Plinio Corrêa de Oliveira
- IX -
Ouve-se o som do passo cadenciado, rumo ao cocho, sob o manto da vergonha.113 Plinio Corrêa de Oliveira |
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São Maximiliano Kolbe (1894-1941) foi um frade franciscano que, em nosso tempo, se ofereceu para morrer de fome em lugar de um pai de família num campo de concentração nazista
Neste capítulo O egocentrismo é a obsessão de se colocar no centro de todas as coisas. Numa formulação famosa, diz Santo Agostinho que dois amores fizeram duas cidades: o amor de si até o desprezo de Deus e o amor de Deus até o desprezo de si.114 Assim sendo, poderíamos dizer que, ou seremos habitantes da cidade do idealismo ou da acanhada aldeia do egocentrismo. Nesta última vegetam aqueles que se põem a si mesmos como centro de todas as coisas. Os exemplos são abundantes.
A Catedral e a melancia Quando estive em Notre Dame pela primeira vez, o guia contou que tinha estado ali uma caravana de turistas. Era dia muito quente, e entraram todos comendo pedaços de melancia gelada que estavam sendo vendidos na entrada. Eles visitaram boa parte da Igreja comendo e jogando as cascas no chão. E como era uma multidão de gente, quando saíram foi preciso varrer a Igreja para tirar fora as cascas de melancias. Como mostrar Notre Dame? Como mostrar essas maravilhas? Não é fácil, porque está cada um agarrado à sua melancia. E mesmo quando acabou a melancia, a alma está “melanciática”...115 Caim não foi idealista Só existe verdadeiro amor, verdadeira dedicação, verdadeira amizade, verdadeiro idealismo, onde há espírito de sacrifício. Quando não há disposição de se dedicar, de se sacrificar, qualquer dito de amizade ou declaração de afeto não passa de relambório. Ou a pessoa prova seu afeto, sua amizade e seu idealismo com obras, e com obras que lhe custem, ou fica provado que não tem verdadeiro afeto, verdadeira dedicação.116 Um amor não sério a Deus é como o sacrifício de Caim: um sacrifício não sério, de frutas podres, que exala uma fumaça que não sobe até o Céu. O amor sério a Deus é como o sacrifício de Abel: queima a oferenda, cujo perfume se estende aos circunstantes, e cujo fumo sobe ao trono do Altíssimo.117 Quando o horizonte é grande, é preciso saber ficar pequeno Um autor fala de certo gênero de gente que só quer ter alma na medida necessária para que o corpo não apodreça. Não conheço expressão melhor e mais pontiaguda para caracterizar certo estado de espírito. O homem contemporâneo pensa: “Estou levando minha vidinha que tem minha proporção, da qual sou dono e que guio como eu quero. Não quero um horizonte muito maior, diante do qual fico pequeno, e que me obriga a não prestar atenção em mim, mas em algo superior que devo admirar e a que devo me dedicar”.118 “O passo cadenciado rumo ao cocho, sob o manto da vergonha” Há milhões e milhões de homens que, no silêncio da indiferença, emitem o único som que se pode ouvir. É o passo cadenciado rumo ao cocho, sob o manto da vergonha. Todos com o manto da vergonha por cima, num passo cadenciado, rumo ao cocho. Vamos comer, vamos comer, vamos comer! Tendo comida, está tudo acabado. Comida e, bem entendido, sexo.119 Uma poesia [de 1971] ficou popular entre alunos da universidade de Moscou, e circulava em boletins clandestinos apreendidos pela polícia. É interessante que as coisas russas, por causa já do bafo do Oriente que penetra no país, têm uma conotação poética muito grande. “Quanto a mim, não sei para onde ir. Perguntar qual deve ser o caminho, a quem e como? Minha voz ainda é muito fraca e tímida. Meus amigos, por agora, o que temos a fazer é ajudar outros cegos a atravessar a rua”. No que o estado de espírito deles se diferencia da podridão mefítica — porque não há outra palavra — do Ocidente? É que eles são gente que pergunta para onde ir. Quem não pergunta para onde ir, é como um bicho que vai para o cocho; farejou que tem comida, e lá vai sem raciocinar. Caminha ao apelo do estômago. Aqui está a diferença. E quem pergunta para onde vai, este pode encontrar Nosso Senhor no caminho. O autor pergunta: qual é nosso dever no momento? Somos cegos e temos que atravessar uma rua com todos os riscos. Ajudemo-nos uns aos outros, pois nossa voz ainda é tímida e fraca demais para perguntar aonde iremos. É possível ter entranhas cristãs sem ter vontade de ir ao socorro destes cegos e dizer: “Olha! Aqui está a luz”?120
Eu sou o foco de tudo! Uma pessoa entregue ao vício do egocentrismo tem como prazer fundamental não só estar desfrutando sempre a vida, mas estar sentindo-se sempre a si próprio. No que consiste esse sentir-se a si próprio? Em algumas afirmações interiores: “Sou a causa, o foco, a sede de tudo quanto há de extraordinário em mim. Tudo isto está em mim como uma propriedade minha, e isto ninguém me tira, porque é co-idêntico com minha personalidade”. É uma espécie de embevecimento de pegar, de sentir, de chupar a si próprio. Imaginem um homem sedento a quem se dá uma esponja embebida com água: ele chupa aquilo. Assim é o vaidoso em relação às suas coisas: “eu sou...”, “eu sou...”, “eu sou...”. Cada pessoa é realmente algo de inefável que os outros não percebem bem. Isso existe em todo o mundo, até no último dos homens. Ele tem um atrativo que Deus percebe e os outros não percebem bem, mas ele percebe. Ele dirá: “Sou uma obra-prima”. E é verdade, porque cada homem é uma obra-prima, sabendo-se ver bem as coisas. O sujeito a isso acrescenta: “Se sou isto, não quero dever isto a ninguém. E a suprema alegria da vida tem que ser que eu me sinta a mim próprio e sempre me rejubile com isto”. Mas essa alegria é uma alegria inquieta. Por quê? A pessoa sente que isto tem um traço de verdade, mas é sobretudo uma enorme mentira. A pessoa sente falhas, sente lacunas, sente insuficiências, e sobretudo sente inveja. Vive numa espécie de nostalgia daquilo que não tem; e essa nostalgia produz inveja. Portanto, ao lado desse prazer, uma frustração contínua e universal. Esta angústia e frustração contínua é o que fez Salomão dizer — no Livro da Sabedoria — que todas as coisas não são senão vaidade, mas vaidade no sentido etimológico da palavra, quer dizer, aquilo que é vão. Todas as coisas são uma ilusão impalpável, não têm realidade; “vaidade e aflição do espírito”. Não passam disso.121 |