Plinio Corrêa de Oliveira

 

- II -

Desinteresse, a marca d’água do idealismo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Só quando o homem se gasta inteiramente é que ele sente o alívio das energias que sobram dentro dele.

Plinio Corrêa de Oliveira, Reunião em 5.8.1975

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Neste capítulo

A felicidade honesta é menos intensa do que a desonesta? Mais mitigada? Mais passageira? É a pergunta que não poucos se fazem, geralmente respondendo equivocadamente.

Mas, de fato, pode-se dizer dela o que São Bernardo disse sobre o aspecto fugidio da glória.

É o assunto deste capítulo.

Um rei - São Luís IX - lava os pés dos pobres: desinteresse completo, nenhuma vantagem, puro idealismo

O jovem de peito forte

Está surgindo um tipo novo de jovem.

Não é o jovem revoltado, inconformado, preguiçoso. Não tem medo de se afirmar, não é indiferente e não vive exclusivamente para o trabalho e para a carreira.

É o jovem idealista. O jovem enérgico, realizador, corajoso, abnegado. Ele gosta de pensar, gosta de analisar os acontecimentos e os fatos para formar sua própria opinião à luz da doutrina católica.

É sobretudo o jovem que não se incomoda com a gargalhada e a incompreensão dos outros, nem de sair à rua para receber muitas vezes um ultraje ao qual, com toda superioridade, ele não responde. Para receber uma agressão que, sendo física, ele responde com a altaneria e a eficácia de quem sabe defender sua honra.

É o jovem que, por esta forma, tem destruído no Brasil uma imagem velha e errada do que é o bom jovem.

Esta imagem falsa do jovem bom é o funeral da própria bondade. Se, para ser bom, um jovem tivesse que ser esse sub-jovem; se tivesse que renunciar a tudo quanto forma o brilho da juventude; se não tivesse que ser combativo, não tivesse que ser intransigente, não tivesse que ser verdadeiramente homem, não tivesse a coragem de falar alto e bom som, não tivesse que discutir, não soubesse argumentar, não soubesse apresentar-se diante de um auditório onde todo mundo pensa de um modo diferente, e não soubesse proclamar as virtudes que ele pratica — se um jovem, para ser bom, não devesse ser assim, mas devesse ser um sub-jovem, seria o caso de dizer que a bondade não é bondade.

Ele sabe que tem responsabilidades, tem sua dignidade pessoal, tem suas convicções ensinadas pela fé, e dessas convicções se ufana. Ele se ufana de ser católico, ele se ufana de ser puro. Compreende que a impureza é uma vergonha, e que a pureza é uma glória. Ele compreende que não crer é ser cego, e que aqueles que creem são verdadeiramente os que veem.

Ele compreende que aquele que tem um ideal e luta por um ideal vale muito mais do que aquele que tem carreira e luta por uma carreira; porque aquele que luta por uma carreira, no máximo merecerá respeito, e aquele que luta por um ideal merece veneração.

E ele sabe dizer claramente as verdades para cada um; sabe falar mais alto, mais grosso, colocar-se no centro da luta e enfrentar quem quer que seja.

Ele divide a cidade. Ele é como um peito forte contra o qual as águas da opinião pública se rompem em duas caudais diferentes. Ele separa os bons dos maus, seguindo a Nosso Senhor Jesus Cristo, do qual disse o profeta Simeão que veio a esta terra para que se conhecessem as cogitações de muitas almas.

 

Na promessa de Fátima Nossa Senhora diz: “Por fim o meu Imaculado Coração triunfará”. Pois sejam estes os nossos votos: que o triunfo do Imaculado Coração de Maria seja o erguer-se de toda a América de Nossa Senhora. Ela terá realizado por nosso intermédio o impossível.11

 

A parábola do pintor

Imaginem alguém que tivesse como ideal ser um pintor fantástico.

É nobre querer ser pintor, e querer ser grande pintor por amor à arte pode até ser santificante.

Se esse alguém nunca em sua vida se tornasse pintor, uma tristeza nimbaria de uma luz especial sua vida, se santamente resignada. Esse lado nobre e bonito sublimou-se, depurou-se, elevou-se e o marcou.

Ao aparecer diante de Deus, ele teria pintado na alma todas as pinturas que não fora capaz de pintar em tela alguma.12

Sainte Chapelle (Paris), pormenor de uma das numerosas decorações de seu interior (foto Paulo R. Campos) 

O paradoxo da tragédia

Cada um de nós tem na vida um sofrimento magno, que não é um lance da vida. Não! É uma determinada cruz que acompanha a vida inteira.13

Muitas vezes é na tragédia que o homem verdadeiramente se realiza.

A tragédia contém uma espécie de sublimação que eleva o homem a uma altura não imaginável, e o mistério da vida humana é realmente uma verdadeira beleza.

Este é o lado nobilitante desta renúncia firme, íntegra, completa, e desse ideal sobrenaturalizado.14

Muito de errado e alguma coisa de certo

Algo que desejou e que não se tem, algo que se queria ser e que não se é, etc. — são anseios que produzem na alma um efeito muito curioso.

Nesses desejos do homem, que ele não realiza, há muito de errado e alguma coisa de certo. E essa coisa de certo que o homem quereria ter, e que não tem, gera algo de sublime que chora dentro dele; que chora um hino, e que constitui uma espécie de luz que ilumina a vida dele inteira.15

A mediocridade e o idealismo

Vi uma vez uma pessoa dizer: “Sou muito feliz".

Ninguém na sala tinha idéia de por que ela era tão salientemente feliz. Que ela fosse comumente feliz, ou seja, comumente infeliz, entrava pelos olhos. Então alguém lhe perguntou, por amabilidade:

— Mas por que você é tão feliz assim?

— É porque tenho muitos filhos, e são todos medíocres.

Um pouco surpreendente, não é? Ela completou:

— O prazer na vida está na mediocridade. Se eu tivesse um filho muito inteligente, uma filha muito bonita, uma qualquer coisa assim, já começava a “torcida”. Meus filhos, não. Todos se instalaram em uma situação medíocre e sólida, e todos vivem mediocremente. Eu não tenho susto nem esperança, eu vegeto. A vida é vegetar. Meus filhos vegetam também, meus netos vegetam também, viver é vegetar.

Quem não percebe que por detrás se exalava uma tristeza? E que aquela atitude era um modo de tirar uma desforra da mediocridade própria e da mediocridade dos seus? Quem não percebe uma coisa dessas, e que havia no fundo um pranto pela mediocridade?

Todo mundo compreende que a inteira mediocridade, com o espetáculo da felicidade dos outros, não pode produzir felicidade.16

Algo que o homem quereria

A mediocridade não sacia o homem. Ela pode evitar ao homem muitos dissabores, mas deixa a uma porção de apetências insatisfeitas.

Podemos imaginar as mais variadas formas de vida, elas sempre fazem transparecer algo que o homem quereria, que não tem, e com o que sonha.17

A taça amarga da infelicidade

Às vezes se vêem nesta existência pessoas cercadas de tudo quanto pode tornar a vida agradável.

Tenho pena quando vejo uma pessoa assim. Porque, em geral, toda a infelicidade que não lhe foi distribuída ao longo da vida fica à espera dela, como uma taça amarga.

Em certa hora a pessoa tem de beber aquela taça.18

Muitas felicidades!

Conheço o caso de uma senhora que dava gargalhadas saborosíssimas. Era muito engraçada, muito animada, muito alegre.

Ela parecia nada ter a não ser felicidade. Inclusive a felicidade rara de ser casada com um marido tão bom que ela dizia preferir perder todos os filhos a perder o marido. Ora, encontrar um marido assim — digamos, para a penitência do sexo masculino — não é coisa freqüente!

Um dia, os infortúnios começaram a cair em cima dela. Numa ocasião, por questão de cortesia, tive de lhe dizer:

— Desejo-lhe muita felicidade, etc.

Ela estava de luto cerrado, e respondeu:

— “Nunca me deseje felicidade. Depois do que me tem acontecido, meu coração é negro como este vestido de luto. Para ele não existe mais felicidade alguma. É a tristeza até o fim dos meus dias”.

Disse de tal maneira, que eu não tive jeito de responder com uma dessas banalidades: Não, isso passa, melhora. Porque ela e eu sabíamos que a vida dela nunca mais seria como antes.

Seria grosseiro, seria pouco amável, seria estúpido usar uma dessas fórmulas de cortesia que todo mundo, aliás, sabe que não são senão cortesia.

Muitas e muitas vezes na minha vida eu tenho assistido a cenas desse gênero. Cheguei à conclusão de que, em certo sentido, nada faz mais mal aos homens do que a convicção de que a felicidade se pode obter nesta Terra.

Se esse sonho é impossível, se essa meta não se realiza, tenho de tomar a minha vida como ela é. Tenho de me tomar a mim mesmo como eu sou, com as limitações que tenho, com as impossibilidades que me cercam, e tenho de levar esta vida sem nostalgias vãs, sem apetências tontas, arcando com a aceitação deste destino que é o meu, mas não me satisfaz.

Arcando com essa aceitação corajosamente, é possível realizar o bem, cumprir o dever e ser o que Deus quer que eu seja, e não o que meus sonhos quereriam. Para depois, na outra vida, ter a plena e completa realização de tudo quanto eu quereria.19

Plinio Corrêa de Oliveira, com 24 anos, então jovem deputado eleito com 24.000 votos, um verdadeiro colosso para a população do Brasil em 1932

Uma carreira promissora

Uma vez me aconteceu algo que faria sonhar e delirar quase todos os moços de minha geração: fui eleito deputado aos 24 anos; todo rapaz de 24 anos no Brasil olhou para mim: 24 anos, 24 mil votos! Para a população eleitoral do Brasil daquele tempo, era um colosso.20

Vitória limpa de homem de consciência tranqüila, que tinha enfrentado, tinha vencido a impiedade e era elevado aos galarins da glória.

Mais ainda: parecia que um futuro brilhante me esperava.

A grande tragédia do homem consiste em desapegar-se de tudo isso e dizer: “Não senhor, o desígnio de Deus a meu respeito é assim, esse desígnio eu cumprirei. E passarei a minha vida inteira só pensando naquilo que devo fazer”.

A realidade é esta, e o que não for isto é lorota.

Mas isto é um sacrifício de todos os instantes, é um sacrifício de todos os dias, de todos os meses e de todos os anos, que só cessa no momento em que o homem expira.21

 

A “sofretiva"

Só quando o homem se gasta inteiramente, ele sente o alívio das energias que, então, não sobram dentro dele.

Nada faz o homem sofrer tanto quanto ter sua capacidade de sofrer não esgotada.

Muitas vezes o homem que sofre se sente realizado, porque soltou de dentro de si essa super-capacidade de sofrer. Quando chega em casa extenuado, ou quando se deita exausto, pode dizer: “Meu Deus, gastei tudo por vós, estou sem fôlego”.

Ele está muito melhor do que alguém que tenha passado todo o dia sem fazer nada.

Não adianta estar se poupando. O verdadeiro é o contrário, é gastar-se.22

Então a vida é um inferno?

Pode-se então perguntar: “Mas o que resta da vida? A vida então é um inferno?”

Não. É o contrário. Quando se agüenta tudo e se tem a consciência de estar fazendo o que se deve, há no fundo — e apesar de todos os horrores pelos quais se possa passar — uma sensação de algo que está realizando o fim para que existe; de algo que está atingindo o termo a que deve chegar.

Há uma sensação profunda de ordem, de asseio, de lógica e de coerência, que dentro de todo o mal estar e de todas as provações produz um fundamental bem estar: a idéia de que somos segundo Deus, de que Deus no alto do Céu nos ama, de que Nossa Senhora nos ama, e de que um dia os veremos por toda a eternidade.23

 

São Bernardo de Claraval (1090-1153)

A felicidade dada pelo idealismo

Pode-se dizer da alegria o que São Bernardo disse da glória, ou seja, que é como uma sombra: se corremos atrás dela, ela foge; se corremos dela, ela corre atrás de nós.

Quem dá, é alegre. Quem conserva, aquilo azeda e fica triste. Se quereis ser alegres, deem tudo.24

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