Plinio Corrêa de Oliveira
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Nunca um homem faz, por egoísmo, tanto quanto faria por idealismo. Plinio Corrêa de Oliveira, Reunião em 23.8.1973 |
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Neste capítulo Quando se fala de desinteresse, geralmente se pensa em desinteresse financeiro. Por exemplo, elogia-se alguém por ser um dirigente desinteressado: ele não faz o que faz só para ganhar dinheiro. O que é uma grande qualidade, sobretudo em nossos dias! Mas o desinteresse deve ir além disso, e se estender aos mais diversos campos. Por exemplo, em matéria de aplausos, no campo de nossa amizade e até de nossas relações com Deus, como expõe Plinio Corrêa de Oliveira neste capítulo.
A palavra “ideal”, uma música Idealismo! Os prêmios do idealismo! As provas do idealismo! As glórias do idealismo! As palavras vão tendo transformações ao longo das gerações. E às vezes elas significam uma coisa, mas musicalmente tomam um simbolismo um pouco diverso. Elas se afastam do primeiro significado, passam para outro, passam para outro, e assim se vão transformando. É o que ocorre com a palavra ideal, com a palavra idealismo. Mesmo a geração mais nova percebe que a palavra ideal tem certa ressonância, tem certa luminosidade, conduz a certa harmonia sonora, quase eu diria visual, que lhe dá um significado especial. O próprio modo de dizer a palavra ideal obriga quase a cantá-la! É uma palavra que de algum modo força o menos poético dos homens a dizer como um cântico: “O ideal!” Quando se diz “fulano tem um ideal”, entende-se que não é o simples e vil desejo de uma vantagem pessoal. Por exemplo, não se pode dizer no sentido próprio e pleno da palavra que o ideal de fulano é tornar-se riquíssimo. Tornar-se riquíssimo é uma meta, um objetivo, uma ambição. Não é um ideal. Pode-se dizer: “fulano é um homem ambicioso, quer fazer grandes coisas”. Em certo sentido, esta afirmação pode até ser um elogio. Porque querer fazer grandes coisas, ainda que seja na ordem das pequenas, é alguma coisa. Mas não é um ideal.3 Amigos, amigos, negócios à parte... Imaginem que eu tenha um amigo, e ele me diz: – Como gosto de você! Acho sua pessoa notável. Pouco depois eu lhe peço: — Eu precisaria de um favorzinho seu. — Ah, não! Isso já é outra coisa. Amigos, amigos; negócios à parte. Concluo então que, ou essa amizade que ele me tem leva-o a se dedicar por mim, ou não é amizade. Há um dito de um clássico romano que constitui um jogo de palavras interessante: “Amicus certus in re incerta cernitur” — O amigo certo se discerne nas ocasiões incertas. E isto é inteiramente verdadeiro.
Dois cegos em Veneza... (Reconstituição livre de trecho de palestra proferida pelo Prof. Plinio Corrêa de Oliveira nos anos 60, com extratos de conferência de 2-12-1988). Tendo diante de si o magnífico cenário da Praça São Marcos e do Palácio dos Doges, dois cegos imersos em suas trevas, mas loquazes, conversavam sentados num banco. — Você se lembra do tempo em que víamos os palácios de nossa cidade, que pareciam descer de nuvens que baixaram na terra... — Se me lembro! E dos canais ornamentados pelas gôndolas... — A Basílica parece trazida do Oriente por anjos. — E o Campanile, que sobe para o céu quase como um desafio... Diz o outro cego, com saudades: — As cores de Veneza! Lembra-se? É a cidade das cores... — Quem define a cor do mar? É verde? É azul? Entra aí outra cor além do verde e do azul? — Tudo era luz naquela cidade maravilhosa. Agora... dentro de nossos olhos, apenas o negrume das mais áridas e completas trevas... Num tom de voz propositadamente indiferente, diz o outro cego: — Sabe, ouvi dizer que Veneza vai desaparecer, devido a um grande maremoto. — Como é?! O outro cego repete, e dá pormenores de como imagina a potencial catástrofe. Embora nada enxergasse, os olhos do ouvinte se esbugalham dentro de suas órbitas, exprimindo todo seu espanto. — Já não basta a desgraça desta cegueira! Ah! Querida, maravilhosa Veneza... A voz do cego se altera. Um véu de tristeza cobre seu rosto; e seus olhos, apagados para sempre, se umedecem. Pragmático, diz o outro cego: — Fulano, não se esqueça de que somos cegos, e de que para nós, que não mais podemos ver, pouco se nos dá se Veneza desaparecer ou não, contanto que consigamos nos salvar do maremoto! — Não, jamais! Amo Veneza, não porque a posso ver, mas porque ela é o que é. Deixe-me lamentar esta beleza que o mundo vai perder! E o desconsolo toma conta de sua alma. Qual dos dois cegos tinha idealismo? O amor de um deles por Veneza era isento de egoísmo. Ele não pensava em si. Veneza, a rainha dos mares, valia pelo que era e continuava sendo uma maravilha, ainda que ele não a visse. O outro cego era um egoísta. A cidade valia enquanto ele a podia ver. A partir do momento em que não mais o conseguia, para ele perdera completamente o interesse. Ele era duplamente cego. Mas o amor do primeiro cego por Veneza era generoso, idealista e nobre de alma.4
Sem idealismo, uma espiritualidade contábil Sem o amor desinteressado, todos os impulsos para se cumprir os Mandamentos morrem, e se passa para a vida espiritual contábil; como numa balança, aqui estão os meus defeitos, ali minhas qualidades. A maior oblação é aquela em que há maior desinteresse. Abraão com Isaac, por exemplo.5 Aquele desinteresse é fabuloso, é puro amor. Pode-se lutar por puro amor, por exemplo, indo à Cruzada. Do mesmo modo como Isaac esteve para ser morto pelo pai. Isto é perfeitamente possível.6 Fazendo um negócio com Deus... É comum se rezar como quem diz: “De repente desaparece meu dinheiro, e é bom eu ter Deus próximo de mim. Há que fazer com Deus um negócio: Vou à igreja e rezo, para ver se assim compro a boa vontade d’Ele”. É uma providência para garantir o meu destino, mas não é amor desinteressado. É um desafio à Providência. O contrário foi, no Evangelho, o caso da Cananéia,7 aquela mulher que foi pedir a Nosso Senhor um milagre. Ele disse que o pão era para os filhos, e não para os cães.8 Resposta da mulher: Assim é, Senhor, mas também os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa dos seus donos. Nosso Senhor disse a ela: “Mulher, grande é tua Fé! Faça-se segundo queres”. Esta disposição eu preciso ter. Nossa Senhora exige da minha parte o estado de espírito de aceitar as migalhas... e às vezes nem migalhas.9
Devoção interesseira São Luís Grignion chama de devoto interesseiro10 aquele que pede a Nossa Senhora graças sobretudo de caráter temporal, ou que somente reza à Santíssima Virgem para conseguir favores: não por amor, somente desejando vantagens pessoais. Nos lugares de peregrinação a Nossa Senhora se vê grande quantidade de velas e ex-votos de pessoas que apenas pediram, com um fervor insistente, graças temporais, o mais das vezes curas de doenças. Graças espirituais, raríssimas vezes são pedidas. A pureza, a fé, o desapego, quem os pede? Não se vê. Apenas a cura de uma ferida, de uma moléstia incurável. E depois coloca-se o ex-voto. A apetência pelos bens espirituais é insignificante. O amor desinteressado a Nossa Senhora, quase nenhum.
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