Plinio Corrêa de Oliveira

 

Projeto de Constituição angustia o País

 

1987

Capítulo VIII – Comentários a temas esparsos tratados pelo Substitutivo Cabral 2

Como já foi dito na Introdução à Parte IV, o presente livro não teve a intenção de conter um tratado comentando todo o Substitutivo Cabral 2. Se o tivesse, estaria no âmbito de analisar a totalidade dos seus dispositivos, um por um. A intenção do autor foi tão-só considerar os artigos especialmente relacionados com a posição ideológica da TFP.

Embora adotando esse objetivo mais restrito, o trabalho está longe de ser curto. E o prazo de que foi possível dispor para fazê-lo foi o absolutamente indispensável para que chegasse a tempo ao conhecimento e à análise dos srs. Constituintes e da opinião pública.

Na realidade, porém, distinção entre o que diz e o que não diz respeito às metas doutrinárias da TFP simplifica exageradamente a tarefa, porque há evidentemente matérias que a elas concernem apenas secundum quid.

Não havendo tempo para tratar de modo cabal de todas elas, a TFP também não quis eximir-se inteiramente de qualquer pronunciamento. Razão pela qual agrupou no presente capítulo algumas dentre essas matérias, seguidas de comentários tão sintéticos quanto a natureza delas permitia.

Entre tais matérias, ocupa lugar de especial importância a questão dos índios, porque afeta a soberania nacional e a evangelização dos silvícolas. Pelo que lhe foi consagrado todo o Capítulo anterior. Sobre as demais, o comentário se cinge a alguma rápida palavra destinada a que o leitor conheça, pelo menos em seus traços mais gerais, o pensamento da TFP acerca do conjunto do que seria um Brasil de amanhã modelado pelo Substitutivo Cabral 2.

1. Minguado o âmbito de ação das Forças Armadas

O Substitutivo trata, no art. 160, do papel a ser desempenhado pelas Forças Armadas: “As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa destes, da lei e da ordem”.

É digno de atenção que a convocação das Forças Armadas para a defesa “da lei e da ordem” não caiba exclusivamente ao Presidente da República, como ocorre para a “garantia dos poderes constitucionais”. Eventualmente haverá, pois, graves conjunturas internas com vistas às quais qualquer dos Poderes da República – portanto o Legislativo e o Judiciário também – poderá convocar as Forças Armadas. De si, tal atribuição não condiz com a natureza específica de nenhum desses Poderes. E é até incompatível com a estrutura tão amplamente colegiada do Legislativo. Pois normalmente essa convocação seria precedida, em tempos convulsos, de longos debates tendentes quiçá ao dramático, com intervenção de galerias etc.

E quanto ao Judiciário, ficaria ele mal à vontade para tomar tal iniciativa, pois esta facilmente importaria em desencadear a repressão contra um setor criador de desordem. O que o Judiciário não poderia fazer sem julgar de algum modo como criminoso esse setor. E isto, baseado numa possivelmente discutível evidência dos fatos, e não nos dados apurados em um processo judiciário necessariamente circunspecto e lento. Pois graves perturbações internas exigem em geral convocação fulminantemente rápida das forças de repressão.

Ademais, que sentido prático teria essa convocação, uma vez que, lançada esta, as forças convocadas estariam ipso facto sob o mando, não do Poder que as convocou, mas do Presidente da República? Pois, é de admitir-se que o Legislativo ou o Judiciário não fizesse essa convocação senão porque antes não a fizera o Chefe de Estado. Mas, se ele não a quis fazer, que alcance prático há em que outro Poder as convoque, e por assim dizer obrigue o Poder Executivo a tomar em mãos as rédeas das operações repressivas que ele julgasse contrária ao bem comum? [1]

* * *

Quanto à Segurança Pública, diz o Substitutivo Cabral 2:

Art. 162 – A Segurança Pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

“I – polícia federal;

“II – polícias civis;

“III – polícias militares e corpos de bombeiros militares”.

O presente artigo exclui indiscutivelmente as Forças Armadas da tarefa de preservar ou restabelecer a ordem pública. De sorte que, mesmo em estado de grave convulsão interna para a qual sejam insuficientes os órgãos capitulados nos itens I a III, o Poder Público não poderá apelar à intervenção das Forças Armadas, as quais ficarão então assistindo de braços cruzados à derrocada do Brasil.

Não cremos que tal dispositivo encontre aplausos em nossa opinião pública, a não ser em muito circunscritos setores que consideram com indiferença ou com simpatia a terrível hipótese.

A propósito dos inconvenientes dos arts. 160 e 162 do Substitutivo Cabral 2, é oportuno aduzir aqui as ponderações contidas na brochura Temas Constitucionais – Subsídios, divulgada pelo Centro de Comunicação Social do Exército:

É uma das mais arraigadas tradições do Direito Constitucional Brasileiro a dupla missão das Forcas Armadas contra o inimigo externo que ameace a soberania nacional ou a integridade de seu território, e contra aqueles que, no interior do país, perturbem gravemente a ordem ou afrontem os poderes constitucionais e o império da lei.

“Alguns, entretanto, se insurgem contra o último  papel, esquecendo o fato de que as Forças Armadas, desde a nossa Independência, foram chamadas, constitucionalmente, a restabelecer a ordem e a lei, em graves momentos da vida nacional e, dessa forma, evitaram o caos político e social e até mesmo a desintegração do país. ...

“Seria extremamente ilógico que um Estado, tendo à sua disposição um meio adequado e pronto para combater a ameaça vinda do exterior, deixasse de utilizá-lo, quando a ameaça se manifestasse no interior.

“Devemos considerar, pragmaticamente, mesmo se a lei fundamental não previsse tal destinação, que dificilmente a sociedade aceitaria que as suas Forças Armadas se mantivessem impassíveis e inativas, em presença da desordem e do caos” (op. cit., 1987, pp. 4-5).

2. Reintegrados em seus postos os militares punidos

As Disposições Transitórias do Substitutivo Cabral 2, em seus arts. 6º e 7º, estatuem que:

“Art. 6º - É concedida anistia a todos que, no período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação desta Constituição, foram atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares e aos que foram abrangidos pelo Decreto-Legislativo no. 18, de 15 de dezembro de 1961, bem como os atingidos pelo Decreto-lei no. 864, de 12 de setembro de 1969, asseguradas as promoções na inatividade, ao cargo, emprego, posto ou graduação a que teriam direito se estivessem em serviço ativo, obedecidos os prazos de permanência em atividade previstos nas leis e regulamentos vigentes e respeitadas as características e peculiaridades próprias das carreiras dos servidores públicos civis e militares, observados os respectivos regimes jurídicos.

“Parágrafo único – O disposto no ‘caput’ deste artigo somente gera efeitos financeiros a partir da promulgação da presente Constituição, vedada a remuneração de qualquer espécie de caráter retroativo.

“Art. 7º - Os que foram, por motivos exclusivamente políticos, cassados ou tiveram seus direitos políticos suspensos a partir de 15 de julho de 1969 a 31 de dezembro de 1969, por ato do então Presidente da República, poderão requerer ao Supremo Tribunal Federal o reconhecimento de todos os direitos e vantagens interrompidos pelos atos punitivos, desde que comprovem ter sido os mesmos eivados de vício grave.

“Parágrafo único – O Supremo Tribunal Federal diligenciará no sentido de que o reconhecimento previsto neste artigo se efetive no prazo de cento e vinte dias a contar da data do pedido do interessado”.

O art. 6º das Disposições Transitórias pressupõe que todos os delitos praticados com “motivação exclusivamente política”, por elementos da esquerda – em geral de extrema-esquerda – na vigência do regime militar, foram inspirados por um nobre e desprendido patriotismo. E que os respectivos autores são autenticamente beneméritos da Pátria. Esta suposição explica que, em favor deles, se restabeleça o status quo anterior à ação delituosa de caráter político que tenham cometido. E, mais ainda, que sejam eles guindados à situação que normalmente ocupariam se tivessem servido constantemente o País, no período em que estiveram punidos.

E tal seria a benemerência deles e de seus atos que o art. 6º os equipara, para todos esses efeitos, por exemplo aos militares que, disciplinados como convém à sua nobre condição, prestaram contínuos serviços para a manutenção da ordem e da lei.

O que tal equiparação tem de disparatado ainda mais se acentua com a ambigüidade da expressão “motivação exclusivamente política”. Pois ela pode dar ao leitor menos versado  em assuntos jurídicos a impressão de que ficam excluídos dos benefícios dessa anistia todos os que, no exercício do crime político, cometeram ações que seriam nitidamente criminosas se fossem praticadas por motivos apolíticos, como matar, ferir, seqüestrar etc.

Porém a realidade é outra.

Por crime de “motivação exclusivamente política” se entende aquele que é político por sua meta e cujo agente não teve, a par da motivação política, também uma motivação delituosa de ordem pessoal. Seria o caso, por exemplo, de um assassinato cometido para o fim de eliminar um adversário político. Mas, igualmente, de proporcionar ao assassino que se locuplete com o dinheiro que, segundo era notório, a vítima traria consigo, no momento de ser abatida. Só esses criminosos é que seriam excluídos do benefícios da anistia.

3. Independência do Judiciário, profundamente comprometida em disposições do Substitutivo

Com referência à criação do “Conselho Nacional de Justiça”, preceituada pelo art. 144 do Substitutivo Cabral 2, há que dizer que ele constitui um dos dispositivos mais perigosos do Projeto:

Art. 144 – O Conselho Nacional de Justiça é o órgão de controle externo da atividade administrativa e do desempenho dos deveres funcionais do Poder Judiciário e do Ministério Público.

“Parágrafo único – Lei complementar definirá a organização e funcionamento do Conselho Nacional de Justiça, em cuja composição haverá membros indicados pelo Congresso Nacional, Poder Judiciário, Ministério Público e Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil”.

O Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, pela unanimidade de seu Plenário, decidiu enviar ao Presidente da Constituinte, Deputado Ulysses Guimarães, ofício que, analisando com segurança e brilho, dispositivos do Projeto anterior (Cabral 1) sobre o mesmo assunto pôs em relevo quanto eles continham de errado e de perigoso. Tal análise vem a propósito recordá-la aqui, no que diz respeito aos artigos 144 e 110 do Substitutivo Cabral 2, de análogo teor. Reza o ofício subscrito pelo desembargador Marcos Nogueira Garcez, Presidente do alto órgão, e datado de 11 de setembro de 1987.

O Tribunal de Justiça de São Paulo, por unânime deliberação de seu Plenário, manifesta profunda apreensão com o primeiro substitutivo apresentado pelo Ilustre Relator da Comissão de Sistematização da Assembléia Nacional Constituinte, nobre Deputado José Bernardo Cabral, no concernente à autonomia do Judiciário. Aspira a comunhão dos brasileiros a uma Justiça efetiva e eficaz, apenas compatível com o poder estatal dotado de condições de independência que assegurem a sua absoluta imparcialidade. Não é esse o contorno delineado no referido substitutivo, ao abrigar interferências comprometedoras da higidez de uma das expressões da soberania nacional. Em dois pontos a superposição se torna inadmissível: I. A Seção X do Capítulo IV contempla os denominados Conselhos Nacional e Estaduais de Justiça, incumbidos do controle externo do Judiciário. A concepção de organismo interferente em tais funções repugna à consciência jurídica brasileira, por abrigar possibilidade de subordinação da independência do juiz a ditames outros que não os da lei. Essa demasia sequer foi objeto de cogitação pelos defensores do arbítrio. II. Em outro preceito, o do artigo 136 do substitutivo, acolhe-se a intervenção externa para incluir nos Tribunais integrantes do quinto constitucional que ao próprio Judiciário compete selecionar, bastante a limitação já prevista no texto do Projeto. Deposita o Poder Judiciário de São Paulo em Vossa Excelência a confiança de que o jurista e fiador da democracia brasileira se tornou merecedor, para a supressão dos artigos 136, 172 e 173 do substitutivo, retornando o texto constitucional à salutar tradição garantidora da autonomia até hoje resguardada. Permitindo que órgãos e entidades interfiram direta ou indiretamente na estrutura e funcionamento da Justiça, restará um Poder Judiciário vulnerado em sua independência, com previsíveis reflexos no aprimoramento da vida democrática brasileira. O Tribunal de Justiça de São Paulo manifesta a sua confiança na sabedoria da Augusta Assembléia Nacional Constituinte e reitera a Vossa Excelência as expressões da mais elevada consideração e apreço. A) Marcos Nogueira Garcez, Presidente” (Diário Oficial/ Estado de São Paulo / Poder Judiciário / Caderno 1, de 16-9-87).

Cumpre também transcrever a alertada recomendação da Associação Paulista dos Magistrados, publicada no Órgão Oficial do Poder Judiciário de São Paulo: “A Associação Paulista dos Magistrados recomenda a todos os Juizes que consignem um ato de protesto contra os artigos 144 e parágrafo único e 110 e parágrafo único do Substitutivo apresentado na Constituinte. Impõe-se o ato de desagrado dos Magistrados Paulistas em relação à composição do Quinto Constitucional e da criação de órgão externo de controle do Poder Judiciário. A manifestação deverá constar da ata de audiência e comunicada ao Presidente da Assembléia Nacional Constituinte”(Diário Oficial / Estado de São Paulo / Poder Judiciário / Caderno 1, de 23-9-87).

4. Extinção da enfiteuse em áreas urbanas

Sobre a enfiteuse, reza o Substitutivo Cabral 2, no art. 49 das Disposições Transitórias:

Fica extinto o instituto da enfiteuse em imóveis urbanos sendo facultada, aos foreiros a remissão dos imóveis existentes, mediante aquisição do domínio direto, na conformidade do que dispuserem os respectivos contratos.

“§ 1º - Aplica-se subsidiariamente o que dispõe a legislação especial dos imóveis da União, quando não existir cláusula contratual.

§ 2º - Os direitos dos atuais ocupantes inscritos ficam assegurados pela aplicação de outra modalidade de contrato.

§ 3º - A enfiteuse continuará sendo aplicada aos terrenos da marinha e seus acrescidos, situados na faixa de segurança de cem metros de largura, a partir da orla marítima.

§ 4º - Extinta a enfiteuse, o antigo titular do domínio direto deverá, no prazo de noventa dias, sob pena de responsabilidade, confiar à guarda do registro de imóveis competente toda a documentação a ela relativa”.

Não há motivo para que se extinga compulsoriamente a enfiteuse, que constitui um ato jurídico perfeito e acabado, cujo ônus pesa tão levemente sobre os foreiros. O art. 49, que é obviamente elemento integrante de uma Reforma Urbana, participa, sob esse ponto de vista, da brutalidade de todo o movimento reformista atualmente em curso.

Mas pelo menos este artigo conserva o direito do titular do domínio direto, à indenização contratada.

De outro lado, continua vigente a enfiteuse em imóveis rurais.

5. A censura: um dirigismo doutrinário “neutro”, mas despótico

Também sobre a censura dispõe o Substitutivo Cabral 2:

Art. 249 – É assegurada aos meios de comunicação ampla liberdade, nos termos da lei.

§ 1º - É vedada toda censura de natureza política e ideológica. A lei criará os instrumentos necessários para defender a pessoa:

“I – da exibição e veiculação de programas e mensagens comerciais, do rádio e da televisão, que utilizem temas ou imagens que atentem contra a moral, os bons costumes, e incitem à violência.

“II – da propaganda comercial de bens e serviços que possam ser nocivos à saúde. ...

“Art. 250 – As emissoras de rádio e televisão promoverão o desenvolvimento integral da pessoa e da sociedade, observados os seguintes princípios: ...”

As emissoras de rádio e televisão são titulares de uma concessão estatal para seu funcionamento (art. 252). Tem nexo com isto o fato de que o Poder Público as possa investir de uma missão com vistas ao bem comum, ou seja, “o desenvolvimento integral da pessoa e da sociedade”.

À primeira vista, nada mais louvável. Contudo, da leitura atenta do texto surgem perguntas, e destas, por sua vez, se depreende uma objeção.

As perguntas:

1ª ) Em que consiste precisamente, segundo o Substitutivo, “o desenvolvimento integral da pessoa e da sociedade?

2ª ) A quem toca o poder de definir, em nosso Estado doutrinariamente neutro, o que caracteriza uma e outra coisa?

3ª ) A quem compete julgar se, em uma dada emissão de rádio ou de TV, não se promoveu tal desenvolvimento, mas pelo contrário foi ele prejudicado?

4ª ) Que pena cabe aplicar à emissora que transgrida assim a norma do art. 250?

O silêncio do Substitutivo a tal respeito, traz sérias conseqüências. Pois é incontestável que ele caminha para a formação de um órgão inquisitorial, encarregado de dispor sobre essas matérias, com base em leis claramente normativas do pensamento humano, em assunto tão amplo e tão fundamental como seja “o desenvolvimento integral da pessoa e da sociedade”.

E, assim, soa contraditório o art. 249, segundo o qual “é assegurada aos meios de comunicação ampla liberdade”. Mas esta liberdade “ampla” sofre uma restrição: ela se exercerá “nos termos da lei”. De uma lei arbitrariamente traçada pelo Poder Legislativo, sem base exata, nem de ordem doutrinária, nem religiosa, pois a tal se opõe a neutralidade do Estado.

A censura assim estabelecida não se pode confundir, portanto, com a censura moral de inspiração religiosa, ardentemente pedida em vários países pela opinião católica.

Com efeito, a Moral cristã não resulta do arbítrio de nenhum poder humano, mas de Mandamentos que têm o próprio Deus por Autor, e por intérprete e mestra a Santa Igreja Católica, cujo ensinamento a tal respeito se firma em vinte séculos de fidelidade e coerência para com os preceitos de Deus no Antigo e no Novo Testamento.

Ademais, a Moral cristã dispõe do consenso quase unânime do povo brasileiro.

Mas à censura com tal base se opõe o liberalismo do Substitutivo. Tal não o impede de adotar em seguida um dirigismo doutrinário contraditoriamente “neutro” e na realidade despótico.

Analisando mais a fundo o art. 249, as contradições se multiplicam, pois a proibição estabelecida em seu § 1º não toma em consideração que “o desenvolvimento integral da pessoa e da sociedade”, preceituado pelo art. 250, envolve vários aspectos “de natureza política e ideológica”.

Merece entretanto franco aplauso a proibição de programas e de publicidade “que utilizem temas ou imagens que atentem contra a moral, os bons costumes, e incitem à violência”. Embora pareça por demais vago o que esse dispositivo entende por “imagens que atentem contra a moral”, e que “incitem à violência”.

Os inconvenientes desse cunho vago saltam aos olhos, pois em relação a cada programa ou imagem autorizada pela censura vem, indissoluvelmente ligado, o conceito de que o Poder Público lhe endossa a moralidade. Ora, no Brasil, como em quase todo o Ocidente contemporâneo, o Estado é leigo e, como tal, não professa oficialmente a Moral ensinada pela Igreja Católica, nem por qualquer outra igreja.

A moral leiga procura basear-se em razões de ordem estritamente natural. E os preceitos desta, precisamente porque não têm por Autor Deus, mas os homens, não participa da imutabilidade de Deus, mas da mísera mutabilidade dos homens.

Dessa forma, não basta dizer que essa mutabilidade se fará sentir por modificações operadas de geração em geração, mas em geral se fará sentir entre filósofo e filósofo, sociólogo e sociólogo, chefe de família e chefe de família, em uma mesma geração. É o que mostra a experiência corrente.

Assim, a moral reinante se identificará forçosamente à moral professada pelo Chefe de Estado, ou, conforme o caso, pelo legislador ou pelo Juiz. Ela mudará de censor de espetáculos a censor de espetáculos, no mesmo País, Estado ou Município.

A censura, que teria toda sua razão de ser a partir da imutável Moral da Igreja – e que perderia muito de sua consistência e nobre rigidez, se baseada na moral já sujeita a discussões internas, freqüentes em outras igrejas – perde quase toda sua utilidade no Estado leigo contemporâneo. Pois, no Brasil recém-laicizado da primeira fase republicana (1889-1930), a sociedade, também ela já muito impregnada de laicismo, ainda conservava, por via consuetudinária, a Moral católica bimilenar. Mas, em nossos dias, em que o relativismo moral tomou quase inteiramente conta da sociedade, a tradição cristã bimilenar está em vias de esvair-se.

Quando a primeira Constituição republicana (1891) falava em ordem pública e bons costumes, todo mundo entendia por “bons costumes” os que correspondiam ao cumprimento dos preceitos da Moral cristã. Embora laica, a expressão tinha consistência, como há pouco se disse. Hoje...

6. A imprecisão de conceitos do Substitutivo

À vaguidade apontada no tópico anterior se deve acrescentar a indefinição de conceitos que, por vezes, se nota daqui e dali entre as disposições do Substitutivo Cabral 2.

Sirvam de amostra os exemplos que seguem:

O § 39 do art. 5º estabelece que “todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, sem necessidade de autorização, somente cabendo pré-aviso à autoridade quando a reunião possa prejudicar o fluxo normal de pessoas ou veículos”.

Este parágrafo dispensa “autorização” e “prévio aviso à autoridade”, quanto às reuniões “em locais abertos ao público”, desde que não prejudiquem o “fluxo normal de pessoas ou veículos”. Mas o dispositivo não define o que é “reunir-se”.

Assim, dependeria de autorização prévia a reunião de diretores de uma empresa ou de um partido político, por ser realizada costumeiramente em salas de reunião inacessíveis ao público? Ou uma reunião de acionistas ou uma prévia de um partido político, a ser realizada explicavelmente em local também inacessível ao público?

Ou o Substitutivo quereria ter dito aqui, como casa melhor com o sentido da frase, “em locais públicos”, em vez de “abertos ao público”?

O § 40 do mesmo artigo estatui: “É plena a liberdade de associação, exceto a de caráter paramilitar, não sendo exigida autorização estatal para a sua fundação, vedada a interferência do Estado em seu funcionamento”.

Que se entende por uma associação “de caráter paramilitar?” Por exemplo, as que praticam artes marciais, embora sem armamentos, se incluem por isso na condição de paramilitares? Seria paramilitar um clube de atiradores?

Parece supérfluo, ademais, reafirmar o óbvio, pois se “é plena a liberdade de associação”, é evidente que “não será exigida autorização estatal” para a fundação de associações...

* * *

O art. 5º, § 31, afirma que “todos têm direito a receber informações verdadeiras, de interesse particular, coletivo ou geral, dos órgãos públicos e dos órgãos privados com função social de relevância pública, ressalvados apenas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”.

Entretanto, o dispositivo não define o que sejam “órgãos privados com função social de relevância pública” dos quais “todos têm direito a receber informações verdadeiras [sic] de interesse particular, coletivo ou geral”.

Um exemplo ajudará a entender a inconveniência dessa indefinição. Considere-se a Light and Power de São Paulo, quando ainda exclusivamente particular. Ela se enquadraria perfeitamente bem no que parece estar contido no conceito emitido, pois tinha uma “função social de relevância pública”. Por esse novo dispositivo é de se perguntar se não teria ela que montar um departamento de informações capacitado a atender o interesse de todos aqueles que “têm o direito de receber informações verdadeiras”, mesmo quando se tratasse de um possível concorrente comercial... A isso obrigaria a Lei!  Tanto mais quanto o Substitutivo Cabral 2, fundamentalmente estatista, não cuida de preservar o legítimo interesse dos mencionados “órgãos privados com função social de relevância pública”. Ainda que a própria função social torne de utilidade pública a proteção dos interesses de uma entidade privada do gênero da que foi a Light.

A que abusos não pode levar um texto ambíguo desses, posto em mãos de mal-intencionados?

* * *

O art. 5º, § 43 dispõe que “as entidades associativas, quando expressamente autorizadas, na forma de seu estatuto ou seu instrumento constitutivo, têm legitimidade para representar seus filiados em juízo ou fora dele”.

O conceito de “entidade associativa”, contudo, é nebuloso. Pois, uma vez que existe uma “entidade”, existe uma pessoa jurídica. E a pessoa jurídica, quando não constitui fundação, constitui necessariamente associação.

Tal seria, também, que essas “entidades associativas”, “quando expressamente autorizadas”, não possuíssem “legitimidade para representar seus filiados em juízo ou fora dele”. Assim, qual a razão de ser deste parágrafo?



[1] Compare-se a título informativo, o art. 160 do Substitutivo Cabral 2 , com os arts. 90 e 91 da Constituição vigente:

“Art. 90 – As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais, permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República e dentro dos limites da lei.

“Art. 91 – As Forças Armadas, essenciais à execução da política de segurança nacional, destinam-se à defesa da Pátria e à garantia dos poderes constituídos, da lei e da ordem.

“Parágrafo único – Cabe ao Presidente da República a direção da política da guerra e a escolha dos Comandantes-Chefes”.


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