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Plinio Corrêa de Oliveira
Projeto
de Constituição angustia o País
1987 |
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Capítulo II – A propriedade privada e a livre iniciativa sob o rolo
compressor do intervencionismo estatal
1. A doutrina católica sobre
o direito de propriedade
A propriedade privada constitui elemento necessário
da ordem natural criada por Deus. Firma-se ela no 7º e no 10º
Mandamento do Decálogo: “Não furtarás” e “Não cobiçarás
as coisas alheias”. O direito de propriedade privada confere ao
homem a faculdade de se apoderar legitimamente da coisa não possuída,
que é naturalmente do primeiro ocupante. Não é só a ocupação, porém, que confere ao
homem o direito de propriedade. Também do trabalho decorre esse direito.
Naturalmente dono de si mesmo, o trabalhador é ipso facto dono do
que sua inteligência ou seus braços produzem, e tem direito a uma
compensação proporcionada, em razão do acréscimo de valor que seu
trabalho produza quando aplicado ao bem de terceiros. Esse direito de propriedade não pode ser extinto
por ação do Estado, pois não é concessão do Estado. Ele provém, como
acima foi dito, da ordem natural das coisas criada por Deus, a qual é
anterior ao Estado, e da qual o próprio Estado deriva. A desapropriação é legítima quando o bem comum
a exige. Por exemplo, a desapropriação de uma faixa de terra necessária
para que nela passe uma via pública indispensável para o tráfego. Mas,
em tal caso, a desapropriação deve normalmente ser feita mediante o
pagamento prévio e integral, pelo poder expropriante, do justo valor do
imóvel expropriado. O que se mede habitualmente pelo valor de venda do
mesmo. O direito de propriedade inclui o direito de
alienar o bem. Isto é, de o doar ou vender. E, como o filho é carne da
carne e sangue do sangue de seus pais, é maximamente direito destes doar
seus bens aos filhos. Ou de os deixar a estes por sucessão hereditária. 2. Livre iniciativa: direito
do homem, a usar, em favor de si mesmo, a inteligência, a vontade e a
sensibilidade próprias
Tanto se fala, em nossos dias, da liberdade
individual, conseqüência natural da condição de ente dotado de alma e
corpo, de inteligência, vontade e sensibilidade, como é o homem. Infelizmente, o zelo por essa liberdade se aplica
cada vez mais em restringir o poder do Estado na repressão da
imoralidade, do vício e do crime. Vivemos, por exemplo, na era da
anarquia penitenciária, do que fatos ocorridos recentemente no Brasil dão
exemplos consternadores. Porém, os zelotas da
liberdade dão cada vez menos mostras de seu empenho em defender as legítimas
liberdades do homem de bem contra essa ação do Estado, ora invasora
quase até as raias do totalitarismo, ora omissa quase até as raias da
anarquia. Assim, a proibição de uma peça de teatro imoral pode dar
ocasião a que se desencadeie contra um governo um verdadeiro estrondo
publicitário. E a eventual atuação da polícia contra piquetes
grevistas pode ocasionar análogo efeito. Tudo em nome da liberdade. De maneira que propagar no palco o vício ou o
crime seria um “direito humano”. Usar de violência para impedir
colegas que trabalhem honestamente no sustento do lar, também seria um
“direito humano”. Ora, a liberdade do homem consiste
essencialmente no direito de fazer o bem. Por disposição divina, o homem tem necessidades
a enfrentar nesta vida, mas ao mesmo tempo é dotado de recursos para
prover a essas necessidades. Os problemas de cada homem devem ser
resolvidos antes de tudo por ele mesmo, isto é, com a utilização de
seus dotes de corpo e muito principalmente dos de alma. O direito de
utilizar em favor de si mesmo sua própria inteligência, sua própria
vontade, os recursos de sua própria sensibilidade – nisto consiste a
livre iniciativa. Negá-la, mutilá-la, criar-lhe entraves usurpatórios,
é tratar o homem parcial ou
inteiramente como coisa, como objeto inanimado. 3. No Projeto de Constituição,
a corrosão de um direito que o Estado “assegura e protege”
O Substitutivo Cabral 2 principia o § 35 do art.
5º com a afirmação – à primeira vista tranquilizadora –
de que “a propriedade privada é assegurada e protegida pelo
Estado”. Entretanto, uma análise mais
detida desse parágrafo mostra que o Substitutivo na realidade corrói,
das mais variadas formas, a propriedade privada, como também a livre
iniciativa. Com efeito, reza esse parágrafo: “§ 35 –
A propriedade privada é assegurada e protegida pelo Estado. O exercício
do direito de propriedade subordina-se ao bem-estar da sociedade,
à conservação dos recursos naturais e à proteção do
meio-ambiente. A lei estabelecerá o procedimento para desapropriação
por necessidade ou utilidade pública ou por interesse social, mediante
justa indenização. Em caso de perigo público iminente, as
autoridades competentes poderão usar propriedade particular, assegurada
ao proprietário indenização ulterior, se houver dano decorrente desse
uso”. Como se vê, logo depois da frase tranquilizadora
inicial do § 35, vem outra que não inclui o direito de propriedade, mas
apenas o exercício desse direito. Porém, tal exercício está mencionado
sem qualquer ressalva acautelatória dele. E, pois, pode estar
integralmente sujeito às restrições do assim chamado “bem-estar da
sociedade”. Ora, o Substitutivo Cabral 2 não define o
que seja “bem-estar da sociedade”. O sentido corrente
dessa expressão – e mesmo o sentido que ela tem em Economia – é tão
amplo e elástico que quase não se vê que direito possa não estar
abrangido por ela. Tanto mais que o direito de propriedade, sobre o qual
versa o dispositivo em foco, não concerne tão-só a propriedade imobiliária,
mas ainda qualquer outro tipo de propriedade, por exemplo a empresarial, a
da produção artística, literária ou científica etc. Todos esses gêneros
de bens, e outros ainda, ficam sujeitos irrestritamente à ação
expropriatória da lei ordinária, contra cujas demasias é missão da lei
Constitucional proteger o cidadão, não menos do que contra as demasias
de particulares. É desnecessário acrescentar que a “subordinação”
da qual trata o presente dispositivo também é mencionada sem qualquer
qualificação restritiva. De sorte que pode chegar até à desapropriação. Qual tipo de desapropriação? A que é realizada
mediante pagamento de preço justo, feito previamente, e em dinheiro? Ou a
desapropriação socialista e confiscatória, característica da Reforma
Agrária vigente? O Substitutivo fala só, laconicamente, que a
desapropriação se fará “mediante justa indenização”. “Justa” segundo os critérios
reformistas, já se vê... A amplitude do campo abrangido pelo presente parágrafo
se apresenta ainda mais vasta se se considerar a imensidade do número de
hipóteses naturalmente incluídas nas muito elásticas metas de “conservação
dos recursos naturais” e “proteção do meio-ambiente”. De pouco ou nada vale um direito de propriedade
cujo exercício sofra tais limitações. * * * Também no art. 191 podem
parecer, ao leitor menos atento, perfeitamente “asseguradas e
protegidas” a propriedade privada e a livre
iniciativa. Mas uma leitura mais detida permite vislumbrar
elementos corrosivos desses direitos fundamentais. “Art. 191 – A ordem econômica,
fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por
fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça
social e os seguintes princípios: .... “II – propriedade privada; III – função social da propriedade; IV – livre concorrência...” A propriedade privada, referida no inciso II, é
um dos princípios que modelam as finalidades a serem obtidas pela “ordem
econômica” sobre a qual dispõe esse artigo. Mas – note-se
– ela não é considerada um dos fundamentos da atual ordem econômica.
A livre iniciativa, sim, é reconhecida aqui como um dos pilares desta
ordem. Esta diferenciação de níveis entre a livre
iniciativa e a propriedade privada não tem o menor fundamento. Pois ambas
são de tal maneira geminadas entre si, que a aludida diferenciação
apenas exprime a antipatia do Substitutivo Cabral 2 para com a
propriedade privada. Essa matização discriminatória, que avantaja
subtilmente a livre iniciativa com algum detrimento para a propriedade
privada, deixa entrever certa influência da doutrina marxista. Pois a
livre iniciativa é considerada aqui enquanto trabalho, ao passo que a
propriedade é vista enquanto tal, nesse dispositivo e em alguns outros.
Ou seja, ela é considerada abstração feita da circunstância de estar
ou não estar sendo aproveitada. Ora, enquanto o marxismo
reconhece um tal ou qual direito do indivíduo a uma tal ou qual remuneração
em conseqüência do trabalho que exerça, nega ele do modo mais completo
que a propriedade, só e enquanto tal, dê origem a uma renda legítima. Também chama a atenção que figurem em pé de
igualdade, na enumeração deste artigo, a propriedade privada
(inciso II) e sua função
social (inciso III). Compreender-se-ia que se falasse em “propriedade
privada com função social”. Contudo, por que tanto destacar a
respectiva função desse mesmo órgão, a ponto de quase tornar antagônicas
ambas as coisas? * * * O Substitutivo Cabral 2 vai mais longe. No
seu art. 200, ele estabelece normas que promoverão a implantação de uma
drástica e radical Reforma Urbana. No Capítulo IV serão analisados mais
detidamente os parágrafos desse importante artigo. Cabe aqui comentar tão-somente
o caput dele: “Art. 200 – O direito de propriedade, que tem função
social, é reconhecido e assegurado, salvo nos casos de desapropriação
pelo Poder Público”. Tomado ao pé da letra, o caput desse
artigo afirma que, “nos casos de desapropriação pelo Poder Público”
o direito de propriedade não é “reconhecido”, nem é
“assegurado”. Ou seja, cabe ao Poder Público eliminar
pura e simplesmente o direito de propriedade “nos casos de
desapropriação” definidos pelo mesmo Poder Público. É de se notar que, abstração feita dos parágrafos
que lhe seguem, a redação desse caput não concerne apenas o
direito de propriedade que recaia especificamente sobre bens imóveis
urbanos, mas o direito de propriedade in genere, quaisquer que
sejam os bens móveis ou imóveis sobre os quais incida. Em conseqüência, o patrimônio de todos os
particulares pode ser fulminado por um decreto de desapropriação que
extinga de imediato, não só o direito de propriedade destes ou daqueles
indivíduos sobre esses ou aqueles bens, mas o próprio instituto da
propriedade privada. É precisamente assim que o comunismo tem sido
instaurado nos desditosos países que, por efeito de revoluções ou
guerras, caíram no regime marxista. Segundo essa concepção, o Estado é o
dispensador de todos os direitos. E ipso facto lhe cabe
extingui-los quando o entenda. É o totalitarismo econômico, cuja vigência
torna risível imaginar compatível com qualquer espécie de liberdades
políticas. Em outros termos, o Substitutivo Cabral 2,
tão cioso da democracia política, cria uma situação sócio-econômica
que a torna radicalmente impossível. A prevalecer esse artigo nas votações da
Constituinte, a Abertura terá conduzido à implantação de uma
democracia suicida. 4. A livre iniciativa e o
princípio de subsidiariedade
O Substitutivo Cabral 2 dedica todo o seu Título
VII ao tratamento Da Ordem Econômica e Financeira. Esse título,
divide-se em três capítulos: I – Dos princípios gerais de intervenção
do Estado, do regime de propriedade do subsolo e da atividade econômica
(arts. 191-208); II – Da política agrícola, fundiária e da reforma
agrária (arts. 209 a 220); e III – Do sistema financeiro
nacional (art. 221). Seria indispensável que um artigo desse Título
VII coibisse a tendência exageradamente expansionista do Estado contemporâneo,
definindo o sábio princípio de subsidiariedade, tão consentâneo com o
conjunto da doutrina social católica. Pois, abstração feita desse princípio,
é impossível regular em termos equilibrados o relacionamento entre as
esferas pública e privada, na matéria em questão. A fim de resumir o
mais possível o assunto, basta lembrar que uma sociedade bem ordenada é
constituída pelos seguintes escalões, enumerados aqui em ordem
ascendente: indivíduo – família – Município – Região, Província
ou Estado – Federação. Em vista dessa disposição hierárquica, o princípio
de subsidiariedade afirma que cada escalão deve prover por si mesmo a
tudo quanto possa fazer mediante o aproveitamento inteligente, operoso e
integral de todos os recursos que lhe são próprios. E deve receber
analogamente o apoio do escalão superior, em tudo quanto lhe seja impossível
prover por si mesmo. Assim, nos casos em que o
homem se encontre legitimamente impedido de prover por si às próprias
necessidades, é natural que ele recorra à ação supletiva do grupo
social que lhe é mais próximo, ou seja, a família. Quando a ação subsidiária da família se
verifica legitimamente insuficiente, pode o homem recorrer ao Município. Na eventualidade de, mesmo então, não encontrar
ele a ajuda necessária, está o homem no direito de recorrer, também
subsidiariamente, à ação dos grupos superiores, e assim por diante. O princípio de subsidiariedade, assim
descrito, embora com o caráter algum tanto hirto das exposições esquemáticas,
situa a livre iniciativa no âmago de um conjunto de círculos concêntricos
sucessivamente destinados a ajudá-la. É ela exatamente o oposto do coletivismo, que se
propõe estancá-la. O escalão superior deve sempre exercer duas ações
simultâneas: uma no seu próprio âmbito, e para o seu próprio bem, e
outra – subsidiária – no âmbito do elo inferior e para o bem
deste. Tal é a subsidiariedade vista no sentido ascendente. Mas a mesma subsidiariedade também pode
ser vista no sentido descendente. De alto a baixo dessa hierarquia,
o escalão superior deve providenciar quanto lhe seja possível para
atender suas próprias necessidades. Mas deve ser ajudado pelo escalão
inferior na medida do necessário. Esta é a outra perspectiva da subsidiariedade. Tal doutrina pressupõe que haja uma esfera própria
para cada escalão – o que é óbvio – e que cada escalão deva
primordialmente consagrar-se à sua esfera própria, sem jamais ficar aquém
ou além dos limites desta. O que não é menos óbvio. Também óbvio é que nenhum desses escalões pode
subsistir só por si. Pois a auto-suficiência absoluta importa na dissolução
do vínculo que concatena esse escalão com os demais. Pelo que foi dito, vê-se que
há, na ordem natural, esferas específicas, para a ação dos indivíduos
e do Estado. E cada qual só deve agir fora da própria esfera
subsidiariamente à outra. Assim, o Estado só deve intervir na esfera
privada nos pontos em que esta seja impotente para atender o próprio bem[1]
. E vice-versa. Mais ainda. O escalão que proporcione a outro o
apoio de que este necessita não deve considerar essa conquista como uma
dominação vantajosa que se trata de prolongar o mais possível. A ajuda
subsidiária não é uma vantagem mas um ônus e um serviço.
E quem age subsidiariamente deve empenhar-se em que o ajudado recupere o quanto
antes a normalidade suficiente para que essa ajuda cesse, sempre que,
pela ordem natural das coisas, ela não for definitiva. Em termos mais concretos, um
Estado que ajude uma grande empresa a não ir a falência não deve
exercer sua ação subsidiária de maneira a conservar para todo o sempre,
em mãos do Poder Público, a direção desta última. Pelo contrário, deve ele fazer o possível para
que a empresa assistida recupere tão logo condições para viver
novamente por si mesma. Analogamente, o Estado só deve cobrar os tributos
necessários para se manter. E os particulares devem ajudar o Estado de
sorte que, se ele tiver que ampliar os impostos para atender dificuldades
extraordinárias ele possa reintegrar quanto antes a situação
normal à míngua da qual fora obrigado a lançar os ditos impostos
extraordinários. Este princípio, uma vez arvorado em norma
constitucional, tornaria muito mais harmônica a inter-relação indivíduos
– famílias – Município – Região, Província ou Estado – Federação: Cabe ainda uma palavra sobre a presença da família,
nesta vasta interarticulação hierárquica. Pertence ela à esfera privada. Porém suas relações
com o indivíduo e com o Município também devem ser reguladas pelo princípio
de subsidiariedade, e é tão fácil perceber como essa ação
reguladora seria exercida nesse campo que não é necessário entrar aqui
em pormenores. Quando não se respeite esse
luminoso princípio, o Estado coletivista impede toda iniciativa
individual, suprime a família e os demais grupos intermediários entre
ele e o indivíduo, e enfeixa tudo nas mãos do Poder Público, dotado,
para dominar a cada qual, do cetro da Propaganda monopolizada, e da terrível
chibata da perseguição policial. E que pode, ademais, servir-se de seus
recursos financeiros e das medidas econômicas que adote, como
instrumentos de persuasão e pressão sobre os indivíduos. 5. A tendência estatizante do
Substitutivo Cabral
Lamentavelmente, o princípio de subsidiariedade não
é definido pelo Substitutivo Cabral 2. É verdade que o art. 194 parece restringir o
campo de ação do Estado, em favor da iniciativa privada: “Art. 194
– A intervenção do Estado no domínio econômico e o monopólio só
serão permitidos quando necessários para atender aos imperativos
da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme
definidos em lei”. A redação deste artigo, porém, se esquiva de
afirmar o princípio de que essa intervenção só é legítima quando não
haja outro modo de atender aos dois objetivos especificados imediatamente
a seguir. Em conseqüência, a palavra “necessários”
deveria ser substituída por “indispensáveis”. Seguem-se a esse artigo quatro parágrafos que não
vem ao caso reproduzir aqui. Apenas – note-se – foi omitido um
importante dispositivo que, no Projeto Cabral estava inscrito no § 1º
do art. 303: “A intervenção ou monopólio cessarão assim que
desaparecerem as razões que o determinaram”. O caráter
necessariamente provisório da interferência do Estado na economia é,
pois, elidido pelo Substitutivo. A Constituição vigente é muito mais taxativa
nesse particular: “Art. 170 – Às empresas
privadas compete, preferencialmente, com o estímulo e o apoio do Estado,
organizar e explorar as atividades econômicas. “ § 1º - Apenas em caráter
suplementar da iniciativa privada o Estado organizará e explorará
diretamente a atividade econômica”. De qualquer forma, se lido à primeira vista, o
caput do art. 194 ainda parece de molde a garantir a iniciativa privada
contra o Estado todo-poderoso. Sem embargo disso, todo o Substitutivo Cabral 2
demonstra uma tendência nitidamente estatalizante, e favorece de todas as
formas a intromissão do Estado em matérias que a reta ordenação das
coisas reservaria para a iniciativa privada, de acordo com o princípio
de subsidiariedade acima exposto (cfr. tópico 4 deste capítulo). Também no que diz respeito à livre iniciativa,
cumpre notar que o Substitutivo a coarcta gravemente, sem embargo de já
ser ela tão prejudicada pelos atentados ao direito de propriedade que
acabam de ser apontados (cfr. tópico 3 deste capítulo). Alargaria por demais os limites deste trabalho
fazer uma análise detida – e mesmo uma simples enumeração – dos
incontáveis tópicos em que o Substitutivo, a um ou outro título,
favorece essa tendência estatalista. É por isso que a seguir serão
mencionados somente uns poucos exemplos de pontos em que essa tendência
se faz notar. Bem entendido, em vários dispositivos, o Substitutivo não
inovou, mas se limitou a incorporar matéria já estabelecida em Constituições
anteriores, ou na legislação ordinária. O que é explicável, uma vez
que a tendência estatizante de há muito se vem insinuando na legislação
brasileira constitucional e na ordinária. E dela não foi isento o regime
militar, embora este se tenha mostrado tão empenhado na repressão
anticomunista. É não obstante lamentável que não se aproveite
a oportunidade única que oferece o fato de estar reunida a Assembléia
Nacional Constituinte, para expungir nossa legislação de todos esses
dispositivos estatizantes que se acumularam nas últimas décadas. Muito pelo contrário, o Substitutivo parece
ignorar que os monopólios estatais têm contra si o depoimento severo da
experiência. A economia inteiramente estatizada nos países de trás da
cortina de ferro se acha num estado escandalosamente inferior à dos países
em que vigem a propriedade privada e a livre iniciativa. E é no próprio
momento em que Gorbatchev proclama a falência do capitalismo de Estado, e
vai desbloqueando suas estruturas organizativas imensas, ineficazes e
geradoras de insatisfação geral – e, no polo oposto, várias nações
da Europa capitalista procedem à reprivatização de setores estatizados
de sua economia – que o Substitutivo Cabral 2 parece aferrar-se a
meter o Brasil nos velhos e enferrujados moldes leninistas-stalinistas. 6. Exemplificando: os recursos
minerais e o potencial de energia hidráulica nas mãos do Estado
O art. 19, inciso VII determina que se incluam
entre os bens da União “os recursos minerais e os potenciais de
energia hidráulica”. No mesmo sentido, o art. 197 declara: “As
jazidas, minas e demais recursos minerais e os potenciais
de energia hidráulica constituem propriedade distinta da do solo,
para efeito de exploração ou aproveitamento industrial e pertencem à
União”. Ora, é abusivo incorporar ao patrimônio da União
todos os “recursos minerais” (sejam eles subjacentes ao
solo ou não), e todos os “potenciais de energia hidráulica”,
ainda que se encontrem em terras pertencentes a particulares. O § 2º do art. 197 assegura ao
proprietário do solo apenas uma “participação nos resultados das
lavras; a lei regulará a forma e o valor da participação”. O Substitutivo Cabral 1 ressalvava que “não
dependerá de autorização ou concessão o aproveitamento do potencial de
energia renovável de capacidade reduzida”(art. 233, § 1º).
No Substitutivo Cabral 2 até essa insuficiente ressalva foi
retirada. Esses dispositivos – que aliás
mantêm em linhas gerais o que já a Constituição de 1967 preceituava
– são de cunho essencialmente socializante. 7. Outro exemplo: assegurado o
monopólio da Petrobrás
O art. 199, reafirma o monopólio da União sobre,
entre outras coisas, “a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e
outros hidrocarbonetos fluidos, gases raros e gás natural, existentes no
território nacional” (inciso I). Desde os anos 40, o monopólio estatal do petróleo
vem sendo tema de amplos debates que não caberia resumir aqui. De
qualquer forma, a responsabilidade da Petrobrás na repercussão interna,
de graves conseqüências sócio-econômicas, que teve a crise petrolífera
internacional, é hoje amplamente reconhecida, e demonstra quanto há de
costumeiramente pesado, desajeitado e ineficaz nas intervenções estatais
em matérias econômicas. 8. Também o monopólio dos
serviços públicos
Outro monopólio que o Substitutivo Cabral 2 quer
atribuído ao Estado é o dos serviços públicos, em todo o País: “Art. 196 – Incumbe ao Estado,
diretamente ou sob o regime de concessão ou permissão, por prazo
determinado e sempre através de concorrência pública, a prestação de
serviços públicos. “Parágrafo Único: - a lei disporá
sobre: “I – o regime das empresas
concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter
especial de seu contrato e de sua prorrogação, e as condições de
caducidade, fiscalização, rescisão e reversão da concessão ou permissão; “II – os direitos dos usuários; “III – tarifas que permitam cobrir o
custo, a remuneração do capital, a depreciação dos equipamentos e o
melhoramento dos serviços; “IV – a obrigatoriedade de manter o
serviço adequado”. O monopólio estatal dos serviços públicos é
inteiramente conforme com o espírito e as doutrinas socialistas. Propondo que se consagre na Constituição mais
este monopólio, o Substitutivo Cabral 2 deposita em mãos
do Estado um fardo terrível. Pois é fácil avaliar a magnitude pré-gorbatcheviana
desses serviços, uma vez que extensivos, globalmente, segundo o
substitutivo, a todo o território nacional, dentro do qual a população
se acha em constante expansão. Além de profundamente objetável do ponto de
vista doutrinário, esse monopólio terá como conseqüência forçosa uma
queda na qualidade dos serviços prestados à população. Pois é do
conhecimento geral que, invariavelmente, o Estado não consegue manter o
mesmo nível de atendimento e a mesma eficiência que a iniciativa privada
alcança. 9. Reforma da Saúde
Ainda em outro campo completamente distinto se
manifesta o cunho estatizante do Substitutivo Cabral 2. Os artigos 225 e 228 dotam o Estado de amplos
poderes de intervenção concernentes aos serviços privados de saúde,
com vistas a incorporá-los a um “sistema único de saúde”.
Como se vê, trata-se de proceder a uma imensa reforma, nessa área, em
tudo similar à Reforma Agrária que se vem tentando aplicar no Brasil. A Comissão de Estudos Médicos da TFP, em carta
aberta que tem sido publicada em jornais de grande tiragem de todo o País,
alertou os srs. Constituintes e a opinião pública para os riscos
representados por mais essa forma de hegemonia estatal. [1] Em carta de 23 de setembro de 1956, à XXIX Semana Social Italiana, realizada em Bérgamo, na Itália, Mons. Ângelo Dell’Acqua, afirma: “Compete ao Estado, como promotor do bem comum, chamar a atenção dos indivíduos sobre seus deveres sociais e regular; sempre dentro dos limites do justo e do honesto, suas atividades econômicas, em harmonia com o bem coletivo. Erro não menos funesto seria atribuir ao Estado a tarefa ou a missão de planejar integralmente a vida econômica até a supressão de toda iniciativa privada, com o fim de atingir o ideal de uma quimérica igualdade entre todos os homens. Também neste campo a intervenção do Estado é tão-só subsidiária; sua ação deve estar enformada pela justiça, não suprimindo a iniciativa dos particulares, mas intervindo só quando e na medida em que o exija o bem comum, para estimulá-la e coordená-la, deixando aos cidadãos e às organizações menores as funções que são capazes de desenvolver com meios próprios. ‘A economia – dizia o Santo Padre [Pio XII] no discurso de 7 de maio de 1949 – não menos que qualquer outro ramo da atividade humana, não é por sua natureza uma instituição do Estado; é, pelo contrário, o produto vivo da livre iniciativa dos indivíduos”(Diccionario de Textos Sociales Pontificios, organizado por Angel Torres Calvo, Compañia Bibliográfica Española, Madrid, 1962, p. 849). |