Plinio Corrêa de Oliveira

 

HISTÓRIA DA CIVILIZAÇÃO


1936


Colégio Universitário

anexo à Faculdade de Direito da

Universidade de São Paulo

 

 

 

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Parte X

A evolução política e dos costumes em Roma

 

A D V E R T Ê N C I A

O presente texto é cópia ipsis litteris das apostilas para o curso de "História da Civilização". Portanto, os erros de ortografia, falta de palavras, eventuais acréscimos ou omissões são da responsabilidade de quem taquigrafou e datilografou ditas apostilas. Texto não revisto pelo Prof. Plinio.

A civilização romana abrange um imenso período da História, estendendo-se desde 754 a.C., época em que a tradição coloca a fundação de Roma, até 485 d.C., ano em que foi destituído da púrpura imperial o último soberano do Império Romano do Ocidente, Rômulo Augusto.

Evidentemente, nesse imenso período, que conta muito mais de mil anos, Roma passou por uma evolução religiosa, social, política e econômica imensa. Seria necessário um ano inteiro de estudos acurados, para dar aos senhores uma ideia bem exata da história romana. Nestas preleções, seremos forçados a abordar apenas os pontos capitais.

Política interna

Sobre a política interna de Roma, já dissemos alguma coisa quando tratamos "in genere" de todos os municípios greco-latinos, e de sua história. Será suficiente acrescentar algumas peculiaridades que tiveram em Roma as quatro revoluções, de que fala Fustel de Coulanges.

Primeira revolução - Quando estudamos a história primitiva de Roma e as lendas sobre os reis, já vimos de que forma esta revolução se fez. Em Roma, o crescente descontentamento da aristocracia contra os reis se fez sentir pelo assassinato de muitos dentre eles, e finalmente por uma sublevação aristocrática, que teve como consequência a supressão da realeza como poder político, a deposição do rei e a instituição do consulado. Os antigos reis eram ao mesmo tempo chefes civis e religiosos. Depostos os reis, os encargos religiosos, anexos habitualmente às funções do rei, passaram a um funcionário que conservou o título de rei, o "rex sacrorum", que não teve mais função política. A realeza foi abolida em Roma, e as funções políticas dos reis foram transferidas aos dois cônsules eletivos e temporários que governavam Roma.

Segunda revolução - Como nos outros municípios, também em Roma o direito de primogenitura desapareceu na organização da aristocracia. A consequência disto foi que, no senado romano, não tiveram mais assento somente os chefes das grandes linhagens aristocráticas, chamados "patres" devido ao caráter paternal e familiar de sua autoridade, mas também aristocratas dos ramos não primogênitos, que eram chamados "conscripti". Houve, pois, no senado aristocrático, duas espécies de senadores: 1) os chefes das linhagens nobres primogênitas, chamados "patres"; 2) os senadores nobres pertencentes a linhagens não primogênitas, chamados "conscripti".

Essa transformação política teve como corolário uma transformação econômica. Os ramos não primogênitos tiveram um patrimônio próprio, e uma vida econômica inteiramente distinta da dos ramos primogênitos. Tudo isto ocasionou um fracionamento das grandes linhagens aristocráticas, que fez com que cada família vivesse por si, e a organização primitiva da gens, tendo perdido o seu alcance político, econômico e social, só conservasse seu significado religioso, agrupando famílias descendentes dos mesmos troncos, em torno do culto dos antepassados comuns.

Quanto à transformação da condição dos clientes, operou-se ela gradualmente, em Roma. Ao menos é o que se deve deduzir das informações pouco precisas que os escritores de Roma nos legaram a este respeito.

Terceira revolução - A plebe, em Roma, foi muito numerosa desde os mais remotos períodos da história romana. Deve-se isto à circunstância de ter Roma atraído a si todos os exilados políticos das cidades vizinhas, os comerciantes estrangeiros que julgavam sua posição geográfica favorável ao exercício da profissão comercial, e principalmente os habitantes de municípios conquistados pelos romanos, que eram trazidos em massa para a cidade vencedora. Todos estes estrangeiros, em via de regra, vinham engrossar as fileiras da plebe.

Segundo a tradição, o primeiro rei a apoiar as reivindicações políticas e sociais da plebe foi Túlio. Começou ele por dar à plebe bens imóveis nos territórios dos municípios conquistados, o que equivalia a facilitar a formação de uma nova classe rica, de origem plebéia, ao lado da aristocracia já existente.

Esse mesmo rei estabeleceu, ao lado da antiga divisão das classes que compunham a aristocracia e a plebe, outra divisão em que todos os habitantes já não eram classificados segundo sua genealogia, mas segundo o seu domicílio. Esta inovação teve como consequência a formação de tribos plebeias, com direitos próprios, ao lado das tribos aristocráticas e tradicionais. Estas tribos se compunham indistintamente de nobres e de plebeus, abrangendo todos os habitantes de qualquer condição social que residissem dentro do distrito cuja população deveria constituir a tribo. Cada nobre passou, pois, a pertencer a duas espécies de tribos: a tribo aristocrática e a mista semi-plebéia. As novas tribos também tiveram seus deuses novos. E a plebe começou a ter uma religião reconhecida oficialmente pelo Estado, ao lado da antiga religião de cunho exclusivamente aristocrático.

Ao lado desta divisão, Sérvio introduziu uma outra: a dos que tinham algum patrimônio, e a dos que nada possuíam. Na primeira classe, que compreendia indistintamente nobres e plebeus, ele estabeleceu subdivisões de acordo com o montante da fortuna de cada um, nobre ou plebeu indiferentemente. E o exército romano passou a ser subdividido em unidades que correspondiam a essa organização, e não mais à velha organização aristocrática.

Mas as leis romanas admitiam que em certas ocasiões os habitantes, formados em unidades de combate — isto é, centúrias; ou, como diríamos hoje, batalhões — votassem a respeito dos principais assuntos políticos (chamavam-se estas votações comitia centuriata). Aconteceu que o povo romano começou a votar em assembleias em que já não havia quase diferença entre plebeu e nobre, e em que o voto do plebeu era apurado tanto quanto o do nobre. Assim, a plebe entrou na vida política da cidade de Roma.

A reação aristocrática

A aristocracia recebeu com hostilidade estas profundas transformações, que os reis de Roma tendiam a tornar cada vez mais prejudiciais à aristocracia.

Assassinado Sérvio, e deposto mais tarde o último rei de Roma, a aristocracia começou a destruir toda a obra democrática dos reis. Começou por cercar de tais formalidades as assembleias político-militares — as comitia centuriata —, que praticamente o resultado da votação nelas dependia da aristocracia. Ficou assim anulada a reforma de Sérvio, e a plebe perdeu de fato, conquanto não de direito, a sua antiga influência na vida política da cidade.

Um dos primeiros atos da aristocracia foi tirar aos plebeus as terras que lhes haviam sido concedidas por Sérvio. Para os aristocratas, adstritos aos princípios político-sociais decorrentes da velha religião dos mortos, era sacrílega a propriedade dos plebeus, que não tinham direito de ser proprietários de terras em que não estavam sepultados os seus antepassados.

Quanto à clientela, os patrícios tentaram reduzir todos os plebeus à condição de clientes, ou a uma posição análoga. Mas esta tentativa fracassou, à vista da resolução da plebe de abandonar Roma, de preferência a se deixar cair no laço que lhe era oferecido pelos nobres. O processo de que se servia a aristocracia, para reduzir à condição de apaniguados seus os plebeus, era sutil. Privados de terras, os plebeus precisavam tomar dinheiro emprestado para viver. Os nobres forneceram o dinheiro necessário, com a condição de que, se no dia aprazado para o pagamento o plebeu não restituísse a quantia emprestada, ficaria reduzido a uma espécie de servidão.

É a esta altura que se devem situar as tentativas dos plebeus de abandonarem Roma, deixando esta cidade entregue aos aristocratas, clientes e escravos, e fugindo dela todos os plebeus que ainda se conservavam livres. Conhecem-se os resultados destas tentativas, e os senhores já o viram no curso ginasial.

A instituição do tribunato — que decorre destes acontecimentos —, como garantia concedida pelos nobres aos plebeus, teve um cunho bastante interessante. Os nobres não podiam admitir magistrados plebeus, porque o magistrado era um indivíduo obrigatoriamente ligado ao culto da cidade, e para ser ligado a tal culto era necessário ser patrício.

Então os nobres concordaram em, por meio de uma cerimônia especial, fazer com que alguns plebeus — aos quais se deu o nome de tribunos — fossem submetidos a uma cerimônia religiosa especial, em virtude da qual ficavam "sacrossantos". Esta palavra tinha um sentido muito preciso. Eram "sacrossantos" os objetos tornados intangíveis, porque eram dedicados aos cultos dos deuses. Os tribunos, tanto quanto qualquer objeto, podiam ser submetidos a esta cerimônia. Ficando "sacrossantos" eles se tornavam intangíveis, e não podiam ser objeto de sacrilégio: ser presos, espancados, feridos etc.

É por esta razão que o tribuno tinha o direito de se interpor entre qualquer aristocrata e um plebeu, evitando que o plebeu fosse preso ou maltratado: o tribuno era intangível, e o aristocrata não podia fazer-lhe violência. Por isto os tribunos foram preciosos instrumentos da plebe ao se defenderem das agressões provenientes dos aristocratas.

* * *

Na última aula estudamos o caráter "sacrossanto" do tribuno. Nesta aula veremos o desenvolvimento que tomou a dignidade tribunícia e a ampliação que, em Roma, tiveram os seus poderes.

O tribuno, como vimos, não era um magistrado romano. Não tinha o direito de sentar-se na cadeira curial nem de usar a coroa e a púrpura, cujo uso era reservado exclusivamente aos dignitários da aristocracia. E nem lhes assistia o direito de se fazerem preceder nas ruas pelos lictores carregando o "fascio".

Novas conquistas da plebe

Aos poucos, porém, as atribuições dos tribunos, por uma série de conquistas e usurpações sucessivas, se foram estendendo. Sem que nada os autorizasse a isto, começaram a convocar a plebe para reuniões, a comparecer ao Senado (sentando-se a princípio junto à porta, do lado de fora, e penetrando mais tarde no interior, para acompanhar os trabalhos), a julgar os patrícios etc.

As reuniões da plebe, convocadas pelos tribunos, tiveram como consequência o fato de começar a plebe a fazer leis para si mesma. Estes decretos, chamados "plebiscitos", só eram aplicáveis à plebe. A aristocracia era governada por leis emanadas do Senado, corporação aristocrática cuja autoridade era a única a se exercer sobre a nobreza, e cujos decretos se chamavam "senatus-consultus". Entre esses dois poderes legislativos com caráter nitidamente oposto, um aristocrático e outro plebeu, havia um poder legislativo misto: as famosas "comitia centuriata", assembleias do exército às quais já me referi, em que tomavam parte tanto os nobres quanto os plebeus. Era um terreno comum, onde as duas classes podiam se encontrar sem abdicar de seus direitos e preconceitos.

Como já disse aos senhores em aulas anteriores, começou a aparecer em Roma uma plebe rica, que hoje chamaríamos burguesia. Esta plebe começou a se cultivar e civilizar, adquirindo ao cabo de algum tempo um sentimento de sua própria importância, que a fazia rivalizar facilmente com a aristocracia. Os aristocratas eram forçados a ter com essa plebe algum contato, pois que, exercendo elas profissões iguais às dos plebeus ricos, era forçoso que se encontrassem uns e outros frequentemente, decorrendo daí relações de caráter pessoal que forçavam a um contato bastante estreito. Nesses contatos foi possível aos plebeus ricos expor aos aristocratas os pontos de vista da plebe, fora do ambiente agitado das reuniões políticas, e inspirar neles um certo sentimento de tolerância para com as reivindicações plebeias.

Ao mesmo tempo, vendo na plebe homens de uma educação igual à sua e de fortuna às vezes superior, os aristocratas perdiam alguma coisa daquele velho orgulho de classe, que proporcionava à sua resistência uma tal firmeza. Por outro lado, os plebeus ricos tiveram oportunidade de conhecer mais de perto o modo de pensar da aristocracia, de receber desta algumas manifestações de simpatia e, finalmente, de compreender que havia algo de respeitável na classe nobre, que a plebe queria a todo custo guerrear.

Daí o fato de exercer a plebe rica uma função eminentemente conciliatória entre a plebe pobre e a aristocracia, função esta que também se explicava pelo desejo da plebe rica de assimilar-se e fundir-se com a aristocracia, em lugar de destruí-la.

Um dos episódios da luta de classes em Roma é a confecção da Lei das Doze Tábuas. A plebe queria leis escritas e públicas, e não leis conservadas pela tradição oral, conhecidas somente pelos patrícios, como eram até então as leis romanas. Esta exigência causou na aristocracia a mais viva repulsa. Finalmente, foi ela obrigada a ceder. O Código das Doze Tábuas foi submetido à aprovação da "comitia centuriata", em que figuravam nobres e plebeus. Por isto mesmo esta lei vigorava indistintamente para ambas as classes, e trouxe ao direito romano um princípio então inteiramente novo, que era a igualdade de todos os homens livres, perante a lei.

Um dos dispositivos da Lei das Doze Tábuas proibia o casamento entre nobres e plebeus, mas essa proibição foi posteriormente revogada, tornando-se frequentes os casamentos entre nobres e plebeus ricos.

Atendida a reivindicação popular, apareceu, como era de se esperar, uma outra. Os plebeus quiseram ser admitidos ao Consulado. Durante 75 anos, esperaram eles que a aristocracia lhes concedesse esse direito. Ao cabo deste longo tempo a nobreza foi obrigada a ceder, e foi determinado que, de dois cônsules, um seria plebeu e outro patrício. Obtida esta vitória, as barreiras foram caindo uma depois da outra, e os plebeus foram governadores de Roma e comandantes de legiões.

A democracia em Roma

Assim a evolução do regime republicano transformou Roma, de um município aristocrático, em democrático.

Quando falamos da democracia ateniense, eu já disse aos senhores que ela era mais diferente de uma democracia hodierna, ou do que hoje se imagina que deve ser uma democracia, do que o regime democrático de Atenas: aparentemente igualitário, mas na realidade caracterizado por uma feroz diferença de classes, existente entre os escravos e os homens livres. Falando-se a respeito da democracia romana, cabe a mesma observação. Roma, que em aparência proclamava a igualdade de seus filhos perante a lei, conservou até à queda do Império do Ocidente a escravidão, que implicava na mais feroz diferença social.

Mas cumpre acrescentar que em Roma a diferença das classes sociais, até mesmo entre homens livres, em pleno apogeu da plebe, se conservou mais nítida do que em Atenas. Roma foi sempre uma cidade de índole aristocrática, e quando desapareceram as diferenças jurídicas entre nobres e plebeus, conservou-se uma forte diferença entre ricos e pobres. Nas "comitia centuriata", às vezes se repartiam de acordo com a riqueza. Nos comícios das tribos, as tribos pobres eram só 4, e as dos proprietários 31. Como cada tribo tinha um voto, os habitantes livres, mas sem propriedade, eram uma minoria insignificante. Quanto ao Senado, em tese deveria ser periodicamente renovado, pois seus membros perderiam o cargo ao cabo de cinco anos. Mas havia o costume de indicá-los novamente, de sorte que, em geral, os senadores eram vitalícios.

Acontece que, em geral, os filhos de senadores eram designados para suceder seus pais, por morte destes. E, portanto, o senado se tornou na prática uma corporação hereditária.

Por outro lado, os costumes sociais eram mais aristocráticos ainda do que as instituições. Nos teatros, os senadores tinham lugares reservados; na cavalaria, só se permitia o ingresso de gente rica; os altos cargos do exército eram, em geral, reservados para os jovens pertencentes às famílias de grande posição, de tal modo que Cipião, da alta aristocracia romana, comandou um exército antes de completar 16 anos.

O respeito inato que os romanos tinham pela aristo-plutocracia de sua cidade fez com que, quando começaram as lutas entre pobres e ricos, que caracterizaram a última revolução, a plebe acompanhou frouxamente os revolucionários. Os Gracos só tiveram apoio precário da baixa plebe. As próprias leis agrárias, para a divisão das terras entre os plebeus pobres, deixaram bastante indiferente a plebe. Ela preferia viver pacatamente à sombra dos ricos, desfrutando em companhia deles as numerosas regalias que a fortuna imensa da grande cidade podia proporcionar a todos os seus habitantes.

Como os senhores devem saber por seus estudos ginasiais, as lutas entre a classe superior e a inferior foram, entretanto, bastante vivas, assinalando-se episódios expressivos da irritação dos partidos, que mais tarde relatarei.

O Império Romano

O Império veio pôr fim a estas lutas, e ofereceu uma solução cômoda e fácil ao problema social, que as classes, extenuadas com tantos combates, aceitaram de boa mente.

O título de imperador parece hoje muito mais elevado do que o de rei. Entre os romanos, entretanto, o título de imperador era muito mais modesto, pois que não significava soberania, mas era apenas conferido a certos dignitários republicanos. César e seus sucessores nunca ousaram ou quiseram tomar o título de rei. Preferiram chamar-se "imperator", gozando da autoridade político-militar decorrente daí e sendo, ao mesmo tempo, cônsules, tribunos, sumos pontífices etc.

Na aparência, a administração republicana, sob o Império, continuava de pé. Havia um Senado, cônsules, tribunos do povo, etc. Mas estes cargos eram puramente decorativos. Toda a autoridade passou para as mãos do imperador, o qual governava o Estado discricionariamente. O desprezo com que os imperadores tratavam velhos cargos da república ficou imortalizado pelo gosto de um deles, que mandou saber do Senado qual o melhor molho para se comer peixe.

A aristocracia acomodou-se de boa vontade a este sistema. Parecia-lhe agradável gozar de sua imensa fortuna, sob a paz social que o Império impunha. Acresce que a aristocracia se enriquecia imensamente, pelo exercício dos rendosíssimos cargos de governador de província, que em geral lhe eram confiados. Nestes cargos o governador podia confiscar, em benefício de seu bolso particular, todos os tesouros que lhe agradassem e pertencessem aos habitantes da província. Enquanto governador, ele era proprietário de tudo quanto se encontrava na província, com a preciosa faculdade de, ao expirar o seu tempo de governo, levar para Roma, para encher suas arcas ou seus palácios, o que lhe conviesse. Os senhores podem compreender facilmente como estes cargos eram lucrativos. A aristocracia, com isto, ficou extraordinariamente rica, e não sentiu muitas saudades do tempo em que o governo de Roma estava em suas mãos.

Quanto à plebe, também ela se consolou. É verdade que ela não dirigia mais os negócios públicos. Mas vivia em Roma no ócio, entre os festins públicos, os jogos de gladiadores e as representações teatrais, recebendo quotidianamente das mãos dos nobres os alimentos, e às vezes até os trajes de que necessitava. Pouco lhe importava estar reduzida politicamente a zero. A vida lhe corria farta e agradável, e nada mais ela desejava.

As famílias aristocráticas tinham mais uma compensação. No esplendor da corte imperial elas ocupavam o primeiro lugar, privando com os imperadores, e tendo por isso inimaginável influência sobre muitas das deliberações imperiais. Mas para essa aristocracia orgulhosa — que tinha resistido durante mais de mil anos às lutas mais variadas, enfrentando os inimigos externos de Roma e depois a plebe iracunda, dominando os primeiros e conservando sua superioridade perante os segundos — chegou finalmente o momento da decadência inevitável para todas as classes ou instituições humanas. Esta decadência foi provocada pelos próprios imperadores.

Não é difícil imaginar o orgulho das velhíssimas e riquíssimas famílias da aristocracia romana, sob o Império. Muitas delas faziam datar suas origens de tempos anteriores à própria Roma, e de troncos aristocráticos de cidades anteriores a Roma. Senhoras de imensa fortuna, e refulgindo na corte do monarca mais poderoso da Terra, sua situação parecia definitivamente consolidada, pelo aniquilamento da plebe e dos inimigos externos de Roma.

Mas os imperadores, ao cabo de certo tempo, começaram a humilhar a aristocracia, introduzindo nas mais altas funções da corte, e na sua mais estreita intimidade, gente da mais ínfima ralé social, plebeus desclassificados, escravos etc. Estes escravos libertos adquiriam, por munificência imperial, imensos patrimônios, e ficavam em posição igual à dos mais ricos dentre os aristocratas. Por outro lado, como os nobres estavam na dependência absoluta dos imperadores, precisavam bajular humildemente os favorecidos destes, ainda mesmo que fossem antigos escravos seus ou de algum antepassado.

O que é mais pasmoso é que, ao que parece, a nobreza não levantou contra isto a oposição que seria de supor. Pelo contrário, muitas famílias nobres, no apogeu da fortuna, ligavam-se de boa vontade, pelo casamento, com estes plebeus. Assim, a própria aristocracia se suicidava. Mesmo assim, entretanto, ela conservou por muito tempo o seu prestígio.

Mas vieram os bárbaros, que destruíram o Império. A aristocracia, ou foi dizimada ou teve de fugir, e ao cabo de mil anos de esplendor estas velhíssimas linhagens desapareceram definitivamente da História.

Costumes e vida social em Roma

Seria interessante, se pudéssemos fazê-lo, estudar as transformações sociais por que passou Roma, desde a realeza até a queda do Império do Ocidente, como fizemos a respeito da evolução política. Das transformações sociais, só vimos as que se relacionaram com a organização política, isto é, o longo processo de democratização por que passou Roma, e a vitória final da classe aristocrática. Ao lado desta transformação, seria interessante se pudéssemos estudar detalhadamente a evolução da vida doméstica, dos costumes sociais, da literatura etc., através dos diversos períodos da história romana. Infelizmente, porém, não dispomos do tempo necessário para isto, e seremos forçados a resumir muito.

Sob os seus antigos reis, e durante muito tempo ainda depois de proclamada a república, os costumes sociais em Roma foram muito simples. A bem dizer, os romanos eram então um povo de camponeses, ocupados principalmente com a agricultura, ferozmente trabalhadores e muito gananciosos. Neste povo já despontavam algumas qualidades que deveriam produzir sua grandeza. Além de muito trabalhadores, eram homens de um espírito muito prático e positivo, dotados de um alto senso da disciplina e de qualidades militares notáveis. Metódico, ordeiro, ponderado, o romano tem todas as qualidades de um excelente administrador. Em germe, já se notavam nele as qualidades que o elevariam à categoria de povo-rei do mundo inteiro.

Os costumes, porém, eram extremamente simples. Levantando-se com os primeiros albores da aurora, o romano passa toda a manhã trabalhando no campo. Depois de uma refeição seguida de pequena "sesta", volta ao trabalho, ao qual se entrega até o pôr-do-sol. Depois, janta e deita-se. Só os dias de mercado ou de assembléia abrem exceções a essa vida regular e severa.

As casas eram simples. Em geral, compunham-se de um só compartimento, chamado "atrium", que é ao mesmo tempo cozinha, quarto de dormir, sala de estar etc. A alimentação é extremamente sóbria. O vinho e a carne eram utilizados somente nos dias em que se ofereciam sacrifícios aos deuses. Tinham uma indumentária cuja simplicidade combinava com a austeridade de sua vida social: uma simples túnica, sobre a qual, nos grandes dias, se colocava um pedaço de pano chamado "toga".

Os romanos se mostravam patriotas ardentes e capazes de grandes sacrifícios pessoais em bem da pátria. Contentes com a vida austera que levavam, não eram ávidos de cargos e honras públicas, servindo à pátria por amor de seus deuses e de seus concidadãos, sem desejar por isto qualquer recompensa.

Infelizmente, esta situação transformou-se inteiramente depois da segunda guerra púnica. O hábito que tinham os romanos, de saquear sem mercê as cidades conquistadas, dando o butim aos seus generais ou ao público de Roma, fez com que, depois das guerras púnicas, e à medida que se iam dilatando as fronteiras da república, uma soma cada vez maior de ouro começasse a inundar a cidade eterna. Evidentemente, tanta riqueza deveria trazer uma modificação nos costumes. Primitivamente rudes e simples, os romanos se tornaram muito rapidamente sensuais, dissolutos e amigos de um luxo levado frequentemente até o excesso.

As casas começaram a transformar-se. As classes ricas desertaram inteiramente das antigas casas constituídas por um único aposento, e começaram a construir bairros de residências luxuosas, onde se viam numerosos compartimentos ou salas, cada uma com o seu fim especial. A primeira peça na qual se ingressava era um vestíbulo, depois do qual se encontrava o "atrium", sala com uma abertura no teto, através da qual as águas das chuvas caíam em um reservatório chamado "impluvium". Esta calha era uma reminiscência da antiga sala única das antigas habitações romanas, no alto das quais havia um orifício destinado a deixar passar a fumaça proveniente da preparação dos alimentos.

Transposto o "atrium", tinha-se acesso à sala imediata, o "tablinum", sala de recepção correspondente ao mesmo tempo ao que são, nas casas modernas, os "halls" e os escritórios. O "tablinum" era uma sala de recepção, na qual o dono da casa acolhia pessoas para tratar de negócios. Transposto o "tablinum", entrava-se na parte mais íntima da residência. Esta parte se compunha de diversas salas contíguas: sala de jantar, quarto de dormir, biblioteca, banheiro, etc. Todas estas salas não tinham janelas dando sobre a rua. Elas davam diretamente a um jardim interno, pelo qual recebiam ar e luz. Este jardim era cercado por uma colunata chamada "peristilum".

A casa tinha, às vezes, dois pavimentos. Às vezes a sala de frente do andar térreo era alugada para estabelecimentos comerciais, morando as famílias no pavimento superior e nos fundos do andar térreo, exatamente como se dava antigamente em São Paulo, quando o atual centro da cidade era um bairro ao mesmo tempo residencial e comercial, morando as famílias, em geral, nos altos das casas, e alugando o andar térreo para o comércio.

Muitas dessas casas eram construídas com riquíssimo material, e ornamentadas com mármores, mosaicos e pinturas do maior valor. Para completar o ambiente de luxo que se constituía nos lares romanos, começaram a aparecer móveis preciosos, tecidos de preços inestimáveis, objetos de grande valor etc. Como se vê, estava muito longe de tudo isto a velha e gloriosa simplicidade dos primeiros tempos de Roma.

A bem dizer, a indumentária masculina não sofreu alteração marcante. Simplesmente, os tecidos se tornaram muito mais ricos, e os elegantes se preocupavam em dar às pregas da ampla toga um cunho de distinção, que não era muito fácil de conseguir. Por isto, um elegante do primeiro século chegou a processar judicialmente um conhecido que, tendo esbarrado nele em uma rua muito estreita, anarquizou as pregas artisticamente dispostas de sua toga. Ainda veremos algo sobre o luxo feminino, que, como os senhores podem imaginar, não ficou atrás do luxo masculino.

Ao mesmo tempo que se civilizavam cada vez mais os costumes, a intelectualidade dos romanos fazia progressos. O contato cada vez maior que os romanos tinham com os gregos teve por consequência uma verdadeira invasão da civilização grega em Roma. Médicos, preceptores, professores de retórica, cozinheiros, atores, adivinhos, empregados domésticos, em todas estas profissões os romanos gostavam de fazer-se servir pelos gregos. Explica-se facilmente isto. Os gregos tinham uma inteligência privilegiada e eram senhores de uma extensa cultura, que se aliava a uma requintada civilização. Os romanos tinham muito dinheiro, mas uma civilização ainda incipiente. Em contato com os gregos, adaptaram-se à sua civilização. Com isto e a literatura helenística, os gregos conquistaram inteiramente Roma, e, atrás das legiões romanas, o imenso império por estas conquistado.

Aumentando sob o Império o poderio de Roma, também cresceu o luxo. E, com ele, uma tal corrupção de costumes se alastrou sobre Roma, que se pode dizer que foi essa corrupção a principal causa da queda do Império Romano.

Não quero dizer com isto que é impossível a um povo progredir, sob o ponto de vista literário, artístico e social, sem cair na imoralidade. Bem utilizados, o dinheiro e o saber não são nocivos ao homem. Pelo contrário, podem servir para as maiores realizações, sem que, com isto, seja prejudicada a moralidade dos povos.

Entretanto, é incontestável que o dinheiro e a cultura, embora se prestem a usos excelentes, também podem servir para fins indignos, e muito frequentemente a riqueza prejudica moralmente os seus detentores. É possível, e perfeitamente possível, a um homem rico conservar-se puro de caráter. Mas é incontestável que, para ele, as ocasiões de praticar o mal são mais numerosas do que para um homem pobre.

O mesmo se dá com os povos. Os povos podem ser ricos e virtuosos. Mas um povo rico encontra muito mais frequentemente ocasiões para se desmandar e decair moralmente, do que um povo pobre.

Foi o que sucedeu com os romanos. Eles se enriqueceram extraordinariamente. Por outro lado, por um processo longo de decadência religiosa, que futuramente veremos, eles perderam as crenças e os princípios que amparavam sua moralidade. Finalmente, foram receber a civilização exatamente de um povo em decadência moral franca, como era o grego. Todas estas circunstâncias se juntaram para afogar o Império Romano num dilúvio de ouro e de lama, no qual morreu asfixiado.

Vejamos alguns traços mais característicos dessa série de circunstâncias. Terminado isto, darei aos senhores alguma coisa sobre a literatura, a filosofia, o direito etc., em Roma.

O luxo

A partir dos últimos tempos da república, até a queda do Império, o luxo em Roma não conheceu limites. Principalmente as damas da alta sociedade, levavam uma vida de ostentação e desperdício, difícil de se conceber nos dias que correm.

Em via de regra, cedo pela manhã a matrona do patriciado romano era despertada por escravas, que conduziam tinas de prata contendo leite finamente aromatizado. Destinava-se este líquido à "toilette", em virtude de ser corrente naquela época a impressão de que o leite pode tornar mais macia a pele.

Em seguida entravam no quarto da matrona as numerosas escravas incumbidas de velar pela manutenção de sua beleza. Essas escravas constituíam o que hoje se pode chamar um "salon de beauté". Cada uma delas tinha uma especialidade. Uma era perita na extração de sobrancelhas, sem dor ou quase sem dor; outra era especializada no tratamento das mãos e dos pés; outra ainda, era artista incomparável no pentear, sabendo armar as mais espantosas obras de arquitetura capilar.

Algumas escravas tinham o segredo de preparar pomadas que davam ao rosto de sua senhora uma fisionomia jovial ou triste, conforme melhor lhe conviesse. Especialmente apreciadas eram as escravas que, provenientes das mais remotas províncias do Império, sabiam preparar perfumes raros e deliciosos. Além deste verdadeiro exército de "técnicas", havia ainda as auxiliares, isto é, as que carregavam o espelho, os escrínios, os demais objetos necessários para o aformoseamento da matrona. Parece que a arte de pintar os cabelos não tinha atingido em Roma o desenvolvimento que conhece nos nossos dias. Por isto as matronas apreciavam muito os cabelos louros, que se vendiam em determinadas lojas de Roma, e que eram importados da perigosa e longínqua Germânia.

Terminada finalmente a "toilette", chegava a hora do passeio. Em geral, a dama do patriciado romano saía à rua em uma liteira cercada de vidros, na qual ela se deitava sobre riquíssimas almofadas e tapeçarias. Pouco distante dela vinha um escravo, ou às vezes dois, trazendo leques imensos e custosos, para afastar os insetos. De um e outro lado da liteira caminhava uma turba de bajuladores, que durante o passeio diziam à matrona coisas agradáveis.

A liteira era carregada por escravos que trajavam riquíssimas librés. Os carros tinham rodas de marfim e eram puxados por cavalos ajaezados com peças de ouro e de púrpura. Finalmente chegou-se a um tal luxo, que algumas senhoras dispensaram inteiramente a liteira e o carro, bem como o séquito, fazendo anunciar à plebe a sua presença de um modo extravagante e dispendioso. Havia certas pérolas, muito usadas entre os romanos, que, calcadas aos pés, produziam um ruído característico, já muito conhecido da multidão, e que denotava estar se aproximando uma dama da alta aristocracia. Estas pérolas, portanto, serviam de klackson [buzina], e dispensavam quaisquer escravos ou lictores para abrir alas entre a multidão, maravilhada com tanto luxo.

Mas seria errôneo supor-se que esses excessos de luxo só se registraram no elemento feminino. Os homens, em Roma, rivalizavam com as mulheres em vaidade e ostentação. Trajavam fazendas riquíssimas, de valor frequentemente inestimável. As dobras das diversas partes do traje eram minuciosamente regulamentadas pelos "grã-finos" da época. Eram tais o transtorno e o imaginário prejuízo sofrido por eles quando uma dobra era alterada, que um dos "elegantes" de Roma chegou a processar judicialmente um conhecido, exigindo uma indenização pelo fato de este involuntariamente, ao passar por uma rua muito estreita, ter esbarrado no "grã-fino", e com isto perturbado a bela ordenação das pregas de seu traje! A nota distintiva dos rapazes da alta sociedade era o uso de toga com franjas até à mão e cintos riquíssimos. Todos os demais detalhes de sua indumentária condiziam com o que aqui ficou dito sobre os apuros de suas preocupações estéticas. Os seus cabelos eram cuidadosamente frisados.

Como é inevitável, desde que a beleza seja considerada como a principal qualidade de uma pessoa, começa-se a lhe fazer o sacrifício dos mais caros afetos. As mães, para conservarem por muito tempo o viço da mocidade, tinham horror à prole numerosa. Já se conheciam então certas "facilidades" criminosas, e muito frequentemente a mãe, apenas nascia o filho, enviava-o para longe, confiando sua educação a qualquer camponês que aceitasse o encargo mediante gorda remuneração. O motivo dessas infames negociatas era claro, pois quando crescesse o filho poderia tornar-se um atestado vivo da velhice da mãe. Ocultado definitivamente o filho, a mãe poderia, por muitos anos, "não envelhecer", e julgava assim estar tudo resolvido. É claro que a entrega da criança a seus novos "pais" era feita de tal maneira, que nem estes nem aquela soubessem a identidade, que lhes ficava impenetravelmente ocultada.

Se a nobreza luxava tanto, não é difícil imaginar a que excessos se entregavam os imperadores. Heliogábalo atapetava com areia de ouro o pórtico de seu palácio, para que todas as pessoas que ingressassem no edifício imperial saíssem com os pés marcados. Esse mesmo imperador usava túnicas de ouro e púrpura, recobertas por um manto tão sobrecarregado de pedrarias, que o impediam de mover-se. Desde os tornozelos à cabeça, o imperador estava coberto de joias. Comia ele em travessas de prata maciça, utilizando vasos de ouro e de ágata. Sua cama era de prata maciça, coberta de ouro. Até os animais que lhe pertenciam viviam no luxo. As feras de seu jardim zoológico comiam papagaio e faisões. Os seus cavalos eram alimentados com uvas raras.

É curioso que esse homem, cercado de todos os elementos materiais necessários para que alguém se possa sentir feliz, era atormentado pela constante preocupação do suicídio. Mandou construir uma alta torre, da qual se pudesse atirar a qualquer momento. Ao pé da torre havia um sol feito de ouro e pedrarias, incrustado no chão. Destinava-se o sol a receber o corpo imperial, quando este viesse espatifar-se de encontro à terra! Para facilitar ainda mais o seu suicídio, Heliogábalo mandou fazer uma espada com pedras, embaixo das quais teria à sua disposição, a qualquer momento, o veneno necessário para pôr termo à sua brilhantíssima e desventurada existência.

São tremendas as reflexões que este fato sugere. Mas, ao mesmo tempo, são confortadoras. Tremendas, porque mostram que se iludem cruelmente aqueles que querem alicerçar a própria felicidade sobre a fortuna e os prazeres que a vida proporciona. Confortadoras, porque mostram aos homens retos e puros que a felicidade não está na concupiscência, mas na tranquilidade ordenada e metódica de uma vida pura.

Infelizmente o mundo romano não soube ver isto. Faltou-lhe a luz sobrenatural do Cristianismo. E por isto o luxo em Roma crescia cada vez mais. Conta-se, entre outros casos característicos, o de uma famosa Lolia Paulina, que compareceu a uma pequena reunião íntima recoberta com esmeraldas avaliadas em quarenta milhões de sestércios. Em nossa moeda, isso daria talvez mais de quarenta mil contos de réis.

Um companheiro inseparável do luxo é o jogo. Em Roma ele não tinha limites. Para sustentar uma e outra coisa, Roma devastava todas as suas colônias. Já tive ocasião de explicar aos senhores o aparelhamento jurídico e administrativo complicado, por meio do qual os governadores das províncias romanas tinham o direito de confiscar em seu próprio benefício o que lhes aprouvesse, nas respectivas províncias.

O mesmo acontecia com os generais vitoriosos. Paulo Emílio, regressando da Macedônia em grande pompa, entrou em Roma com um cortejo no qual se notavam 250 carrascos com estátuas de ouro por ele confiscadas. Para dar certa satisfação a seus soldados, permitiu que saqueassem 70 cidades, retirando para si mesmos o que quisessem. Fatos como este eram comuns.

Certa vez Calígula viajava pela Gália, e para preencher seus longos lazeres, jogava com amigos. Tendo perdido no jogo todo o dinheiro que trazia consigo, mandou vir o registro dos mais ricos habitantes da província, e condenou-os à morte e ao confisco dos respectivos patrimônios, em benefício do erário imperial. Com isto — explicou ele aos seus amigos — refazia sua fortuna em poucos minutos, dos prejuízos sofridos durante longas horas de jogo.

Aliás, o recurso à violência, para o abastecimento das bolsas insaciáveis dos magnatas romanos, não datava do império. Já durante a república Roma era teatro de rapinas e assassinatos, entrelaçados com complicações amorosas e lutas financeiras, que constituíam o escândalo do mundo.

Silas, tendo vencido Cina e Mário (o filho do ... Mário) na batalha de Preneste, mandou passar a fio de espada mais de mil habitantes de Roma. Depois promulgou leis de confisco e proscrição tão generalizadas, que lembram os horrores da Revolução Francesa ou da Revolução Russa. Depois, sentado triunfalmente no Fórum Romano, Silas vendia em leilão as fortunas dos proscritos e dos exilados, e o próprio título de cidadão romano, de que eram tão orgulhosos os antigos romanos. Às prostitutas, mímicos, libertos etc., deu ele as rendas da cidade inteira, a título de presente.

Bastava que a propriedade de alguém fosse cobiçada por algum dos poderosos do momento, para que imediatamente fosse decretada a morte do infeliz proprietário e o confisco de seus bens. É famoso, entre outros, o caso de Quinto Aurélio, pacato e riquíssimo romano que vivia afastado da política. Vendo o seu nome em uma famosa lista de proscrições, disse simplesmente: "É a minha quinta em [...] que me mata". E tinha razão.

Como a lei romana atribuía ao delator os bens do delatado, no caso de se provar que a delação era verdadeira, generalizou-se de tal maneira em Roma a delação, que até pais e filhos chegaram a delatar-se reciprocamente, com a esperança de aumentar os respectivos haveres.

Um geral sentimento de descaso pela vida humana alastrou-se pela gloriosa capital do mundo, a tal ponto que os cambalachos políticos feitos em torno de recíprocas permissões de assassinatos eram frequentes. Augusto, por exemplo, fez um cambalacho destes, de que a vítima foi o imortal Cícero. Os inimigos do genial orador queriam a todo custo a sua morte, o que repugnava a Augusto, admirador de seu incomparável talento. Entretanto, Lépido consentiu em que se matasse seu irmão Paulo, e Antônio sacrificou seu tio Lúcio César. Em troca destas duas vidas, Augusto consentiu em sacrificar Cícero.

Pelas ruas, não era raro tropeçar-se em corpos de pessoas vitimadas por alguma violência. Quando a cabeça não era separada do corpo, era indício de que os executores da ordem de homicídio tinham verificado haver-se enganado de vítimas, e, em homenagem ao inocente, não cortavam a cabeça do cadáver já inerte.

Parece que o próprio afeto materno, o mais durável e o mais abnegado dos afetos que a Providência inscreveu nas leis da natureza, afrouxou-se em Roma. Já lhes contei o que faziam certas mães com os filhos que lhes nasciam importunamente. Vou contar-lhes um outro caso, talvez mais digno de censura.

Um jovem romano, tendo atingido a puberdade, visitava, em companhia de amigos, diversos templos da cidade de Roma, dando graças aos deuses, como era de costume em tais circunstâncias, por ter chegado aquele dia. Como o jovem era imensamente rico, seus amigos eram muito numerosos. Mas alguém conspirava contra ele na sombra, provavelmente para se apoderar de sua fortuna. Enquanto o jovem fazia suas visitas, veio uma pessoa cientificá-lo de que, por ordem governamental, acabava de ser condenado à morte. Os senhores podem imaginar facilmente que os amigos imediatamente se dispersaram.

O jovem, espavorido, correu em demanda da casa materna, que era, de todos os lugares do mundo, aquele que com mais afeto se lhe devia abrir em tão dura situação. Mas havia uma lei que condenava à morte as pessoas que asilassem alguém que tivesse sido objeto de uma condenação à pena capital. Por isto, previamente avisada, a mãe mandou fechar as portas de sua casa, de modo a evitar que o filho lá fosse em demanda de proteção. Bateu o jovem em vão à porta da residência de sua mãe: ela não se deixou comover.

Vendo que nem mesmo junto à sua mãe ele encontrava refúgio e proteção, fugiu para o mato. Aí, uma quadrilha de salteadores o reduziu à condição de escravo. Sua vida passou a ser tão infeliz, que resolveu contar sua identidade ao primeiro grupo de soldados que encontrasse. Deparando, então, com alguns soldados, disse-lhes quem era, e a sentença de morte foi imediatamente executada.

Aproveitando a geral desordem, muitos soldados irrompiam pelas moradias dos ricos senhores, forçando-os a adotá-los como filhos e herdeiros. Nos luxuosos e requintados lares senatoriais se introduzia assim, como filho da casa, algum miliciano boçal, que era para seu pai adotivo um objeto, não de afeto, mas de pânico.

Tantas foram as desordens, e tal era o esbanjamento de dinheiro, que Bruto e Cássio resolveram cobrar os impostos das províncias asiáticas, com uma antecipação de 10 anos. Não foi em vão, portanto, que o grande Cícero dizia: "Gemem todas as províncias, lamentam-se todos os povos livres, todas as nações do mundo clamam contra nossas violências. Um único lugar não há onde a tirania e a injustiça dos nossos concidadãos tenham deixado de assentar campo. Juízes, agradam-vos os costumes atuais? Um tal estado social vos satisfaz?"

Se era grande o despotismo republicano, não foi menor o despotismo imperial. A arbitrariedade com que os imperadores tratavam todas as classes sociais tem até algo de pueril nos requintes, às vezes ingênuos, de sua crueldade. Nem o que era santo, nem o que era digno, nem o que era respeitável, escapava ao desprezo com que os imperadores olhavam o mundo inteiro. Os próprios deuses não constituíram exceção a essa regra, como adiante veremos.

Domiciano ordenou ao patrício Glábrio que fosse enfrentar um leão no anfiteatro. Saindo-se bem do penoso e difícil cometimento, Glábrio deu graças aos deuses. Recebeu então um recado de Domiciano, que o condenava à morte por se ter infamado, combatendo como um gladiador no circo, o que era tarefa indigna de membro da nobreza romana.

Durante um espetáculo, chovia a cântaros. Domiciano mudou então de roupa, para evitar qualquer incômodo, mas proibiu à assistência que também o fizesse, sendo todos forçados a assistir ao espetáculo com a roupa molhada.

Indo ao senado, Calígula dava o pé a beijar aos senadores, hábito este que tendeu depois a se generalizar.

Tendo assassinado sua mãe, Nero escreveu ao Senado uma carta em que justificava o crime. Com a exceção de um só, que se retirou timidamente no momento da votação, todos os senadores aprovaram o delito imperial. Nero, então, mandou que o Senado julgasse o senador que se havia retirado. A ordem foi cumprida, e o senador foi condenado à morte.

Além do matricídio, que bastaria para torná-lo tristemente célebre, Nero cometeu inúmeros outros crimes. Entre eles figura o assassinato do filho de sua esposa Popéia, pela simples razão de que o menino foi surpreendido brincando de imperador, como as crianças hoje brincam de soldado. Os crimes de Nero foram tão numerosos, que Tácito consagrou um livro inteiro à sua narrativa.

Galba só permitiu o enterro dos mortos das legiões que se haviam oposto à sua ascensão à dignidade imperial, com a condição de que o carro que o levasse triunfalmente ao Capitólio passasse por cima dos cadáveres.

E o mais curioso, a prova mais patente de que toda essa corrupção moral não existia apenas no palácio imperial, mas também na massa do povo, está na popularidade imensa de que gozaram alguns dos mais tristemente famosos imperadores romanos, que amorteciam facilmente o senso moral mediante a distribuição de largos donativos ao populacho. Heliogábalo, de tão deplorável memória, era popularíssimo em Roma. Caracala, soberano de vida debochada e hábitos cruéis, era popularíssimo porque fez a todos os habitantes romanos uma distribuição de roupas novas. Cômodo, quando combatia como gladiador vestido de mulher, era freneticamente aplaudido pelo populacho. Nero organizou por si mesmo um triunfo, em que a multidão exclamava: "Oh vencedor olímpico! Oh voz celeste! Felizes são os que te ouvem!"

A despeito de todos os seus crimes, Nero era tão popular que, quando faleceu, formou-se em Roma um partido "sebastianista", que afirmava não ser verídica a morte do imperador, e que, mais dia menos dia, reapareceria para tornar a reinar sobre o seu povo. Vozes supersticiosas afirmavam ter ouvido sua voz junto à montanha do Píncio. E o sucessor de Nero teve de lançar severíssimas penas sobre os que afirmavam não ter ele falecido.

O segredo da popularidade de tantos imperadores dignos de ódio estava na sua liberalidade para com o povo, que se traduzia na construção de suntuosos edifícios públicos, como teatros e circos, distribuição de vestes, além de banquetes públicos que atingiam, às vezes, proporções verdadeiramente pasmosas. Realizou-se uma vez em Roma uma distribuição gratuita de víveres ao povo, sob a forma de opíparo banquete em que tomaram parte 66 mil comensais.

Depravação sexual

Não admira que, em meio de tanto luxo, os costumes fossem muito dissolutos. O divórcio alastrou-se assustadoramente em Roma. O próprio Augusto, que se quis arvorar em campeão da moralidade dos costumes contra a onda de corrupção que crescia cada vez mais, casou-se com uma mulher divorciada (ele se dizia inimigo do divórcio), e para isto nem sequer esperou o prazo legal para nascer o filho por ela concebido do marido anterior. Júlia, filha de Augusto, mereceu de Veleio Patérculo a afirmação de que ela praticara todas as infâmias de que uma mulher é capaz.

Calígula violava a honra das patrícias romanas. E Agripina, mãe de Nero, poderia ser avó dos próprios filhos. Messalina, mulher de Cláudio, frequentava casas de tolerância, fazendo questão de receber o dinheiro em troca do qual vendia seu corpo, para sentir o prazer de ser uma autêntica meretriz. Aliás, a corrupção de Messalina foi tão longe que ela chegou a casar-se enquanto ainda vivia Cláudio, com o aristocrata Sílio, que exercia o alto cargo de cônsul em Roma.

Houve patrícias que se matricularam oficialmente como meretrizes. Outras casavam-se com eunucos. Os moços da plutocracia casavam-se com velhas de aspecto físico repelente, com o único fito de herdar seu patrimônio. E as matronas da aristocracia, casadas às vezes com ilustres senadores, andavam à cata, não mais apenas de moços de boa posição, mas até de escravos e de gladiadores, para satisfazer seus torpes instintos. Muitas delas abandonavam seu lar, para ir viver em companhia de um indivíduo desses.

Parece, no entanto, que ninguém pôde exceder em cinismo a Calígula, que teve a audácia de instalar um lupanar no próprio palácio imperial. Sempre que Calígula passava pelo golfo de Baias, as senhoras mais ilustres construíam cabanas provisórias nas margens, convidando o imperador a servir-se delas. Em uma festa em torno de um lago, construíram-se casas de tolerância onde as moças do patriciado se entregavam à vontade a quem as desejasse. Cômodo, que costumava aparecer em público vestido de mulher, vivia em uma turma de fâmulos e moças, na maior devassidão, e levava à própria tribuna imperial do circo as suas concubinas. Heliogábalo dizia não querer ter filhos, de medo que um deles saísse honesto.

Os imperadores destroem as tradições e estimulam a imoralidade

Em um tão geral desmoronamento da moralidade pública, os dois mais eficientes esteios em que se poderia apoiar a sociedade, para evitar a completa ruína nacional, seriam naturalmente a religião e as tradições. Uma e outra, religião e tradições, lembravam aos romanos as virtudes de seus maiores, às quais, em grande parte, Roma devia o prodigioso êxito de suas armas. Uma e outra estavam intimamente ligadas a todos os costumes sociais. Uma e outra conservavam muito ascendente sobre o espírito público. E por isto poderiam servir aos imperadores de preciosos auxiliares na obra de preservação moral no país.

Entretanto, tal não se deu. Impelidos por um furor suicida, os imperadores romanos destruíram os esteios aos quais se poderia ainda firmar, ao menos por algum tempo, a sociedade vacilante. Foram eles os primeiros a desprestigiar a religião e derrogar as antigas tradições herdadas dos maiores.

Há mil fatos que demonstram essa asserção. As tradições romanas ligavam uma nota de infâmia aos que combatessem na arena ou representassem nos teatros. Apesar disto, numerosos imperadores forçaram pessoas da mais alta aristocracia a representar nos teatros da cidade, para a satisfação dos caprichos imperiais. Mais de uma vez, graves senadores e dignas matronas foram obrigados inopinadamente a subir ao palco, durante alguma representação, para fazer o triste papel de bobos.

Certa vez, uma patrícia octogenária foi forçada a dançar no teatro para a recreação do auditório, que não se compadecia de sua velhice nem respeitava sua dignidade. Mais de uma vez, também foram os membros da aristocracia obrigados a descer à arena, para combater contra feras ou gladiadores, adquirindo com isto as notas de infâmia que a lei lhes aplicava por semelhante fato. Mas o escândalo não parou aí. Cômodo costumava descer pessoalmente à arena vestido de mulher, para combater como gladiador. Um imperador houve, que se ligou a uma "troupe" de artistas que dava espetáculos por todo o Império, e nessa companhia seguiu para a Grécia, onde deveriam ter lugar as representações teatrais. Como essas, todas as demais tradições romanas caíam aos pedaços, precipitadas ao chão pela mão onipotente dos imperadores.

Por outro lado, os mímicos, os bobos, os atores e os escravos libertos adquiriam na alta sociedade e na corte imperial uma influência cada vez maior. As leis romanas consideravam toda essa espécie de personagens como gente infame. Não obstante isto, os imperadores e as pessoas da aristocracia cumulavam tais indivíduos com presentes tão magníficos e bens tão numerosos, que houve alguns que chegaram a ter fortunas capazes de figurar entre as maiores de Roma, ligando-se pelo sangue e pelo casamento com as mais aristocráticas e ricas famílias da Capital do Mundo.

Todos os antigos escritores romanos são unânimes em afirmar que a introdução desses elementos adventícios na alta sociedade romana teve uma influência profundamente nefasta sobre a moralidade. Nenhum deles tinha uma posição definida a defender, ou um nome tradicional a proteger contra escândalos. Eram aventureiros que deviam toda a sua fortuna e todo o seu esplendor à munificência imperial ou à generosidade de algum aristocrata milhardário. De um momento para outro podiam novamente ser precipitados ao chão. E, com todo o despudor e todo o cinismo, tratavam de aproveitar do melhor modo possível suas imensas riquezas, enchendo toda a cidade e todo o Império com o ruído de seus escândalos.

Embora a lei considerasse infames tais personagens, eles eram preferidos, nas aventuras amorosas, aos próprios imperadores. Messalina, Faustina (esposa de Marco Aurélio) e a esposa de Domiciano tinham ligações ilícitas com gente de tal laia, ligações estas conhecidas em Roma. A voga dos gladiadores foi tão grande, que frequentemente as esposas de senadores abandonavam o lar para irem viver com eles.

Decadência da família

Nesse naufrágio geral, a família teria de sofrer imensamente. E foi o que sucedeu. Grande número de ricaços preferia não se casar, para poder fruir sem peias as falsas delícias da luxúria. Não se casando, não tinham filhos, ou ao menos não tinham filhos legalmente reconhecidos como deles. E por isto tinham a faculdade de deixar, em testamento, sua fortuna a quem mais lhes agradasse. Por esta razão, havia uma verdadeira caçada às fortunas dos solteirões. Todos eles eram sitiados, noite e dia, por um verdadeiro exército de rapazelhos, que lhes faziam a corte com as mais escandalosas e cínicas atenções e provas de afeto, a ver se comoviam o coração do solteirão e obtinham alguma liberalidade testamentária. Este fato tornou-se, em Roma, tão generalizado que chegou a ser objeto de mofa nos livros da época.

A esterilidade nos lares senatoriais tornou-se tão alarmante, que até foi publicada a lei Popéia, que procurava reprimir a limitação da natalidade. Mas a lei foi totalmente inútil, e esse abominável abuso continuou.

Como já disse aos senhores, a opinião pública não se indignava contra esses excessos tanto quanto seria de desejar e de esperar.

Quando veio de Baias, onde matara a própria mãe, Nero recebeu uma manifestação popular deslumbrante. As mulheres e crianças atiravam-lhe flores. Quando souberam que ele se suicidou, formou-se uma seita de "sebastianistas", à qual já me referi, que esperavam que ele voltasse. O povo, saudoso, afirmava que sua voz se fazia ouvir no Píncio. Ainda no reinado de Domiciano, puniam-se severamente os aventureiros que diziam ser o próprio Nero.

Dureza dos costumes

Os gladiadores - Enquanto essa população sibarita se tornava desfibrada para o cumprimento do dever, aumentava nela, por um curioso mas muito explicável paradoxo, a crueldade e a sede de sangue. Os anfiteatros em que combatiam os gladiadores eram testemunhas das mais atrozes carnificinas.

Como os senhores já sabem, porque eu já lhes disse, os combates entre gladiadores provinham de antiga tradição, segundo a qual era necessário que sobre a sepultura de um morto combatessem dois homens, para que o sangue da vítima apaziguasse a alma do defunto. Mas essa monstruosa prática religiosa, já de si tão cruel, tornou-se com o passar do tempo uma verdadeira chaga social. O povo já não procurava os combates de gladiadores com uma preocupação meramente religiosa, mas com o fito principal ou exclusivo de se divertir com o derramamento de sangue humano. Quanto maiores fossem as hecatombes, quanto mais abundante o sangue, quanto mais funestos os ferimentos, tanto maior era o prazer popular.

No início dos jogos de gladiadores imolava-se aos deuses uma vítima humana, e depois começava o combate. Sob Trajano houve uma verdadeira batalha de gladiadores, em que tomaram parte dez mil deles, que combateram até que não houvesse mais combatentes na arena. Havia gladiadores da categoria chamada "sem remissão": quando penetravam na arena, não podiam sair dela com vida. À vista destas lúgubres informações, compreende-se a tristeza pungente da saudação com que os gladiadores iniciavam o combate: "Ave, Cesar, morituri te salutant!"

No meio dos combatentes de compleição física normal, colocavam-se às vezes turmas de gladiadores anões, que se entrematavam debaixo de chacotas. Depois de certos jogos, todos os espectadores — senadores, cavalheiros, imperadores, matronas — desciam à arena para fazer uma saturnal hedionda, em que se misturavam todas as categorias sociais.

Para que os senhores tenham uma ideia da crueldade excepcional de tais espetáculos, bastará que se recordem dos tormentos de que eram vítimas os cristãos, que morriam sob as mais tremendas torturas, quer pertencessem às mais altas ou às mais baixas classes sociais, qualquer que fosse sua idade, seu sexo, sua cultura ou a sua fortuna. O crime de ser cristão não tinha atenuante, e só se expiava em tormentos atrozes, que parecem ter esgotado, no gênero, tudo quanto as mais fantasiosas imaginações pudessem conceber.

Os escravos - Se tal era a situação dos gladiadores, pior era a dos escravos. Em geral, estes eram prisioneiros de guerra ou descendiam de prisioneiros de guerra. Para eles não havia direitos. O escravo era considerado um objeto de propriedade de seu senhor, que este podia destruir a qualquer momento por um simples ato de vontade. Os escravos eram tão numerosos, que seu preço era baixíssimo. Houve uma ocasião em que um escravo custava menos de que um rouxinol. Em cada casa rica havia um funcionário chamado "carvifex", que era o carrasco dos escravos, e que devia aplicar constantemente as mais tremendas penalidades.

Quando o Cristianismo começou a irradiar sua influência sobre Roma, e a orientar em um sentido caritativo até mesmo os seus adversários, ditaram-se diversas leis em Roma, protegendo a vida e a integridade física do escravo contra os abusos do senhor. Mas essas leis foram inteiramente inoperantes. Nunca foram aplicadas de forma a constituir para os escravos uma garantia suficiente.

Em geral, a indiferença do público para com os escravos era completa. Tácito, por exemplo, propôs a expulsão para a Sardenha de 4.000 escravos libertos, para que lá morressem pela insalubridade do clima. Tito, que destruiu Jerusalém com uma crueldade enorme, e que reduziu ao cativeiro todos os judeus maiores de 17 anos, foi no entanto cognominado por seus contemporâneos "amor e delícias do gênero humano".

Se não fosse o receio de alongar exageradamente estes pontos, eu ainda relataria aos senhores inúmeros outros detalhes tristemente significativos a respeito da situação dos escravos de Roma, situação esta, aliás, em nada inferior à que eles tinham em todos os demais países do mundo antigo, com exceção da Palestina.

A religião

Desordem e decadência dos antigos cultos - Longe de servir como fator de preservação social, em Roma a religião pagã foi um tremendo veículo da corrupção dos costumes, por todo o Império e em todas as classes sociais.

A primitiva religião dos romanos, isto é, sua crença no fogo sagrado e nos mortos, desaparecera. Do primeiro culto, restava apenas uma reminiscência, que era o culto do fogo das vestais. Do segundo, até sob Augusto e ainda mais tarde, ficaram as refeições fúnebres, que as famílias nobres realizavam junto aos jazigos de seus antepassados. Mas ninguém mais acreditava nestas coisas.

Quanto aos deuses que não eram dessas primitivas religiões, desde o início de Roma houve uma confusão imensa, pelo extraordinário número de divindades que a imaginação popular produzia constantemente. Esses deuses eram seres vagos, a cujo respeito nada se sabia, senão que estavam dotados do poder de auxiliar ou prejudicar poderosamente os homens. Daí provinha o culto que lhes era prestado, com um fito todo interesseiro.

Os deuses desse antiquíssimo período da história romana nada têm de comum com os deuses gregos. Em lugar de serem entes vagos, eram super-homens de brilhantes qualidades estéticas e grande poder. O número desses deuses vagos, na antiga Roma, era imenso, e cada um deles só se ocupava de uma coisa, agindo dentro de uma esfera extremamente restrita. Havia um deus especial para a porta, mas havia outro para as dobradiças da porta, e outro ainda para a soleira. Cada homem tinha um deus pessoal, mas além disto havia um deus que fazia a criança dar seu primeiro grito, outro que lhe ensinava a comer, outro a beber, outro a sair de casa, outro a voltar para ela etc. Havia um deus especial para o camponês quando ele cultivava a terra, outro que o protegia quando adubava, outro quando semeava etc.

Os deuses se multiplicaram de tal modo, que chegaram a ser recenseados em mais de 30.000, e um romano disse certa vez, pilheriando, que era mais fácil em Roma encontrar-se um deus do que um homem. Tal era o número de deuses, e tão vagos os conhecimentos que sobre eles tinham os romanos, que, invocando-os, tinham medo de nem sequer saberem bem o seu nome, pelo que às vezes acrescentavam, já depois da invocação do deus, esta pergunta: "Preferes que te chame com outro nome?"

Muito frequentemente os deuses romanos, especialmente os mais antigos, não eram estátuas, e por isto não podiam ser alojados no interior de templos. A população supunha que eles habitavam no interior de certos objetos.

Os deuses estrangeiros invadem Roma - Essa abundância de deuses cresceu com o hábito que tinham os romanos de prometer, aos deuses da cidade com que guerreavam, que os transportariam a Roma, dedicando-lhes um culto especial, caso consentissem em desamparar os seus fiéis no momento do combate, dando assim ganho de causa às armas romanas. Fielmente cumpridas, estas promessas tiveram como consequência o fato de Roma se encher de divindades do mundo inteiro.

Já antes dessa grande invasão de divindades orientais, Roma foi invadida pelos deuses gregos, que vinham no cortejo dos generais que venceram a Grécia. Este fato ocorreu simultaneamente com a infiltração da cultura grega em Roma, e pelas mesmas causas. Quando chegaram a Roma os deuses gregos, prestigiosos e de incomparável beleza material, foram relegados para um lado os velhos deuses romanos, tanto os que eram inteiramente fictícios quanto as velhas estátuas de barro que os romanos adoravam até então. E os deuses gregos entraram francamente na moda.

A essa imensa galeria de deuses se acrescentaram os imperadores. Tibério deixou que fosse disputada na sua presença, durante muitos dias, a honra a que aspiravam onze cidades da Ásia, que lhe queriam erigir um templo como a um deus. Finalmente, essa honra duvidosa coube a Esmirna. Calígula declarou-se deus, e, para receber a adoração de seus fiéis, arranjou um templo para si, onde se colocava no lugar próprio aos deuses. Às vezes conversava ele com a estátua de Júpiter Capitolino, e colocava seu ouvido bem junto à boca de pedra do ídolo, fingindo ouvir uma resposta que este lhe segredava. Outras vezes falava alto, injuriando o deus e tratando-o absolutamente de igual para igual.

Adúlteras como a imperatriz Popéia, esposa de Nero, e a imperatriz Faustina, que vivia com histriões, foram declaradas deusas e tiveram templos próprios. Até [Astoldo], favorito de Adriano, foi proclamado deus por um decreto imperial.

Ceticismo e incredulidade - Evidentemente, ninguém podia levar a sério tais deuses. A superprodução de deuses, a imoralidade que a tradição lhes atribuía, a divinização de imperadores dos mais corruptos, atiraram a religião a um desprestígio tal, que até nas peças de teatro era ela objeto da mofa de todo o mundo. Roma, com isto, se despenhava em pleno abismo, com o geral alastramento do ateísmo e do ceticismo. Luciano, por exemplo, no diálogo dos deuses, figura Júpiter em conversa com Vulcano. O primeiro se queixa de insuportáveis dores de cabeça, e pede a Vulcano o favor de decapitá-lo. Vulcano, sem hesitar, atende o pedido, e com isto morre o deus.

A religião agrava a corrupção - Os romanos perceberam o prejuízo que lhes acarretava a importação de deuses estrangeiros, e procuraram atalhar o mal, mas foi inútil.

Principalmente o culto dos deuses gregos suscitou muitas reações. No ano de 186, armou-se um processo-monstro contra os adoradores de Baco, que, com toda a razão, eram acusados de corruptores dos costumes públicos, pelo fato de ser imoralíssimo o culto de Baco. Foram condenados à morte mais de 3.000 adoradores, e o Senado proibiu as bacanais, tremendas festas de luxúria que se celebravam em honra de Baco.

Mas a imoralidade dos deuses gregos era tolerada pelos escritores que maior ascendente tinham sobre o espírito romano. Platão condena a embriaguez, mas excetua explicitamente desta condenação os excessos praticados nas festas de Baco. Aristóteles censurou asperamente as estátuas imorais, mas declarou que essa censura não se estendia às estátuas dos deuses, que se compraziam em ser honrados assim. O culto de Vênus era inseparável da prostituição, que era estabelecida em sua honra.

Na Grécia os homens do governo recorriam a Vênus, nas aperturas. Atenas, depois de derrotado Xerxes, mandou colocar no templo de Vênus um quadro, representando as prostitutas fazendo votos e procissões para a salvação da pátria. Embaixo, a inscrição do grande Simônides: "Estas oraram à deusa Vênus, que, por amor delas, salvou a Grécia". Sólon estabeleceu em Atenas o templo da Vênus prostituída, ou do amor impuro.

Enquanto a Grécia regurgitava de templos a Vênus, não se via em seu território um único templo erigido em honra da deusa do amor conjugal. Embora os escritores gregos soubessem realçar em seus escritos a dignidade e a grandeza da sociedade conjugal, parece que o senso moral se obliterava neles quando tratavam de religião, pelo que nunca cultuaram a deusa protetora do amor dos esposos.

Toda esta corrupção religiosa penetrou em Roma e corrompeu profundamente a cidade. Por isto Juvenal pôde dizer com veracidade que "o mundo vencido se vingou de nós, dando-nos seus vícios". Os sacerdotes romanos praticavam nos templos imoralidades tais, que os cristãos chamavam os templos pagãos de lugares de prostituição. Ovídio, muito entendido em assuntos suspeitos, indicava os templos pagãos como lugares muito indicados para a realização de galanteios.

A intolerância - Entretanto, o que é curioso observar é que esses cultos religiosos tão nefastos, e nos quais quase ninguém mais cria, eram de uma intolerância extraordinária em relação aos seus inimigos. Já na Grécia tal se havia notado. Sócrates foi condenado à morte, e uma das razões apresentadas para justificar essa sentença foi que ele corrompia o povo, dizendo que os deuses de pedra não eram o verdadeiro Deus. Se alguns filósofos ousavam ensinar que as estátuas não eram deuses, como supunha o povo, eles se viam constrangidos a desdizer-se, e além disto eram obrigados a partir para o exílio, condenados como ímpios por sentença do famoso Areópago.

Por esta razão, os gregos não conheciam liberdades de consciência. Sócrates ensinou que cada qual deve seguir a religião do seu país. Platão, seu discípulo, dizia que é mister "nada mudar quanto à religião que se acha instituída, porque tentar fazê-lo é o mesmo que ter perdido o juízo". Sócrates, acusado de negar os deuses que realmente negou, contestou o fato como sendo um crime negar os deuses. E Platão, falando do deus único e verdadeiro que tinha criado o universo, disse que é difícil encontrá-lo, e foi proibido de declará-lo ao público.

Em Roma esta intolerância subsistiu até mesmo quando, nos teatros, os dramaturgos ou comediógrafos propagavam a irreligião. Conquanto para a impiedade e o ateísmo houvesse indulgência em Roma, o crime de ser cristão era um delito inexpiável que, como já disse, acarretava a aplicação das mais severas penalidades.

O formalismo religioso - Enquanto a religião decaía de tal modo, as almas se deformavam cada vez mais. E não admira.

A religião romana — como a grega, e a generalidade das religiões pagãs — não era outra coisa senão uma série de ritos, e não impunha qualquer preceito moral. A única obrigação que a religião impunha era a prática correta de certas cerimônias. Podia o fiel ser autor dos maiores crimes, e alimentar no seu coração o maior ódio possível contra os deuses que cultuava; se cumprisse fielmente os ritos, não incorreria no ódio das divindades. Pelo contrário, podia o fiel praticar as mais excelsas virtudes; se, por uma involuntária distração errasse na execução do rito, não seria atendido.

E os ritos eram extraordinariamente complicados e irracionais. Havia orações que era necessário recitar fazendo piruetas da esquerda para a direita. O modo de enforcar as vítimas, a cor de seu pelo, a forma da faca com que se fazia a imolação, a espécie de madeira que se empregava para assar as carnes, tudo isto era minuciosamente regulado. Qualquer erro, por mais insignificante que fosse, acarretaria inevitavelmente a indiferença do deus perante o pedido do fiel.

É claro que exigências tão infundadas deveriam irritar os espíritos mais esclarecidos, inspirando-lhes a maior descrença quanto a uma religião tão caprichosa, tirânica e irracional. Tudo isto contribuiu para a dissolução dos costumes e da vida política em Roma. Veremos, na próxima aula, de que modo os erros militares vieram levar ao auge esta geral desorganização, da qual resultou a queda de um dos mais florescentes impérios que a História conheceu.

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