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Instituto Plinio Corrêa de Oliveira

 

A Inocência Primeva e a Contemplação Sacral do Universo

no pensamento de

PLINIO CORRÊA DE OLIVEIRA

© 2008 - Todos os direitos desta edição pertencem ao

INSTITUTO PLINIO CORRÊA DE OLIVEIRA

Dezembro de 2008

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Parte I

 

 Capítulo 3

 

A inocência, características,

combates e tentações

 

1. A inocência na criança

A posse da inocência importa em ter uma noção primeva (ou primeira) cristalina, da perfeição originária de todas as coisas. Naturalmente, é mais lúcida em uns, menos lúcida em outros, de acordo com a graça e com a natureza. Numa criança, é geralmente uma noção não consciente.

É possível que, em todos, esta noção primeva tenha existido em alto grau. Em alguns, em grau altíssimo.

‘A partir da inocência primeira, o senso psicológico é muito agudo, porém se embota com o tempo. Mas, por outro lado, há uma lucidez infantil que a maturidade pode levar depois à plenitude’.[1]

Existindo no homem uma ordem fundamental, é-lhe impossível admitir a desordem como condição normal e fundamental do universo, a não ser à maneira de um desastre colateral e limitado.

Em sua alma existem os primeiros elementos de um conhecimento racional, aliado aos primórdios de um amor cognoscitivo.

Este primeiro conhecimento tem na aparência profundidades racionais assombrosas e também superficialidades não racionais espantosas. Não se sabe bem como é que esses conhecimentos convivem! Mas na realidade se conjugam perfeitamente.

Vem daí que a criança fica vermelha quando se diz que o que fez é feio. Para educá-la, dizer que fazer alguma coisa é «feio» é mais cogente do que dizer que é «errado». E isto é muito significativo.

A inocência é, portanto, uma forma de aliança com Deus que todas as almas tiveram em sua primeira infância. Há aí algo do gênero da famosa cena de Deus andando com Adão no Paraíso. É uma graça dos primórdios, em que o Criador se agrada conversando com sua criatura, o Autor com sua obra.*

* Alusão ao Livro do Gênesis 3, 8.

Napoleão reconhece que o dia mais feliz de sua vida foi o da primeira comunhão: ele, que se coroou em Notre-Dame! Não é dizer pouco. É um testemunho eloqüente. E Chateaubriand, com sua pena de grande autor, diz algo semelhante.

A primeira confissão e a primeira comunhão de Chateaubriand

Das Memoires d’Outre-Tombe (Librairie Générale Française, 1973, pp. 103-105):

Chegando à Igreja, prosternei-me diante do santuário e fiquei como que aniquilado. Quando me levantei para ir à sacristia, onde me esperava o superior, meus joelhos tremiam. Eu me lancei aos pés do padre, e mal consegui pronunciar meu Confiteor. «Bem! não se esqueceu de nada?», disse-me o homem de Jesus Cristo. Fiquei mudo. Suas perguntas recomeçaram, e o fatal «não, não meu padre» saiu de minha boca. Ele se recolhe […] e se prepara para dar-me a absolvição.

Um raio que o Céu tivesse lançado sobre mim teria causado menos medo; eu bradei: «Eu não disse tudo!» Esse temível juiz, esse representante do Árbitro soberano, cuja fisionomia inspirava- me tanto medo, torna-se o mais terno pastor; ele me abraça e se derrama em lágrimas: «Vamos, me disse, meu querido filho, coragem!»

Jamais terei um momento igual em minha vida. Se me tivessem tirado de cima de mim o peso de uma montanha, meu alivio não teria sido maior: eu soluçava de felicidade. [...]

O braço [do confessor] não faria mais que baixar sobre minha cabeça o orvalho celeste; inclinei-a para o receber; o que eu sentia participava da felicidade dos anjos. Fui me precipitar no seio de minha mãe que me esperava ao pé do altar. Eu não parecia o mesmo a meus mestres e meus colegas; caminhava de um passo leve, a cabeça alta, o ar radioso, com todo o triunfo do arrependimento. [...]

Este dia [da primeira comunhão] tudo era de Deus e para Deus. Sei perfeitamente o que é a fé: a presença real da vítima no santo sacramento do altar era para mim tão sensível quanto a presença de minha mãe a meu lado. Quando a hóstia foi depositada sobre meus lábios, senti-me todo iluminado por dentro. Eu tremia de respeito, e a única coisa material que me ocupava era o receio de profanar o pão sagrado.

René de Chateaubriand

Uma boa criança tem uma forma de abertura de alma por onde é muito pouco interesseira. É meiga, é afável; com facilidade dá o que tem. Uma criança boa faz, por exemplo, pequenos desenhos com que procura presentear os outros.

Tem um senso de admiração muito grande em relação aos mais velhos. Procura vê-los sob os melhores aspectos e se encanta com esses aspectos.

Tomemos uma criancinha de três ou quatro anos. Uma das coisas que melhor caracteriza a inocência — mas a inocência no que tem de mais profundo, mais elementar e mais, por assim dizer, virginal — é certa forma de calma pela qual a criança dessa idade (dos tempos em que não havia TV, evidentemente) tem ‘uma calma por onde nada a agita, e de maneira geral não se apega nervosamente a nada. De maneira que quando, por exemplo, os pais lhe negam algo que ela quer, ela pode insistir, pode chorar, mas há um matiz que o estado temperamental dela não toma: o da cólera. Nem cólera, nem agitação...’.[2]

 

2. A calma: parte integrante da inocência

O menino que contempla a rainha, na foto já comentada*, está calmo? — No auge de sua vitalidade, ele entretanto não perdeu a calma...

* Cfr. Parte I, Cap. 1, item 13.

A calma, aliás, é parte integrante da inocência. ‘Pode-se estar numa situação em que seja quase inevitável a sensibilidade efervescer. Mas a efervescência, pelo império da vontade, deve ser reduzida estritamente aos seus primeiros borbulhares’.[3] Além desse ponto não deve passar.

Em outros termos, há alguma coisa que, conforme as circunstâncias, o indivíduo não consegue vencer, porque não é natural que vença. Mas, sem embargo disso, ele conserva a vitória sobre a agitação em todo o limite em que é humano conservar essa vitória.

Existe inclusive um modo de ter apreensão e um modo de ter ira, pelo qual a pessoa não perde em nada o governo de si. Isto também pode chamar-se calma.

Não se trata de distensão ou relaxamento, mas de um estado de alma pelo qual todo o temperamento, todos os instintos, toda a sensibilidade reagem de modo inteiramente proporcionado àquilo que têm diante de si. Nesse sentido, a calma faz parte da inocência.

Aliás, tendo em vista o tema da felicidade, convém lembrar que ‘a calma é o maior prazer da vida. Quem não compreendeu isto, não compreendeu nada: não sabe viver’.[4]

‘Figura comunicativa da calma por excelência é Nosso Senhor Jesus Cristo. Ele é a calma, em todos os sentidos e gradações possíveis da palavra calma, o tempo inteiro. O Sudário de Turim comunica calma’.[5]

 

3. O combate: uma nova dimensão da inocência

‘O natural é crescer com os outros meninos e rapazes. O instinto e a sociabilidade pedem isso, ele tem que sondar e tomar gosto do que a eles interessa. O mundo dos pássaros e das borboletas recua para trás.

‘Nessa altura, se a criança é realmente inocente, aparece uma provação que apenas se esboçava na fase anterior. Entra o mal, o sofrimento, a fidelidade penosa, a reação contra o que a agride, a luta, a batalha.

‘Se a inocência se mantém, toma outro caráter. Passa a encarar o mundo das almas, que ela não conhecia.

‘Ela também adquire a noção do horrível, que tinha muito vagamente, e pode passar a ser a sombra de sua vida.

‘O combate acaba se transformando num dos pólos da vida, fora do qual a inocência não é inocência. É um grande enriquecimento, e forma uma como que segunda inocência por cima da primeira. Segunda em todos os sentidos, porque muito mais consciente, muito mais conhecida, muito mais desejada. E, sobretudo, porque ela é esclarecida pela contradição. Ela se fecha como uma fortaleza.

‘De jardim aberto, ela se fecha em sua própria muralha. Mas ao mesmo tempo ela também define seu próprio eu. «Não vou ser os outros. Eu sou eu e, custe o que custar, serei eu, permanecerei eu; não sou os outros e luto com os outros se for preciso».

‘É uma maturação da alma, em todos os sentidos da palavra. Mas é também a aquisição de nova dimensão da inocência.’[6]

 

4. A tentação de Fausto em termos infantis

Mas — ai de nós! — como aconteceu com Adão e Eva no Paraíso Terrestre, em determinada altura vem a tentação: o mundo das belezas e das certezas originárias é apresentado como algo de muito alto, muito longínquo, e pouco útil. Precisa ser afastado.

Nasce lentamente na criança a tendência de ir deixando de lado a inocência. Pensa ela, difusamente: ‘«Essas coisas são fantasia; são irreais e não devem ser tomadas em consideração».

‘Pensamento de efeito trucidante!’[7]

‘A pobre mãe ou o pai, se forem católicos, talvez ensinem a criança a rezar a Ave-Maria — o que é coisa preciosa! nem se sabe o que dizer! —’[8] mas só isso pode não ser suficiente. Pois o senso da ordem, característico da inocência, está em uma esfera que requer um trabalho especial, não bastando os cuidados comuns.

A impureza esparrama a agitação e o infortúnio pela vida inteira

De uma reunião de conversa de 10 de dezembro de 1982:

Por causa da precocidade sexual dos tropicais, percebi que muito cedo a impureza se torna uma monomania. Tudo quanto não seja impureza passa a ser monótono na vida.

Essas tendências eram tão contrárias ao que eu entendia que a vida devia ser, que compreendi o seguinte: a impureza trazia consigo a desordem total; conferindo certo prazer e certo deleite no momento, esparramava a agitação e o infortúnio na vida inteira. Entendi que a impureza é um incêndio. E que se eu quisesse conservar aquela bela e nobre placidez a que estava habituado, devia me manter puro e deitar todo o meu empenho para ter pureza na minha vida.

Percebi também, rapidamente, que os impuros eram sujos: eles rolavam pelo chão, misturavam-se com a poeira, sujavam os dedos, não se lavavam. O senso da limpeza desaparecia ou minguava com a impureza.

Plinio Corrêa de Oliveira

Antes de ser tentada, a criança pode ter amado o bem com certo exclusivismo’[9], ou seja, rejeitando o que a ele se opõe. Se isto ocorreu, quando começa a tentação, ela está armada. Se ela o amou sem exclusivismo, mas por diletantismo, está desarmada.

 É na relação mais originária da criança com o bem que muitas vezes ela se define.

‘Difusamente, à maneira de um pensamento infantil, põe-se a questão: «Você atualmente tem a aprovação dos outros. Consente em ser diferente deles, se necessário? E ficar inteiramente isolado? Em penetrar no risco e na aventura de uma vida que não se parece com a de ninguém e que parece ser inferior à dos outros?»’[10]

Vem depois o colégio. A vida do colégio freqüentemente é um rio que corre em sentido contrário à inocência ( Ver Excerto ao lado ).

E então, com muita freqüência, de maneira mais explicita ou menos, o menino pensa: ‘«Tudo isto é espuma. São bolhas de sabão! Veja o outro lado, o valor e a grandeza das coisas materiais: aqui está o prestígio, a riqueza, a fama; mais adiante está a beleza física, com todas as formas de prazer. Veja a vida de louco que você vai levar! Você vai ser um faquir, um anacoreta, um eremita, você corre atrás de uma quimera...»’.[11]

É a tentação de Fausto* que se apresenta em termos infantis.

* Personagem legendário que vendeu sua alma ao demônio em troca de vantagens na vida terrena. Tema de um poema de Goethe.

Algo de semelhante pode se passar na cabeça de alguém que tenha conservado a inocência até a idade madura.


Fontes de referência:

[1] 3-6-1974. [2] 2-3-1995.  [3] 25-9-1986. [4] 25-9-1986. [5] 25-9-1986. [6] 19-12-1979. [7] 5-6-1974. [8] Sem data. [9] 29-5-1974. [10] 12-6-1974. [11] Sem data.