“Liberdade, liberdade, quantos crimes se
cometem em teu nome”: a famosa exclamação decepcionada de Madame
Roland[1]
, ao ser conduzida à guilhotina, poderia ser citada – com as devidas
ressalvas – a propósito da função social da propriedade.
É essa noção que, como se viu (cfr. Parte IV,
Caps. II a V) serve de base para a tríplice Reforma – Agrária, Urbana
e Empresarial – que o Substitutivo Cabral 2 pretende impor ao País.
É justo que a ela seja consagrado um capítulo
especial neste estudo, que tem por meta fornecer aos srs. Constituintes, e
à opinião pública em geral, os subsídios necessários para uma avaliação
adequada do texto constitucional em elaboração.
Mas é bem de ver a importância da matéria
transcende de muito o interesse que apresenta para a quadra histórica que
o Brasil atravessa.
Como é freqüente hoje em dia, nos chamados “órgãos
de comunicação social” (imprensa, rádio e TV), a expressão função
social. Entretanto, quão pouco explicativas são habitualmente as referências
a tal expressão!
Se alguma empresa de pesquisa de opinião pública
investigasse qual a porcentagem dos brasileiros (ou dos naturais de
qualquer outro país) aptos a dar de imediato um conceito definido do que
seja função social, é altamente provável que os resultados a que tal
pesquisa chegasse fossem decepcionantes para os usuários dessa expressão-talismã[2].
Na melhor das hipóteses, uma minoria não
extremamente pequena de pessoas responderia corretamente às seguintes
perguntas:
1ª ) Se a presente voga da expressão função
social data de Leão XIII, ou de algum de seus sucessores;
2ª ) se ela concerne a todos os
direitos do homem, ou apenas ao direito de propriedade;
3ª ) Se a função social se destina
essencialmente a servir a causa da distribuição igualitária dos bens,
mediante a transferência, para os que possuem menos, da maior parte possível
das posses dos que têm mais;
4ª ) Se a função social atingiria,
consequentemente, a plena perfeição de seu próprio exercício no dia em
que todos fossem iguais.
A resposta vaga e titubeante que a maior parte das
pessoas daria a essas perguntas se inspiraria em algo que melhor se
qualifica como um sentimento de compaixão instintiva e notavelmente genérica,
do que propriamente como uma doutrina.
Tal sentimento tem como pressuposto que toda dor
pode e deve ser extirpada da vida do homem.
Dessa ilusão utópica se origina em muitos
espíritos uma divagação sobre os diversos sofrimentos
experimentados pelo ser humano a propósito da propriedade privada e das
desigualdades sócio-econômicas decorrentes desta.
Nas miragens dessa divagação aparece – sempre
difusamente – a impressão de que grande número de sofrimentos poderia
ser remediado desde logo se todos os bens se dividissem igualmente entre
os homens. E isto, tanto a nível de nações como a nível de indivíduos.
De fato, imaginam os utopistas que mediante essa
divisão igualitária cessariam, antes de tudo, as mais variadas formas de
pobreza que hoje existem. Tal seria o fim das carências que afetam o
corpo. E igualmente das que fazem sofrer a alma.
Ou seja, mesmo entre pessoas que não experimentam
qualquer necessidade física, a propriedade privada seria causa de um
padecimento autêntico. Com efeito, toda desigualdade faz sofrer quem tem
menos. A tal ponto que a condição de um milhardário seria
justificadamente penosa para este, quando posto em confronto com a de um
multi-milhardário.
E não vale isto tão-só para desigualdades econômicas,
mas ainda para os reflexos que essas desigualdades podem produzir, hoje em
dia, nos vários campos da existência: desigualdades de ponto de partida
na vida, desigualdades sobretudo no que cada qual herda de fortuna, de
educação, de relações, de prestígio, de poder. Tudo isto pode
despertar, em quem tem
menos ou é menos, uma tristeza ocasionada por sua inferioridade.
Um igualitário famoso, o Padre Sieyès
[3],
descreveu a organização das classes sociais de seu tempo – e entre
elas incluía o Clero – como uma “cascata de desprezos”. Ou
seja, cada superior desprezaria os inferiores. O que acarretaria – já
se vê – que cada inferior odiasse seu superior. Não se poderia
exprimir de modo mais conciso o princípio gerador da luta de classes.
É incontável o número de pessoas que vêem do
mesmo modo as desigualdades ainda existentes na organização social
contemporânea, contudo menos hierarquizada, em tantos dos seus aspectos,
do que a do período final da Monarquia francesa.
Bem entendido, nem todas as pessoas têm coragem
de explicitar até suas últimas conseqüências esse ponto de chegada
extremo de suas divagações sócio-sentimentais. Mas para lá tendem, com
celeridade maior ou menor, incontáveis contemporâneos nossos.
A função social da propriedade se lhes
afigura como a obrigação que pesa diretamente sobre todo mundo que tem
mais (e pesa in obliquo sobre todo mundo que, a qualquer título,
é mais) de colaborar por todos os meios na tarefa de erodir gradualmente
a sua situação, em benefício dos que têm ou são menos. De sorte que
desapareçam todas as desigualdades, e com estas a causa que ainda fará
gemer a humanidade, até o dia em que a última desigualdade desapareça
da terra.
Ideal todo perfumado de compaixão, que algum
revolucionário utópico do século XVIII exprimira sem receio de se
contradizer, mediante o desejo – impregnado, segundo ele, de justiça
– de “ver o último Rei enforcado com as tripas do último Padre”
[4].
Ainda há algum tempo, toda essa divagação nas
nuvens era qualificada, em vários meios católicos, como um impulso
sublime de caridade cristã. Mas, sob o sopro mortífero do marxismo,
radicalmente oposto ao próprio conceito de caridade, nos meios de
esquerda católica se acentua sempre mais a tendência a basear todo esse
élan “cristão”, não na caridade, porém na justiça.
A tal propósito, cumpre notar que o tônus dessa
divagação vai mudando. De dulçuroso e declamatório mas pacífico, como
“corresponde” à caridade, ele se foi tornando reivindicatório, ácido
e até agressivo, como “corresponde” à justiça. E a melopéia algum
tanto lamurienta do sentimentalismo de outrora vem sendo substituída
gradualmente por um grito de guerra. O grito de guerra da luta de classes.
Que juízo fazer do conteúdo doutrinário, ao
mesmo tempo tão pobre e tão envolvente, da velha melopéia sócio-sentimental
característica dos utopistas do século passado?
A vaporosa temática dessa melopéia tem algo da
força de expansão indefinida dos gases. Isto é, a explanação cabal do
conteúdo dela, sobretudo se acompanhada da respectiva refutação,
poderia encher volumes.
Análoga afirmação se poderia fazer do conteúdo
doutrinário do brado de guerra marxista. É ele mais denso de pensamento
do que o socialismo utópico que o antecedeu. Mas nem por isso a
respectiva refutação seria mais sintética e breve.
Cumpre aliás acrescentar que o pensamento
marxista exerce, na propulsão gradual de quase todo o Ocidente rumo ao
comunismo, um papel consideravelmente menor do que o do socialismo utópico.
O marxismo move para a luta de classes a maior parte dos efetivos dos
partidos socialistas e comunistas. Porém estes constituem em geral
contingentes minoritários nas nações em que se radicam. E se as
respectivas reivindicações encontram largo eco fora desses partidos, é
porque o utopismo sócio-sentimental do século passado, ainda vivo em
pessoas carentes de formação científica – de condição econômica
alta, média ou baixa – faz com que estas imaginem que o marxismo não
é senão uma justificação
científica eficaz do estado de espírito com que elas vêem as
desigualdades sociais.
Na impossibilidade de explanar aqui tão ampla matéria,
algumas ponderações sucintas ajudarão a elucidar sobre ela o leitor
brasileiro médio.
Na crítica da melopéia do socialismo utópico, e
do grito de guerra do socialismo habitualmente cognominado científico, há
sem dúvida uma queixa comum que corresponde à realidade das coisas.
O desenvolvimento do processo de industrialização,
ao longo dos séculos XIX e XX, gerou em larga medida o desemprego e o
pauperismo. E, em conseqüência, privou massas humanas inteiras das condições
de existência suficientes e dignas que correspondem à natureza do homem.
Pari passu,
a mesma industrialização foi ocasionando uma imensa concentração de
capitais em favor de alguns beneficiários mais aptos, por instinto ou por
formação técnica, a manusear as artes complicadas com que se ganha
dinheiro.
Daí decorreu um desnível estridente entre as
camadas situadas nos dois pólos da sociedade capitalista. E – manda a
verdade histórica que se diga – sobretudo os capitalistas da fase
primeva do processo de industrialização conexo com o surto da rede bancária
e comercial, se mostraram, ora indiferentes, ora censuravelmente lentos em
socorrer as vítimas de um curso de coisas do qual eram contudo eles os
grandes beneficiários.
Entretanto, manda também a verdade histórica que
se reconheça haver-se verificado paulatinamente, a partir de fins do século
XIX, em muitos e amplos setores capitalistas, uma favorável transformação
de mentalidades.
Depois do agitado corre-corre e dos lucros
inebriantes da fase inicial do capitalismo, foi este adquirindo crescente
estabilidade. O que proporcionou a muitos capitalistas o lazer necessário
para refletirem sobre a situação sócio-econômica que seu
enriquecimento criara. Assim, foi ganhando cada vez mais terreno entre
eles a propensão a ajudar economicamente os desvalidos, entre os quais,
de preferência, os seus próprios trabalhadores.
Desta forma tinha início a “opção
preferencial pelos pobres não exclusiva nem excludente”,
posteriormente tão encarecida pelo Pontífice reinante
[5].
Esse impulso, muitas vezes
espontâneo, era acentuado ora por vestígios de tradições familiares
cristãs ora por observações científicas objetivas – mas também egoísticas
– sobre a própria vantagem do capitalismo em melhorar as condições
das classes populares: maior produtividade do trabalho, ampliação do
consumo pela transformação dos indigentes em consumidores etc.
Também concorreu para esta evolução,
incontestavelmente, o temor da vindita popular que surgia nas ameaças de
revolução social partidas dos meios socialistas e comunistas.
Mas sobretudo contribuiu para o abrandamento da
voracidade capitalista das primeiras décadas o ensino social dos Papas, a
partir da memorável Encíclica Rerum Novarum, de Leão XIII.
Constituiu-se por efeito dele um vasto e pujante
movimento social católico, que deu origem, principalmente na Europa, à
formação de largas correntes patronais e operárias, as quais de mãos
dadas – e rejeitando simultaneamente o egoísmo capitalista e o
igualitarismo revolucionário – levantaram bem alto o ideal de uma
organização social sábia e temperadamente hierárquica. Tais correntes
se mostraram ciosas de esclarecer todas as classes sociais sobre os
direitos do operariado a condições de vida que lhes confiram o necessário
e o conveniente à dignidade humana; mas também, uma vez isso atendido,
firmes em reivindicar a legitimidade do direito de propriedade, a relação
deste com a família, a conseqüente hereditariedade dos bens etc., etc.
As melhorias assim alcançadas no relacionamento
patrão-trabalhador e capital-trabalho foram tais que, em sua primeira Encíclica,
João XXIII já constatava com júbilo o auspicioso declínio das tensões
entre as classes sociais[6].
Infelizmente, na iminência mesmo de alcançar
assim essa vitória, um fator de caráter ideológico a afastou dos lábios
sedentos do Ocidente. Foi o aparecimento – ou talvez, melhor, o
reaparecimento – em meios católicos, da agitação ideológica, filosófica
e sócio-econômica que começara a despertar com o modernismo,
nebulosa heresia que o Papa São Pio X esmagara com firmeza angélica com
a Encíclica Pascendi de 8 de setembro de 1907.
Renascida de suas próprias cinzas, essa heresia
foi ganhando terreno discretamente nos Pontificados de Pio XI (1921-1939)
e de Pio XII (1939-1958). E dela se originou a famosa “esquerda católica”,
já pujante na fase pré-conciliar e quase triunfante destes 22 anos pós-conciliares
[7].
É notadamente neste último quarto de século que
não só se vem usando, mas principalmente se vem abusando, das palavras função
social da propriedade.
E, como sempre, o caldo de cultura para a expansão
desses terríveis germes de desagregação religiosa e social, é o sócio-sentimentalismo
acima descrito. A tal ponto que, generalizada a divulgação do
ensinamento da Igreja, contrária a este, ou renovada em
novos documentos pontifícios a rejeição dele, pode-se esperar
que o germe de movimentos como os de certa Teologia da Libertação
[8]
perderiam sua força de expansão em escala de grandes massas humanas. A
expressão função social da propriedade seria então libertada,
daí por diante, de seu atrativo talismânico postiço. E o verdadeiro
conceito de função social da propriedade se expandiria sem maior
empecilho, para o bem espiritual e temporal dos homens.
Com efeito, o fato de essa ação talismânica se
ter incubado nas palavras “função social da propriedade” não
quer dizer que o conteúdo natural delas seja ilegítimo.
Afirmou-o taxativamente Pio XI, embora ainda sem
usar a expressão hoje consagrada: “Primeiramente tenha-se por certo
que nem Leão XIII, nem os teólogos, que ensinaram seguindo a doutrina e
a direção da Igreja, negaram jamais ou puseram em dúvida a dupla espécie
de domínio, que chamam individual ou social, segundo diz respeito aos
particulares ou ao bem comum” (Encíclica Quadragesimo Anno,
Coleção Documentos Pontifícios, Vozes, Petrópolis, 1959, 5ª
ed., vol. 3, p. 18).
Esta afirmação soou em muito meios católicos à
maneira de novidade. Na realidade, porém, não houve um século de sua
História em que a Igreja – em uns ou outros termos – não ensinasse,
não praticasse e não estimulasse os católicos a praticarem a função
social da propriedade.
Sem entrar aqui nas explicáveis discussões sobre
os verdadeiros limites dessa função, pode-se afirmar, num sentido muito
amplo, que a função social da propriedade se realiza quando o
proprietário consente nos sacrifícios necessários para o bem comum.
À primeira vista, nada de mais simples, nem de
mais claro: se A é proprietário de bens que lhe sobram, e B está em
risco de vida porquê lhe falta uma parcela desses bens e, ademais, B não
tem com o que pagar A, estabelece-se entre A e B uma situação conflitual.
Pois o direito à vida de B entra em choque com o direito de propriedade
de A. Qual dos direitos deve prevalecer? Evidentemente o de B, pois o
direito que um homem tem à sua vida é preeminente em relação ao
direito que outro tem à sua propriedade.
Esta solução tão simples, que se prende à função
social da propriedade, constituía matéria para investigações –
obras-primas de sutileza e sensatez – dos moralistas católicos antigos.
Assim, debatiam eles se a obrigação de A assistir a B pertencia aos
deveres de caridade ou aos de justiça. Neste último caso, em que gênero
de justiça se encaixavam: comutativa ou distributiva. E sendo na
distributiva, caso o beneficiário adquirisse posteriormente haveres que
lhe sobrassem, se era obrigado a reembolsar o benfeitor. Em qualquer
eventualidade, ficaria B devendo gratidão a A, isto é, afeto, respeito,
ajuda quando ocorresse o caso? E assim outras questões, algumas das quais
nada simples, todas muito importantes não só para a boa formação moral
do católico mas também para o adequado relacionamento entre os homens.
Um exemplo: se alguém não tem como pagar
moradia, e outrem tem casas de sobra, o segundo deve franquear
gratuitamente alguma habitação ao necessitado; ou se alguém não tem
onde plantar, e outrem tem terras de sobra, este último deve facilitar as
terras necessárias ao primeiro. “Franquear”, “facilitar”? Que
querem dizer exatamente esse vocábulos? Emprestar gratuitamente enquanto
dure o tempo de carência? Ou dar? Sempre quando a situação de B possa
ser remediada com um simples empréstimo, exigir a doação constitui autêntico
abuso. Um pouco como se, precisando de pão um indigente, o padeiro lhe
tivesse que dar a padaria, e não apenas o pão. Ademais, podendo o
indigente que consiga abastança reembolsar quem lhe cedeu o uso gratuito,
ou a propriedade de algum bem, deve fazê-lo. Em qualquer caso, o beneficiário
fica vinculado ao benfeitor pelos laços do respeito e da gratidão.
Deve-lhe homenagem e assistência.
Bem entendido, assim não pensa a “esquerda católica”.
O carente deve ver em todo abastado um ladrão, o qual está indevidamente
de posse de algo daquilo a que o carente tem direito estrito. Pelo que ao
carente toca o direito de avançar pura e simplesmente – de porrete ou
faca na mão, se for preciso – contra o abastado, e arrancar-lhe o
necessário. Quem julga da quantidade e da qualidade desse necessário? É
o carente. Tanto mais que ao lado dele está o berreiro demagógico da
imprensa esquerdista e, muito freqüentemente, o apoio ainda mais demagógico
do Bispo local. Berreiro e apoio sem os quais o carente jamais ousaria
empunhar a faca, ou o porrete...
Do papel da caridade cristã para resolver
pacificamente situações dessa natureza, a “esquerda católica” nada
diz. Ou quase nada. Da justiça comutativa, pela qual alguém deve pagar o
que comprou, ou fornecer o que vendeu, e da distinção entre esta justiça
e a distributiva, idem.
Dos deveres de gratidão, de homenagem e de assistência
do beneficiário, menos ainda. Ela pretende fulminar todas essas nobres
obrigações com uma só injúria: “cheiram a Idade Média”.
E, munida de uma noção tão empobrecida do que
seja a justiça social, a “esquerda católica” investe contra toda a
ordem sócio-econômica vigente. Com gáudio, é bem claro, do PCB, do PC
do B, e de todo gênero de socialistas, utopistas ou terroristas.
A função social, assim simplística e
demagogicamente entendida, promete liberdade e igualdade. Porém cria uma
nova classe de mujiques, de escravos no estilo da Rússia
comunista.
E volta à memória a frase de Madame Roland: “Função
social, função social, de quantas injustiças e até de quantos crimes
vai sendo ameaçado, em teu nome, todo o Brasil” – tem-se vontade
de exclamar!
Ora, a ordem social católica não se obtém
apenas mediante uma transferência de bens das classes abastadas ou ricas
para as carentes. Pois o direito de propriedade não pode ser reduzido a
mera função social[9].
Nem a função social é mero encargo do proprietário e da propriedade.
Como nos organismos vivos, cada elemento do corpo
social tem uma missão – e portanto uma função – para o bem do
conjunto. E assim o trabalho também tem indispensáveis funções a
cumprir em favor do bem comum. Se, por exemplo, todos os diretores, médicos,
enfermeiros, funcionários administrativos e encarregados de limpeza de
todos os hospitais de uma cidade ou de uma região se declararem
simultaneamente em greve, violam gravemente a função social do
trabalho.
Outro exemplo: já que uma
ponderada e harmônica desigualdade entre os indivíduos, as famílias e
as classes sociais é condição indispensável para o bem comum (cfr.
Parte IV, Cap. IX, 4), atentam contra este último e violam a respectiva
função social, os indivíduos, famílias e classes sociais que, pela
mera influência de um humanismo igualitário e injusto, abusam de seus
direitos civis ou políticos para contestar a primazia dos que lhe são
proporcionadamente superiores.
Nesta perspectiva, e em face da alarmante extensão
que tomou em nosso tempo a contestação a toda e qualquer preeminência
ou superioridade sócio-econômica, o católico que se opõe a uma linha
de conduta tão nociva ao bem comum, pratica uma opção preferencial simétrica
com a análoga “opção preferencial pelos pobres”. É a “opção
preferencial em favor dos superiores”.
Nada mais errado que entender que entre uma e
outra “opção preferencial” há conflito. Pelo contrário, há
entre elas uma preciosa e insubstituível complementariedade. Pois se,
como ensinou São Pio X condensando o ensinamento de Leão XIII, no corpo
social deve haver “príncipes e vassalos, patrões e proletários,
ricos e pobres, sábios e ignorantes, nobres e plebeus” (Motu
proprio Fin dalla prima de 18 de dezembro de 1903, item III – Coleção
Documentos Pontifícios, Vozes, Petrópolis, 1959, 3ª
ed., vol. 38, p. 23), são validamente complementares todas as opções
preferenciais destinadas a favorecer os organismos sociais combalidos por
fatores nocivos. E quem é preeminente em prestígio, em poder ou em
riqueza, quando injustamente contestado em seus direitos pelos revolucionários,
pode reivindicar o apoio
defensivo dos outros membros do corpo social, pela mesma razão por que o
pode fazer, em favor de seus direitos, o operário autêntico, laborioso e
amante da parcimônia.
Em suma, se na sociedade contemporânea ainda
houvesse uma classe com direitos e encargos jurídicos específicos da
nobreza, poder-se-ia dizer que, conforme as circunstâncias, o verdadeiro
católico deveria dedicar-se, ora à “opção preferencial pelos
pobres”, ora à “opção preferencial pelos nobres”. Foi
aliás, o que ensinou Pio XII em célebres alocuções ao Patriciado e à
Nobreza Romana, quando se ocupou dos resíduos de influência e dos
encargos correspondentes daquela alta categoria na Cidade Eterna[10].
Essas considerações levam a dizer umas poucas
palavras sobre o direito – o sagrado e precioso direito – das classes
laborais, à sua própria dignidade.
Sem dúvida, tal direito importa em condições de
vida capazes de lhes propiciar uma dignidade modesta mas perfeitamente autêntica.
Exemplos incontáveis desta dignidade se encontram nas tradições da
classe operária em muitas épocas da História. E jamais alguma instituição
zelou tanto por essa dignidade quanto a Igreja. E nenhuma ordem de coisas
tanto a favoreceu quanto a civilização cristã.
E nem poderia ser de outra maneira. Pois o católico,
contemplando devotamente a Sagrada Família, não pode deixar de ter a
alma e o coração transidos de emoção ante a excelsa dignidade que
aprouve a Deus fazer reluzir no lar operário constituído por Jesus,
Maria e José
[11].
Assim, para o verdadeiro católico não pode
causar a menor surpresa o fato de ser tal a dignidade do trabalhador
manual que, se no vaivém dos infortúnios humanos uma família
principesca cai na condição operária, nem por isso perde desde logo a
dignidade eminente de sua situação originária. A Sagrada Família era
da estirpe real de David, e a Igreja se compraz em o realçar, a ponto que
São José foi proclamado por Leão XIII Patrono dos Príncipes lançados
no infortúnio.
Mas, tudo isto dito, importa assinalar que a
dignidade do operário, como aliás de qualquer homem, não lhe provém
sobretudo das condições de existência, mas de sua íntima consciência
da inalienável grandeza de todo ser humano, máxime quando batizado e
cumpridor fiel da Lei de Deus.
* * *
Fica assim dito o que se afigura como essencial sobre a função social da propriedade, com vistas aos debates e votações a se realizarem em breve na Assembléia Nacional Constituinte.
[1] Madame Roland de la Platière (1754-1793) mantinha um “salão” (local de reunião) freqüentado sobretudo pelos revolucionários moderados (girondinos), e exerceu grande influência política na preparação e no decurso da Revolução Francesa. Ela acabou por ser vítima desta – com muitos correligionários – no período do Terror.
[2] Cfr. Plinio Corrêa de Oliveira, Baldeação ideológica inadvertida e diálogo, Editora Vera Cruz, São Paulo, 1965, pp. 55-59.
[3] Emmanuel Joseph Sieyès (1748-1835). Vigário geral de Chartres, foi sucessivamente membro da Assembléia Nacional Constituinte, em 1789, da Convenção, do Conselho dos Quinhentos, do Diretório e do Consulado. Organizou com Napoleão o golpe de 18 Brumário.
[4] A frase é citada por Chamfort (1741-1794), que possivelmente se inspirou em uma poesia de Diderot (1713-1784) (cfr. Dictionnaire des citations françaises et étrangères, Paris, 1982, pp. 114 e 182).
[5] Discurso de 2 de julho de 1980 aos Bispos do CELAM – Pronunciamentos do Papa no Brasil, Edições Loyola, São Paulo, 1980, 2ª ed., p. 70.
[6] “Deve-se reconhecer como sinal auspicioso a diminuição verificada, desde algum tempo e em certos lugares, na tensão entre as classes sociais. Já o afirmava Nosso Predecessor imediato em discurso aos católicos alemães: ‘A terrível catástrofe que se abateu sobre vós com a última guerra terá comportado ao menos uma vantagem: ela permitiu que muitos ambientes se libertassem dos preconceitos e da preocupação excessiva com as vantagens pessoais, e que assim diminuísse a aspereza da luta de classes e os homens se aproximassem uns dos outros. A desgraça comum é mestra dura, mas benfazeja’ (Radiomensagem ao 73º Congresso dos Católicos Alemães, 1949).
“Com
efeito, o afastamento entre as classes sociais
é menor, pois estas não se limitam mais aos dois blocos em
que se opunham capital e trabalho. Agora já são mais variadas e
abertas a todos. O trabalho e o talento permitem subir os degraus da
escala social.
“No que concerne mais diretamente ao mundo do trabalho, é consolador constatar as melhorias recentemente introduzidas nas próprias condições do trabalho e o fato de que não se pensa mais somente nas vantagens econômicas dos operários, mas também em lhes proporcionar um gênero de vida mais elevado e mais digno” (Encíclica Ad Petri Cathedram, de 29 de junho de 1959 – A . A . S ., vol. LI, no. 10, pp. 506-507).
[7] Sobre a crise na Igreja na fase pós-conciliar, cfr. Cardeal Joseph Ratzinger, Rapporto sulla Fede, Edizioni Paoline, Milão, 1985, 218 pp.
[8] Cfr. Congregação para a Doutrina da Fé, Instrução sobre alguns aspectos da “Teologia da Libertação”, 6 de agosto de 1984.
[9] É o que deixou bem claro Pio XII, na já citada Radiomensagem de 14 de setembro de 1952, dirigida ao Katholikentag de Viena: “O direito do indivíduo e da família à propriedade é uma conseqüência imediata da essência da pessoa, um direito da dignidade pessoal, um direito vinculado, é verdade, por deveres sociais; não é porém meramente uma função social” (Discorsi e Radiomessaggi, vol. XIV, p. 314).
[10] Em sua Alocução ao Patriciado e à Nobreza Romana, de 19 de janeiro de 1946, Pio XII afirmou:
“A
sociedade humana não é porventura, ou pelo menos não deveria ser,
semelhante a uma máquina bem ordenada, cujas peças concorrem todas
para um funcionamento harmônico do conjunto? Cada um tem sua função,
cada um deve aplicar-se para um melhor progresso do organismo
social, cujo aperfeiçoamento deve procurar, de acordo com as suas
forças e próprias virtudes, se tem verdadeiro amor ao próximo e
razoavelmente tende para o bem e proveito de todos.
“Ora, que parte vos foi confiada de maneira especial, queridos filhos e filhas? Qual missão vos foi particularmente atribuída? Precisamente aquela de facilitar este desenvolvimento normal; aquilo que na máquina presta e executa o regulador, o volante, o reostato, que participam da atividade comum e recebem a parte que lhes cabe da força motriz para assegurar o movimento de regime do aparelho. Em outros termos, Patriciado e Nobreza, vós representais e continuais a tradição” (Discorsi e Radiomessaggi, vol. VII, p. 340).
E na Alocução de 8 de janeiro de 1947, igualmente dirigida ao Patriciado e à Nobreza romana, Pio XII continua:
“Vossa
missão está, pois, muito longe de ser negativa; ela supõe em vós
muita aplicação, muito trabalho, muita abnegação, e, sobretudo,
muito amor. Não obstante a rápida evolução dos tempos, vossa missão
não perdeu seu valor e não atingiu o seu termo. O que ela também
pede de vós, e que deve ser a característica de vossa educação
tradicional e familiar, é o fino sentimento e a vontade de não vos
prevalecerdes de vossa condição – privilégio hoje em dia muitas
vezes grave e austero – senão para servir.
“Caminhai, pois, com coragem e com humilde altivez rumo ao futuro, queridos filhos e filhas. Vossa função social, nova na forma, é substancialmente a mesma, como nos vossos tempos passados de maior esplendor” (Discorsi e Radiomessaggi, vol. VIII, pp. 370-371).
[11] A propósito, escreveu São Pio X resumindo o pensamento de Leão XIII: “Os pobres ... não se devem envergonhar da indigência, nem desprezar a caridade dos ricos, olhando para Jesus Redentor, que, podendo nascer entre as riquezas, se fez pobre para enobrecer a pobreza e enriquecê-la de méritos incomparáveis para o Céu (Encíclica Rerum Novarum)” (Motu proprio Fin dalla prima de 18 de dezembro de 1903, item X – Coleção Documentos Pontifícios, Vozes, Petrópolis, 1959, 3ª ed., vol. 38, p. 24).