ouro que não se transforma em treva para entrar na treva, mas rasga a escuridão!

A conseqüência é que o verdadeiro espírito inocente é um homem combativo — não um adocicado, um irrealista, um sonhador. Ele chega ao ápice da inocência dardejando o mal, em choque com ele e recusando-o totalmente.

 

No me mueve, mi Dios,

para quererte

 

Soneto de feitura perfeita, incluído por Marcelino Menéndez Pelayo em sua obra Cien Mejores Poesías da língua castelhana, atribuído comumente a Santa Teresa, mas também a São João da Cruz e outros autores espanhóis (cfr. Fr. Ángel Marín O.F.M., do Directorio Franciscano, no site www.franciscanos.org):

 

No me mueve, mi Dios, para quererte

el cielo que me tienes prometido,

ni me mueve el infierno tan temido

para dejar por eso de ofenderte.

 

Tú me mueves, Señor, muéveme el verte

clavado en una cruz y escarnecido,

muéveme ver tu cuerpo tan herido,

muévenme tus afrentas y tu muerte.

 

Muéveme, en fin, tu amor, y en tal manera,

que aunque no hubiera cielo, yo te amara,

y aunque no hubiera infierno, te temiera.

 

No me tienes que dar porque te quiera,

pues aunque lo que espero no esperara

lo mismo que te quiero te quisiera.

 

Santa Teresa de Ávila

3. Inocência e nobreza de alma

‘A matriz de tudo quanto é nobreza está nesse fundo da alma humana pelo qual ela é capaz de amar tudo, e até a si mesma, pelo amor de Deus; de maneira a destacar-se desse amor animalesco que o homem tem por si mesmo, que é a matriz de toda vulgaridade, de toda baixeza de alma, de toda torpeza.

‘Não se deve amar a Deus porque Ele nos dará o êxito, mas sim porque Deus é Deus! Essa posição inteiramente desinteressada não deve pedir nenhuma forma de recompensa’.[6]

 

4. A inocência nos séculos que se foram

A inocência já foi o valor característico de alguma era histórica?

Sim; a própria História registra esse fato. A Idade Média foi ‘a era em que os homens mais conservaram este espírito de infância’[7], e não poucos historiadores o confirmam.

Os medievais ‘eram corajosos, leais, honrados, piedosos; tinham fé. Porém criam com este espírito inocente, que nada tem de comum com o que hoje se vê, mesmo entre muitos dos que crêem’.[8]

Por exemplo, São Luís Rei. Na cruzada, ‘todo revestido de uma armadura de ouro, era mais alto do que qualquer dos homens de seu exército. Quando chegou ao lugar da batalha saltou para dentro das águas do Mediterrâneo e entrou pela praia adentro, cheio de entusiasmo’.[9]

Um rei que salta para fora de seu navio e é o primeiro no desembarque!

E que dizer da inocência de Santo Tomás de Aquino? ‘Ele acreditou inteiramente na lógica, como na fé, e obteve a perfeita conciliação entre a lógica e a fé. E voou — porque aquilo já não é andar, é voar — nos horizontes do raciocínio, com a pureza de um serafim. A lógica dele é tão pura quanto é puro o azul, o vermelho, ou o dourado dos vitrais de uma catedral. Nele, os conceitos de pureza, de sublimidade e de radicalidade se unem’.[10]

A placidez operosa do copista

De uma reunião em 23 de dezembro de 1974:

 

Um medieval está copiando certo livro. Deveria ser desses copistas profissionais, dos quais alguns eram artistas verdadeiros.

Sentado numa mesa junto à janela, ele está vestido com uma roupa de cor entre marrom e preto, ampla, na qual se percebe que ele se movia completamente à vontade, e que o agasalhava bem. À sua direita, uma janela com vidros de fundo de garrafa, de cor verde, um pouco dado ao claro, fechada de tal maneira que a luz penetrava da direita para a esquerda, portanto iluminando o trabalho como deveria fazê-lo.

Ele, sentado com rosto plácido, escrevia com uma pena de pato grande.

E o copista fazia tranqüilamente seu trabalho; um trabalho belo, para o qual — percebe-se — ele tinha habilidade. Sem pressa, sem angústia, sem cansaço. Vê-se que estava ali sumamente entretido. Ganhando a vida e entretido.

Mas entretido com o quê? Com aquele ambiente que exprimia determinados valores morais. Por exemplo, o seguinte valor: placidez operosa. A placidez em si é uma qualidade moral.

Uma placidez operativa reúne duas perfeições opostas — porque aparentemente a placidez é o contrário da ação — mas harmônicas.

Não tem noção de que o dia se passou extraordinariamente bem. Para ele foi um dia normal. Essa normalidade não foi deliciosa, foi apenas deleitável. A diversão e o prazer são uma exceção na vida. O normal é essa deleitabilidade de cada dia. É o verdadeiro entretenimento da normalidade, da tranqüilidade, da placidez.

Plinio Corrêa de Oliveira

Dois grandes: um rei e um luminar da teologia e da filosofia. Isto vale também para os pequenos? Sim, pode-se admirar a inocência de um simples copista medieval.*

* Ver Excerto na próxima página.

Na Idade Média, esse idealismo inocente impregnava todas as classes sociais.*

* Um autor inglês escreveu: «Os fiéis se atrelavam às carrocinhas que transportavam pedras e as puxavam desde as pedreiras até a catedral. Seu entusiasmo se espalhou por todo o país. Homens e mulheres vinham de muito longe, carregados de pesados pacotes de provisões para os trabalhadores: vinho, óleo, e trigo. Senhores e damas nobres puxavam as carrocinhas como todos os outros. A disciplina era perfeita e o silêncio profundo. Todos os corações estavam unidos e cada qual perdoava a seus inimigos»  (Kenneth Clark, Civilisation, in Painton Cowen, Roses Medievales, Seuil, Paris 1979, p. 13).

 

5. A inocência será a pedra de ângulo dos séculos futuros

A inocência não é um estado de alma passivo, resignado, inerte. Mas, pelo contrário, ativo, atuante, empreendedor.

‘A inocência está sempre à procura de algo; de algo que é cheio de luz, cheio de paz, cheio de ordenação, concatenação e força, mas cheio de tranqüilidade.

‘Este algo tem a capacidade de tudo mover sem mover-se a si próprio.

‘Tem algo de inefável, de divino, de interior e de secreto; tem de ser, portanto, a luz e a glória, o marco fundamental e a pedra de ângulo dos séculos futuros.

‘Tem de iluminar a humanidade inteira, tem de inspirar os sistemas filosóficos, as instituições e os costumes, tem de despertar as escolas de arte e, muito mais do que isso, tem de inspirar os santos, e dar à Igreja novos e mais rutilantes dias de glória.

‘Esse algo será o reflexo do olhar, do sorriso e da majestade de Nossa Senhora’.[11] Algo que se tornará visível no Reino de Maria, segundo a previsão de São Luís Maria Grignion de Montfort.*

* Cfr. Parte II, Cap. 12.

 

Fontes de referência:

[1] Legionário, abril de 1941. [2] 19-12-1979. [3] 16-5-1974. [4] Sem data. [5] Sem data. [6] 4-5-1988. [7] 2-2-1972. [8] 2-2-1972. [9] 2-2-1972. [10] 2-2-1972. [11] Discurso em 14-12-68.