Plinio Corrêa de Oliveira

 

EM DEFESA DA

AÇÃO CATÓLICA

O presente texto é transcrição da edição fac-símile comemorativa dos quarenta anos de lançamento do livro, editada em Março de 1983 pela  Artpress Papéis e Artes Gráficas Ltda - Rua Garibali, 404 - São Paulo - SP - Brasil

APÊNDICE

 I

AÇÃO CATÓLICA

Origem e desenvolvimento de uma definição

 (A definição clássica da A.C. e seu natural e maravilhoso desenvolvimento inspiraram a S. E. o Cardeal Piazza da Comissão Cardinalícia para a A.C. Italiana o artigo esclarecedor e substancioso que nunca será demasiado relembrar.)

 

I – A DEFINIÇÃO DE PIO XI

O providencial movimento de Ação Católica, que veio assumindo aspectos e formas cada vez mais adaptadas às exigências dos tempos, deve, sem dúvida, sua condição atual, tanto teórica como prática, ao gênio pastoral do pranteado Sumo Pontífice Pio XI. Se não coube a ele o merecimento de ter encontrado o nome nem o de ter iniciado o atual movimento dos leigos organizados, o qual surgiu, como é sabido, durante o Pontificado de Pio IX e continuou a desenvolver-se durante o governo dos seus sucessores Leão XIII, Pio X e Bento XV, todavia ninguém pode contestar a Pio XI o insigne merecimento de ter dado à Ação Católica uma definição clara e precisa, sobre a qual foi possível construir um edifício sólido, capaz de desafiar os séculos.

Escolhido para governar a Igreja depois de importantes experiências – que revelaram no movimento leigo de Ação Católica, a par de prerrogativas e benemerências consideráveis, também deficiências, como soe acontecer em todas as coisas humanas – Pio XI bem compreendeu, na sua sagaz e profunda intuição, que para salvar esse movimento de extravios e para assegurar-lhe a vitalidade, era mister enquadrá-lo na vida orgânica da Igreja. Na sua primeira encíclica UBI ARCANO, que contém em gérmen todo o seu prodigioso Pontificado, e que foi publicada depois de longas meditações, encontramos as linhas basilares da definição, que pouco depois, em memoráveis discursos, assim formulou: colaboração dos leigos no apostolado hierárquico. Esta definição, como o Papa mesmo deu a entender, tem sua origem no texto paulino, o qual, devido justamente à sua genial interpretação, ficou célebre: adjuva illas quae mecum laboraverunt in Evangelio (Fil, 4, 3). E, realmente, como a evangelização in evangelio constitui a substância do apostolado, que Cristo confiou aos Apóstolos e a seus sucessores, isto é, a Hierarquia divinamente constituída na Igreja, assim também, a colaboração prestada a esta obra pelos leigos quae mecum laboraverunt constitui a substância da Ação Católica. É impossível não ver a profundidade e exatidão dogmáticas desta definição.

II – COLABORAÇÃO OU PARTICIPAÇÃO

Com uma variante que, bem compreendida, não muda em nada o conceito, Pio XI gostava de substituir muitas vezes a palavra “colaboração” pela de “participação”, com o fim de salientar mais a união que a Ação Católica deve ter com a vida e atividade da Igreja. Podemos crer que esta variante lhe foi sugerida pela maravilhosa passagem, que se encontra em S. Pedro, e que foi citada e aplicada pelo Papa já na sua primeira encíclica: “Dizei aos vossos fiéis leigos que, quando unidos aos seus Bispos participam nas obras de apostolado e nas de redenção individual e social; então mais do que nunca são eles o genus electum, o regale sacerdotium, a gens sancta, o povo de Deus, que S. Pedro exalta” (I. Pt. 2, 9). Nesta estupenda aplicação é evidente que não se trata de uma participação formal no sacerdócio e no apostolado, mas sim duma participação na atividade sacerdotal e apostólica, a única possível a simples cristãos; mas também esta participação, por ser sobrenatural na sua substância e sublime nos seus fins, eleva grandemente a pessoa leiga, fazendo-a participar da auréola e dos frutos do apostolado.

III – NA PRIMEIRA ENCÍCLICA DE PIO XII

É-nos grato colocar desde já a primeira encíclica de Pio XI ao lado da primeira recentíssima do reinante Pontífice, Pio XII, “Summi Pontificatus”, a qual dedica à A. Católica uma página muito animadora e cheia de paternal complacência. Nela recorre a já clássica definição dos leigos formados na Ação Católica para a profunda consciência da sua nobre missão. Quais sejam concretamente esses leigos e qual a sua missão, declara-o o Pontífice numa esplêndida definição descritiva: “Uma fervorosa falange de homens e de mulheres, de jovens e donzelas, os quais, obedecendo à voz do Sumo Pontífice e às diretrizes de seus bispos, se consagram com todo o ardor de suas almas às obras do apostolado, a fim de reconduzir a Cristo as massas populares que dele se afastaram”.

O Santo Padre Pio XII prefere evidentemente a palavra colaboração, que é de mais fácil compreensão e menos exposta a errôneas amplificações; mas ele admite também e confirma a profunda interpretação do seu Antecessor quando escreve: “Este trabalho apostólico, realizado segundo o espírito da Igreja, consagra o leigo quase ministro de Cristo, no sentido que lhe dá santo Agostinho”. E o Pontífice refere justamente o texto agostiniano, que parece ser uma feliz antecipação e presságio duma atividade, que hoje tem um nome, uma doutrina e uma realidade consoladoras.

Pio XI afirmou que não sem especial inspiração de Deus definira a Ação Católica, como uma participação ou colaboração dos leigos no apostolado hierárquico da Igreja. Este testemunho é de tanta autoridade e tão solene, que não admite dúvida alguma. Aliás, sabemos que o Papa goza, mesmo fora do campo da sua infalibilidade, de uma assistência especial de Deus no governo da Igreja, ao qual está tão intimamente vinculada a Ação Católica. De resto, os fatos vieram a confirmar plenamente a realidade dessa especial inspiração de Deus.

IV – FRUTOS PRECIOSOS DA DEFINIÇÃO

Com efeito, do terreno sólido e profundo da definição papal surgiu copiosa e escolhida literatura dogmática, para a qual o próprio Pontífice subministrou os mais perspicazes e geniais elementos básicos. Na Sagrada Escritura se descobriram belíssimos textos capazes de iluminar os vários aspectos do movimento de apostolado leigo; sua necessidade e obrigatoriedade; sua admirável excelência, suas origens traçadas no Evangelho, nas Epístolas dos Apóstolos e na Tradição cristã; seus objetivos e suas características; enfim uma florescência de passagens escriturísticas, que encontram na Ação Católica sua aplicação legitima e, às vezes, tão natural, que parecem escritas justamente para ela. A Teologia, por sua vez, estudando e confrontando esse movimento com os vários dogmas, trouxe à luz e fez salientar harmonias estupendas e insuspeitas.

O conceito de apostolado hierárquico abriu o caminho ao estudo comparativo da Ação Católica, enquanto relacionada com a constituição divina e a vida orgânica da Igreja: ao passo que o conceito de colaboração serviu de guia para relembrar a grande lei da solidariedade cristã, a qual importa comunhão de interesses e reciprocidade de ação, para o bem de todos e de cada um em particular.

Daí se passou para a doutrina do Corpo Místico, ensinada por S. Paulo, e às verdades conexas de comum incorporação em Cristo, da vida sobrenatural em Cristo, da consequente obrigação de cooperar para o advento do Reino de Cristo. Nos dois sacramentos do Batismo, que realiza a incorporação e da Confirmação, que expressamente impõe a colaboração, subministrando juntamente com o título as indispensáveis energias, se viram não somente as fontes daquele sacerdócio régio, para cuja participação são chamados todos os leigos, mas também as características do seu apostolado.

V – HIERARQUIA E LAICATO

Assim é que, forçosamente, foi aprofundado o estudo das relações entre a Hierarquia e o Laicato, e encontrados os meios de colaboração correspondentes às necessidades dos tempos. De sorte que a Ação Católica foi solidamente construída sobre a doutrina.

A Ação Católica é, por natureza e definição, atividade de leigos organizados para o serviço da Igreja; portanto, não autônoma e independente. A colaboração importa necessariamente entre os colaboradores unidade de fins e concórdia nas práticas realizações; no nosso caso ela exige, além disto, subordinação à Hierarquia eclesiástica. Os leigos não podem, sem mais nem menos, entrar no campo apostólico, seja por causa da dignidade sacerdotal (que não possuem), seja por causa da natureza do apostolado, que por missão divina é reservado ao sacerdócio hierárquico.

É, portanto, da competência da Hierarquia determinar os objetivos concretos e as condições dessa colaboração, conforme as necessidades e possibilidades gerais ou especiais dos diversos lugares; sendo que a tarefa especifica da Ação Católica, é a de estudar no ambiente leigo as várias iniciativas de trabalho e de atuá-las, sempre que tenham para isto o selo da aprovação da competente autoridade eclesiástica. Só assim é que a colaboração pode ser frutuosa e ter a garantia do bom êxito.

Partindo deste princípio e com este espírito, foram as massas de fiéis convidadas ao trabalho apostólico; e é mister dizer que eles compreenderam a honra que se lhes oferecia com o chamamento para empresas tão sublimes e responderam com generosidade e prontidão verdadeiramente admiráveis.

Este sucesso foi certamente o melhor laudo da definição de Pio XI, a qual, achegando a Ação Católica à atividade da Igreja, enobreceu o trabalho dos leigos, elevando-os a atividade quase sacerdotal. Foi isto precisamente que compreenderam os fiéis, iluminados pelos Assistentes eclesiásticos, que a Hierarquia nomeou e lhes mandou quais enviados do Senhor, para representá-la junto às várias Associações. E os ótimos leigos da Ação Católica não só não encontraram interceptada, pela assistência dos sacerdotes, a sua própria atividade, mas tiraram dela imenso estímulo e proveito, tanto para a sua formação espiritual quanto para a segurança do trabalho apostólico. Não foi por nada que Pio XI com seu estilo novo e conciso aplicou à Ação Católica com relação aos Assistentes eclesiásticos, a significativa frase: “in manibus tuis sortes meae”.

VI – ESTREITAMENTO DA UNIÃO ENTRE O SACERDÓCIO E LAICATO

Apraz-me ainda observar que um dos mais preciosos frutos desta condição programática, a assistência espiritual do Clero, foi precisamente o de ter unido mais intimamente o laicato católico ao sacerdócio e sobretudo aos Pastores da Igreja, alimentando nos corações um devotamento comovedor e um apego sempre mais vivo ao Sumo Pontífice, Vigário de Cristo e chefe visível da Igreja Universal, aos Bispos, colocados pelo Espírito Santo a governar as Igrejas particulares, e aos párocos, colocados pelos Bispos à frente de uma porção da sua grei, àqueles, enfim, que constituem no sentido lato, a Hierarquia Eclesiástica, desde o vértice até a base.

É natural que somos nós os primeiros a nos alegrar com esses sucessos. Aliás, não há Bispo que não tenha tocado com as mãos a obra edificante e verdadeiramente providencial da Ação Católica, tanto na conduta de seus sócios – todos encaminhados para um profundo conhecimento e prática fervorosa da vida cristã, como também nos ubertosos frutos da atividade apostólica – destinada a debelar o mal e a movimentar o bem espiritual das famílias e da sociedade. E de fato, em certas paróquias onde a Ação Católica prestou seu auxílio ao ministério dos sacerdotes, ajudando-os a amanhar, semear e recolher, houve verdadeiras transformações. As unânimes atestações dos Bispos, párocos e sobretudo dos Augustos Sumos Pontífices, constituem, sem dúvida, uma magnífica apologia da Ação Católica.

Ninguém ignora o que pensava da Ação Católica o inolvidável Pio XI, que a ela se referia em todos os discursos, em todos os documentos, mesmo solenes, com sempre novas reflexões sobre o pensamento central da sua definição, com sugestões da mais palpitante atualidade, com apelos e exortações calorosas e comovedoras.

VII – NA HORA PRESENTE

A recente encíclica “Summi Pontificatus” deu a conhecer ao mundo, do modo mais eloquente, também o que pensa da Ação Católica o atual Pontífice Pio XII. Nesta encíclica atesta o Papa que, no meio das amarguras e preocupações da hora presente, encontra precisamente na Ação Católica, que já penetrou em todo o mundo, íntima consolação e alegria celestial, pelas quais dirige diariamente a Deus seu humilde e profundo agradecimento; afirma outrossim que da Ação Católica emanam fontes de graças e reservas de forças, que, nos tempos que correm, seria difícil apreciá-las suficientemente; diz ainda que a oração da Igreja dirigida ao Senhor da messe para que este envie operários à sua vinha, foi ouvida na forma correspondente às necessidades da hora presente, suprindo e completando felizmente as energias, muitas vezes impedidas ou insuficientes, do apostolado sacerdotal; finalmente conclui com estas estupendas palavras: “Em todas as classes, em todas as categorias, em todos os grupos, essa colaboração do laicato com o sacerdócio revela preciosas energias, às quais foi confiada uma missão tão sublime e consoladora, que maior não as poderiam almejar corações nobres e fiéis”. Realmente, em Pio XII repercutem a voz, as palpitações paternais e os elevados pensamentos do pranteado Grande Pontífice da Ação Católica.

VIII – A COMISSÃO CARDINALÍCIA NA ITÁLIA

À luz das augustas expressões da encíclica “Summi Pontificatus”, que para alguns terão sido, talvez, uma revelação, se podem agora melhor apreciar as providências tomadas por Pio XII, logo depois da sua eleição, inspiradas evidentemente, pela estima e afeto para com a Ação Católica. Refiro-me à instituição e nomeação da Comissão Cardinalícia, para a alta direção da Ação Católica Italiana.

Em vista do acúmulo e amplitude do trabalho que pesa sobre seu supremo e universal ministério, e dado sobretudo o grande desenvolvimento da Ação Católica na Itália, em vez de reservar-se pessoalmente a alta direção, como por razões óbvias o fizera seu venerando Antecessor, Pio XII decidiu entregar esse honroso cargo à mencionada Comissão, seguindo assim uma norma tradicional no governo da Igreja e aplicando à Itália o que já se praticava em outros países. É isto uma prova inequívoca do seu alto e paternal interesse, parecendo até indicar com isto uma certa orientação, que devia levar a seus últimos desenvolvimentos a definição de que acabamos de falar. Para formar a Comissão Cardinalícia chamou Bispos residenciais, isto é, tais que se acham atualmente no exercício do apostolado hierárquico o que parece indicar que se deve acentuar ainda mais a necessidade da dependência da Ação Católica da Sagrada Hierarquia.

IX – OS ASSISTENTES ECLESIÁSTICOS

Aliás não faltam precedentes. Assim é certo que, pela força natural das coisas, a atividade dos Assistentes Eclesiásticos no seio das Associações foi aos poucos assumindo maior importância. Consta que, em não poucas dioceses, considera-se oportuno dar a presidência da Junta Diocesana a um sacerdote, como intérprete e mais seguro executor das normas episcopais. Nem ficou esquecido o triste episódio de 1931, que trouxe, como conseqüência, os mútuos entendimentos entre a Santa Sé e o Governo Italiano, que bem se poderiam chamar supletórios da Concordata no que diz respeito à Ação Católica. Nessas convenções lemos a premissa que todos conhecem: “A Ação Católica Italiana é essencialmente diocesana e depende diretamente dos Bispos, os quais elegem seus dirigentes eclesiásticos e leigos. É claro, diretamente, mas não exclusivamente dos Bispos, os quais em seu próprio ministério ordinário estão subordinados à suprema autoridade do Vigário de Cristo. Nessa mesma ocasião se relembrou o célebre adágio do Padre da Igreja: “Nihil sine episcopo”, ao qual se poderia acrescentar, com as devidas proporções e limitações, este outro: “Nihil sine parocho”. O primeiro ato de Pio XII orienta decididamente a Ação Católica neste sentido.

Para a Comissão Cardinalícia poder cumprir o mandato recebido do Sumo Pontífice precisava de um órgão central que recebesse e transmitisse suas diretrizes; para isso surgiu o Oficio Central de Ação Católica, presidido naturalmente pelo Secretário da dita Comissão. Desta forma se conseguiu, sob a alta direção da Comissão uma direção central, à qual deviam corresponder, nas dioceses e nas paróquias, as direções diocesana e paroquial, respectivamente. Instituíram-se, portanto, os Ofícios diocesanos e os Ofícios paroquiais, enquadrados nos graus hierárquicos, isto é, no bispo, divinamente investido da autoridade ordinária, e no pároco, cui paroecia collata est in titulum cum cura animarum sub Ordinarii loci auctoritate exercenda (Can. 451, parágrafo 1). Não podia o apostolado dos leigos ser mais solidamente enquadrado na vida e na organização da Igreja.

X – CONTINUIDADE SUBSTANCIAL DA AÇÃO CATÓLICA

Apesar de tudo isto não houve nenhuma mudança substancial nos fins e na estrutura da Ação Católica, cuja organização interna e Estatutos ficaram intatos, excetuadas umas pequenas modificações que a Comissão poderá introduzir. Por isso continuará funcionando como antes, em suas várias graduações, naturalmente debaixo da direção da competente e correspondente autoridade eclesiástica. Somente as Juntas, que tinham apenas as funções de vigilância, e de coordenação, foram absorvidas pelos Ofícios, cuja incumbência é mais ampla e cujas decisões são mais eficazes, por isso que provêm da autoridade jurisdicional.

É óbvio que como as Associações devem manter-se no âmbito da ação propriamente dita, isto é, da execução dos planos de trabalho aprovados pelos Ofícios, assim também estes não podem e não devem sair das funções diretivas, pondo-se no lugar das presidências ou dos Conselhos das diversas Associações, com as quais, todavia, ficam vinculados por meio da Consulta, órgão complementar que presta aos Ofícios grandes serviços, comunicando-lhes os frutos dos estudos e das experiências feitas no campo do apostolado.

Os comunicados da Comissão Cardinalícia e do Secretário Geral já determinaram, em suas linhas mestras, a competência e as relações dos novos órgãos diretivos, o que será mais detalhadamente fixado nos Estatutos. Basta no momento, ter indicado o espírito orientador destas inovações, destinadas a promover maior união das organizações com a Hierarquia, o que será de grande proveito para a Ação Católica, e ter salientado a subordinação cultural hierárquica dos diversos Ofícios, os quais devem conhecer e perceber os limites das suas atribuições.

Se os Bispos estão obrigados a observar e a fazer observar, em suas próprias dioceses, os estatutos e normas gerais da Comissão Cardinalícia, a qual age em nome, e quase que representando o Santo Padre, com maior razão estará obrigado a isto o pároco, relativamente ao seu Bispo, do qual recebe o mandato para o momento de poder agir, no caso, a seu bel prazer. Por nada não existe um Ofício superior, o qual, quando necessário, saberá aplicar prontamente o remédio.

Reservando-nos para outro artigo umas considerações sobre as vantagens procuradas e previstas nas novas disposições, não queremos todavia concluir sem primeiro levantar o pensamento a Deus, a fim de agradecer-Lhe de todo o coração por ter inspirado a Pio XI uma definição, da qual tanto tem recebido a Igreja no decurso do seu glorioso Pontificado, como também por ter inspirado a Pio XII a idéia de consolidar a essa mesma definição da maneira mais autorizada e eloqüente, encaminhando a Ação Católica Italiana para novas metas e conquistas, com os auspícios desse novo Pontificado, cheio de gratas e seguras promessas.  

Adeodato G. Card. Piazza

Patriarca de Veneza

Membro da Comissão Cardinalícia para a A.C.I.

 

II

CARTA APOSTÓLICA

 de S. S. Pio X sobre “Le Sillon”

de 25 de agosto de 1910

 

Nosso encargo apostólico nos impõe o dever de vigiar sobre a pureza da fé e a integridade da disciplina católica, de preservar os fiéis dos perigos do erro e do mal, sobretudo quando o erro e o mal lhes são apresentados numa linguagem atraente, que, encobrindo o vago das ideias e o equívoco das expressões sob o ardor do sentimento e a sonoridade das palavras, podem inflamar os corações por causas sedutoras mas funestas. Tais foram, outrora, as doutrinas dos pretensos filósofos do século XVIII, as da Revolução e as do Liberalismo, tantas vezes condenadas: tais são ainda hoje as teorias do “Sillon”, que, sob aparências brilhantes e generosas, muitas vezes carecem de clareza, de lógica e de verdade, e, por este aspecto, não exprimem o gênio católico e francês.

Ao “Sillon” não faltavam relevantes qualidades

Durante muito tempo hesitamos, veneráveis Irmãos, em dizer pública e solenemente Nosso pensamento sobre o “Sillon”. Foi necessário que vossas preocupações se viessem somar às Nossas para que Nos decidíssemos a fazê-lo. Porque Nós amamos a valente juventude alistada sob a bandeira do “Sillon”, e nós a julgamos digna, por muitos aspectos, de elogio e de admiração. Nós amamos seus chefes, em que Nos é grato reconhecer almas elevadas, superiores às paixões vulgares e animadas do mais nobre entusiasmo pelo bem. Vós já os vistes, Veneráveis Irmãos, penetrados de um sentimento muito vivo da fraternidade humana, ir ao encontro daqueles que trabalham e sofrem para os levantar, animados no seu devotamento pelo amor a Jesus Cristo e pela prática exemplar da religião.

Foi nos dias seguintes à memorável Encíclica de Nosso predecessor, de feliz memória, Leão XIII, sobre a condição dos operários. A Igreja, pela boca de seu Chefe supremo, havia derramado sobre os humildes e os pequenos todas as ternuras de seu coração materno, e parecia convocar por seus anhelos campeões sempre mais numerosos da restauração da ordem e da justiça na desordem de nossa sociedade. Os fundadores do “Sillon” não vinham, no momento oportuno, colocar a seu serviço esquadrões jovens e crentes para a realização de seus desejos e de suas esperanças? E, de fato, o “Sillon” levantou, por entre as classes operárias, o estandarte de Jesus Cristo, o sinal da salvação para os indivíduos e as nações, alimentando sua atividade social nas fontes da graça, impondo o respeito da religião nos ambientes menos favoráveis, habituando os ignorantes e os ímpios a ouvir falar de Deus, e, muitas vezes, nas conferências contraditórias, em face de um auditório hostil, levantando-se, espicaçados por uma questão ou por um sarcasmo, para proclamar alta e orgulhosamente a sua fé. Eram os bons tempos do “Sillon”; era o seu lado bom, que explica os encorajamentos e as aprovações que não lhe regatearam o episcopado e a Santa Sé, enquanto este fervor religioso pôde encobrir o verdadeiro caráter do movimento sillonista.

Mas era ainda maior a gravidade de seus defeitos

Porque, é necessário dizê-lo, Veneráveis Irmãos, nossas esperanças, em grande parte, foram ludibriadas. Houve um dia em que o “Sillon” começou a manifestar, para olhares clarividentes, tendências inquietantes. O “Sillon” se desorientava. Podia ser de outra forma? Seus fundadores, jovens, entusiastas e cheios de confiança em si mesmos, não estavam suficientemente armados de ciência histórica, de sã filosofia e de forte teologia para afrontar, sem perigo, os difíceis problemas sociais, para os quais tinham sido arrastados por sua atividade e por seu coração, e para se premunir, no terreno da doutrina e da obediência, contra as infiltrações liberais e protestantes.

Que forçaram o Papa a condená-lo

Os conselhos não lhes faltaram, e, após os conselhos, vieram as admoestações. Mas nós tivemos a dor de ver que tanto uns como as outras deslizavam sobre suas almas fugitivas, e ficavam sem resultado. As coisas vieram assim a tal ponto que Nós trairíamos Nosso dever, se, por mais tempo, guardássemos silêncio. Nós devemos a verdade a nossos caros filhos do “Sillon” que um ardor generoso arrebatou para um caminho tão falso quanto perigoso. Nós a devemos a um grande número de seminaristas e de padres que o “Sillon” subtraiu, senão à autoridade, pelo menos à direção e à influência de seu Bispos. Nós a devemos, enfim, à Igreja, onde o “Sillon” semeia a divisão, e cujos interesses compromete.

O “Sillon” procura furtar-se à Autoridade da Igreja

Em primeiro lugar, convém censurar severamente a pretensão do “Sillon” de escapar à direção da Autoridade Eclesiástica. Os chefes do “Sillon”, com efeito, alegam que eles se movem num terreno que não é o da Igreja; que eles só têm em vista interesses de ordem temporal e não de ordem espiritual; que o sillonista é simplesmente um católico dedicado à causa das classes trabalhadoras, às obras democráticas, e que haure nas práticas de sua fé a energia de seu devotamento; que, nem mais nem menos que os artífices, os trabalhadores, os economistas e os políticos católicos, ele se acha submetido às regras de moral comuns a todos, sem estar subordinado, nem mais nem menos do que aqueles, de uma forma especial, à autoridade eclesiástica.

A resposta a estes subterfúgios não é senão demasiado fácil. A quem se fará crer, com efeito, que os sillonistas católicos, que os padres e os seminaristas alistados em suas fileiras só têm em vista, em sua atividade social, o interesse temporal das classes trabalhadoras? Sustentar tal coisa, pensamos, seria fazer-lhes injúria. A verdade é que os chefes do “Sillon” se proclamam idealistas irredutíveis, que pretendem reerguer as classes operárias reerguendo, antes de mais nada, a consciência humana; que têm uma doutrina social e princípios filosóficos e religiosos para reconstruir a sociedade sobre um novo plano; têm uma concepção especial sobre a dignidade humana, sobre a liberdade, sobre a justiça e a fraternidade, e que, para justificar seus sonhos sociais apelam para o Evangelho, interpretado à sua maneira, e, o que é ainda mais grave, para um Cristo desfigurado e diminuído. Além disso, estas idéias eles as ensinam em seus círculos de estudo, eles as inculcam a seus companheiros, eles as fazem penetrar em suas obras. Eles são pois, verdadeiramente, professores de moral social, cívica e religiosa, e, quaisquer que sejam as modificações que eles possam introduzir na organização do movimento sillonista, Nós temos o direito de dizer que a finalidade do “Sillon”, seu caráter, sua ação pertencem ao domínio moral, que é o domínio próprio da Igreja, e que, em consequência, os sillonistas se iludem quando crêem mover-se num terreno em cujos confins expiram os direitos do poder doutrinário e diretivo da Autoridade Eclesiástica.

Se suas doutrinas fossem isentas de erro, já teria sido uma falta muito grave à disciplina católica o subtrair-se obstinadamente à direção daquelas que receberam do céu a missão de guiar os indivíduos e as sociedades no reto caminho da verdade e do bem. Mas o mal é mais profundo, já o dissemos: o “Sillon”, arrastado por um mal compreendido amor dos fracos, descambou para o erro.

São errôneas as tendências igualitárias do “Sillon”

Com efeito, o “Sillon” se propõe o reerguimento e a regeneração das classes operárias. Ora, sobre esta matéria os princípios da doutrina católica são fixos, e a história da civilização cristã aí está para atestar sua fecundidade benfazeja. Nosso predecessor, de feliz memória, recordou-os em páginas magistrais, que os católicos ocupados em questões sociais devem estudar e ter sempre sob os olhos. Ele ensinou, de um modo especial, que a democracia cristã deve “manter a diversidade das classes, que é seguramente o próprio da cidade bem constituída, é querer para a sociedade humana a forma e o caráter que Deus, seu autor, lhe imprimiu.” Ele fulminou “uma certa democracia que vai até aquele grau de perversidade de atribuir, na sociedade, a soberania ao povo e de pretender a supressão e o nivelamento das classes”. Ao mesmo tempo, Leão XIII impunha aos católicos um programa de ação, o único programa capaz de recolocar e de manter a sociedade sobre suas bases cristãs seculares. Ora, que fizeram os chefes do “Sillon”? Não somente adotaram um programa e um ensinamento diferentes dos de Leão XIII (o que já seria singularmente audacioso da parte de leigos, que se colocam assim, em concorrência com o Soberano Pontífice, como diretores da atividade social na Igreja); mas rejeitaram abertamente o programa traçado por Leão XIII, e adotaram um outro, que Lhe é diametralmente oposto; além disso, rejeitam a doutrina relembrada por Leão XIII sobre os princípios essenciais da sociedade, colocam a autoridade no povo ou quase a suprimem, e tomam, como ideal a realizar, o nivelamento das classes. Eles caminham pois, ao revés da doutrina católica, para um ideal condenado.

Nós bem sabemos que eles se gabam de reerguer a dignidade humana e a condição demasiado desprezada das classes trabalhadoras, de tornar justas e perfeitas as leis do trabalho e as relações entre o capital e os assalariados, enfim, de fazer reinar sobre a terra uma justiça melhor, e mais caridade, e, por movimentos sociais profundos e fecundos, de promover na humanidade um progresso inesperado. E, certamente, Nós não condenamos estes esforços, que seriam excelentes a todos os respeitos, se os sillonistas não esquecessem que o progresso de um ser consiste em fortificar suas faculdades naturais por novas energias e a facilitar o jogo de sua atividade no quadro e de acordo com as leis de sua constituição; e que, pelo contrário, ferindo seus órgãos essenciais, quebrando o quadro de suas atividades, impele-se o ser não para o progresso, mas para a morte. Entretanto, é isto que eles querem fazer com a sociedade humana; seu sonho consiste em trocar as bases naturais e tradicionais desta e prometer uma cidade futura edificada sobre outros princípios, que eles ousam declarar mais fecundos, mais benfazejos do que os princípios sobre os quais repousa a atual cidade cristã.

Não, Veneráveis Irmãos – e é preciso lembra-lo energicamente nestes tempos de anarquia social e intelectual, em que todos se erigem em doutores e legisladores – a cidade não será construída de outra forma senão aquela pela qual Deus a construiu; a sociedade não será edificada se a Igreja não lhe lançar as bases e não dirigir os trabalhos; não, a civilização não mais está para ser inventada nem a cidade nova para ser construída nas nuvens. Ela existiu, ela existe; é a civilização cristã, é a cidade católica. Trata-se apenas de instaurá-la e restaurá-la sem cessar sobre seus fundamentos naturais e divinos contra os ataques sempre renascentes da utopia malsã, da revolta e da impiedade; “omnia instaurare in Christo”.

E para que não se Nos acuse de julgar muito sumariamente e com rigor não justificado as teorias sociais do “Sillon”, queremos rememorar-lhe os pontos essenciais.

Exposição das doutrinas subversivas e revolucionárias do “Sillon”

O “Sillon” tem a nobre preocupação da dignidade humana. Mas, esta dignidade é compreendida ao modo de certos  filósofos, de que a Igreja está longe de ter de se regozijar. O primeiro elemento desta dignidade é a liberdade, entendida neste sentido, que, salvo em matéria de religião, cada homem é autônomo. Deste princípio fundamental, tira as seguintes conclusões: Hoje em dia, o povo está sob tutela, debaixo de uma autoridade que lhe é distinta, e da qual se deve libertar: emancipação política. Ele está sob a dependência de patrões que, detendo seus instrumentos de trabalho, o exploram, o oprimem e o rebaixam; ele deve sacudir seu jugo: emancipação econômica. Enfim, ele é dominado por uma casta chamada dirigente, a qual o desenvolvimento intelectual assegura uma preponderância indevida na direção dos negócios; ele deve subtrair-se à sua dominação: emancipação intelectual. O nivelamento das condições, deste tríplice ponto de vista, estabelecerá entre os homens a igualdade, e esta igualdade é a verdadeira justiça humana. Uma organização política e social fundada sobre esta dupla base, liberdade e igualdade (às quais logo virá acrescentar-se a fraternidade), eis o que eles chamam Democracia.

No entanto, a liberdade e a igualdade não constituem senão o lado, por assim dizer, negativo. O que faz própria e positivamente a Democracia, é a participação maior possível de cada um no governo da coisa pública. E isto compreende um tríplice elemento, político, econômico e moral.

Em primeiro lugar, em política, o “Sillon” não abole a autoridade; pelo contrário, ele a considera necessária; mas ele a quer partilhar, ou para melhor dizer, ele a quer multiplicar de tal modo que cada cidadão se tornará uma espécie de rei. A autoridade, é certo, emana de Deus, mas ela reside primordialmente no povo, e daí deriva por via de eleição ou, melhor ainda, de seleção, sem por isto deixar o povo e se tornar independente dele; ela será exterior, mas somente na aparência; na realidade, ela será interior, porque será uma autoridade consentida.

Guardadas as proporções, acontecerá o mesmo na ordem econômica. Subtraído a uma classe particular, o patronato será multiplicado de tal modo que cada operário se tornará uma espécie de patrão. A forma invocada para realizar este ideal econômico não é, afirma-se, a do socialismo, é um sistema de cooperativas suficientemente multiplicadas para provocar uma concorrência fecunda e para salvaguardar a independência dos operários, que não ficariam adscritos a nenhuma delas.

Eis agora o elemento capital, o elemento moral. Como a autoridade, já se viu, é muito reduzida, é necessária uma outra força para completá-la, e para opor uma reação permanente ao egoísmo individual. Este novo princípio, esta força, é o amor do interesse profissional e do interesse público, quer dizer, da finalidade mesma da profissão e da sociedade. Imaginai uma sociedade onde, na alma de cada um, com o amor inato do bem individual e do bem familiar, reinasse o amor do bem profissional e do bem público, onde, na consciência de cada um, estes amores se subordinassem de tal modo, que o bem superior primasse sempre o bem inferior; uma tal sociedade não poderia quase dispensar a autoridade e não ofereceria o ideal da dignidade humana, cada cidadão tendo uma alma de rei, cada operário uma alma de patrão? Arrancado à estreiteza de seus interesses privados e elevado até os interesses de sua profissão e, mais alto, até os da nação inteira e, mais alto ainda, até os da humanidade (porque o horizonte do “Sillon” não se detém nas fronteiras da pátria, mas se estende a todos os homens até os confins do mundo), o coração humano alargado pelo amor do bem comum, abraçaria todos os companheiros da mesma profissão todos os compatriotas, todos os homens. E eis aí a grandeza e a nobreza humana ideal, realizada pela célebre trilogia: Liberdade, Igualdade, Fraternidade.

Ora, estes três elementos, político, econômico e moral, estão subordinados um a outro, e é o elemento moral, como dissemos, que é o principal. Com efeito, nenhuma democracia política é viável se não tem profundos pontos de contato com a democracia econômica. Por sua vez, nem uma nem outra são possíveis se não se radicam num estado de espírito em que a consciência se acha investida de responsabilidades e de energias morais proporcionadas. Mas, supondo este estado de espírito, assim feito de responsabilidade consciente e de forças morais, a democracia econômica daí decorrerá naturalmente por tradução em atos, desta consciência e destas energias; e, igualmente, e pela mesma via, do regime corporativo sairá a democracia política; e a democracia política e a econômica, esta trazendo aquela, se acharão fixadas na própria consciência do povo sobre bases inabaláveis.

Tal é, em resumo, a teoria, poder-se-ia dizer o sonho do “Sillon”, e é para isto que tende seu ensinamento e aquilo que ele chama a educação democrática do povo, quer dizer, a levar ao máximo a consciência e a responsabilidade cívicas de cada qual, donde decorrerá a democracia econômica e política, e o reino da justiça, da liberdade e da fraternidade.

Esta rápida exposição, Veneráveis Irmãos, já vos mostra claramente quanto tínhamos razão em dizer que o “Sillon” opõe doutrina a doutrina, que edifica sua cidade sobre uma teoria contrária à verdade católica e que falseia as noções essenciais e fundamentais que regulam as relações sociais em toda sociedade humana. Esta oposição aparecerá com maior clareza ainda nas seguintes considerações.

Refutação

O “Sillon” coloca a autoridade pública primordialmente no povo, do qual deriva em seguida aos governantes, de tal modo entretanto, que ela continua a residir nele. Ora, Leão XIII condenou formalmente esta doutrina em sua Encíclica “Diuturnum Illud”, sobre o Principado Político, onde diz: “Grande número de modernos seguindo as pegadas daqueles que, no século passado, se deram o nome de filósofos, declaram que todo o poder vem do povo; que em conseqüência aqueles que exercem o poder na sociedade não a exercem como sua própria autoridade, mas como uma autoridade a eles delegada pelo povo e sob a condição de poder ser revogada pela vontade do povo, de quem eles a têm. Inteiramente contrário é o pensamento dos católicos, que fazem derivar de Deus o direito de comandar, como de seu princípio natural e necessário.” Sem dúvida, o “Sillon” faz descer de Deus esta autoridade, que coloca em primeiro lugar no povo, mas de tal forma que “ela sobe de baixo para ir ao alto, enquanto na organização da Igreja, o poder desce do alto para ir até em baixo” (Marc Sangnier, discurso de Rouen, 1907). Mas, além de ser anormal que a delegação suba, pois é própria à sua natureza descer, Leão XIII refutou de antemão esta tentativa de conciliação entre a doutrina católica e o erro do filosofismo. Porque ele prossegue: “É necessário observá-lo aqui: aqueles que presidem ao governo da coisa pública podem bem, em certos casos, ser eleitos pela vontade e o julgamento da multidão, sem repugnância nem oposição com a doutrina católica. Mas, se esta escolha designa o governante, não lhe confere a autoridade de governar, não lhe delega o poder, apenas designa a pessoa que dele será investido.”

De resto, se o povo continua a ser o detentor do poder, que vem a ser da autoridade? Uma sombra, um mito; não há mais leis propriamente dita, não há mais obediência. O “Sillon” o reconheceu; desde que, com efeito, ele reclama, em nome da dignidade humana, a tríplice emancipação política, econômica e intelectual, a cidade futura, para a qual trabalha, não mais terá mestres nem servidores; os cidadãos aí serão todos livres, todos camaradas, todos reis. Uma ordem, um preceito, seria um atentado à liberdade; a subordinação a uma qualquer superioridade seria uma diminuição do homem, a obediência, uma degradação. É assim, Veneráveis Irmãos, que a doutrina tradicional da Igreja nos representa as relações sociais, mesmo na cidade mais perfeita possível? Não é verdade que toda sociedade de criaturas dependentes e desiguais por natureza tem necessidade de uma autoridade que dirija sua atividade para o bem comum, e que imponha a sua lei? E, se na sociedade, se encontram seres perversos (e sempre os haverá), a autoridade não deverá ser tanto mais forte quanto o egoísmo dos maus for mais ameaçador? Além disso, pode-se dizer, com uma aparência de razão sequer, que haja incompatibilidade entre a autoridade e a liberdade, sem que se cometa um erro grosseiro sobre o conceito da liberdade? Pode-se ensinar que a obediência é contrária à dignidade humana, e que o ideal seria substituí-la pela “autoridade consentida”? Não será verdade que o apóstolo S. Paulo tinha em vista a sociedade humana, em todas as suas etapas possíveis, quando prescrevia aos fiéis a submissão a toda autoridade? Será verdade que a obediência aos homens, enquanto representantes legítimos de Deus, quer dizer afinal de contas a obediência a Deus, abaixa o homem e o avilta abaixo de si mesmo? Será que o estado religioso, fundado sobre a obediência, é contrário ao ideal da natureza humana? Será que os santos, que foram os mais obedientes dos homens, foram escravos e degenerados? Enfim, poder-se-ia imaginar um estado social em que Jesus Cristo, de novo sobre a terra, não mais desse o exemplo de obediência, e não mais dissesse: Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus?

O “Sillon”, que ensina semelhantes doutrinas, e as põe em prática em sua vida interna, semeia portanto entre a vossa juventude católica noções erradas e funestas sobre a autoridade, a liberdade e a obediência. Outra coisa não acontece quanto à justiça e à igualdade. Ele trabalha, como afirma, para realizar uma era de igualdade, que, por isto mesmo, seria uma era de melhor justiça. Assim, para ele, toda desigualdade de condição é uma injustiça ou, pelo menos, uma justiça menor! Princípio soberanamente contrário à natureza das coisas, gerador de inveja e de injustiça, subversivo de toda a ordem social. Assim, só a democracia inaugurará o reino da perfeita justiça! Não é isto uma injúria às outras formas de governo, que são rebaixadas, por este modo, à categoria de governos impotentes, apenas toleráveis!

De resto, o “Sillon”, ainda sobre este ponto, vai de encontro ao ensinamento de Leão XIII. Ele poderia ter lido na Encíclica já citada sobre o Principado Político, que, “salvaguardada a justiça, aos povos não é interdito escolherem o governo que melhor responda a seu caráter ou às instituições e costumes que receberam dos antepassados”, e a Encíclica faz alusão à tríplice forma de governo bem conhecida, supondo portanto que a justiça é compatível com cada uma delas. E a Encíclica sobre a condição dos operários não afirma claramente a possibilidade de restaurar-se a justiça nas organizações atuais da sociedade, pois que indica os meios para isso? Ora, sem dúvida alguma, Leão XIII queria falar não de uma justiça qualquer, mas da justiça perfeita. Ensinando, pois, que a justiça é compatível com as três formas de governo em questão, ensinava que, sob este aspecto, a Democracia não goza de um privilégio especial. Os “sillonistas”, que pretendem o contrário, ou recusam ouvir a Igreja ou têm da justiça e da igualdade um conceito que não é católico.

O mesmo acontece com a noção da fraternidade, cuja base eles colocam no amor dos interesses comuns, ou, além de todas as filosofias e de todas as religiões, na simples noção de humanidade, englobando assim no mesmo amor e numa igual tolerância todos os homens com todas as suas misérias, tanto as intelectuais e morais como as físicas e temporais. Ora, a doutrina católica nos ensina que o primeiro dever da caridade não está na tolerância das convicções errôneas, por sinceras que sejam, nem na indiferença teórica e prática pelo erro ou o vício, em que vemos mergulhados nossos irmãos, mas no zelo pela sua restauração intelectual e moral, não menos que por seu bem estar material. Esta mesma doutrina católica nos ensina também que a fonte do amor do próximo se acha no amor de Deus, pai comum e fim comum de toda a família humana, e no amor de Jesus Cristo, do qual nós somos membros a tal ponto que consolar um infeliz é fazer o bem ao próprio Jesus Cristo. Qualquer outro amor é ilusão ou sentimento estéril e passageiro. Certamente, a experiência humana aí está, nas sociedades pagãs ou leigas de todos os tempos, para provar que, em certos momentos, a consideração dos interesses comuns ou da semelhança de natureza pesa muito pouco diante das paixões e das concupiscências do coração. Não, Veneráveis Irmãos, não existe verdadeira fraternidade fora da caridade cristã, que, pelo amor de Deus e de seu Filho Jesus Cristo nosso Salvador abrange todos os homens, para os consolar a todos, e para os conduzir todos à mesma fé e à mesma felicidade do céu. Separando a fraternidade da caridade cristã assim entendida, a democracia, longe de ser um progresso, constituiria um desastroso recuo para a civilização. Porque, se se chegar, e Nós o desejamos de toda a nossa alma, a maior soma possível de bem estar para a sociedade e para cada um de seus membros pela fraternidade, ou, como se diz ainda, pela solidariedade universal, é necessária a união dos espíritos na verdade, a união das vontades na moral, a união dos corações no amor de Deus e de seu Filho Jesus Cristo. Ora, esta união só poderá ser realizada pela caridade católica, que é a única, por conseqüência, que pode conduzir os povos no caminho do progresso, para o ideal da civilização.

Enfim, na base de todas as falsificações das noções sociais fundamentais, o “Sillon” coloca uma falsa ideia da dignidade humana. Segundo ele, o homem só será verdadeiramente homem, digno deste nome, no dia em que adquirir uma consciência esclarecida, forte, independente, autônoma, podendo dispensar os mestres, só obedecendo a si própria, e capaz de assumir e desempenhar, sem falhar, as mais graves responsabilidades. Eis algumas destas grandes palavras com as quais se exalta o sentimento do orgulho humano; tal como um sonho, que arrasta o homem, sem luz, sem guia e sem auxílio, pelo caminho da ilusão, em que, esperando o grande dia da plena consciência, será devorado pelo erro e pelas paixões. E este grande dia, quando virá? A menos que se mude a natureza humana (o que não está no poder do “Sillon”), virá alguma vez? Será que os santos, que levaram ao apogeu a dignidade humana, tiveram esta dignidade? E os humildes da terra, que não podem subir tão alto e que se contentam com traçar modestamente seu sulco (tracer modestemen son sillon) na classe social que lhes designou a Providência, cumprindo energicamente seus deveres na humildade, na obediência e na paciência cristãs, não seriam dignos do nome de homens, eles aos quais o Senhor há de tirar um dia de sua condição obscura para os colocar no céu, entre os príncipes de seu povo?

Suspendemos aqui nossas reflexões sobre os erros do “Sillon”. Não pretendemos esgotar o assunto, eis que ainda poderíamos chamar vossa atenção sobre outros pontos igualmente falsos e perigosos, por exemplo, sobre a maneira de compreender o poder coercitivo da Igreja. Importa, contudo, observar agora a influência destes erros sobre a conduta prática do “Sillon” e sobre a sua ação social.

A estrutura igualitária da organização do “Sillon”

As doutrinas do “Sillon” não ficam apenas nos domínios da abstração filosófica. Elas são ensinadas à juventude católica, e, bem mais do que isso, procura-se vivê-las. O “Sillon” se considera como o núcleo da cidade futura; ele a reflete, pois, tão fielmente quanto possível. Com efeito, não existe hierarquia no “Sillon”. A elite que o dirige proveio da massa por seleção, quer dizer, impondo-se por sua autoridade moral e por suas virtudes. Nele se entra livremente, como livremente dele se sai. Os estudos aí se fazem sem mestre, quando muito com um conselheiro. Os círculos de estudo são verdadeiras cooperativas intelectuais, onde cada um é ao mesmo tempo aluno e mestre. A camaradagem mais absoluta reina entre os membros, e põe em total contato suas almas: daí, a alma comum do “Sillon”. Definiram-na “uma amizade”. Mesmo o padre, quando lá entra, abaixa a eminente dignidade de seu sacerdócio e, pela mais estranha inversão de papéis, se faz aluno, se põe no mesmo nível de seus jovens amigos e não é mais do que um camarada.

O espírito anárquico que incute

Nestes hábitos democráticos, e nas doutrinas sobre a cidade ideal que os inspiram, vós reconhecereis, Veneráveis Irmãos, a causa secreta das faltas disciplinares que, tantas vezes, tivestes de recriminar no “Sillon”. Não é de espantar que vós não tenhais encontrado nos chefes e nos seus companheiros assim formados, fossem seminaristas ou padres, o respeito, a docilidade e a obediência que são devidos às vossas pessoas e à vossa autoridade; que tenhais experimentado da parte deles uma surda oposição, e que tenhais tido o pesar de os ver subtrair-se totalmente, ou, quando a isto forçados pela obediência, entregar-se com desgosto às obras não sillonistas. Vós sois o passado, eles são os pioneiros da civilização futura. Vós representais a hierarquia, as desigualdades sociais, a autoridade e a obediência: instituições envelhecidas, ante as quais suas almas, embevecidas por um outro ideal, não mais se podem dobrar. Temos sobre este estado de espírito o testemunho de fatos dolorosos, capazes de arrancar lágrimas, e Nós não podemos, apesar de nossa longanimidade, reprimir um justo sentimento de indignação. Pois que! Há quem inspire à vossa juventude católica a desconfiança para com a Igreja sua mãe; ensina-se-lhe que, decorridos 19 séculos, ela ainda não conseguiu no mundo constituir a sociedade sobre suas verdadeiras bases; que ela não compreendeu as noções sociais da autoridade, da liberdade, da igualdade, da fraternidade e da dignidade humana; que os grandes bispos e os grandes monarcas, que criaram e tão gloriosamente governaram a França, não souberam dar ao seu povo nem a verdadeira justiça, nem a verdadeira felicidade, porque eles não tinham o ideal do “Sillon”!

O sopro da Revolução passou por aí, e podemos concluir que, se as doutrinas sociais do “Sillon” são erradas, seu espírito é perigoso e sua educação funesta.

O “Sillon” é de uma intolerância odiosa

Mas então, que devemos pensar de sua ação na Igreja, ele, cujo catolicismo é tão pontiagudo que, por mais um pouco, quem não abraçasse a sua causa seria a seus olhos um inimigo interior do catolicismo, e nada teria compreendido do Evangelho e de Jesus Cristo? Julgamos conveniente insistir sobre esta questão, porque foi precisamente seu ardor católico que valeu ao “Sillon”, mesmo neste últimos tempos, preciosos encorajamentos e ilustres sufrágios. Pois bem! Perante as palavras e os fatos, somos obrigados a dizer que, em sua ação como em sua doutrina, o “Sillon” não é agradável à Igreja.

Em primeiro lugar, seu catolicismo só se acomoda com a forma democrática de governo, que julga ser a mais favorável à Igreja, e como que se confundindo com ela; portanto, enfeuda sua religião a um partido político. Não precisamos demonstrar que o advento da democracia universal não tem importância para a ação da Igreja no mundo; já temos lembrado que a Igreja sempre deixou às nações o cuidado de se dar o governo que elas consideram mais vantajoso para seus interesses. O que Nós queremos afirmar ainda uma vez após nosso predecessor, é que há erro e perigo em enfeudar, por princípio, o catolicismo a uma forma de governo; erro e perigo que são tanto maiores quando se sintetiza a religião com um gênero de democracia cujas doutrinas são erradas. Ora, é o caso do “Sillon”, o qual, de fato, em favor de uma forma política especial, comprometendo a Igreja, divide os católicos, arranca a juventude e mesmo padres e seminaristas à ação simplesmente católica, e desperdiça, em pura perda, as forças vivas de uma parte da nação.

Exceto quando se trata dos princípios da Igreja

E reparai, Veneráveis Irmãos, numa estranha contradição. É precisamente porque a religião deve dominar todos os partidos, é invocando este princípio que o “Sillon” se abstém de defender a Igreja atacada. Certamente não foi a Igreja que desceu à arena política; arrastaram-na para aí, e para a mutilar, e para a despojar. O dever de todo católico não consiste, então, em usar das armas políticas, que ele tem à mão, para defendê-la, e também para forçar a política a ficar em seu domínio e a não se ocupar da Igreja para lhe dar o que é devido? Pois bem! Em face da Igreja assim violentada, muitas vezes se tem a dor de ver os sillonistas cruzar os braços, a não ser que eles achem vantajoso defendê-la; vê-se-os ditar ou sustentar um programa que em nenhum lugar nem no menor grau revela o espírito católico. O que não impede que estes mesmos homens, em plena luta política, sob o golpe de uma provocação, façam pública ostentação de sua fé. Isto que quer dizer senão que há dois homens no sillonista: o individuo que é católico; o sillonista, homem de ação, que é neutro.

Um dos graves erros do “Sillon” é o interconfessionalismo

Houve um tempo em que o “Sillon”, como tal, era formalmente católico. Em matéria de força moral, ele só conhecia uma, a força católica, e ia proclamando que a democracia havia de ser católica, ou não seria democracia. Em dado momento, entretanto, ele mudou de parecer. Deixou a cada um sua religião ou sua filosofia. Ele próprio deixou de se qualificar de “católico”, e a fórmula “A democracia há de ser católica” substituiu-a por esta outra “A democracia não há de ser anti-católica”, tanto quanto, aliás, anti-judáica ou anti-budista. Foi a época do “maior Sillon”. Todos os operários de todas as religiões e de todas as seitas foram convocados para a construção da cidade futura. Outra coisa não se lhes pediu a não ser que abraçassem o mesmo ideal social, que respeitassem todas as crenças e que trouxessem um certo mínimo de forças morais. Certamente, proclamava-se, “os chefes do “Sillon” põem sua fé religiosa acima de tudo. Mas podem recusar aos outros o direito de haurir sua energia moral, lá onde podem? Em troca, eles querem que os outros respeitem seu direito, deles, de hauri-la na fé católica. Eles pedem, pois, a todos aqueles que querem transformar a sociedade presente no sentido da democracia, que não se repilam mutuamente por causa de convicções filosóficas ou religiosas que os possam separar, mas que marchem de mãos dadas, não renunciando a suas convicções, mas experimentando fazer, sobre o terreno das realidades práticas, a prova da excelência de suas convicções pessoais. Talvez que neste terreno de emulação entre almas ligadas a diferentes convicções religiosas ou filosóficas a união se possa realizar” (Marc Sangnier, Discurso de Rouen, 1.907). E ao mesmo tempo se declarou (de que modo isto se poderia realizar?) que o pequeno “Sillon” católico seria a alma do grande “Sillon” cosmopolita.

Recentemente, desapareceu o nome do “maior Sillon” e houve a intervenção de uma nova organização, que em nada modificou, bem pelo contrário, o espírito e o fundo das coisas “para pôr ordem no trabalho, e organizar as diversas forças de atividade. O “Sillon” continua sempre a ser uma alma, um espírito, que se misturará aos grupos e inspirará sua atividade.” E a todos os novos agrupamentos, tornados autônomos na aparência: católicos, protestantes, livre-pensadores, se pede que se ponham a trabalhar. “Os camaradas católicos se esforçarão entre si próprios, numa organização especial, por se instruir e se educar. Os democratas protestantes e livre-pensadores farão o mesmo de seu lado. Todos, católicos, protestantes e livre-pensadores terão em mira armar a juventude não para uma luta fratricida, mas para uma generosa emulação no terreno das virtudes sociais e cívicas” (Marc Sangnier, Paris, Maio de 1910).

Estas declarações e esta nova organização da ação sillonista provocam bem graves reflexões.

Eis uma associação interconfessional, fundada por católicos, para trabalhar na reforma da civilização, obra eminentemente religiosa, porque não há civilização verdadeira sem civilização moral, e não há verdadeira civilização moral sem a verdadeira religião: é uma verdade demonstrada, é um fato histórico. E os novos sillonistas não poderão pretextar que eles só trabalharão “no terreno das realidades práticas” onde a diversidade das crenças não importa. Seu chefe tão bem percebe esta influência das convicções do espírito sobre o resultado da ação, que ele os convida, qualquer que seja a religião a que pertençam, a “fazer no terreno das realidades práticas a prova da excelência de suas convicções pessoais”. E com razão, porque as realizações práticas revestem o caráter das convicções religiosas, como os membros de um corpo, até às últimas extremidades, recebem sua forma do princípio vital que o anima.

Isto posto, que se deve pensar da promiscuidade em que se acharão agrupados os jovens católicos com heterodoxos e incrédulos de toda a espécie, numa obra desta natureza? Esta não será mil vezes mais perigosa para eles do que uma associação neutra? Que se deve pensar deste apelo a todos os heterodoxos e a todos os incrédulos para virem provar a excelência de suas convicções sobre o terreno social, numa espécie de concurso apologético, como se este concurso já não durasse há 19 séculos, em condições menos perigosas para a fé dos fiéis e sempre favorável à Igreja Católica? Que se deve pensar deste respeito por todos os erros e de estranho convite, feito por um católico a todos os dissidentes, a fortificarem suas convicções pelo estudo e delas fazer as fontes sempre mais abundantes de novas forças? Que se deve pensar de uma associação em que todas as religiões, e mesmo o livre-pensamento, podem manifestar-se altamente à vontade? Porque os sillonistas que, nas conferências públicas e em outras ocasiões proclamam altivamente sua fé individual, não pretendem certamente fechar a boca aos outros e impedir que o protestante afirme seu protestantismo e o cético, seu ceticismo. Que pensar, enfim, de um católico que, ao entrar em seu círculo de estudos, deixa na porta seu catolicismo, para não assustar seus camaradas que, “sonhando com uma ação social desinteressada, têm repugnância de a fazer servir ao triunfo de interesses, facções, ou mesmo de convicções, quaisquer que sejam”? Tal é a profissão de fé da nova Comissão Democrática de Ação Social, que herdou a maior tarefa da antiga organização, e que, afirma “desfazendo o equívoco em torno do “maior Sillon”, tanto nos meios reacionários como nos meios anti-clericais”, está aberta a todos os homens respeitadores das forças morais e religiosas e convencidos de que nenhuma emancipação social verdadeira será possível sem o fermento de um generoso idealismo”.

Ah, sim! O equívoco está desfeito; a ação social do “Sillon” não é mais católica; o sillonista, como tal, não trabalha para uma facção, e “a Igreja, ele o diz, não deveria, por nenhum título, ser beneficiária das simpatias que sua ação possa suscitar”. Insinuação estranha, em verdade! Teme-se que a Igreja se aproveite, com objetivo egoísta e interesseiro, da ação social do “Sillon”, como se tudo o que aproveita à Igreja não aproveitasse à humanidade! Estranha inversão de idéias; a Igreja é que seria beneficiária da ação social, como se os maiores economistas já não houvessem reconhecido e demonstrado que a ação social é que, para ser real e fecunda, deve beneficiar-se da Igreja. Porém, mais estranhas ainda, ao mesmo tempo inquietantes e acabrunhadoras, são a audácia e a ligeireza de espírito de homens que se dizem católicos, e que sonham refundir a sociedade em tais condições, e estabelecer sobre a terra, por cima da Igreja Católica, “o reino da justiça e do amor”, com operários vindos de toda a parte, de todas as religiões ou sem religião, com ou sem crenças, contanto que se esqueçam do que os divide: suas convicções religiosas e filosóficas, e ponham em comum aquilo que os une: um generoso idealismo e forças morais adquiridas “onde possam”. Quando se pensa em tudo o que foi preciso de forças, de ciência, de virtudes sobrenaturais para estabelecer a cidade cristã, e nos sofrimentos de milhões de mártires, e nas luzes dos Padres e dos Doutores da Igreja, e no devotamento de todos os heróis da caridade, e numa poderosa Hierarquia nascida no céu, e nas torrentes de graça divina, e tudo isto edificado, travado, compenetrado pela Vida e pelo Espírito de Jesus Cristo, a Sabedoria de Deus, o Verbo feito homem; quando se pensa, dizíamos, em tudo isto, fica-se atemorizado ao ver novos apóstolos se encarniçarem por fazer melhor, através da comunhão num vago idealismo e em virtudes cívicas. Que é que eles querem produzir? Que é que sairá desta colaboração? Uma construção puramente verbal e quimérica, em que se verá coruscar promiscuamente, e numa confusão sedutora, as palavras liberdade, justiça, fraternidade e amor, igualdade e exaltação humana, e tudo baseado numa dignidade humana mal compreendida. Será uma agitação tumultuosa, estéril para o fim proposto, e que aproveitará aos agitadores de massas, menos utopistas. Sim, na realidade, pode-se dizer que o “Sillon” escolta o socialismo, o olhar fixo numa quimera.

Tememos que ainda haja pior. O resultado desta promiscuidade em trabalho, o beneficiário desta ação social cosmopolita só poderá ser uma democracia, que não será nem católica, nem protestante, nem judaica; uma religião (porque o sillonismo, os chefes o afirmaram, é uma religião) mais universal do que a Igreja Católica, reunindo todos os homens tornados enfim irmãos e camaradas no “reino de Deus”. – “Não se trabalha para a Igreja, trabalha-se pela humanidade.”

E por isto o “Sillon” deixou de ser católico

E agora, penetrado da mais viva tristeza, Nós nos perguntamos, Veneráveis Irmãos, onde foi parar o catolicismo do “Sillon”. Ah! Ele, que dava outrora tão belas esperanças, esta torrente límpida e impetuosa foi captada em sua marcha pelos inimigos modernos da Igreja, e agora já não é mais do que um miserável afluente do grande movimento de apostasia organizada, em todos os países, para o estabelecimento de uma Igreja universal que não terá nem dogmas, nem hierarquia, nem regra para o espírito, nem freio para as paixões, e que, sob pretexto de liberdade e de dignidade humana, restauraria no mundo, se pudesse triunfar, o reino legal da fraude e da violência, e a opressão dos fracos, daqueles que sofrem e que trabalham.

O “Sillon” e as tramas dos inimigos da Igreja

Nós conhecemos demasiado bem os sombrios laboratórios, em que se elaboram estas doutrinas deletérias, que não deveriam seduzir espíritos clarividentes. Os chefes do “Sillon” não souberam evitá-las: a exaltação de seus sentimentos, a cega bondade de seu coração, seu misticismo filosófico misturado com um tanto de iluminismo os impeliram para um novo Evangelho, no qual julgaram ver o verdadeiro Evangelho do Salvador, a tal ponto que ousam tratar Nosso Senhor Jesus Cristo com uma familiaridade soberanamente desrespeitosa, e que, sendo o seu ideal aparentado com o da Revolução, não temem fazer entre o Evangelho e a Revolução aproximações blasfematórias, que não têm a escusa de haverem escapado a alguma improvisação tumultuosa.

O “Sillon” dá uma ideia desfigurada do Divino Redentor

Queremos chamar vossa atenção, Veneráveis Irmãos, sobre esta deformação do Evangelho e do caráter sagrado de Nosso Senhor Jesus Cristo, Deus e Homem, praticada no “Sillon” e algures. Desde que se aborda a questão social, está na moda, em certos meios, afastar primeiro a divindade de Jesus Cristo, e depois só falar de sua soberana mansidão, de sua compaixão por todas as misérias humanas, de suas instantes exortações ao amor do próximo e à fraternidade. Certamente, Jesus nos amou com um amor imenso, infinito, e veio à terra sofrer e morrer a fim de que, reunidos em redor dele na justiça e no amor, animados dos mesmos sentimentos de mútua caridade, todos os homens vivam na paz e na felicidade. Mas para a realização desta felicidade temporal e eterna ele impôs, com autoridade soberana, a condição de se fazer parte de seu rebanho, de se aceitar sua doutrina, de se praticar a virtude e de se deixar ensinar e guiar por Pedro e seus sucessores. Pois se Jesus foi bom para os transviados e os pecadores, ele não respeitou suas convicções errôneas, por sinceras que parecessem; ele os amou a todos para os instruir, converter e salvar. Se ele chamou junto de si, para os consolar, os aflitos e os sofredores, não foi para lhes pregar o anseio de uma igualdade quimérica. Se levantou os humildes, não foi para lhes inspirar o sentimento de uma dignidade independente e rebelde à obediência. Se seu coração transbordava de mansidão pelas almas de boa vontade, ele soube igualmente armar-se de uma santa indignação contra os profanadores da casa de Deus, contra os miseráveis que escandalizam os pequenos, contra as autoridades que acabrunham o povo sob a carga de pesados fardos, sem aliviá-la sequer com o dedo. Ele foi tão forte quão doce; repreendeu, ameaçou, castigou, sabendo, e nos ensinando, que, muitas vezes, o temor é o começo da sabedoria, e que, algumas vezes, convém cortar um membro para salvar o corpo. Enfim, ele não anunciou para a sociedade futura o reino de uma felicidade ideal, de onde o sofrimento fosse banido; mas, por lições e exemplos, traçou o caminho da felicidade possível na terra e da felicidade perfeita no céu: a estrada real da cruz. Estes são ensinamentos que seria errado aplicar somente à vida individual em vista da salvação eterna; são ensinamentos eminentemente sociais, e nos mostram em Nosso Senhor Jesus Cristo outra coisa que não um humanitarismo sem consistência e sem autoridade.

Exortação ao Episcopado

No que se refere a vós, Veneráveis Irmãos, continuai ativamente a obra do Salvador dos homens pela imitação de sua doçura e de sua força. Inclinai-vos para todas as misérias; que nenhuma dor escape à vossa solicitude pastoral; que nenhum gemido vos encontre indiferentes. Mas também, pregai ousadamente seus deveres aos grandes e aos pequenos; a vós compete formar a consciência do povo e dos poderes públicos. A questão social estará bem perto de ser resolvida quando uns e outros, menos exigentes a respeito de seus direitos recíprocos, cumprirem mais exatamente seus deveres.

Além disso, como no conflito dos interesses, e principalmente na luta com as forças desonestas, a virtude de um homem, e mesmo sua santidade, não é sempre suficiente para lhe assegurar o pão quotidiano, e como as engrenagens sociais deveriam estar organizadas de tal forma que, por seu jogo natural, paralisassem os esforços dos maus e tornassem acessível a toda boa vontade sua parte legítima de felicidade temporal, Nós desejamos vivamente que tomeis uma parte ativa na organização da sociedade, para este fim. E, para isto, enquanto vossos padres se entregarão com ardor ao trabalho da santificação das almas, da defesa da Igreja, e às obras de caridade propriamente ditas, escolhereis alguns dentre eles, ativos e de espírito ponderado, munidos dos graus de doutor em filosofia e teologia, e possuindo perfeitamente a história da civilização antiga e moderna, e os aplicareis aos estudos menos elevados e mais práticos da ciência social, para, no tempo oportuno, colocá-los à testa de vossas obras de ação católica. Contudo, que estes padres não se deixem transviar no dédalo das opiniões contemporâneas, pela miragem de uma falsa democracia; que eles não emprestem à retórica dos piores inimigos da Igreja e do povo uma linguagem enfática, cheia de promessas tão sonoras quanto irrealizáveis. Que eles estejam persuadidos que a questão social e a ciência social não nasceram ontem; que, de todos os tempos, a Igreja e o Estado, em feliz acordo, suscitaram para isto organizações fecundas; que a Igreja, que jamais traiu a felicidade do povo em alianças comprometedoras, não precisa livrar-se do passado bastando-lhe retomar, com o auxílio de verdadeiros operários da restauração social, os organismos quebrados pela Revolução, adaptando-os, com o mesmo espírito cristão que os inspirou, ao novo ambiente criado pela evolução material da sociedade contemporânea; porque os verdadeiros amigos do povo não são nem revolucionários, nem inovadores, mas tradicionalistas.

Os membros do “Sillon” devem submeter-se

A esta obra eminentemente digna de vosso zelo pastoral, Nós desejamos que, longe de a embaraçar, a juventude do “Sillon”, purificada de seus erros, traga, na ordem e na submissão convenientes, um concurso leal e eficaz.

Voltando-nos, pois, para os chefes do “Sillon”, com a confiança de um pai que fala a seus filhos, Nós lhes pedimos para o seu bem, para o bem da Igreja e da França, vos cedam o lugar. Nós medimos, certamente, a extensão do sacrifício que Nós lhes solicitamos, mas Nós os sabemos assaz generosos para o realizar, e, antecipadamente, em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, de quem somos o indigno representante, Nós os abençoamos. Quanto aos membros do “Sillon”, queremos que se agrupem por dioceses para trabalhar, sob a direção de seus bispos respectivos, pela regeneração cristã e católica do povo, ao mesmo tempo que pela melhoria de sua sorte. Estes grupos diocesanos serão, por ora, independentes uns dos outros; e, a fim de tornar bem claro que romperam com os erros do passado, tomarão o nome de “Sillons” católicos, e cada um de seus membros acrescentará a seu título de sillonista o mesmo qualificativo de católico. Não será preciso dizer que todo sillonista católico ficará livre, aliás, de guardar suas preferências políticas, depuradas de tudo o que não esteja inteiramente conforme, nesta matéria, com a doutrina da Igreja. E assim, Veneráveis Irmãos, se houver grupos que se recusem a submeter-se a estas condições, devereis considerá-los por isso mesmo como se se recusassem a submeter-se à vossa direção; e, então, dever-se-á examinar se eles se confinam na política ou na economia pura, ou se perseveram nos antigos erros. No primeiro caso, está claro que já não vos devereis ocupar mais deles do que do comum dos fiéis; no segundo, devereis agir em conseqüência, com prudência mas com firmeza. Os padres deverão manter-se totalmente alheios aos grupos dissidentes e se contentarão com prestar o socorro do santo ministério individualmente a seus membros, aplicando-lhes, no tribunal da Penitência, as regras comuns de moral relativamente à doutrina e à conduta. Quanto aos grupos católicos, os padres e os seminaristas, sempre favorecendo-os e os secundando, abster-se-ão de se inscreverem como membros, porque é conveniente que a milícia sacerdotal fique acima das associações leigas, mesmo as mais úteis e animadas do melhor espírito.

Tais são as medidas práticas pelas quais julgamos necessário sancionar esta Carta sobre o “Sillon” e os sillonistas. Que o Senhor haja por bem, nós o rogamos do funda da alma, fazer com que estes homens e estes jovens compreendam as graves razões que a ditaram, e lhes dê a docilidade de coração, com a coragem de provar, em face da Igreja, a sinceridade de seu fervor católico; e a vós, Veneráveis Irmãos, que vos inspire para com eles, pois que eles são doravante vossos, os sentimentos de uma afeição toda paternal.

É com esta esperança, e para obter estes resultados tão desejáveis, que Nós vos concedemos, de todo coração, assim como a vosso clero e a vosso povo, a Bênção Apostólica.

Dado em Roma, junto a S. Pedro, em 25 de Agosto de 1910, oitavo ano de Nosso Pontificado.

PIO X, PAPA [1] 


NOTAS

[1] N.B. - As notas à margem [os subtítulos] da Carta Apostólica não pertencem ao texto oficial.


 

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