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Plinio Corrêa de Oliveira
Projeto
de Constituição angustia o País
1987 |
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Capítulo V – Também a Reforma Empresarial parece dar seus primeiros
passos
1. Para os trabalhadores,
todas as vantagens possíveis... e ainda algumas mais
O art. 6º do Substitutivo enumera, em
25 incisos e 4 parágrafos, os direitos dos trabalhadores. Mas deixa claro
que essa longa lista não é exaustiva: “Além de outros
– reza o caput do artigo – são direitos dos trabalhadores:
...”. O art. 7º procurou estender quanto
possível, aos empregados domésticos, as vantagens e os privilégios dos
que trabalham em empresas comerciais ou industriais. Assim, gozam eles de
direitos a salário mínimo fixado em lei e irredutível, a décimo
terceiro salário, a repouso semanal remunerado, a férias anuais
remuneradas etc. Sem entrar na análise de cada um dos direitos
relacionados, importa notar certo utopismo do Substitutivo Cabral 2
em todo o Capítulo Dos direitos sociais (arts. 6º a 10º). Com efeito, ele parece muito resolutamente
empenhado em dotar os trabalhadores manuais, urbanos e rurais, com todas
as vantagens que pôde enumerar “et quibusdam aliis”,
fazendo lembrar o célebre “de omni re scibili”, de Pico
della Miranola[1]
. Não parece haver quem fosse insensível à
alegria geral causada pela hipótese – pelo menos algum tanto utópica
– de que todas as empresas, rurais e urbanas de um país e, ademais, os
empregadores de serviços domésticos, tivessem condições de
proporcionar, aos respectivos trabalhadores, todas as vantagens elencadas
pelo Substitutivo Cabral 2. Este, entretanto, no que diz respeito às empresas
industriais e comerciais, não toma em consideração que a condição dos
vários empregadores difere habitualmente segundo as circunstâncias próprias
a cada região, ramo de atividade etc. pelo que não será possível
conceder iguais vantagens a todos os trabalhadores de todas as empresas do
País. Em conseqüência, a lei que disponha sobre essa
matéria deve ter uma flexibilidade correlata com a natural mutabilidade
das condições econômicas dos vários empregadores, segundo os diversos
tempos e lugares. A não ser assim, os dispositivos do art. 6º,
se aplicados do modo rigidamente uniforme que o Substitutivo estabelece,
conduzirão não raras vezes, empresas à falência ou à concordata.
Conforme as circunstâncias econômicas gerais do País, ou de determinado
ramo da indústria ou do comércio, não é difícil que essas concordatas
ou falências se sucedam em cadeia, com o que se chega a situações
catastróficas de desemprego etc. Ora, todo esse texto pré-constitucional, uma vez
convertido em texto constitucional, por isso mesmo será necessariamente
muito difícil de ser alterado ou reformado, e criará situações
concretas incompatíveis com a flexibilidade inerente às condições da
agricultura, mas sobretudo da indústria e do comércio. Em conseqüência, o Capítulo Dos direitos
Sociais, se aprovado, constituirá, para a vida econômica do País, uma
verdadeira “camisa de ferro”, que o torturará e o poderá levar à ruína.
Melhor seria que a matéria fosse disciplinada por lei ordinária. Tudo isto não obstante, é preciso dizer que o
Projeto Cabral em diversos de seus dispositivos era ainda muito mais
radical do que o presente Substitutivo, no conferir direitos aos
trabalhadores. Assegurava-lhes, por exemplo, 30 dias de férias anuais
pagas em dobro (art. cit., XVIII), 40 horas semanais de trabalho, com
proibição de horas extraordinárias, salvo caso de emergência ou força
maior (art. 13, XV, XVII), pelo menos 120 dias de licença remunerada às
gestantes (art. cit., XIX) etc. O Substitutivo Cabral 2 representa, pois,
como já o fazia o Substitutivo 1 antes dele, um recuo em relação
ao Projeto Cabral. Recuo que bem pode ser meramente tático: uma
vez adormecidas e desmobilizadas as possíveis reações da classe
patronal, que impedirá que essas medidas, e outras quiçá ainda mais
avançadas, voltem a ser propostas? De qualquer forma, fica bem claro para que rumo o Substitutivo
Cabral 2 quer encaminhar a empresa: uma hipertrofia, em marcha
ascensional, dos direitos dos empregados, paralelamente a uma sobrecarga
também ascensional, dos deveres dos patrões. Até onde levará tudo isso? até o rompimento do
equilíbrio, já tão precário, entre o capital e o trabalho, com dano
progressivo do capital, até a extinção total deste? 2. Utopismo em relação aos
empregados domésticos
No que diz respeito ao art. 7º, parece
que os responsáveis pela elaboração do Substitutivo Cabral 2 só
tiveram em vista, ao redigi-lo, patrões (ou patroas) opulentos,
residentes em casas apalaciadas, servidos por numerosos empregados domésticos,
em geral altamente estilados, trajando librés ou uniformes de
serviço de elevado padrão, etc. Em função desse quadro, as medidas
enumeradas pelo art. 7º seriam exeqüíveis. Porém, está muito longe de ser apenas esta a
realidade, que o Substitutivo Cabral 2
- sempre utopista – é propenso a não tomar em conta em todos os
seus matizes. Com o que, precisamente, ele se evade do concreto, do
positivo, por vezes até do terra-a-terra. Pois nas cogitações sem
matizes a verdade perece. Atribui-se a Talleyrand a sutil afirmação de
que a verdade está nos matizes. Ainda há na classe trabalhadora pessoas às quais
não agrada trabalhar em empresas industriais ou comerciais: é um direito
dela preferir a esses ambientes o residencial, próprio aos empregados domésticos. Entre tais pessoas, muitas há que nem estão em
condições de aprender o serviço doméstico de alto padrão e preferem,
por isso, trabalhar para famílias de padrão social e econômico menor.
Mais uma vez, é direito de tais pessoas optar nesse sentido. Em conseqüência, não poucos casos há em que o
desnível entre o empregado doméstico e o seu empregador chega a ser
pequeno, pela carência de aptidões do primeiro e de recursos econômicos
do segundo. Em compensação, a única empregada da casa acaba por se
tornar não raras vezes amiga íntima da família, participando da vida
desta mais ou menos como se fosse uma parente. E ajudando com exemplar
dedicação a patroa, ou o patrão, ou algum parente necessitado de
especial ajuda. Reciprocamente, a família sói fazer então suas todas as
necessidades da empregada. É este o legítimo e louvável modo de ser da
relação empregador-empregado [2].
Surge ele, hoje em dia, mais freqüentemente (ou menos raramente...) nos
lares de padrão sócio-econômico pequeno ou médio. Mas por vezes se
forma também em lares de padrão sócio-econômico alto. Ora, relações como esta, corta-as, suprime-as,
torna-as inviáveis na vida do lar o art. 7º, já que muitas
famílias não dispõem dos recursos necessários para atender as múltiplas
exigências do Substitutivo a tal respeito. O utopismo é habitualmente desajeitado e oneroso.
Mesmo quando quer beneficiar, pode deformar, prejudicar e até destruir. “Patrão” e “patroa” são designações
estupidamente qualificadas de humilhantes pelo igualitarismo invasor de
nossos dias. Porém a sua etimologia lhes indica o sentido exato[3]. Mais humilhante ainda é tida a palavra
“criado”, a qual entretanto indica a vinculação afetiva do
trabalhador doméstico ao lar em que vive e labuta, pois designa quem foi,
ou é tido como se fosse, criado na própria casa em que trabalha e de
algum modo é filho da casa[4]. A esses termos, carregados de elevado sentido
moral e afetivo, e consagrados por uma longa tradição, a linguagem
corrente vem preferindo cada vez mais os termos glaciais, de sentido
meramente funcional e econômico, “empregador”, “empregadora” e
“empregado”. Degenerescência de linguagem? Sem dúvida, porém não só
isso, mas também degenerescência, olvido ou rejeição dos costumes –
e portanto do vocabulário típico – da civilização cristã, segundo a
qual a nota familiar das relações nascidas do trabalho doméstico, como
do ensino e de outras condições de vida, nobilitava tais relações, por
mais corriqueiras que fossem. O que não surpreende em uma época em que
à própria palavra “paternalismo” se conseguiu instilar um
significado duramente pejorativo, e a relação pai-filho se vai
evanescendo com a equiparação da esposa legítima a qualquer “companheira”,
e dos filhos legítimos aos havidos fora do matrimônio (cfr. Parte IV,
Cap. I, 4). 3. A participação obrigatória
nos lucros e na gestão da empresa
Da longa – e entretanto não exaustiva –
enumeração dos direitos dos trabalhadores, cabe destacar o inciso IX do
art. 6º: “Art. 6º - Além de outros, são
direitos dos trabalhadores: ... “IX – participação nos lucros,
desvinculada da remuneração, e na gestão da empresa, conforme definido
em lei ou em negociação coletiva”. A participação dos empregados nos lucros das
empresas é, de si, legítima. Porém, não é a única forma justa de
retribuir adequadamente o trabalhador. Com efeito, o mero regime salarial é
intrinsecamente legítimo, pois é decorrência do instituto da
propriedade privada, como da livre iniciativa. Assim sendo, é fácil ver
que o proprietário (da empresa rural ou urbana, seja esta última
indiferentemente industrial ou comercial), quando aceita alguém para
trabalhar, se beneficia com isso. E o modo de retribuir tal benefício
pode consistir muito naturalmente em um salário justo e condigno. Os comunistas e os socialistas, que negam o
direito de propriedade e a livre iniciativa, são coerentes consigo mesmos
quando combatem o salário. Pois, segundo eles, a relação
empregador-empregado é mera conjugação associativa entre uma função
principalmente diretiva e outra principalmente executiva. Assim, para
eles, empregador e empregado são reciprocamente sócios e participam, a
igual título, não só da sociedade como dos lucros que ela produza, mercê
do trabalho de ambas as partes. Por isto também, uns e outros –
empregadores e empregados – têm idênticos direitos à gestão em
comum, da empresa na qual atuam. Disto decorre, ainda, que o contrato do salariado
– o qual, conforme a livre iniciativa de cada parte, empregador e
empregado podem válida e licitamente estabelecer – se afigura
incongruente com a verdadeira natureza do trabalho, aos socialistas como
aos comunistas[5]. O fato de ser justo em tese o regime de salariado
não significa, naturalmente, que não possa haver e que não tenha havido
– por vezes até com condenável freqüência – injustiças concretas
em sua aplicação. Mas cabe aos moralistas como aos legisladores
impedir tais injustiças. É o que fez, no tocante ao Supremo Magistério
Eclesiástico, o Papa Pio XI, ao definir as condições necessárias para
que o regime do salariado não lese a justiça. Uma vez que todo trabalhador tem direito à vida,
o salário deve em todos os
casos corresponder ao valor mínimo necessário para tal. De outro
lado, sendo o salário a contrapartida do trabalho, quanto mais valha este
do ponto de vista qualitativo ou quantitativo, proporcionadamente maior
deve ser o salário. É condição essencial para que ele possa ser
qualificado de salário justo. Dado caber ao assalariado o direito
a constituir família, e consequentemente a criar e educar seus filhos,
para as despesas daí decorrentes deve bastar o salário. Assim, este deve
ser um salário familiar. Como é óbvio, a vida de família normal exige
que a esposa possa viver no lar, entregue a cuidar de seus filhos e a
realizar as tarefas domésticas. Como também é indispensável que os
filhos devam ficar no lar até o momento em que atinjam a idade própria
para o trabalho. E tudo isto deve ser proporcionado pelo salário
familiar, não apenas em medida estritíssima, porém na medida exigida
pela própria dignidade do lar e das pessoas que o integram (cfr. Pio XI,
Encíclica Quadragesimo Anno, Coleção Documentos Pontifícios, Vozes,
Petrópolis, 1959, 5ª ed. Vol. 3, pp. 28-30). Assim sendo, a doutrina católica afirma a
liceidade do regime do salariado e nega que constitua obrigação de justiça
a participação compulsória dos empregados nos lucros e na propriedade
da empresa, como tampouco em sua gestão [6]. De fato, a participação dos trabalhadores nos
lucros, na propriedade e na gestão da empresa, oferecerá vantagens em
alguns casos, e também inconvenientes em outros. A lei não pode, pois,
impor qualquer destas formas de participação. Aliás, como poderia o Estado, sem indenização,
ou mesmo com ela, impor a participação de terceiros em bens que não lhe
pertencem? E como poderia impor ao proprietário uma sociedade em que o
operário participa nos lucros e até na gestão da empresa, mas ao mesmo
tempo não se deve nem se pode querer que este – cuja situação econômica
habitualmente não comporta tal – participe dos riscos e prejuízos? O Substitutivo exorbita, portanto, do direito, ao
tornar obrigatória a participação dos empregados nos lucros e na gestão
da empresa. 4. Direito de greve sem necessárias
ressalvas
Outro tópico em que se pode notar como o Substitutivo
Cabral 2 favorece
unilateralmente os trabalhadores, em prejuízo da ordem social, é o que
diz respeito a greves. O art. 10 declara “livre a greve, vedada a
iniciativa patronal, competindo aos trabalhadores decidir sobre a
oportunidade e o âmbito de interesses que deverão por meio dela
defender”. Note-se, de início, que os empregados podem fazer
a greve sem qualquer restrição, ao contrário da Constituição vigente,
que assegura aos trabalhadores o direito de greve (art. 165, XXI), mas proíbe
que ela se faça “nos serviços públicos e atividades essenciais,
definidas em lei”(art. 162). Essa importante ressalva é ignorada pelo
Substitutivo, que se limita a acrescentar ao art. 10, os parágrafos
seguintes: “§ 1º - Na hipótese de
greve, serão adotadas providências pelas entidades sindicais que
garantam a manutenção dos serviços indispensáveis ao atendimento
das necessidades inadiáveis da comunidade. “§ 2º - Os abusos
cometidos sujeitam seus responsáveis às penas da lei”. São de todo insuficientes essas garantias. Pois há
paralisações coletivas de trabalho insuscetíveis de serem remediadas
por improvisações “que garantam a manutenção dos serviços
indispensáveis”. E algumas são tão gravemente lesivas dos
direitos humanos que tomam necessariamente caráter calamitoso. Assim, por
exemplo, a paralisação de serviço em um hospital, que deixe
desassistidos, e em necessidades graves, doentes que ali se encontrem. Ou
a suspensão de certos serviço públicos, da qual podem decorrer danos
irreparáveis ao patrimônio ou até à vida de terceiros. E, para prevenir essas eventualidades, que muitas
vezes será difícil ou impossível fazer cessar, não basta a advertência
diáfana, de tão genérica e vaga, de que “os abusos cometidos
sujeitam seus responsáveis às penas da lei”. O Substitutivo Cabral 2, tão cioso de
promover o cumprimento da função social da propriedade,
parece não tomar na menor consideração a função social do trabalho,
que também a tem. O que constitui traço a mais revelador da propensão
dele, menos para promover a função social de todos os direitos –
inclusive do direito à vida – do que para usar da função social da
propriedade como pinça para, a todo propósito, beliscar ou
conforme o caso mutilar o direito de propriedade e a iniciativa
individual. É de notar também que o art. 10 do Substitutivo
Cabral 2 não deixou de prever uma hipótese, e de cortar-lhe o passo:
o lockout. Essa forma peculiar de greve, própria aos patrões, está
proibida: “vedada a iniciativa patronal” – diz o caput
do art. 10. Pelo menos não se vê que outra interpretação dar a essas
palavras confusas. Unilateralmente, pois, o Substitutivo concede aos
trabalhadores um direito e não reconhece a reciprocidade do mesmo aos
seus patrões. 5. Utopismo autogestionário:
meta última do Substitutivo?
Mais uma vez, volta-se à pergunta: até onde
levará tudo isso? de tanto apoucar o papel do capital, e tanto exalçar o
do trabalho, forçosamente se há de romper o equilíbrio da balança. O Substitutivo
Cabral 2 pretende assegurar o direito de participação dos empregados
no lucro e na gestão da empresa (art. 6º, IX). Exigirá a lógica
das coisas que essa participação seja cada vez maior, e que passem a
mandar prevalentemente os empregados. Os postos de direção não poderão
mais ser ocupados pelos meros proprietários da empresa, ou
por delegados destes. Mas, em parte que obviamente será crescente,
tocarão também aos próprios empregados em autogestão. Trata-se de
democratizar a empresa [7]. A autogestão constitui a implantação, no âmbito
da empresa, e portanto em miniatura, dos princípios e da forma de governo
da Revolução de 1789. Para o socialismo autogestionário há, nas relações
patrão-assalariado, uma imagem residual das relações rei-povo. Ele quer
“destronar” o “rei”, extinguir-lhe a “soberania” na empresa, e
transferir todo o mando ao nível da “plebe” empresarial, isto é, os
assalariados. Mais especialmente aos trabalhadores manuais. À maneira de uma república democrática, cada
empresa, regida em suprema instância pelo sufrágio universal dos
trabalhadores, terá suas assembléias laborais para receber informações
sobre o curso de todas as coisas a ela atinentes, terá suas eleições de
“representantes”, ou seja, “deputados”, os quais constituirão um
comitê diretivo (mais ou menos um soviet), e este, por sua vez,
terá como meros executores de sua vontade os empregados-diretores[8]. Esse regime a si próprio se define adequadamente
como autogestionário. Ele se afirma como o lógico desdobramento,
no campo sócio-econômico, do que é a soberania popular no campo político.
Uma república seria uma nação politicamente autogestionária. Um regime
autogestionário importaria na “republicanização” da estrutura sócio-econômica.
Ou seja, na implantação de um regime empresarial no qual a direção dos
proprietários – bem como dos especialistas e dos técnicos designados
por estes – é sujeita a assembléias e órgãos nos quais preponderam
membros do corpo social de menor desenvolvimento intelectual. Essa é a meta última que visam os partidários
da Reforma Empresarial. É para ela que parecem tender muitos tópicos do Substitutivo
Cabral 2. [1] Giovanni Pico della Mirandola, erudito italiano do século XV, tomou como divisa a frase “De omni re scibili” (“De todas as coisas conhecíveis”), porque se pretendia capaz de discorrer sobre todos os assuntos abarcáveis pelo intelecto humano. A essa orgulhosa divisa, acrescentou um gracejador: “et quibusdam aliis” (“e ainda algumas mais”). [2] Segundo a doutrina católica tradicional, o empregado deve ser tido como elemento de algum modo participante do próprio lar. “Se tens um servo fiel, que ele seja para ti como a tua alma, e trata-o como a um irmão” lê-se no Eclesiástico (33,31). E o Apóstolo São Paulo, adverte: “Se alguém não tem cuidado dos seus, principalmente dos da sua casa, negou a fé e é pior que um infiel” (1 Tim. 5, 8). Essas frases da Escritura são lembradas pelos moralistas católicos tradicionais quando tratam dos deveres dos patrões em relação a seus empregados (cfr. por exemplo, Aertnys – Damen C. SS. R., Theologia Moralis secundum doctrinam S. Alfonsi de Ligorio Doct. Ecclesiae, Marietti, Turim, 1950, 16ª ed., vol. I, p. 447). [3] Patrão provém do latim patronus – que significa patrono, defensor, advogado, protetor – e mais remotamente provêm de pater, ou seja, pai (cfr. Antônio Geraldo da Cunha, Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1982, 1ª ed., 2ª impressão, pp. 571 e 587). [4] Originalmente, designava “todo aquele que fora criado na casa ou companhia de alguém, sem mais salário, nem obrigações de servir, que a que correspondia aos da sua classe ou qualidade social” (R. F. Mansur Guérios, Dicionário de Etimologias da Língua Portuguesa, Companhia Editora Nacional / Editora da Universidade Federal do Paraná, São Paulo / Curitiba, 1979, p. 65). [5] Pelo contrário, segundo a doutrina católica, o regime do salariado é justo em si, de acordo com o ensinamento do Papa Pio XI na célebre encíclica Quadragesimo Anno, de 15 de maio de 1931: “Os que dizem ser de sua natureza injusto o contrato de trabalho e pretendem substituí-lo por um contrato de sociedade, dizem um absurdo e caluniam malignamente o Nosso Predecessor (Leão XIII) que na Encíclica Rerum Novarum não só admite a legitimidade do salário, mas procura regulá-lo segundo as leis da justiça. ... Erram certamente os que não receiam enunciar este princípio, que tanto vale o trabalho e tanto deve ser a paga, quanto é o valor do que se produz; e que por isso na locação do próprio trabalho tem o operário direito de exigir para si tudo o que produzir”(Coleção Documentos Pontifícios, Vozes, Petrópolis, 1959, 5ª ed., vol. 3, p. 27). [6] É o que Pio XII ensinou: “Não se estaria tampouco na verdade querendo afirmar que toda empresa particular é por natureza uma sociedade, na qual as relações entre os participantes sejam determinados pelas regras da justiça distributiva, de sorte que todos indistintamente – proprietários ou não dos meios de produção – teriam direito à sua parte na propriedade ou pelo menos nos lucros da empresa. Tal concepção parte da hipótese de que toda empresa entra por natureza na esfera do direito público. Hipótese inexata: quer seja a empresa constituída sob forma de fundação ou de associação de todos os operários como coproprietários, quer seja propriedade privada de um indivíduo que firma com todos os seus operários um contrato de trabalho, num caso como no outro, ela depende da ordem jurídica privada da vida econômica” (Discurso de 7 de maio de 1949 à IX Conferência da União Internacional das Associações Patronais Católicas – Discorsi e Radiomessaggi, vol. XI, p. 63). Em outra ocasião, declarou o mesmo Pontífice: “Por isso a doutrina social católica se pronuncia, entre outras questões, tão conscientemente pelo direito de propriedade individual. Aqui estão também os motivos profundos por que os Papas das Encíclicas sociais, e Nós mesmo, Nos recusamos a deduzir, quer direta, quer indiretamente, da natureza do contrato de trabalho o direito de co-propriedade do operário no capital da empresa e, consequentemente, seu direito de co-gestão. Importava em negar tal direito, pois por trás dele se enuncia um problema maior. O direito do indivíduo e da família à propriedade é uma conseqüência imediata da essência da pessoa, um direito da dignidade pessoal, um direito vinculado, é verdade, por deveres sociais; não é porém meramente uma função social” (Radiomensagem ao Katholikentag de Viena, de 14 de setembro de 1952 – Discorsi e Radiomessaggi, vol. XIV, p. 314). [7] É o que explica o socialista Pierre Mauroy, que chefiou o primeiro gabinete de Mitterand logo após a ascensão deste ao poder, em 1981: “Em nossas sociedades ocidentais, a democracia é mais ou menos tolerada por toda parte. Menos na empresa. O patrão, seja ele um industrial independente ou um alto funcionário do Estado, conserva em mãos os poderes essenciais. Em detrimento de todos. ... A empresa é uma monarquia de estrutura piramidal. Em cada nível, o representante da hierarquia é todo-poderoso: suas decisões são inapeláveis. O trabalhador de base torna-se um homem sem poderes, que não tem direito nem à iniciativa nem à palavra” (Pierre Mauroy, Héritiers de l’Avenir, Stock, Paris, 1977, p. 276). [8] A aplicação disso a empresas de comunicação social – imprensa, rádio, televisão – colocaria nas mãos dos trabalhadores manuais ou dos funcionários meramente administrativos, que constituem o bloco majoritário, a decisão sobre toda a orientação do órgão, quer política, quer moral, quer cultural. Ora, também a sucessão monárquico-hereditária nessas empresas, com a formação de dinastias com influência privilegiada nos destinos do país, colide a fundo com a igualdade absoluta. Que é um diretor de uma grande cadeia de órgãos de comunicação social (garantido com todas as franquias de liberdade de opinião etc.) ante o Poder Público, senão o que eram, face aos monarcas feudais, os grandes senhores feudatários? |