Plinio Corrêa de Oliveira

Projeto de Constituição angustia o País

 

 

 

 

1987

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Capítulo VI – As divagações sócio-sentimentais que estão na raiz de uma mal-compreendida função social da propriedade

Liberdade, liberdade, quantos crimes se cometem em teu nome”: a famosa exclamação decepcionada de Madame Roland[1] , ao ser conduzida à guilhotina, poderia ser citada – com as devidas ressalvas – a propósito da função social da propriedade.

É essa noção que, como se viu (cfr. Parte IV, Caps. II a V) serve de base para a tríplice Reforma – Agrária, Urbana e Empresarial – que o Substitutivo Cabral 2 pretende impor ao País.

É justo que a ela seja consagrado um capítulo especial neste estudo, que tem por meta fornecer aos srs. Constituintes, e à opinião pública em geral, os subsídios necessários para uma avaliação adequada do texto constitucional em elaboração.

Mas é bem de ver a importância da matéria transcende de muito o interesse que apresenta para a quadra histórica que o Brasil atravessa.

1. Função social, “slogan” muito difundido e conceito pouco definido...

Como é freqüente hoje em dia, nos chamados “órgãos de comunicação social” (imprensa, rádio e TV), a expressão função social. Entretanto, quão pouco explicativas são habitualmente as referências a tal expressão!

Se alguma empresa de pesquisa de opinião pública investigasse qual a porcentagem dos brasileiros (ou dos naturais de qualquer outro país) aptos a dar de imediato um conceito definido do que seja função social, é altamente provável que os resultados a que tal pesquisa chegasse fossem decepcionantes para os usuários dessa expressão-talismã[2].

Na melhor das hipóteses, uma minoria não extremamente pequena de pessoas responderia corretamente às seguintes perguntas:

1ª ) Se a presente voga da expressão função social data de Leão XIII, ou de algum de seus sucessores;

2ª ) se ela concerne a todos os direitos do homem, ou apenas ao direito de propriedade;

3ª ) Se a função social se destina essencialmente a servir a causa da distribuição igualitária dos bens, mediante a transferência, para os que possuem menos, da maior parte possível das posses dos que têm mais;

4ª ) Se a função social atingiria, consequentemente, a plena perfeição de seu próprio exercício no dia em que todos fossem iguais.

2. Um pressuposto mais sentimental que doutrinário: a desigualdade faz sofrer

A resposta vaga e titubeante que a maior parte das pessoas daria a essas perguntas se inspiraria em algo que melhor se qualifica como um sentimento de compaixão instintiva e notavelmente genérica, do que propriamente como uma doutrina.

Tal sentimento tem como pressuposto que toda dor pode e deve ser extirpada da vida do homem.

Dessa ilusão utópica se origina em muitos  espíritos uma divagação sobre os diversos sofrimentos experimentados pelo ser humano a propósito da propriedade privada e das desigualdades sócio-econômicas decorrentes desta.

Nas miragens dessa divagação aparece – sempre difusamente – a impressão de que grande número de sofrimentos poderia ser remediado desde logo se todos os bens se dividissem igualmente entre os homens. E isto, tanto a nível de nações como a nível de indivíduos.

De fato, imaginam os utopistas que mediante essa divisão igualitária cessariam, antes de tudo, as mais variadas formas de pobreza que hoje existem. Tal seria o fim das carências que afetam o corpo. E igualmente das que fazem sofrer a alma.

Ou seja, mesmo entre pessoas que não experimentam qualquer necessidade física, a propriedade privada seria causa de um padecimento autêntico. Com efeito, toda desigualdade faz sofrer quem tem menos. A tal ponto que a condição de um milhardário seria justificadamente penosa para este, quando posto em confronto com a de um multi-milhardário.

E não vale isto tão-só para desigualdades econômicas, mas ainda para os reflexos que essas desigualdades podem produzir, hoje em dia, nos vários campos da existência: desigualdades de ponto de partida na vida, desigualdades sobretudo no que cada qual herda de fortuna, de educação, de relações, de prestígio, de poder. Tudo isto pode despertar,   em quem tem menos ou é menos, uma tristeza ocasionada por sua inferioridade.

Um igualitário famoso, o Padre Sieyès [3], descreveu a organização das classes sociais de seu tempo – e entre elas incluía o Clero – como uma “cascata de desprezos”. Ou seja, cada superior desprezaria os inferiores. O que acarretaria – já se vê – que cada inferior odiasse seu superior. Não se poderia exprimir de modo mais conciso o princípio gerador da luta de classes.

3. Conseqüência necessária dessas divagações sentimentais: cumpre atuar para que desapareçam todas as desigualdades

É incontável o número de pessoas que vêem do mesmo modo as desigualdades ainda existentes na organização social contemporânea, contudo menos hierarquizada, em tantos dos seus aspectos, do que a do período final da Monarquia francesa.

Bem entendido, nem todas as pessoas têm coragem de explicitar até suas últimas conseqüências esse ponto de chegada extremo de suas divagações sócio-sentimentais. Mas para lá tendem, com celeridade maior ou menor, incontáveis contemporâneos nossos.

A função social da propriedade se lhes afigura como a obrigação que pesa diretamente sobre todo mundo que tem mais (e pesa in obliquo sobre todo mundo que, a qualquer título, é mais) de colaborar por todos os meios na tarefa de erodir gradualmente a sua situação, em benefício dos que têm ou são menos. De sorte que desapareçam todas as desigualdades, e com estas a causa que ainda fará gemer a humanidade, até o dia em que a última desigualdade desapareça da terra.

Ideal todo perfumado de compaixão, que algum revolucionário utópico do século XVIII exprimira sem receio de se contradizer, mediante o desejo – impregnado, segundo ele, de justiça – de “ver o último Rei enforcado com as tripas do último Padre [4].

4. Ao sopro mortífero do marxismo, esse anelo deixa de se basear na caridade cristã e começa a apelar para a “justiça” marxista

Ainda há algum tempo, toda essa divagação nas nuvens era qualificada, em vários meios católicos, como um impulso sublime de caridade cristã. Mas, sob o sopro mortífero do marxismo, radicalmente oposto ao próprio conceito de caridade, nos meios de esquerda católica se acentua sempre mais a tendência a basear todo esse élan “cristão”, não na caridade, porém na justiça.

A tal propósito, cumpre notar que o tônus dessa divagação vai mudando. De dulçuroso e declamatório mas pacífico, como “corresponde” à caridade, ele se foi tornando reivindicatório, ácido e até agressivo, como “corresponde” à justiça. E a melopéia algum tanto lamurienta do sentimentalismo de outrora vem sendo substituída gradualmente por um grito de guerra. O grito de guerra da luta de classes.

5. Na difusão dessa melopéia, socialismo utópico e socialismo científico desempenham papéis diferentes

Que juízo fazer do conteúdo doutrinário, ao mesmo tempo tão pobre e tão envolvente, da velha melopéia sócio-sentimental característica dos utopistas do século passado?

A vaporosa temática dessa melopéia tem algo da força de expansão indefinida dos gases. Isto é, a explanação cabal do conteúdo dela, sobretudo se acompanhada da respectiva refutação, poderia encher volumes.

Análoga afirmação se poderia fazer do conteúdo doutrinário do brado de guerra marxista. É ele mais denso de pensamento do que o socialismo utópico que o antecedeu. Mas nem por isso a respectiva refutação seria mais sintética e breve.

Cumpre aliás acrescentar que o pensamento marxista exerce, na propulsão gradual de quase todo o Ocidente rumo ao comunismo, um papel consideravelmente menor do que o do socialismo utópico. O marxismo move para a luta de classes a maior parte dos efetivos dos partidos socialistas e comunistas. Porém estes constituem em geral contingentes minoritários nas nações em que se radicam. E se as respectivas reivindicações encontram largo eco fora desses partidos, é porque o utopismo sócio-sentimental do século passado, ainda vivo em pessoas carentes de formação científica – de condição econômica alta, média ou baixa – faz com que estas imaginem que o marxismo não é senão uma  justificação científica eficaz do estado de espírito com que elas vêem as desigualdades sociais.

Na impossibilidade de explanar aqui tão ampla matéria, algumas ponderações sucintas ajudarão a elucidar sobre ela o leitor brasileiro médio.

6. Os problemas efetivamente criados pela Revolução Industrial foram pouco a pouco se atenuando

Na crítica da melopéia do socialismo utópico, e do grito de guerra do socialismo habitualmente cognominado científico, há sem dúvida uma queixa comum que corresponde à realidade das coisas.

O desenvolvimento do processo de industrialização, ao longo dos séculos XIX e XX, gerou em larga medida o desemprego e o pauperismo. E, em conseqüência, privou massas humanas inteiras das condições de existência suficientes e dignas que correspondem à natureza do homem.

Pari passu, a mesma industrialização foi ocasionando uma imensa concentração de capitais em favor de alguns beneficiários mais aptos, por instinto ou por formação técnica, a manusear as artes complicadas com que se ganha dinheiro.

Daí decorreu um desnível estridente entre as camadas situadas nos dois pólos da sociedade capitalista. E – manda a verdade histórica que se diga – sobretudo os capitalistas da fase primeva do processo de industrialização conexo com o surto da rede bancária e comercial, se mostraram, ora indiferentes, ora censuravelmente lentos em socorrer as vítimas de um curso de coisas do qual eram contudo eles os grandes beneficiários.

Entretanto, manda também a verdade histórica que se reconheça haver-se verificado paulatinamente, a partir de fins do século XIX, em muitos e amplos setores capitalistas, uma favorável transformação de mentalidades.

Depois do agitado corre-corre e dos lucros inebriantes da fase inicial do capitalismo, foi este adquirindo crescente estabilidade. O que proporcionou a muitos capitalistas o lazer necessário para refletirem sobre a situação sócio-econômica que seu enriquecimento criara. Assim, foi ganhando cada vez mais terreno entre eles a propensão a ajudar economicamente os desvalidos, entre os quais, de preferência, os seus próprios trabalhadores.

Desta forma tinha início a “opção preferencial pelos pobres não exclusiva nem excludente”, posteriormente tão encarecida pelo Pontífice reinante [5].

Esse impulso, muitas vezes espontâneo, era acentuado ora por vestígios de tradições familiares cristãs ora por observações científicas objetivas – mas também egoísticas – sobre a própria vantagem do capitalismo em melhorar as condições das classes populares: maior produtividade do trabalho, ampliação do consumo pela transformação dos indigentes em consumidores etc.

Também concorreu para esta evolução, incontestavelmente, o temor da vindita popular que surgia nas ameaças de revolução social partidas dos meios socialistas e comunistas.

7. Ação benéfica da Igreja, rejeitando simultaneamente o egoísmo capitalista e o igualitarismo revolucionário

Mas sobretudo contribuiu para o abrandamento da voracidade capitalista das primeiras décadas o ensino social dos Papas, a partir da memorável Encíclica Rerum Novarum, de Leão XIII.

Constituiu-se por efeito dele um vasto e pujante movimento social católico, que deu origem, principalmente na Europa, à formação de largas correntes patronais e operárias, as quais de mãos dadas – e rejeitando simultaneamente o egoísmo capitalista e o igualitarismo revolucionário – levantaram bem alto o ideal de uma organização social sábia e temperadamente hierárquica. Tais correntes se mostraram ciosas de esclarecer todas as classes sociais sobre os direitos do operariado a condições de vida que lhes confiram o necessário e o conveniente à dignidade humana; mas também, uma vez isso atendido, firmes em reivindicar a legitimidade do direito de propriedade, a relação deste com a família, a conseqüente hereditariedade dos bens etc., etc.

As melhorias assim alcançadas no relacionamento patrão-trabalhador e capital-trabalho foram tais que, em sua primeira Encíclica, João XXIII já constatava com júbilo o auspicioso declínio das tensões entre as classes sociais[6].

8. A “esquerda católica”, renascida das cinzas da heresia modernista, volta a aquecer a agitação ideológica, filosófica e sócio-econômica

Infelizmente, na iminência mesmo de alcançar assim essa vitória, um fator de caráter ideológico a afastou dos lábios sedentos do Ocidente. Foi o aparecimento – ou talvez, melhor, o reaparecimento – em meios católicos, da agitação ideológica, filosófica e sócio-econômica que começara a despertar com o modernismo, nebulosa heresia que o Papa São Pio X esmagara com firmeza angélica com a Encíclica Pascendi de 8 de setembro de 1907.

Renascida de suas próprias cinzas, essa heresia foi ganhando terreno discretamente nos Pontificados de Pio XI (1921-1939) e de Pio XII (1939-1958). E dela se originou a famosa “esquerda católica”, já pujante na fase pré-conciliar e quase triunfante destes 22 anos pós-conciliares [7].

É notadamente neste último quarto de século que não só se vem usando, mas principalmente se vem abusando, das palavras função social da propriedade.

E, como sempre, o caldo de cultura para a expansão desses terríveis germes de desagregação religiosa e social, é o sócio-sentimentalismo acima descrito. A tal ponto que, generalizada a divulgação do ensinamento da Igreja, contrária a este, ou renovada em  novos documentos pontifícios a rejeição dele, pode-se esperar que o germe de movimentos como os de certa Teologia da Libertação [8] perderiam sua força de expansão em escala de grandes massas humanas. A expressão função social da propriedade seria então libertada, daí por diante, de seu atrativo talismânico postiço. E o verdadeiro conceito de função social da propriedade se expandiria sem maior empecilho, para o bem espiritual e temporal dos homens.

9. A “função social da propriedade” no ensino tradicional da Igreja

Com efeito, o fato de essa ação talismânica se ter incubado nas palavras “função social da propriedade” não quer dizer que o conteúdo natural delas seja ilegítimo.

Afirmou-o taxativamente Pio XI, embora ainda sem usar a expressão hoje consagrada: “Primeiramente tenha-se por certo que nem Leão XIII, nem os teólogos, que ensinaram seguindo a doutrina e a direção da Igreja, negaram jamais ou puseram em dúvida a dupla espécie de domínio, que chamam individual ou social, segundo diz respeito aos particulares ou ao bem comum” (Encíclica Quadragesimo Anno, Coleção Documentos Pontifícios, Vozes, Petrópolis, 1959, 5ª ed., vol. 3, p. 18).

Esta afirmação soou em muito meios católicos à maneira de novidade. Na realidade, porém, não houve um século de sua História em que a Igreja – em uns ou outros termos – não ensinasse, não praticasse e não estimulasse os católicos a praticarem a função social da propriedade.

10. Limites e sutilezas da função social da propriedade, segundo os moralistas católicos

Sem entrar aqui nas explicáveis discussões sobre os verdadeiros limites dessa função, pode-se afirmar, num sentido muito amplo, que a função social da propriedade se realiza quando o proprietário consente nos sacrifícios necessários para o bem comum.

À primeira vista, nada de mais simples, nem de mais claro: se A é proprietário de bens que lhe sobram, e B está em risco de vida porquê lhe falta uma parcela desses bens e, ademais, B não tem com o que pagar A, estabelece-se entre A e B uma situação conflitual. Pois o direito à vida de B entra em choque com o direito de propriedade de A. Qual dos direitos deve prevalecer? Evidentemente o de B, pois o direito que um homem tem à sua vida é preeminente em relação ao direito que outro tem à sua propriedade.

Esta solução tão simples, que se prende à função social da propriedade, constituía matéria para investigações – obras-primas de sutileza e sensatez – dos moralistas católicos antigos. Assim, debatiam eles se a obrigação de A assistir a B pertencia aos deveres de caridade ou aos de justiça. Neste último caso, em que gênero de justiça se encaixavam: comutativa ou distributiva. E sendo na distributiva, caso o beneficiário adquirisse posteriormente haveres que lhe sobrassem, se era obrigado a reembolsar o benfeitor. Em qualquer eventualidade, ficaria B devendo gratidão a A, isto é, afeto, respeito, ajuda quando ocorresse o caso? E assim outras questões, algumas das quais nada simples, todas muito importantes não só para a boa formação moral do católico mas também para o adequado relacionamento entre os homens.

Um exemplo: se alguém não tem como pagar moradia, e outrem tem casas de sobra, o segundo deve franquear gratuitamente alguma habitação ao necessitado; ou se alguém não tem onde plantar, e outrem tem terras de sobra, este último deve facilitar as terras necessárias ao primeiro. “Franquear”, “facilitar”? Que querem dizer exatamente esse vocábulos? Emprestar gratuitamente enquanto dure o tempo de carência? Ou dar? Sempre quando a situação de B possa ser remediada com um simples empréstimo, exigir a doação constitui autêntico abuso. Um pouco como se, precisando de pão um indigente, o padeiro lhe tivesse que dar a padaria, e não apenas o pão. Ademais, podendo o indigente que consiga abastança reembolsar quem lhe cedeu o uso gratuito, ou a propriedade de algum bem, deve fazê-lo. Em qualquer caso, o beneficiário fica vinculado ao benfeitor pelos laços do respeito e da gratidão. Deve-lhe homenagem e assistência.

11. Como a “esquerda católica” envenena o problema

Bem entendido, assim não pensa a “esquerda católica”. O carente deve ver em todo abastado um ladrão, o qual está indevidamente de posse de algo daquilo a que o carente tem direito estrito. Pelo que ao carente toca o direito de avançar pura e simplesmente – de porrete ou faca na mão, se for preciso – contra o abastado, e arrancar-lhe o necessário. Quem julga da quantidade e da qualidade desse necessário? É o carente. Tanto mais que ao lado dele está o berreiro demagógico da imprensa esquerdista e, muito freqüentemente, o apoio ainda mais demagógico do Bispo local. Berreiro e apoio sem os quais o carente jamais ousaria empunhar a faca, ou o porrete...

Do papel da caridade cristã para resolver pacificamente situações dessa natureza, a “esquerda católica” nada diz. Ou quase nada. Da justiça comutativa, pela qual alguém deve pagar o que comprou, ou fornecer o que vendeu, e da distinção entre esta justiça e a distributiva, idem.

Dos deveres de gratidão, de homenagem e de assistência do beneficiário, menos ainda. Ela pretende fulminar todas essas nobres obrigações com uma só injúria: “cheiram a Idade Média”.

E, munida de uma noção tão empobrecida do que seja a justiça social, a “esquerda católica” investe contra toda a ordem sócio-econômica vigente. Com gáudio, é bem claro, do PCB, do PC do B, e de todo gênero de socialistas, utopistas ou terroristas.

A função social, assim simplística e demagogicamente entendida, promete liberdade e igualdade. Porém cria uma  nova classe de mujiques, de escravos no estilo da Rússia comunista.

E volta à memória a frase de Madame Roland: “Função social, função social, de quantas injustiças e até de quantos crimes vai sendo ameaçado, em teu nome, todo o Brasil” – tem-se vontade de exclamar!

12. Todo o corpo social tem funções a cumprir em favor do bem comum

Ora, a ordem social católica não se obtém apenas mediante uma transferência de bens das classes abastadas ou ricas para as carentes. Pois o direito de propriedade não pode ser reduzido a mera função social[9]. Nem a função social é mero encargo do proprietário e da propriedade.

Como nos organismos vivos, cada elemento do corpo social tem uma missão – e portanto uma função – para o bem do conjunto. E assim o trabalho também tem indispensáveis funções a cumprir em favor do bem comum. Se, por exemplo, todos os diretores, médicos, enfermeiros, funcionários administrativos e encarregados de limpeza de todos os hospitais de uma cidade ou de uma região se declararem simultaneamente em greve, violam gravemente a função social do trabalho.

Outro exemplo: já que uma ponderada e harmônica desigualdade entre os indivíduos, as famílias e as classes sociais é condição indispensável para o bem comum (cfr. Parte IV, Cap. IX, 4), atentam contra este último e violam a respectiva função social, os indivíduos, famílias e classes sociais que, pela mera influência de um humanismo igualitário e injusto, abusam de seus direitos civis ou políticos para contestar a primazia dos que lhe são proporcionadamente superiores.

Nesta perspectiva, e em face da alarmante extensão que tomou em nosso tempo a contestação a toda e qualquer preeminência ou superioridade sócio-econômica, o católico que se opõe a uma linha de conduta tão nociva ao bem comum, pratica uma opção preferencial simétrica com a análoga “opção preferencial pelos pobres”. É a “opção preferencial em favor dos superiores”.

Nada mais errado que entender que entre uma e outra “opção preferencial” há conflito. Pelo contrário, há entre elas uma preciosa e insubstituível complementariedade. Pois se, como ensinou São Pio X condensando o ensinamento de Leão XIII, no corpo social deve haver “príncipes e vassalos, patrões e proletários, ricos e pobres, sábios e ignorantes, nobres e plebeus” (Motu proprio Fin dalla prima de 18 de dezembro de 1903, item III – Coleção Documentos Pontifícios, Vozes, Petrópolis, 1959, 3ª ed., vol. 38, p. 23), são validamente complementares todas as opções preferenciais destinadas a favorecer os organismos sociais combalidos por fatores nocivos. E quem é preeminente em prestígio, em poder ou em riqueza, quando injustamente contestado em seus direitos pelos revolucionários, pode  reivindicar o apoio defensivo dos outros membros do corpo social, pela mesma razão por que o pode fazer, em favor de seus direitos, o operário autêntico, laborioso e amante da parcimônia.

Em suma, se na sociedade contemporânea ainda houvesse uma classe com direitos e encargos jurídicos específicos da nobreza, poder-se-ia dizer que, conforme as circunstâncias, o verdadeiro católico deveria dedicar-se, ora à “opção preferencial pelos pobres”, ora à “opção preferencial pelos nobres”. Foi aliás, o que ensinou Pio XII em célebres alocuções ao Patriciado e à Nobreza Romana, quando se ocupou dos resíduos de influência e dos encargos correspondentes daquela alta categoria na Cidade Eterna[10].

13. “Jesus se fez pobre para enobrecer a pobreza” (São Pio X)

Essas considerações levam a dizer umas poucas palavras sobre o direito – o sagrado e precioso direito – das classes laborais, à sua própria dignidade.

Sem dúvida, tal direito importa em condições de vida capazes de lhes propiciar uma dignidade modesta mas perfeitamente autêntica. Exemplos incontáveis desta dignidade se encontram nas tradições da classe operária em muitas épocas da História. E jamais alguma instituição zelou tanto por essa dignidade quanto a Igreja. E nenhuma ordem de coisas tanto a favoreceu quanto a civilização cristã.

E nem poderia ser de outra maneira. Pois o católico, contemplando devotamente a Sagrada Família, não pode deixar de ter a alma e o coração transidos de emoção ante a excelsa dignidade que aprouve a Deus fazer reluzir no lar operário constituído por Jesus, Maria e José [11].

Assim, para o verdadeiro católico não pode causar a menor surpresa o fato de ser tal a dignidade do trabalhador manual que, se no vaivém dos infortúnios humanos uma família principesca cai na condição operária, nem por isso perde desde logo a dignidade eminente de sua situação originária. A Sagrada Família era da estirpe real de David, e a Igreja se compraz em o realçar, a ponto que São José foi proclamado por Leão XIII Patrono dos Príncipes lançados no infortúnio.

Mas, tudo isto dito, importa assinalar que a dignidade do operário, como aliás de qualquer homem, não lhe provém sobretudo das condições de existência, mas de sua íntima consciência da inalienável grandeza de todo ser humano, máxime quando batizado e cumpridor fiel da Lei de Deus.

* * *

Fica assim dito o que se afigura como essencial sobre a função social da propriedade, com vistas aos debates e votações a se realizarem em breve na Assembléia Nacional Constituinte.

 

[1] Madame Roland de la Platière (1754-1793) mantinha um “salão” (local de reunião) freqüentado sobretudo pelos revolucionários moderados (girondinos), e exerceu grande influência política na preparação e no decurso da Revolução Francesa. Ela acabou por ser vítima desta – com muitos correligionários – no período do Terror.

[2] Cfr. Plinio Corrêa de Oliveira, Baldeação ideológica inadvertida e diálogo, Editora Vera Cruz, São Paulo, 1965, pp. 55-59.

[3] Emmanuel Joseph Sieyès (1748-1835). Vigário geral de Chartres, foi sucessivamente membro da Assembléia Nacional Constituinte, em 1789, da Convenção, do Conselho dos Quinhentos, do Diretório e do Consulado. Organizou com Napoleão o golpe de 18 Brumário.

[4] A frase é citada por Chamfort (1741-1794), que possivelmente se inspirou em uma poesia de Diderot (1713-1784) (cfr. Dictionnaire des citations françaises et étrangères, Paris, 1982, pp. 114 e 182).

[5] Discurso de 2 de julho de 1980 aos Bispos do CELAM – Pronunciamentos do Papa no Brasil, Edições Loyola, São Paulo, 1980, 2ª ed., p. 70.

[6]Deve-se reconhecer como sinal auspicioso a diminuição verificada, desde algum tempo e em certos lugares, na tensão entre as classes sociais. Já o afirmava Nosso Predecessor imediato em discurso aos católicos alemães: ‘A terrível catástrofe que se abateu sobre vós com a última guerra terá comportado ao menos uma vantagem: ela permitiu que muitos ambientes se libertassem dos preconceitos e da preocupação excessiva com as vantagens pessoais, e que assim diminuísse a aspereza da luta de classes e os homens se aproximassem uns dos outros. A desgraça comum é mestra dura, mas benfazeja’ (Radiomensagem ao 73º Congresso dos Católicos Alemães, 1949).

“Com efeito, o afastamento entre as classes sociais  é menor, pois estas não se limitam mais aos dois blocos em que se opunham capital e trabalho. Agora já são mais variadas e abertas a todos. O trabalho e o talento permitem subir os degraus da escala social.

“No que concerne mais diretamente ao mundo do trabalho, é consolador constatar as melhorias recentemente introduzidas nas próprias condições do trabalho e o fato de que não se pensa mais somente nas vantagens econômicas dos operários, mas também em lhes proporcionar um gênero de vida mais elevado e mais digno” (Encíclica Ad Petri Cathedram, de 29 de junho de 1959 – A . A . S ., vol. LI, no. 10, pp. 506-507).

[7] Sobre a crise na Igreja na fase pós-conciliar, cfr. Cardeal Joseph Ratzinger, Rapporto sulla Fede, Edizioni Paoline, Milão, 1985, 218 pp.

[8] Cfr. Congregação para a Doutrina da Fé, Instrução sobre alguns aspectos da “Teologia da Libertação”, 6 de agosto de 1984.

[9] É o que deixou bem claro Pio XII, na já citada Radiomensagem de 14 de setembro de 1952, dirigida ao Katholikentag de Viena: “O direito do indivíduo e da família à propriedade é uma conseqüência imediata da essência da pessoa, um direito da dignidade pessoal, um direito vinculado, é verdade, por deveres sociais; não é porém meramente uma função social” (Discorsi e Radiomessaggi, vol. XIV, p. 314).

[10] Em sua Alocução ao Patriciado e à Nobreza Romana, de 19 de janeiro de 1946, Pio XII afirmou:

“A sociedade humana não é porventura, ou pelo menos não deveria ser, semelhante a uma máquina bem ordenada, cujas peças concorrem todas para um funcionamento harmônico do conjunto? Cada um tem sua função, cada um deve aplicar-se para um melhor progresso do organismo social, cujo aperfeiçoamento deve procurar, de acordo com as suas forças e próprias virtudes, se tem verdadeiro amor ao próximo e razoavelmente tende para o bem e proveito de todos.

“Ora, que parte vos foi confiada de maneira especial, queridos filhos e filhas? Qual missão vos foi particularmente atribuída? Precisamente aquela de facilitar este desenvolvimento normal; aquilo que na máquina presta e executa o regulador, o volante, o reostato, que participam da atividade comum e recebem a parte que lhes cabe da força motriz para assegurar o movimento de regime do aparelho. Em outros termos, Patriciado e Nobreza, vós representais e continuais a tradição” (Discorsi e Radiomessaggi, vol. VII, p. 340).

E na Alocução de 8 de janeiro de 1947, igualmente dirigida ao Patriciado e à Nobreza romana, Pio XII continua:

“Vossa missão está, pois, muito longe de ser negativa; ela supõe em vós muita aplicação, muito trabalho, muita abnegação, e, sobretudo, muito amor. Não obstante a rápida evolução dos tempos, vossa missão não perdeu seu valor e não atingiu o seu termo. O que ela também pede de vós, e que deve ser a característica de vossa educação tradicional e familiar, é o fino sentimento e a vontade de não vos prevalecerdes de vossa condição – privilégio hoje em dia muitas vezes grave e austero – senão para servir.

“Caminhai, pois, com coragem e com humilde altivez rumo ao futuro, queridos filhos e filhas. Vossa função social, nova na forma, é substancialmente a mesma, como nos vossos tempos passados de maior esplendor” (Discorsi e Radiomessaggi, vol. VIII, pp. 370-371).

[11] A propósito, escreveu São Pio X resumindo o pensamento de Leão XIII: “Os pobres ... não se devem envergonhar da indigência, nem desprezar a caridade dos ricos, olhando para Jesus Redentor, que, podendo nascer entre as riquezas, se fez pobre para enobrecer a pobreza e enriquecê-la de méritos incomparáveis para o Céu (Encíclica Rerum Novarum)” (Motu proprio Fin dalla prima de 18 de dezembro de 1903, item X – Coleção Documentos Pontifícios, Vozes, Petrópolis, 1959, 3ª ed., vol. 38, p. 24).


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