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Plinio Corrêa de Oliveira
Projeto
de Constituição angustia o País
1987 |
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Capítulo IX - Utopismo igualitário, despotismo radical: o “fio
condutor filosófico”, do Substitutivo Cabral
Ao encaminhar aos srs. Constituintes, a 9 de julho
último, o Projeto de Constituição que deveria servir de base aos
debates em Plenário, o relator da Comissão de Sistematização, deputado
Bernardo Cabral, lamentava “a ausência de um fio condutor filosófico”
do documento. É verdade que o Projeto apresentava certo número
de dispositivos incoerentes, que bem refletiam as tendências ideológicas
contrastantes dos Constituintes que os propuseram. Não obstante, por
debaixo dessa incoerência de superfície, era impossível não discernir,
ao contrário do que afirmou o deputado Cabral, “um fio condutor
filosófico” muito coerente. Trata-se de um utopismo revolucionário que
percorre o Projeto de ponta a ponta, e que sugeriu a diversos analistas
políticos, em seus comentários sobre a atual Constituinte, a evocação
do ambiente e do espírito da Revolução Francesa de 1789 (cfr. Parte III,
Cap. VIII). O mesmo se deve dizer do Substitutivo Cabral 2. 1. Uma doutrina de origem do
poder que vem dos filósofos que prepararam a Revolução Francesa de 1789
Com efeito, lê-se no Preâmbulo deste: “Os
representantes do povo brasileiro, reunidos, sob a proteção de Deus, em
Assembléia Nacional Constituinte, afirmam o seu propósito de construir
uma grande Nação baseada na liberdade, na fraternidade, na igualdade,
sem distinção de raça, cor, procedência, religião ou
qualquer outra”. Ainda que marcado em boa medida pelo laicismo
positivista que inspirava a Constituição republicana de 1891, o Substitutivo
Cabral 2 faz rápida referência a Deus no Preâmbulo, a exemplo da
Constituição de 1934. Mas em seguida se esquece de Deus, ou pelo menos não
O menciona, como devera, como fonte suprema de todo Poder. Pois logo no
art. 1º, parágrafo único, afirma que “todo o poder
emana do povo e em seu nome é exercido”. É a doutrina da origem do Poder inculcada pelos
filósofos franceses que prepararam a Revolução de 1789, e que esta
disseminou em seguida pelo mundo. Segundo a Doutrina Católica, entretanto, todo
poder vem de Deus.[1] Em conseqüência, o Poder não pode ser exercido
contrariamente à Lei de Deus, revelada a Moisés no Monte Sinai. Nem pode
ser oposta aos Mandamentos da Igreja, à qual seu Divino Fundador Jesus
Cristo deu a missão de ensinar, governar e santificar os fiéis em ordem
à salvação eterna. Toda lei emanada do Poder temporal que seja oposta
à Lei de Deus é por isto nula[2]. O laicismo do Substitutivo Cabral 2 também
se faz notar claramente na proibição de qualquer “distinção de
religião”, doutrina condenada pelo Papa Gregório XVI, na célebre
Encíclica Mirari Vos[3]
. 2. Liberdade, Igualdade,
Fraternidade – uma fórmula antiquada e vaga, suscetível de interpretações
contraditórias
A evocação da Revolução Francesa é ainda mais
clara e direta pela presença, logo nas primeiras linhas do Preâmbulo, da
fórmula dos revolucionários franceses utópicos de 1789, “Liberte-Égalité-Fraternité”:
“Os representantes do povo brasileiro ... afirmam seu propósito de
construir uma grande Nação baseada na liberdade, na fraternidade, na
igualdade”. É de lamentar que tenha sido adotada essa fórmula
antiquada, que de tão vaga que é, tem sido objeto de interpretações
diferentes, até da parte de Romanos Pontífices. Pio VI e São Pio X, por exemplo, condenaram esta
trilogia[4],
enquanto João Paulo II a elogiou [5].
O modo pelo qual tal fórmula é incluída no Preâmbulo
parece indicar uma ideologia de fundo, subjacente em todo o Substitutivo.
Mas, qualquer que seja a interpretação que se dê a essa fórmula,
melhor teria sido não insculpir no texto-base da nova Constituição lema
de conteúdo tão exposto a dúvidas e controvérsias. 3. Uma interpretação radical
da trilogia revolucionária
Uma das interpretações mais radicais a que
aquela trilogia se presta pode ser enunciada como segue. A justiça
preceitua que haja uma igualdade absoluta entre os homens. Só
esta, suprimindo qualquer autoridade, realiza inteiramente a liberdade
e a fraternidade. A liberdade só admite um limite: o
indispensável para impedir que homens mais dotados constituam em proveito
próprio alguma superioridade de mando, de prestígio ou de haveres. A
verdadeira fraternidade decorre do relacionamento entre os homens
inteiramente iguais e livres. De 1789 até 1794, os sucessivos líderes
revolucionários franceses se foram inspirando em interpretações da
famosa trilogia, cada vez mais próximas deste enunciado radical. Já
agonizante, a Revolução Francesa, tão aparatosamente moderada em seus
primeiros dias, teve espasmos de significado nitidamente comunista. Como
que repetindo em câmara lenta o processo dessa revolução, o mundo
democrático levou em seguida – ou está acabando de levar – às suas
últimas conseqüências, o nivelamento político das classes, muito
embora ainda conserve aspectos hierárquicos em sua cultura, como em seu
regime social e econômico. Podem-se discutir os fatos, os lugares e as datas
em que, no século XIX, começaram os principais movimentos em favor do
nivelamento cultural e sócio-econômico. O certo é que, em meados do século,
eles se tinham estendido a muitos países e haviam adquirido forte consistência
em vários. A ponto de inspirarem acontecimentos como, na França, a
Revolução de 1848 e a Comuna de 1871. Ademais, é patente em nosso século
a presença deles entre os fatores profundos da Revolução russa de 1917
e, em conseqüência, a propagação do regime comunista aos países além
das cortinas de ferro e de bambu, e outros. Sem falar de todas as revoluções
e agitações comunistas que têm abalado diversas partes do mundo, entre
as quais a explosão da Sorbonne de maio de 1968. 4. O igualitarismo utópico do
Substitutivo Cabral
Todo o Substitutivo Cabral 2 parece
nitidamente inspirado no pressuposto utópico de que é desejável e possível
estabelecer uma sociedade perfeitamente igualitária. E na falsa idéia de
que a humanidade será tanto mais livre e feliz quanto mais se for
aproximando desse ideal. De onde ser um dever para o Estado encaminhar
todo o corpo social nessa direção. É o que faz o Substitutivo
registrar, no art. 3º, entre os “objetivos fundamentais
do Estado”, “erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades sociais e
regionais” [6].
Ao que parece, é a esse “objetivo fundamental” que aludia o anterior
Projeto Cabral, quando falava numa “ação equalizadora do Estado”
(art. 5º, IV). Ora, a igualdade completa, além de ser irrealizável,
nem seria desejável, porque, ao contrário do que imaginam os igualitários,
ela constituiria grave injustiça. Injustiça, num plano mais imediato, contra os
homens, pois é certo que tal igualdade contraria a natureza livre do
homem, o qual tende a expandir suas potencialidades e, pois, a
diferenciar-se de seus semelhantes. Mesmo num regime de férrea ditadura,
seria impossível a igualdade completa. Nos países comunistas, que há décadas
pretenderam estabelecer a igualdade social, o que existe é uma abismática
e cruel diferenciação de classes, em que muito poucos desfrutam privilégios
e todo o restante da população vive na miséria mais negra. Mas, sobretudo, seria uma injustiça contra Deus.
Num universo em que Deus criou todos os seres desiguais – inclusive e
principalmente os homens – seria um ato de revolta querer impor a
igualdade a uma ordem de coisas que seu Autor, por altíssimas razões,
fez desigual [7]. Por isso, a questão do igualitarismo se situa no
centro mais central – se se pudesse assim dizer – da luta entre o
marxismo, fundamentalmente ateu, e a Religião Católica, que ensina a
existência de um só Deus em três Pessoas realmente distintas,
transcendente, eterno e perfeito. Desta oposição filosófica e religiosa
decorre uma oposição sócio-político-econômica[8]. Disto, porém não se deve concluir que quanto
maior for a desigualdade, mais perfeita será a justiça. Pois Deus criou
as desigualdades, não aterradoras e monstruosas, mas proporcionadas à
natureza e ao bem-estar de cada ser, e adequadas à ordenação geral da
criação. Também não se deve concluir, do exposto, que a
desigualdade seja sempre e necessariamente um bem. Todos os homens são iguais por natureza, e é
apenas em seus acidentes que eles se diferenciam. Os direitos provenientes
do simples fato de serem homens – tais como o direito à vida, à honra,
a condições suficientes de existência digna, ao trabalho, ao acesso à
propriedade etc. – são os mesmos para todos. E devem ser consideradas
contrárias à ordem natural estabelecida por Deus as desigualdades que
atentem contra tais direitos. Porém, dentro desses limites, são justas e
conformes à ordem natural as desigualdades advindas de fatores como
virtude, talento, força, capacidade de trabalho, beleza, família, educação,
tradição etc., de sorte que haja classes sociais escalonadas segundo a
elevação intrínseca da missão que cada uma exerce na sociedade, das
honras a que tal missão faz jus, e da abundância de bens que lhes
corresponde [9].
Mas isto tudo sob a condição de que a nenhum homem carente de condições
pessoais para trabalhar faltem os recursos necessários para viver, para
cuidar adequadamente de sua saúde e fruir dos outros bens requeridos pela
natureza humana. Bem como que a nenhum homem normal falte o trabalho
honesto que o qualifica como um membro útil do corpo social, nem a
consideração e a suficiência dos meios de vida essenciais para que ele
possa prover despreocupadamente (no que lhe tange) à perpetuação da espécie,
o florescimento das famílias, o bem-estar e a segurança indispensáveis
a todo ente humano. Quanto ao mais, organiza-se livremente cada povo tendo
em vista suas múltiplas peculiaridades. Foi com base nestes princípios que se construiu a
civilização cristã no Brasil. Com esses mesmos princípios
colide perigosamente o utopismo revolucionário, que parece ter
inspirado tantos artigos acolhidos no Substitutivo Cabral 2. 5. Na legislação brasileira,
a petrificação de um princípio de inspiração comunista
Merece especial menção, como indicativa desse
utopismo revolucionário, a seguinte disposição do Substitutivo: “Art. 6º - Além de outros,
são direitos dos trabalhadores: ... “XXV – proibição de distinção
entre trabalho manual técnico ou intelectual ou entre os profissionais
respectivos”. Cabe perguntar se tal “proibição
de distinção” atinge os salários, e também outras formas de
remuneração, ou se ela se limita às diferenças, mais bem honoríficas,
por meio das quais se destaca a preeminência: -
do que é diretivo sobre o que
é executivo; -
do que é altamente
intelectual sobre o que o é em nível tão-só banal e corrente; -
ou, ainda – e sobretudo –
do que é intelectual sobre o manual; -
e, por fim, do que é manual
qualificado sobre o manual de nível absolutamente elementar. Haveria que responder, ainda,
a outra grande pergunta fundamental: em nome de que princípio de justiça
e de que vantagem do bem comum se introduz na sociedade e na economia
brasileira tal dispositivo? A mesma disposição – cumpre ponderar – já
se encontra na Constituição vigente (art. 165, XVII). Mas ficou sem
efeito. E não podia deixar de ficar assim, por que, graças a Deus, para
sua aplicação não está ainda bastante preparada – o mais exato seria
dizer “bastante deformada”- a sociedade brasileira. Encarecendo tal ação predatória das distinções,
o Substitutivo não só a transcreve da Constituição vigente, mas
estende a ela (cfr. art. 70, § 4º
do Substitutivo Cabral 2 ) a tristemente famosa condição
de “cláusula pétrea” pela
qual é vedado às legislaturas ordinárias propor emendas tendentes a
abolir certos dispositivos constitucionais. Reza, com efeito, o Substitutivo: “Art. 70 ... § 4º Não será
objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: “V – os direitos e garantias
individuais”. Por força desse inciso V, fica “petrificada”
no corpo legislativo brasileiro essa “proibição de distinção
entre trabalho manual, técnico ou intelectual ou entre os profissionais
respectivos”. Infeliz incrustação, na legislação de nosso País,
de um princípio de clara inspiração comunista. Até lá vai sendo empurrado
nosso pobre e desavisado Brasil. A aplicação da presente disposição do
Substitutivo atirará o Brasil no abismo do anonimato, do desalento e da
fome, que é o regime comunista. Ou ficará letra-morta, a desfigurar
nossa Constituição com seu caráter tragicamente injusto e neopagão. 6. “Participação igualitária
no processo cultural”
Prescreve o Substitutivo Cabral 2 : “Art. 243
– O Estado garantirá a cada um o pleno exercício dos direitos
culturais e a participação igualitária no processo cultural e
dará proteção, apoio e incentivo às ações de valorização,
desenvolvimento e difusão da cultura”. Que se deve entender por “garantirá a
cada um ... a participação igualitária no processo cultural”? A
frase é ambígua e pouco clara. Entre as interpretações possíveis, é
o caso de examinar algumas: a ) Pressuporá ela que cada indivíduo
pode e deve dar um contributo igual para o processo cultural da sociedade?
A hipótese aberra tanto do senso comum que se deve descartar. b ) Pressuporá então que o Estado assegura que cada
grupo étnico pode e deve dar igual contributo para o processo
cultural comum? A idéia também parece absurda, mas a alusão, no parágrafo
único desse artigo, às “manifestações ... das culturas indígenas,
das de origem africana e das de outros grupos participantes do processo
civilizatório brasileiro” sugere que talvez deva ser essa a intelecção
da frase. Se assim for, estamos diante de um ápice de
dirigismo utópico. Pois a cultura de um país não é produto
principal da ação do Estado, mas da sociedade. E como tal, a elaboração
da cultura constitui um fenômeno vivo e orgânico. Também num país
policultural, a elaboração da cultura se dá em função de fatores históricos,
sociológicos, psicológicos e outros, com os quais o Estado pouco ou nada
tem que ver. De sorte que a “garantia”, dada a todos, de
uma igual participação, só por meio de uma tirânica, meticulosa e contínua
intervenção do Estado na elaboração cultural poderia ser obtida. Por exemplo, na cultura de um país, cada
contingente populacional tem habitualmente uma influência proporcionada
ao número de pessoas que o integram. É o caso da população de origem
lusa, no Brasil. Mas haverá zonas em que o elemento luso-brasileiro dispõe
de uma maioria muito menos acentuada. É o caso de certas regiões dos
Estados do Paraná, de Santa Catarina, do Rio Grande do Sul, nos quais o
contingente alemão é mais numeroso do que em qualquer outra unidade de
nossa Federação. É este também o caso do Estado de São Paulo, no qual
os agrupamentos populacionais italianos, sírios, espanhóis e japoneses são
maiores do que em quase todo o resto do País; sem que, entretanto, a
influência luso-brasileira deixe de ser a mais acentuada. E assim por
diante. De outro lado, pode acontecer que, por suas
qualidades, determinado grupo populacional minoritário, exerça influência
sobre os demais grupos populacionais igualmente minoritários, ou então
majoritários. Essa filtração de influência de um setor minoritário
pode ser particularmente acentuada, caso o idioma falado num setor minoritário
seja parecido ao da maioria. Nesse sentido, o espanhol e o italiano têm
possibilidades de contribuir para a formação de uma cultura global
brasileira mais do que os representantes de outros idiomas menos parecidos
com o nosso, como o francês. E notadamente os de certos idiomas sem raiz
latina, como o árabe e o japonês. De qualquer forma, uma cultura global e unitiva é
o ponto de convergência de tudo quanto convive: indivíduos, grupos étnicos
ou idiomáticos etc. e só terá autenticidade a cultura assim formada,
desde que seja produto espontâneo desses ou de outros fatores. Na medida em que a ação intencional do Estado
procure “fabricar” de modo artificial uma cultura, ou pelo menos
dirigir em suas linhas mestras uma planificação cultural, é quase
impossível que à ação dele não se mesclem, como fatores inseparáveis,
o utopismo, o despotismo dirigista e a gaucherie sempre presente na
ação estatal quando ela se ingere no que não lhe é próprio. Esse
princípio não exclui, evidentemente, a ação supletiva do Estado nas
ocasiões em que ela se torne necessária, e ipso facto legítima. c ) Outra eventual interpretação da frase “garantirá
a cada um ... a participação igualitária no processo cultural”
consistiria em que o Estado assegure a todos a igualdade de acesso ao
processo cultural comum. Que se deveria entender então por igualdade de
acesso? É o direito de vir a participar do processo cultural com a
aplicação do talento e do trabalho próprio? Ou é o fato da participação
efetiva e estável nesse processo? Na primeira hipótese, igualdade de acesso
significaria a destruição das condições especialmente favoráveis de
formação moral, de educação e de ensino com a qual a Providência quer
beneficiar as pessoas nascidas de famílias mais insignes em razão da
inteligência, do caráter e das maneiras requintadas dos pais e do
ambiente doméstico? Nesse caso, o presente dispositivo visaria a negação
do direito natural incontestável que têm os pais de transmitirem a seus
filhos suas qualidade morais e intelectuais, bem como suas acuradas
maneiras sociais. Direito este mais precioso do que o próprio direito à
sucessão hereditária do patrimônio. Se por “participação igualitária”
se deve entender o fato de estar alguém na participação efetiva e estável
no processo cultural, tal importaria na implantação de um igualitarismo
ainda mais radical. Pois, sendo todos os homens iguais por essência mas
desiguais por seus predicados de inteligência, de instrução, de educação
e de cultura, afirmar a igualdade de todos na participação desse
processo cultural é afirmar que esses predicados pessoais do homem nenhum
direito especial lhe conferem a maior participação nesse processo. E, de
outro lado, que as mais relevantes qualidades naturais ou adquiridas de
alguém não serão aproveitadas devidamente no esforço comum. 7. Delírios igualitários do
Projeto Cabral oportunamente eliminados no Substitutivo
O Projeto Cabral continha alguns
dispositivos – não reproduzidos pelos Substitutivos posteriores (1 e 2)
– que mostram bem a que delírios pode chegar a aplicação dos princípios
igualitários. No art. 12, III, “e”, afirmava o Projeto: “e)
o homem e a mulher são iguais em direitos e obrigações,
inclusive os de natureza doméstica e familiar, com a única exceção dos
que têm a sua origem na gestação, no parto e no aleitamento”. Este dispositivo supunha necessário afirmar que o
homem não é igual à mulher nos “direitos e obrigações” que têm
sua origem “na gestação, no parto e no aleitamento”. Risum
teneatis?[10] . A ilusão da onipotência e o fanatismo igualitário
induzem certos legisladores a se substituir de modo perfeitamente inútil
à natureza, em ações que o próprio Deus implantou na ordem natural das
coisas! * * * Em outro tópico, determinava o Projeto Cabral:
“Ninguém será privilegiado ou prejudicado em razão
de ... deficiência física ou mental” (art. 12, III, “f”). O igualitarismo desta tão genérica disposição
toca no absurdo. Como pode, por exemplo, não ser prejudicado alguém em
conseqüência da cegueira? A triste situação de um cego porventura não
o torna parcial ou inteiramente inepto para o exercício de um sem-número
de profissões? O portador de handicap, seja este de nascença
ou superveniente, é um “prejudicado”. E a situação dele só
será remediada se ele for “privilegiado”, recebendo uma
compensação de particulares ou do Estado. * * * Em outro tópico, o Projeto Cabral declarava que
“os produtos e processos resultantes de pesquisa que tenha por base organismos
vivos não serão patenteados” (art. 12, XI, “i”). A referência a “organismos vivos”
abrange por certo seres humanos, animais e provavelmente até vegetais. O dispositivo draconiano importa, por exemplo, em
tolher e em larga medida, a pesquisa científica levada a efeito por
laboratórios especializados de importantes indústrias, as quais
consagram verbas opulentas para, por meio de novos descobrimentos, obter o
patenteamento de fórmulas de interesse comercial. No tocante a animais, pode-se ver como explicação
para tal dispositivo um sentimentalismo exagerado de que há muitos
sintomas nos costumes de nossos dias. É o caso, por exemplo, de pais que
não duvidam em matar o feto gerado em conseqüência do ato conjugal, mas
adotam no seu convívio íntimo animais aos quais dispensam carinhos e
tratos que só se explicam quando têm por objeto filhos. No plano doutrinário, a proibição de pesquisas
em animais vivos (e plantas?), tão danosa ao progresso científico, também
colide com a doutrina católica. Pois impedir experiências em animais e
plantas, as quais se destinam a preservar a saúde do homem, corrigi-la ou
restabelecê-la, é afirmar uma paridade ontológica entre todas as
categorias de seres vivos. Em rigor de lógica, desta concepção errônea
decorreria não ser lícito aos homens se alimentarem nem de animais nem
de plantas. E deve ser obstado a que animais se nutram uns dos outros, ou
de plantas, bem como que estas se nutram de si mesmas ou de animais.
Proibições absurdas, pois o próprio Deus onipotente e onisciente dispôs
que assim se nutrissem homens, animais e plantas. Por aí pode o leitor ter uma idéia de até que
perigosos extremos é capaz de levar o utopismo igualitário. 8. Na luta contra os
“preconceitos” e as “discriminações”, perspectivas do mais
ferrenho autoritarismo
O utopismo igualitário abre caminho para um
autoritarismo exacerbado, de que o próprio Substitutivo já dá mostras. Logo no Título I, ele registra, entre os “objetivos
fundamentais do Estado”, “promover a superação dos
preconceitos de raça, sexo, cor, idade e de outras formas
de discriminação” (art. 3º, III). Deve-se “promover a superação dos
preconceitos”. Mas, que é um preconceito?
– O Substitutivo não o define. Esta ou aquela outra opinião constitui
preconceito ou não? Por exemplo, há ateus que vêem, na crença em um
Deus pessoal e transcendente, um mero preconceito gratuito, com o qual
nada tem que ver a razão humana, pois para muitos todo dogma é
preconceito. Quando certa sentença filosófica ou religiosa é impugnável
de constituir preconceito, ou não? E certa doutrina política? O Substitutivo investe o Estado, nesta matéria,
de terríveis e sombrios poderes, ficando a liberdade do indivíduo – tão
proclamada entretanto por ele – reduzida eventualmente a uma proporção
das mais exíguas. * * * Outro conceito que o Substitutivo não define é o
de “discriminação”. Que é discriminação? O citado inciso III do art. 3º fala na
“superação dos preconceitos de raça, sexo, cor, idade e de outras
formas de discriminação”. Assim, os preconceitos de raça, sexo, cor e idade
são “formas” de discriminação. As palavras “e de
outras” parecem significar que há muitas outras “formas de
discriminação”, além dos quatro aludidos preconceitos. Quais são elas? O Substitutivo omite dizê-lo [11]. E, no entanto, seria indispensável que o
Substitutivo não fosse omisso nessa matéria; em primeiro lugar porque,
segundo o art. 233 do Substitutivo, a educação das novas gerações deve ser
orientada “ao pleno desenvolvimento da pessoa e ao seu compromisso com o
repúdio a todas as formas de preconceitos e de discriminação”. Em
segundo lugar, porque pune com rigor surpreendente os discriminadores: “Art.
5º ... § 2º - A lei punirá, como crime inafiançável,
qualquer discriminação atentatória aos direitos e liberdades fundamentais”
[12].
Um exemplo pode servir para demonstrar até que
excessos de autoritarismos e até de tirania pode conduzir a linguagem confusa
do Substitutivo. Entre a forma tradicional com que, nos séculos de civilização
cristã, o esposo exercia sobre sua esposa, com reverência e afeto, a
autoridade marital, e a completa igualdade entre um e outro, proclamada por
correntes revolucionárias de nossos dias, há uma considerável hierarquia de
graus intermediários. Qualifiquemos de grau 1 a forma de exercício mais
tradicional desse poder, de grau 2 uma forma apenas um pouco menos estrita
desse exercício, e assim por diante até o grau 10, que corresponderia
hipoteticamente à igualdade absoluta. Nesses termos, se os propugnadores do grau 2
qualificassem de “discriminação” os propugnadores do grau
1, os do grau 3 poderiam fazer igual censura aos de grau 2. E assim por
diante. Desta forma, só estariam absolutamente isentos da acusação de
sustentar posições preconcebidas os propugnadores do mais escancarado e
dissolvente feminismo. De onde, conforme o modo de entender subjetivo desta ou
daquela autoridade judiciária ou policial, só os feministas absolutos
estariam ao abrigo das severas penalidades que o Substitutivo Cabral 2
fulmina (cfr. art. 5º, § 2º [13]
) contra os fautores de “discriminação”. Análoga situação se repetirá
inevitavelmente em um sem-número de outros temas... * * * Que a imprecisão de conceitos pode abrir campo
para toda espécie de autoritarismos, vê-se ainda no art. 5º, §
5º: “É livre a manifestação do pensamento, vedado o
anonimato e excluída a que incitar à violência ou defender
discriminação de qualquer natureza”. Que é “incitar a violência”? Se por “violência” se
entendesse unicamente a prática de crime contra a integridade física do próximo,
a proibição se justificaria. No entanto, na atual atmosfera de obsedante
temor de uma guerra atômica, existe a tendência a incluir na designação
tudo quanto desperte no leitor, no ouvinte ou no espectador, admiração por
qualquer guerra (e, por extensão, também por qualquer insurreição a mão
armada) em qualquer de seus
aspectos, por conter em seu bojo – se bem que de modo implícito ou indireto
– um fator de condescendência, de simpatia ou até de admiração pela
guerra. Ou seja, de implícito “incitamento à
violência”. Sob este prisma, pode-se chegar a impedir ao espírito
humano que conheça todo um aspecto da realidade global desta vida, celebrado
por obras de valor imortal, como a Ilíada, a Eneida, a Chanson
de Roland e tantas páginas célebres da literatura portuguesa e
brasileira. E, em rigor de lógica, não se fica só nisto. E também quantas
obras de pintura, escultura e arquitetura há, imortalizando pelo mundo afora
a grandeza do talento e do heroísmo militar. Basta recordar aqui, entre
tantas outras, o Arco de Constantino em Roma, o Arco do Triunfo em Paris, o
Mosteiro da Batalha, nos campos de Aljubarrota, em Portugal, a coluna do
Almirante Nelson no Trafalgar Square, em Londres, ou a Porta de Brandenburgo,
em Berlim (hoje infelizmente na parte oriental daquela cidade). Incitarão
tais obras à violência? Como se vê, as últimas conseqüências do
liberalismo – no qual se extrema o dispositivo do Substitutivo aqui
analisado – desfecham no despotismo. * * * Conseqüências ainda mais graves se podem deduzir
do referido art. 5º, § 5º, quando este proíbe a
manifestação do pensamento “que defender discriminação de
qualquer natureza”. Nessas palavras ressalta todo o inconveniente que
decorre do fato de não ser definido no Substitutivo o significado de “discriminação”.
Com isso, até a liberdade da Igreja Católica corre o risco de ser desde logo
atingida. Com efeito, segundo ensinou São Pio X, a Igreja
é uma sociedade essencialmente hierárquica, na qual se distinguem (ou seja,
se discriminam) duas classes, uma à qual incumbe governar, ensinar e
santificar, e outra à qual incumbe ser governada, ensinada e santificada. De
onde decorrem, para cada uma, direitos e deveres específicos. Esta é a
distinção clássica entre a Igreja hierárquica e docente, e a Igreja
discente [14].
Ora, da primeira não podem fazer parte as mulheres. Não constitui isso uma
“discriminação”? Como se sabe, na Santa Igreja as mulheres não
podem, por instituição divina, pertencer à Hierarquia, nem à de Ordem, nem
à de Jurisdição. É o caso de perguntar o que diria o Apóstolo São Paulo,
se se aventasse a idéia de uma incorporação das mulheres na Hierarquia, ele
que escreveu a Timóteo: “A mulher aprenda em silêncio com toda a sujeição.
Não permito à mulher que ensine, nem que tenha domínio sobre o homem; mas
esteja em silêncio” (I Tim. 2, 11 a 15). E que acrescentou, escrevendo
aos Coríntios: “As mulheres estejam caladas nas igrejas, por que não
lhes é permitido falar, mas devem estar sujeitas, como também ordena a lei
... Porque é vergonhoso para uma mulher o falar na Igreja” (I Cor. 14,
34-35). Para o Substitutivo Cabral 2, não configurará tudo isso uma
linha discriminatória insuportável? Contudo, por efeito da onda antidiscriminatória
que varre hoje em dia o mundo, em diversas seitas protestantes vem sendo
abolida a proibição do acesso das mulheres ao sacerdócio. E existem também,
em mais de um país, movimentos católicos que pleiteiam absurdamente a mesma
inovação na Igreja. Ora, se esta cedesse a tal pressão antidiscriminatória,
desobedeceria a seu Divino Fundador e entraria em contradição consigo mesma. O parágrafo 5º do art. 5º
importaria, portanto, em que o Estado punisse o católico que manifestasse seu
pensamento contrário a tal transformação. Pois ele estaria defendendo a
conservação de um passado “discriminatório” na Igreja. Por sua vez os livros apologéticos – em que a
Igreja defende contra adversários externos a doutrina que recebeu de Nosso
Senhor Jesus Cristo, ou defende a sua ortodoxia contra desvios doutrinários
que se esgueiram no interior de suas fileiras – passarão também a ser
proibidos, por discriminarem a verdade do erro? E as pregações em que o
pecado e o vício são increpados, continuarão permitidas? Com efeito, elas
também discriminam o bem do mal e parecem estar na alça de mira do referido
art. 5º, § 5º. Este pode, pois, dar fundamento a uma
verdadeira perseguição religiosa. E também a uma perseguição política. Pois
proibiria a impressão e difusão de qualquer obra que fizesse o elogio das
formas de governo monárquica ou aristocrática, as quais estabelecendo
direitos e deveres distintos conforme a classe social, são qualificáveis de
discriminatórias. Ora, segundo o ensino constante dos Papas, as formas de
governo monárquica e aristocrática são tão conformes à justiça quanto é
a democracia [15]. Qual será a conseqüência última das disposições
antidiscriminatórias do Substitutivo Cabral 2 ? Parece ser a fundação
de uma “Santa Inquisição contra a perfídia dos adeptos da discriminação”,
com funções análogas às que teve outrora a “Santa Inquisição contra
a perfídia dos hereges”, tão furiosamente invectivada nos séculos
XVIII, XIX e XX por toda espécie de pessoas picadas pela mosca do
igualitarismo utópico da Revolução Francesa. O Estado excogitado pelo
Substitutivo deverá, pois, ser doublé de uma verdadeira Inquisição
laica, em defesa de doutrinas arbitrárias e mutáveis. Nisto terá resultado a neutralidade doutrinária
com a qual procura adornar-se o Substitutivo Cabral 2, de modo
inegavelmente faceiro. [1] É o que ensina Leão XIII: “Se se quiser determinar a fonte do poder no Estado, a Igreja ensina, com razão, que cumpre buscá-la em Deus” (Encíclica Diuturnum Illud, de 29 de junho de 1881 – Coleção Documentos Pontifícios, Vozes, Petrópolis, 1951, 3ª ed., vol. 12, p. 6). Em outra Encíclica, diz o mesmo Pontífice: “O poder público só pode vir de Deus. Só Deus, com efeito, é o verdadeiro soberano Senhor das coisas, todas, quaisquer que sejam, devem necessariamente ser-Lhe sujeitas e obedecer-Lhe, de tal sorte que todo aquele que tem o direito de mandar não recebe esse direito senão de Deus, Chefe supremo de todos. ‘Todo poder vem de Deus’ (Rom. 13,1)” (Encíclica Immortale Dei, de 1º de novembro de 1885, Coleção Documentos Pontifícios, Vozes, Petrópolis, 1960, 4ª ed., vol. 14, p. 5). [2] É ainda o mesmo Pontífice Leão XIII que ensina: “A força das leis humanas consiste em que elas sejam olhadas como uma derivação da lei eterna e que não há nenhuma de suas prescrições que não seja contida nela como no princípio de todo o direito. Santo Agostinho disse com muita sabedoria (De lib. Arb., lib. I, c. 4, n. 15): ‘Eu penso, e vós bem vedes também, que, nesta lei temporal nada há de justo e de legítimo que os homens não tenham ido haurir na lei eterna’. Suponhamos, pois, uma prescrição dum poder qualquer que esteja em desacordo com os princípios da reta razão e com os interesses do bem público: não teria força alguma de lei, porque não seria uma regra de justiça e afastaria os homens do bem, para o qual a sociedade foi formada” (Encíclica Libertas Praestantisimum, de 2 de junho de 1888, Coleção Documentos Pontifícios, Vozes, Petrópolis, 1961, 4ª ed., vol. 9, p. 11). [3] “Outra causa que tem acarretado muitos dos males que afligem a Igreja é o indiferentismo, ou seja, aquela perversa teoria espalhada por toda parte, graças aos enganos dos ímpios, e que ensina poder-se conseguir a vida eterna em qualquer religião, contanto que se amolde à norma do reto e honesto”(Gregório XVI, Encíclica Mirari Vos, de 15 de agosto de 1832, Coleção Documentos Pontifícios, Vozes, Petrópolis, 1953, 2ª ed., vol. 34, pp. 9-10). [4] Na Carta Apostólica Notre Charge Apostolique, de 25 de agosto de 1910, em que condena o movimento francês Le Sillon, de Marc Sangnier, São Pio X assim analisa a célebre trilogia: “O
Sillon tem a nobre preocupação da dignidade humana. Mas, esta
dignidade é compreendida ao modo de certos filósofos, de que a Igreja
está longe de ter de se regozijar. O primeiro elemento desta dignidade é
a liberdade, entendida neste sentido que, salvo em matéria de
religião, cada homem é autônomo. Deste princípio fundamental, tira
as seguintes conclusões: Hoje em dia, o povo está sob tutela,
debaixo de uma autoridade que lhe é distinta, e da qual se deve libertar:
emancipação política. Ele está sob a dependência de patrões
que, detendo seus instrumentos de trabalho, o exploram, o oprimem e o
rebaixam; ele deve sacudir seu jugo:
emancipação econômica. Enfim, ele é dominado por uma casta
chamada dirigentes, à qual o desenvolvimento intelectual assegura uma
preponderância indevida na direção dos negócios; ele deve subtrair-se
à sua dominação: emancipação intelectual. O nivelamento
das condições, deste tríplice ponto de vista, estabelecerá entre
os homens a igualdade, e esta igualdade é a verdadeira justiça
humana. Uma organização política e social fundada sobre esta dupla
base, liberdade e igualdade (às quais logo virá acrescentar-se a fraternidade),
eis o que eles chamam Democracia. ... “Em
primeiro lugar, em política, o Sillon não abole a autoridade;
pelo contrário, ele a considera necessária; mas ele a quer partilhar, ou
para melhor dizer, ele a quer multiplicar de tal modo que cada cidadão
se tornará uma espécie de rei. .. “Guardadas
as proporções, acontecerá o mesmo na ordem econômica. Subtraído
a uma classe particular, o patronato será multiplicado de tal modo, que cada
operário se tornará uma espécie de patrão. ... “Eis
agora o elemento capital, o elemento moral. ... Arrancado à estreiteza de
seus interesses privados e elevado até os interesses de sua profissão, e
mais alto, até os da nação inteira e, mais alto ainda, até os da
humanidade (porque o horizonte do Sillon
não se detém nas fronteiras da pátria, mas se estende a todos os homens
até os confins do mundo), o coração humano, alargado pelo amor do bem
comum, abraçaria todos os companheiros da mesma profissão, de todos os
compatriotas, todos os homens. E eis aí a grandeza e a nobreza humana
ideal, realizada pela célebre trilogia: Liberdade, Igualdade,
Fraternidade. ... “Tal é, em resumo, a teoria, poder-se-ia dizer o sonho, do Sillon” (Acta Apostolicae Sedis, Typis Polyglottis Vaticanis, Roma, 1910, vol. II, pp. 613-615). São Pio X se insere, portanto, na esteira de seus Predecessores, que desde Pio VI condenaram os erros sugeridos pelo lema da Revolução Francesa. Na Carta Decretal de 10 de março de 1791 ao Cardeal de la Rochefoucauld e ao Arcebispo de Aix-en-Provence, sobre os princípios da Constituição Civil do Clero, Pio VI assim se exprime: “Decreta-se
pois, nessa assembléia [a Assembléia Nacional francesa], ser um
direito estabelecido que o homem constituído em sociedade goze de omnímoda
liberdade, de tal sorte que não deve ser naturalmente perturbado no que
respeita à Religião, e que está no seu arbítrio opinar, falar,
escrever e até publicar o que quiser sobre assunto da própria Religião.
Monstruosidades essas que proclamam derivar e emanar da igualdade dos
homens entre si e da liberdade da natureza. Mas o que se pode excogitar de
mais insensato do que estabelecer tal igualdade e liberdade entre todos,
a ponto de em nada se levar em conta a razão, com que a natureza dotou
especialmente o gênero humano, e pela qual ele se distingue dos outros
animais? Quando Deus criou o homem e o colocou no Paraíso de delícias,
porventura não lhe prenunciou, ao mesmo tempo, a pena de morte, se
comesse da árvore da ciência do bem e do mal? Porventura não lhe
restringiu desde logo a liberdade, com este primeiro preceito? Porventura,
em seguida, quando o homem se tornou réu pela desobediência, não lhe
impôs um maior número de preceitos, por meio de Moisés? E se bem que o
‘tivesse deixado em mãos de seu próprio alvedrio’, para que pudesse
merecer bem ou mal, contudo acrescentou-lhe ‘mandamentos e
preceitos, a fim de que, se os quisesse observar, estes o salvassem’
(Eccli. XV, 15-16). “Onde
fica, pois, a tal liberdade de pensar e de agir que os Decretos da Assembléia
atribuem ao homem constituído em sociedade, como um direito imutável da
própria natureza? ... Posto que o homem já desde o começo tem
necessidade de sujeitar-se a seus maiores para ser por eles governado e
instruído, e para poder ordenar sua vida segundo a norma da razão, da
humanidade e da Religião, então é certo que desde o nascimento de cada
um é nula e vã essa decantada igualdade e liberdade entre os homens. ‘É
necessário que lhe sejais sujeitos’ (Rom. XIII, 5). Por conseguinte,
para que os homens pudessem reunir-se em sociedade civil, foi preciso
constituir uma forma de governo, em virtude da qual os direitos da
liberdade fossem circunscritos pelas leis e pelo poder supremo dos que
governam. De onde se segue o que Santo Agostinho ensina com estas
palavras: “É pois um pacto geral da sociedade humana obedecer a
seus Reis’ (Confissões, livro III, cap. VIII, op. ed. Maurin., p.
94). Eis porque a origem deste poder deve ser buscada menos em um contrato
social, que no próprio Deus, autor do que é reto e justo” (Pii VI Pont.
Max. Acta, Typis S. Congreg. De Propaganda Fide, Roma, 1871, vol. I,
pp. 70-71). Pio VI condenou reiteradas vezes a falsa concepção de liberdade e de igualdade. No Consistório Secreto de 17 de junho de 1793, confirmando as palavras da Encíclica Inscrutabile Divinae Sapientiae de 25 de dezembro de 1775, declarou o seguinte: “Estes perfidíssimos filósofos acometem isto ainda: dissolvem todos aqueles vínculos pelos quais os homens se unem entre si e aos seus superiores e se mantêm no cumprimento do dever. E vão clamando e proclamando até à náusea que o homem nasce livre e não está sujeito ao império de ninguém; e que, por conseguinte, a sociedade não passa de um conjunto de homens estúpidos, cuja imbecilidade se prosterna diante dos sacerdotes (pelos quais são enganados) e diante dos reis (pelos quais são oprimidos); de tal sorte que a concórdia entre o sacerdócio e o império outra coisa não é que uma monstruosa conspiração contra a inata liberdade do homem (Encíclica Inescrutabile Divinae Sapientiae). A esta falsa e mentirosa palavra Liberdade, esses jactanciosos patronos do gênero humano atrelaram outra palavra igualmente falaz, a Igualdade. Isto é, como se entre os homens que se reuniram em sociedade civil, pelo fato de estarem sujeitos a disposições de ânimo variadas e se moverem de modo diverso e incerto, cada um segundo o impulso de seu desejo, não devesse haver alguém que, pela autoridade e pela força prevaleça, obrigue e governe, bem como chame aos deveres os que se conduzem de modo desregrado, a fim de que a própria sociedade, pelo ímpeto tão temerário e contraditório de incontáveis paixões, não caia na Anarquia e se dissolva completamente; à semelhança do que se passa com a harmonia, que se compõe da conformidade de muitos sons, e que se não consiste numa adequada combinação de cordas e vozes, esvai-se em ruídos desordenados e completamente dissonantes” (Pii VI Pont. Max. Acta, Typis S. Congreg. De Propaganda Fide, Roma, 1871, vol. II, pp. 26-27). [5] Em discurso no aeroporto Le Bourget, em Paris, em 1º de fevereiro de 1980, João Paulo II afirmou: “Que não fizeram os filhos e filhas de vossa nação para o conhecimento do homem, para exprimir o homem pela formulação de seus direitos inalienáveis! Sabe-se o lugar que a idéia de liberdade, de igualdade e de fraternidade tem em vossa cultura, em vossa história. No fundo, estas são idéias cristãs. Eu o digo tendo bem consciência que aqueles que foram os primeiros a formular este ideal, não se referiam à aliança do homem com a sabedoria eterna. Mas eles queriam agir pelo homem” (Insegnamenti di Giovanni Paolo II, Libreria Editrice Vaticana, 1980, vol. III, 1, p. 1589). [6] A mesma idéia reaparece no art. 191 do Substitutivo Cabral 2 : “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social e os seguintes princípios: ... VII – redução das desigualdades regionais e sociais”. [7] Cfr. Mt. 25, 14 a 30; I Cor. 12, 28 a 31; São Tomás de Aquino, Suma contra os gentios, Livro II, Cap. 45. [8] Ensina São Tomás que a desigualdade das criaturas é uma condição para que a Criação dê glória a Deus, refletindo-Lhe adequadamente as perfeições. Afirma o Doutor Angélico na Suma Teológica: “Nos seres naturais vemos que as espécies são gradativamente ordenadas; assim, os compostos são mais perfeitos do que os elementos, as plantas do que os minerais, os animais do que as plantas e os homens do que os outros animais; e em cada uma dessas classes encontram-se espécies mais perfeitas do que as outras. Sendo, pois, a divina sabedoria a causa da distinção das coisas para a perfeição do universo, também será causa da sua desigualdade. Pois não seria perfeito o universo se nas coisas só se encontrasse um grau de bondade” ( Suma Teológica I, q. 47, a. 2). De fato, não seria condizente com a perfeição de Deus criar um só ser. Pois nenhum ser criado, por excelente que se o imagine, teria condições de, por si só, refletir adequadamente as infinitas perfeições de Deus. Assim, as criaturas são necessariamente múltiplas. E não apenas múltiplas, mas também necessariamente desiguais. É essa a doutrina do Santo Doutor: “Muitos
bens finitos são melhores do que um só, pois eles teriam o que tem este,
e ainda mais. Ora, é finita a bondade de toda criatura, pois é deficitária
da infinita bondade de Deus. Logo é mais perfeito o universo havendo
muitas criaturas, do que se houvesse um único grau delas. Ao sumo Bem
compete fazer o que é melhor. Logo, era-Lhe conveniente fazer muitos
graus de criaturas. “Ademais, a bondade da espécie excede a do indivíduo, como o formal excede o material; logo, mais acrescenta a bondade do universo a multiplicidade das espécies, do que a dos indivíduos de uma mesma espécie. Por isso, à perfeição do universo contribui não só haver muitos indivíduos, mas haver diferentes espécies e, por conseguinte, diferentes graus de coisas” ( Suma contra os gentios, Livro II, cap. 45). As desigualdades não são, pois, defeitos da Criação. São qualidades excelentes dela, nas quais se espelha a infinita e adorável perfeição de seu Autor. E Deus Se compraz contemplando-as: “A diversidde e a desigualdade das criaturas não procede do acaso, nem da diversidade da matéria, nem da intervenção de algumas causas ou méritos, mas procede da própria intenção de Deus, que quis dar à criatura a perfeição que lhe era possível ter. Daí se dizer no Gênesis: ‘Viu Deus tudo o que tinha feito, e era excelente’ (1, 31) ( Suma contra os gentios, loc. cit.). Tais desigualdades, Deus não as quis só entre os seres dos reinos inferiores – mineral, vegetal e animal – mas também entre os homens e, portanto, entre os povos e as nações. Com essas desigualdades, que Deus criou harmônicas entre si, e benfazejas para cada categoria de seres como para cada ser em particular, quis Deus prover o homem de abundantíssimos meios para ter sempre presente as infinitas perfeições dEle. As desigualdades entre os seres são ipso facto uma escola sublime e imensa de antiateísmo. É o que parece ter compreendido o líder comunista francês Roger Garaudy, quando realçou a importância da eliminação das desigualdades sociais para a vitória do ateísmo no mundo: “Não é possível, para um marxista, dizer que a eliminação das crenças religiosas é uma condição sine qua non para a edificação do comunismo. Karl Marx mostrava, pelo contrário, que só a realização completa do comunismo, ao tornar transparentes as relações sociais, tornaria possível o desaparecimento da concepção religiosa do mundo. Para um marxista, pois, é a edificação do comunismo que é condição sine qua non para eliminar as raízes sociais da religião, e não a eliminação das crenças religiosas a condição para a construção do comunismo” (R. Garaudy et alii, L’homme chrétien et l’homme marxiste, Semaines de la pensée marxiste – Confrontations et débats, La Palatine, Paris-Génève, 1964, p. 64). Querer destruir a ordem hierárquica do universo é, pois, privar o homem dos recursos para que ele possa livremente exercer o mais fundamental de seus direitos, que é o de conhecer, amar e servir a Deus. Ou seja, é desejar a maior das injustiças e a mais cruel das tiranias. [9] No livro Sou católico: posso ser contra a Reforma Agrária? são reproduzidos, nas pp. 82 a 88 e 196 a 198, textos de Leão XIII (1878-1903), de São Pio X (1903-1914), de Bento XV (1914-1922), de Pio XI (1922-1939), de Pio XII (1939-1958), de João XXIII (1958-1963) e do atual Pontífice João Paulo II, evidenciando que, segundo a doutrina da Igreja, a sociedade cristã deve ser constituída por classes proporcionadamente desiguais que encontram o seu próprio bem e o bem comum, em uma mútua e harmoniosa colaboração. Dois textos darão ao leitor uma idéia geral do assunto. Leão XIII, na célebre Encíclica Rerum Novarum, de 15 de maio de 1891, escreve: “O erro capital na questão presente é crer que as duas classes são inimigas natas uma da outra, como se a natureza tivesse armado os ricos e os pobres para se combaterem mutuamente num duelo obstinado. Isto é uma aberração tal, que é necessário colocar a verdade numa doutrina contrariamente oposta, pois assim como no corpo humano os diversos membros se ajustam entre si e determinam essas relações harmoniosas a que se chama adequadamente simetria, da mesma forma a natureza exige que na sociedade as classes se integrem umas às outras e por sua colaboração mútua realizem um justo equilíbrio. Cada uma delas tem imperiosa necessidade da outra; o capital não existe sem o trabalho, nem o trabalho sem o capital. Sua harmonia produz a beleza e a ordem; ao contrário, dum conflito perpétuo só podem resultar confusão e lutas selvagens” (Actes de Léon XIII, Bonne Presse, Paris, vol. III, p. 32). Por sua vez, Pio XII, na Radiomensagem de Natal de 1944, afirma: “Num povo digno de tal nome, todas as desigualdades que derivam, não do arbítrio, mas da própria natureza das coisas, desigualdades de cultura, de haveres, de posição social – sem prejuízo, bem entendido, da justiça e da caridade mútua – não são absolutamente um obstáculo à existência e ao predomínio de um autêntico espírito de comunidade e fraternidade. Pois, pelo contrário, longe de lesar de qualquer modo a igualdade civil, lhe conferem o seu significado legítimo, isto é, cada um, em face do Estado, tem o direito de viver honradamente a própria vida pessoal, no lugar e nas condições que os desígnios e disposições da Providência o colocaram” (Discorsi e Radiomessaggi di Sua Santità Pio XII, vol. VI, pp. 239-240). [10] Contereis o riso? (Horácio, Ars. Poet. 5). [11] Não ficará aberta a porta, nessa omissão, para o homossexualismo e toda espécie de aberrações sexuais contra a natureza? A resposta parece dever ser afirmativa. Menos cauto que o Substitutivo, o Projeto Cabral era explícito a esse respeito: “Ninguém será privilegiado ou prejudicado em razão de nascimento, etnia, raça, cor, idade, sexo, orientação sexual, estado civil, natureza do trabalho, religião, convicções políticas ou filosóficas, deficiência física ou mental, ou qualquer outra condição social ou individual” (art. 12, III, “f”). Ora, é imoral a proibição de norma discriminatória em caso de “orientação sexual”. O homossexual, pelo próprio fato de ser portador de vício sexual contra a natureza, é de uma presença rejeitável pelo convívio humano, quer no trabalho, quer na vida social e no lazer. A homossexualidade é um daqueles pecados “que bradam aos Céus e clamam a Deus por vingança”, assim chamados porque “mais que os outros pecados apresentam uma assinalada e manifesta malícia, e atraem de modo insigne a ira e a vingança de Deus sobre aqueles que os cometem” (Cardeal Pedro Gasparri, Catechismus Catholicus, Typis Polyglottis Vaticanis, 1933, 15ª ed., p. 258). Ainda recentemente, a Congregação para a Doutrina da Fé condenou mais uma vez esse vício, em documento enviado aos Bispos de todo o mundo (Lettera ai Vescovi della Chiesa Catolica sulla cura pastorale delle persone omosessuali, “L’Osservatore Romano”, 31-10-86). [12] Esse dispositivo já constava do Substitutivo Cabral 1 (art. 6º, § 5º), que acrescentava as seguintes palavras: “sendo formas de discriminação, entre outras, subestimar, estereotipar ou degradar pessoas por pertencer a grupos étnicos ou de cor, por palavras, imagens ou representações em qualquer meio de comunicação”. Pena é que essa exemplificação de “formas de discriminação” tenha sido retirada, já que o sentido da palavra “discriminação” não é definido, nem pelo Substitutivo Cabral 2, nem pelo Substitutivo Cabral 2. Entretanto, ainda que não figure no texto definitivo, tal enumeração será usada, sem dúvida, como recurso para interpretação desse dispositivo. Isto feito, poder-se-á ver quanto é draconiano o dispositivo, na medida em que inclui, entre as “formas de discriminação”, por exemplo toda caricatura – ainda que não ofensiva – que graceje inocentemente acerca de alguma peculiaridade deste ou daquele grupo étnico ou racial. Ele permitiria até prender Monteiro Lobato, por exemplo, por haver estereotipado o agricultor sertanejo, no “Jeca Tatu”. [13] “Art. 5º ... § 2º - A lei punirá, como crime inafiançável qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”. [14] Na Encíclica Vehementer, de 11 de fevereiro de 1906, São Pio X afirma: “A
Escritura nos ensina, e a tradição dos Padres nô-lo confirma, que a
Igreja é o Corpo Místico de Cristo, corpo dirigido por Pastores e
Doutores – sociedade, portanto, de homens, na qual alguns presidem aos
outros com pleno e perfeito poder de governar, ensinar e
julgar. “É, pois, esta sociedade por sua natureza, desigual; isto é, compreende uma dupla ordem de pessoas: os pastores e a grei, ou seja, aqueles que estão colocados nos vários graus da Hierarquia e a multidão dos fiéis. E estas duas ordens são de tal maneira distintas que só na Hierarquia reside o direito e a autoridade de orientar e dirigir os associados ao fim da sociedade, ao passo que o dever da multidão é deixar-se governar e seguir com obediência a direção dos que regem” (Actes de Pie X, Bonne Presse, Paris, vol. II, pp. 132 e 134). [15] Ver Parte I, Cap. II, Nota do tópico 8. |