Plinio Corrêa de Oliveira

 

Projeto de Constituição angustia o País

 

1987

Capítulo III – No Substitutivo Cabral, presentes os múltiplos elementos de uma Reforma Agrária socialista e confiscatória

 

1. Não cabe alegar a função social da propriedade para pleitear a Reforma Agrária no Brasil

É garantido o direito de propriedade imóvel rural, condicionado ao cumprimento de sua função social, consoante os requisitos definidos em lei”, lê-se no art. 209, que abre o capítulo Da Política Agrícola, Fundiária e da Reforma Agrária, do Substitutivo Cabral 2.

Assim, o polêmico tema da Reforma Agrária é introduzido precisamente por uma afirmação condicionada à função social, expressão-talismã[1] que costumam invocar, a propósito ou fora de propósito, quantos desejam reduzir o direito de propriedade a mero rótulo sem maior significado.

Mas – objetará alguém – os direitos dos proprietários são absolutos, e não comportam uma função social?

Sem dúvida, podem verificar-se na prática hipóteses especiais – que em nossa época conturbada não são tão raras – nas quais o que se afirma em tese sobre o direito de propriedade deve ser adaptado ao exercício da função social desta.

Suponha-se, por exemplo, que, em determinada região rural, convirjam duas circunstâncias:

a ) sem embargo de ser laboriosa e econômica, parte da população padeça fome, com risco para sua saúde e até para sua vida;

b ) a situação desses indigentes só tenha solução mediante a partilha de terras da própria região, aptas a serem cultivadas por eles.

Tal situação cria um conflito entre, de um lado, o direito do indigente (e dos seus) à existência, à alimentação suficiente, e a condições de vida dignas. E, de outro, o direito do proprietário à integridade das terras que possui.

Ora, dado que os direitos do indigente à saúde, à vida etc., são mais fundamentais do que o direito do proprietário à integridade de suas terras, a mesma indigência cria para o trabalhador carente um direito a uma porção dessas terras, correspondente ao necessário para dar remédio à sua situação.

Neste caso, sempre que não caiba nos recursos econômicos do Estado pagar ao proprietário, segundo o justo preço (isto é, o preço corrente no mercado), a terra necessária ao carente, é lícito ao Estado indenizar o proprietário apenas na medida em que o erário público o comporte.

Porém, em tal hipótese não se trata de um confisco, mas da aplicação da função social inerente ao direito de propriedade (como também a todos os outros direitos, inclusive o da vida). A extinção do direito do proprietário ao justo preço, na realidade não terá sido operada só pela lei civil, mas também pela própria Lei de Deus, que sobrepõe o direito à vida de uns, ao direito de propriedade de outros [2].

Existem estas circunstâncias, como justificativa concreta, no caso da Reforma Agrária brasileira e analogamente no da Reforma Urbana e no da Empresarial?

Tal jamais foi demonstrado. Antes, há as mais sérias razões para afirmar o contrário [3].

Ora, não é lícito restringir um direito certo (o de propriedade), com base em um fato incerto (a necessidade das três Reformas). De onde não se poder alegar a função social da propriedade como justificativa para qualquer delas, no Brasil.

2. Se se provasse a necessidade da Reforma Agrária, o ônus dela não deveria recair apenas sobre os proprietários rurais

Ainda assim, há um princípio importante em matéria de Reforma Agrária, que cumpre não esquecer. Soma-se ele a todos os demais, que têm sido alegados pela TFP, para defender o instituto da propriedade privada rural contra as investidas da demagogia [4].

Se existisse desemprego rural e houvesse um excedente de braços para aplicar na agricultura, não se vê porque o ônus da resolução desse problema social deveria cair, todo ele, sobre os proprietários de determinadas terras. Esse desajuste entre a extensão de terras e a população se deveria, em geral, ao conjunto da economia de um país, tomadas em consideração as respectivas circunstâncias territoriais e outras. E, assim, o ônus da desapropriação não deveria cair só sobre este ou aquele proprietário em concreto, nem mesmo sobre toda a classe dos proprietários rurais. Tal ônus deveria ser cobrado de toda a população, sob a forma de imposto. E a arrecadação desse imposto deveria ser orientada para a compra, mediante indenização prévia, em dinheiro e a justo preço, das terras particulares.

3. Antes de desapropriar as terras particulares inaproveitadas, seria preciso que o Estado esgotasse outros recursos de que dispõe

A publicidade agro-reformista vem insistindo especialmente sobre a legitimidade da desapropriação mediante pagamento de preço irrisório, das terras desocupadas ou insuficientemente cultivadas. E isto em virtude do mero fato de sua desocupação ou subprodutividade. Ora, esse princípio não tem fundamento.

Com efeito, é atentatório da propriedade privada que o Estado vá decretando, sem mais nem menos, a desapropriação de terras particulares inaproveitadas ou mal aproveitadas, sem que todos os recursos prévios anteriormente mencionados hajam sido esgotados, em favor dos carentes, e portanto do bem comum.

Habitualmente, nossa legislação agrária se refere ao imóveis inexplorados como se esta condição deles não pudesse resultar senão de incúria, ou de intuitos baixamente especulativos do proprietário.

Sem dúvida, estas podem ser duas causas do mau aproveitamento, ou mesmo do nenhum aproveitamento, de áreas rurais. Porém estão longe de ser as únicas. E, nessas condições, não se justifica o espírito punitivo com que nossa legislação agrária – e o Substitutivo Cabral 2 – se põem face a todas as terras inaproveitadas [5].

4. Como funcionará o mecanismo das desapropriações, segundo o Substitutivo

As desapropriações para efeito de Reforma Agrária obedecerão aos princípios estabelecidos no Substitutivo Cabral 2, nos tópicos que passam a ser brevemente comentados.

A. Pagamento em títulos da dívida agrária

Art. 210 – Compete à União desapropriar por interesse social para fins de reforma agrária o imóvel que não esteja cumprindo a sua função social, em áreas prioritárias, fixadas em decreto do Poder Executivo, mediante indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, cuja utilização será definida em lei”.

As principais objeções a serem feitas a este artigo se relacionam com a Reforma Agrária em si mesma considerada.

Cabe registrar, de início, que o Substitutivo Cabral 2 não emprega mais a expressão “terras improdutivas”, como o fazia o Projeto Cabral. Em compensação, ele faz cair os rigores da Reforma Agrária sobre “o imóvel que não esteja cumprindo sua função social”.

Quanto ao fato de a indenização não se efetuar em dinheiro, previamente, e pelo justo preço, mas “em títulos da dívida agrária”, nas condições estipuladas no caput do art. 210.

B. Omissão quanto ao valor de indenização das benfeitorias

No § 1º, do art. 210, reza o Substitutivo: “As benfeitorias úteis e necessárias serão indenizadas em dinheiro”.

Note-se, a esse propósito, que o parágrafo dispõe sobre a indenização em dinheiro, das benfeitorias úteis e necessárias. Mas ele nada diz a respeito do modo de computar o custo dessas benfeitorias ou, em outros termos, o valor de indenização que por elas será oferecida ao proprietário.

C. Que acontecerá com o proprietário se o Estado não tiver com que pagar a dívida interna?

Prossegue o Substitutivo Cabral 2: “Art. 210 ... § 2º - O orçamento fixará anualmente o volume total de títulos da dívida agrária assim como o montante de recursos em moeda para atender ao programa de reforma agrária no exercício”.

Esse dispositivo parece não considerar a eventualidade de não haver recursos suficientes em mãos do Poder Público para satisfazer os imensos débitos decorrentes da aplicação da Reforma Agrária. Ora, a previsão dessa hipótese é indispensável, máxime na atual quadra em que o Brasil se confessa devedor insolvável da dívida pública externa.

Se tal pode acontecer com a dívida externa, por que não poderá suceder, de um momento para outro, com a dívida interna? Aplicar-se-ão nesse caso, ao Estado insolvente, os mesmos princípios do Direito Civil atinentes ao devedor ou ao comprador insolvente?

É o que mandariam as máximas mais elementares da Justiça.

Mas como a Reforma Agrária passa precisamente por cima dos princípios comuns de Direito, em atenção a aliás não demonstradas necessidades sociais, fica-se sem saber o que sucederá ao proprietário desapropriado, se o Estado nem sequer lhe pagar integralmente o minguado preço a que se obriga nos termos da Constituição.

Uma disposição a esse respeito, no presente parágrafo, parece  indispensável.

D. Esperança de que a legislação ordinária faça justiça

Diz ainda o Substitutivo: “Art. 210 ... § 3º - O valor da indenização da terra e das benfeitorias será determinado conforme dispuser a lei”.

Esse dispositivo melhora muito consideravelmente a posição dos proprietários. Pois o valor do preço não se calcula desde já segundo disposições flagrantemente injustas, que constam das reivindicações agro-reformistas, como de um projeto ou emenda em tramitação na Constituinte, mas defere ao legislador ordinário estabelecer algo a respeito. Pelo que fica possível aos proprietários atuarem nas próximas eleições, de maneira a obterem a vitória de candidatos que lhes façam justiça.

A defesa dos direitos do proprietário deixa de ser, sob esse ponto de vista, uma causa perdida, e passa a ser simplesmente uma causa muitíssimo comprometida. O que, nessas extremidades, ainda pode ser visto como melhora....

E. Qual o alcance da presença do proprietário ou de perito por ele designado, na vistoria do imóvel?

Art. 211 – A desapropriação será precedida de processo administrativo consubstanciado em vistoria do imóvel rural pelo órgão fundiário nacional, garantida a presença do proprietário ou de seu representante”.

O art. 211 pelo menos assegura a presença do proprietário, ou a de representante por ele indicado, por ocasião da vistoria do imóvel pelo órgão fundiário nacional.

Como é de prever, serão freqüentes os desacordos entre os representantes desse órgão, e o do proprietário. Nesse  caso, qual o reflexo de tal desacordo sobre o curso da desapropriação?

O artigo nada estatui a esse respeito, quando seria indispensável que o fizesse. E, no silêncio do artigo, o grande prejudicado é o proprietário.

F. O Juiz, uma figura “con la quale o senza la quale, il mondo va tale quale”

“Art. 212 – A declaração do imóvel como de interesse social para fins de reforma agrária autoriza a União a propor a ação de desapropriação.

“§ 1º - Na petição inicial, instruída com comprovantes do depósito do valor da terra em títulos e o das benfeitorias em dinheiro, a autora requererá sejam ordenadas, a seu favor, a imissão na posse do imóvel e o registro deste na matrícula competente.

“§ 2º - O juiz deferirá de plano a inicial. Se não o fizer no prazo de noventa dias, a imissão opera-se automaticamente com as conseqüências previstas no parágrafo anterior”.

 Como se vê, a “declaração do imóvel como de interesse social” ficará a cargo tão-somente dos representantes do órgão fundiário. O que eqüivale a dizer que o desacordo do perito indicado pelo proprietário nada terá de decisivo.

Em todo caso, seria importante que o art. 211 ou o art. 212 tornasse necessária a juntada do parecer do eventual perito do proprietário, ao dos peritos do órgão fundiário, para que, pelo menos, dele tomassem conhecimento as autoridades competentes. Nem essa muito magra garantia é concedida ao proprietário.

Percebe-se melhor, na leitura dos parágrafos 1º e 2º do art. 212, o caráter despótico com que o Substitutivo Cabral 2 estatui a respeito da matéria.

Em outros termos, não está dito que o Juiz deverá arbitrar o valor da indenização. Tal valor estará exclusivamente  a critério do perito do órgão fundiário.

Ademais, tampouco está dito que a petição inicial apresentada ao Juiz deverá ir instruída também com o parecer do proprietário ou do seu representante que tenha estado presente à vistoria a que alude o art. 211. E, aliás, para o que estaria, uma vez que, em todo e qualquer caso, só o parecer do representante do Estado tem algum alcance?

Com efeito, o § 2º, é imperativo: “O juiz deferirá de plano a inicial”. Ou seja, não lhe cabe julgar coisa nenhuma. Ele funcionará como mero robô judiciário, que aporá sua assinatura ao processo, dando ordem para que ele tenha andamento.

Tão impotente para defender o proprietário, o Juiz será, entretanto, onipotente para defender o poder expropriante.

Assim, se levado por nobre motivo de consciência, o Juiz se recuse a despachar a petição que lhe cumpre “deferir de plano”, pouco perderá com isso o Poder expropriante. Pois, com o despacho do Juiz ou sem ele, ao cabo de 90 dias se consumará a desapropriação, e se operará “automaticamente” a imissão de posse.

O Juiz exerce, nessa matéria, o apagado e lamentável papel de uma figura “con la quale o senza la quale, il mondo va tale quale[6].

G. Nem em caso de desapropriação injusta o proprietário reaverá seu imóvel!

“Art. 212 § 3º - Se decisão judicial reconhecer que a propriedade cumpria sua função social, o preço será totalmente pago em moeda corrente corrigida até a data do efetivo pagamento”.

O § 3º parece conferir ao Juiz o direito de reconhecer ou não “que a propriedade cumpria a sua função social”.

Entretanto, ainda que o Juiz reconheça que o imóvel “cumpria sua função social”, e que, portanto, a desapropriação foi injusta, nunca o proprietário poderá reaver o seu imóvel.

5. Por que não transferir para o domínio particular o imenso latifúndio estatal?

Continua o Substitutivo Cabral 2:

“Art. 213 – A alienação ou concessão, a qualquer título, de terras públicas com área superior a quinhentos hectares a uma só pessoa física ou jurídica, ainda que por interposta pessoa, excetuados os casos de cooperativas de produção, originárias do processo de reforma agrária, dependerão de prévia aprovação do Congresso Nacional.

“Parágrafo único – A destinação das terras públicas e devolutas será compatibilizada com o plano nacional de reforma agrária”.

É muito deplorável que, expondo aos rigores e às arbitrariedades da Reforma Agrária o imóvel que não esteja cumprindo a sua função social, a lei não estabeleça antes de tudo prazos determinados para que sejam transferidas gradualmente para o domínio privado as terras devolutas que o Estado possui.

Com efeito, a estrutura fundiária brasileira se compõe de duas parcelas distintas.

Uma primeira parcela é constituída pelas terras correntemente chamadas “devolutas”, pertencentes à União, às quais se deveriam acrescentar as terras cadastradas de propriedade do Governo federal, bem como dos governos estaduais e municipais. Essas terras, consideradas em seu conjunto, constituem o maior latifúndio – inaproveitado – do Mundo Livre.

Outra parcela é constituída por propriedades privadas, grandes, médias ou pequenas.

Bem entendido, as terras pertencentes à União, aos Estados ou aos Municípios, são naturalmente destinadas à ocupação progressiva da população brasileira. Fragmentar essas terras, para as ir distribuindo em lotes a pessoas físicas ou jurídicas idôneas, em nada é lesivo do instituto da propriedade privada. Muito pelo contrário, favorece-o.

Tal distribuição deve até ser apoiada e promovida pelo Poder Público, a quem incumbe primordialmente a tutela do bem comum. Pois os brasileiros carentes lá podem encontrar terras em que trabalhem, e das quais subsistam; e essas terras, por ora improdutivas, passam a ser aproveitadas para o aumento da produção do País.

Só depois de inteiramente feita essa distribuição é que, em caso de comprovada necessidade, se compreenderia que a Reforma Agrária atingisse imóveis particulares, a começar pelos inaproveitados.

O Substitutivo Cabral 2, entretanto, se limita a uma lacônica e ambígua referência no Parágrafo único do art. 213: “A destinação das terras públicas e devolutas será compatibilizada com o plano nacional de reforma agrária”.

Como a “destinação das terras públicas e devolutas” poderá não ser preceituada como absolutamente prioritária, para efeitos de Reforma Agrária, a todas as outras terras do País, tudo quanto se acaba de ponderar e recomendar acerca de terras devolutas fica sujeito ao mero arbítrio do Poder Executivo, em cujas mãos está o fazer ou reformar a seu talante os planos de Reforma Agrária.

É impossível deixar o comentário do art. 213, sem ponderar ainda que este impede o Governo de conceder – ou mesmo vender – à iniciativa privada, áreas com mais de 500 hectares, sem licença prévia do Congresso Nacional. Isto significa pôr entraves muito consideráveis à expansão natural da fronteira agrícola dentro do regime de propriedade privada. Com efeito, 500 hectares constituem, em região de desbravamento, uma área muito pequena. No Projeto Cabral esse limite era de 3.000 hectares (art. 320).

6. Rumo às fazendas coletivas, como na Rússia

O Substitutivo Cabral 2 aborda aqui a tão delicada questão do regime jurídico de posse da terra para os assentados, já tratada em anteriores projetos de Reforma Agrária.

“Art. 214 – Os beneficiários da distribuição de imóveis rurais pela reforma agrária receberão títulos de domínio ou de concessão de uso, inegociáveis pelo prazo de dez anos.

“Parágrafo único – O título de domínio será conferido ao homem e a mulher, esposa ou companheira”.

Seja dito preliminarmente que não pode passar sem categórico protesto – feito embora de passagem – a equiparação, consignada no parágrafo único, da esposa legítima à “companheira”.

Da redação deste artigo decorre que há duas formas possíveis, no que diz respeito ao regime jurídico de posse da terra, nos assentamentos de Reforma Agrária: a ) título de propriedade ou de domínio (na terminologia jurídica, as palavras se eqüivalem; b ) títulos de concessão de uso.

O Substitutivo acrescenta que tais títulos são “inegociáveis pelo prazo de dez anos”, o que dá margem a uma deplorável confusão, já que os dois institutos gravados com a restrição de inalienabilidade são de natureza diversas. Se é verdade que o título de domínio ou propriedade pode comportar a inegociabilidade, tal não acontece com a concessão de uso. Esta última permite o uso, mas retém em poder do Estado o domínio do imóvel. Assim, o beneficiário que receber títulos de concessão de uso pode lavrar a terra, mas jamais vendê-la, pois ninguém pode dispor de um bem do qual não é dono. Falando em títulos “inegociáveis”, o Substitutivo demonstra desconhecimento da natureza do instituto da concessão de uso.

Quanto à outorga de títulos de domínio inegociáveis pelo prazo de dez anos, o artigo 214 introduz um óbice crucial no acesso ao crédito, uma vez que um imóvel gravado com inalienabilidade não pode ser oferecido como garantia para constituição de hipoteca. Sem crédito, o assentado recebe o chão, porém não tem meios de tornar a terra produtiva.

Mas, redargüirá alguém, o assentado pode recorrer ao crédito oficial, o qual pode dispensar a hipoteca. Nessa hipótese, os assentados ficarão necessariamente acorrentados à cadeia de  organismos e à burocracia governamental e, através do sistema de crédito, sujeitos ao dirigismo estatal. Em outros termos, é o Estado que se constitui dono da terra que o beneficiário tão-só cultiva.

Vale lembrar também o impacto altamente negativo que a restrição de inegociabilidade certamente produzirá no beneficiário, o qual não terá estímulo para investir em imóvel cuja valorização não lhe serve de nada, uma vez que não pode vender em hora de apuro ou quando apareça uma boa oferta.

Precisamente sobre o tema, esta Sociedade acaba de lançar a obra Reforma Agrária: “terra prometida”, favela rural ou “kolkhozes”? – Mistério que a TFP desvenda, de autoria do advogado Atílio Guilherme Faoro, na qual se demonstra que os assentamentos – segundo o atual PNRA – adotam muito preferencialmente, no que se refere ao regime jurídico de posse da terra, a concessão de uso desta, a título precário e com pesados encargos.

Este fator – que de si é decepcionante para quem imagina que a Reforma Agrária dividirá todo o ager brasileiro entre milhões de proprietários – é agravado por duas circunstâncias:

a ) a exploração da terra será feita obrigatoriamente sob a tutela de cooperativas dirigidas pelo Estado;

b ) a linha de conduta dos executores da Reforma Agrária consiste em não dividir a terra em parcelas, mas em a manter indivisa, de maneira a constituir uma fazenda coletiva.

Configura-se assim um modelo de cooperativismo integral e estatalizado, muito semelhante ao adotado em regimes comunistas, nos quais o Estado é proprietário da terra, e os lavradores são apenas usufrutuários incorporados ao processo produtivo cooperativizado, estatizado e coletivizado.

É o que se verifica, por exemplo, nas comunas chinesas, nas agrovilas polonesas, nas granjas del pueblo cubanas e nas fazendas coletivas russas, os famosos kolkhozes!

A ser incorporado à futura Constituição o art. 214 do Substitutivo Cabral 2, o Brasil terá em sua Carta Magna a introdução de dispositivo que agasalha confortavelmente o exacerbado coletivismo da Reforma Agrária do atual PNRA [7].

A concessão de uso acolhida pelo Substitutivo Cabral 2 tem uma conseqüência de grande alcance: a terra não sai do domínio do Estado enquanto durar tal concessão. Não existe dispositivo que obrigue o Estado a limitar no tempo a aplicação deste regime de posse precária. Assim, há sério risco de que a concessão de uso se perpetue, dando nascimento, quiçá sem maiores traumas nem violências, à propriedade estatal do solo para fins de exploração rural, situação sem precedentes na História do País.

Desta forma, talvez se conseguisse evitar para o Brasil (e para a nascente Reforma Agrária...) o perigoso choque experimentado pelo povo russo e pela opinião mundial como efeito do famoso decreto de 10 de novembro de 1917, do governo revolucionário bolchevista, que transformou o Estado soviético em proprietário único de todas as terras.

7. Outros dispositivos sobre Reforma Agrária

A. Hostilidade à colaboração dos imigrantes

O Substitutivo se mostra infenso à participação de estrangeiros na vida rural brasileira:

Art. 216 – A lei limitará a aquisição ou arrendamento de propriedade rural por pessoas físicas ou jurídicas estrangeiras, bem como os residentes e domiciliados no exterior.”.

Parágrafo único – A aquisição de imóvel rural por pessoa jurídica estrangeira ficará subordinada à prévia autorização do Congresso Nacional”.

Sem entrar aqui na análise do controvertido problema da atuação de pessoas jurídicas estrangeiras na economia nacional, cumpre ponderar que o Brasil – como os demais países de imigração – de tal maneira se beneficiou com a colaboração do braço imigrante, que verdadeiramente não se compreende a razão de ser deste dispositivo. Tanto mais quanto os imigrantes de maior capacidade produtiva são dotados de anelos de trabalho e enriquecimento proporcionalmente maiores. Em matéria de  imigração, a preocupação de um país como o nosso, que dispõe de imensas riquezas inexploradas, deve consistir em canalizar em seu benefício o escol da imigração. As restrições mencionadas no presente artigo produzem um efeito oposto.

Ademais, por mais que se tranque à imigração o território nacional, parece destituído de equidade e estéril em vantagens que tal trancamento abranja inclusive a imigração portuguesa, para a qual o artigo 216 poderia e deveria abrir bem merecida exceção.

B. A “guilhotina” da Reforma Agrária atingirá amanhã as propriedades hoje consideradas pequenas ou médias

Art. 217 – São insuscetíveis de desapropriação, para fins de reforma agrária, os pequenos e médios imóveis rurais, na forma que dispuser a lei, desde que seus proprietários não possuam outro imóvel rural”.

Do ponto de vista da estratégia agro-reformista, não falta agilidade ao presente artigo. Pois, lido com desprevenção, tranqüilizará largamente a maior parte dos proprietários rurais, que são forçosamente pequenos e médios fazendeiros. Precisamente o setor dessa classe com o qual simpatizam até pessoas de centro-esquerda.

Assim, os grandes proprietários ou os proprietários de mais de um imóvel ficam expostos, só eles, à investida agro-reformista, que mais facilmente os vencerá. “Divide et impera” (divide para que possas reinar), é o princípio tático, enunciado por Maquiavel, que parece ter inspirado este artigo.

Porém, caso se o leia com mais atenção, as conseqüências dele não são tão simples. Pois o art. 217 contém seis palavras que passam despercebidas e que anulam a vantagem assim concedida aos pequenos e médios proprietários. São elas: “na forma que dispuser a lei”. A lei ordinária, bem entendido.

Quer isto dizer que a legislação ordinária sobre Reforma Agrária, a ser necessariamente elaborada uma vez que entre  em vigor a Constituição, determinará de que forma, em que termos, em que condições serão discriminadas as pequenas ou médias propriedades a serem beneficiadas pela simpática e generosa isenção que o art. 217 outorga.

Mais precisamente, como toda lei ordinária pode ser reformada a qualquer momento, a qualquer momento também poderá variar o critério dessa discriminação.

Um exemplo concreto fará ver a instabilidade em que ficarão, em um eventual Brasil agro-reformado, os pequenos e médios proprietários. Que características deve apresentar uma propriedade para ser considerada autenticamente média ou pequena? Elas seriam difíceis de ser determinadas no quadro da presente estrutura agrária. Mas variarão necessariamente na medida que o agro-reformismo igualitário vá alterando essa estrutura. Assim, quando forem partilhadas todas as terras atualmente qualificadas de grandes, esta qualificação passará a se aplicar às maiores terras que existirem segundo os padrões novos. Ou seja, terras hoje qualificadas médias e portanto imunes à Reforma Agrária, passarão a ser automaticamente qualificadas de grandes, e ipso facto sujeitas à expropriação reservada pelo art. 217 às grandes propriedades. Analogamente, várias terras hoje consideradas pequenas passarão a ser tidas como médias.

E assim o curso das sucessivas aplicações da Reforma Agrária poderá ir “guilhotinando” inexoravelmente terras cujos proprietários se imaginam isentos de tal para todo o sempre, em razão de lerem com candura o destro artigo 217.

Cumpre lembrar a esse propósito o ocorrido no Chile, quando da aplicação da Reforma Agrária pelo governo marxista de Salvador Allende (1970-1973). Numa primeira fase, estavam sujeitas à expropriação apenas as propriedades superiores a 80 hectares. E, desde o início, a lei ordinária proibiu à iniciativa particular o parcelamento das terras nessas condições. Acionada a “guilhotina” agro-reformista, estava tudo pronto, numa segunda fase, pouco antes da queda de Allende, para reduzir aquela área máxima a 40 hectares. De maneira que, para efeito de aplicação da Reforma Agrária, a propriedade média do dia anterior passava a ser considerada grande e sujeita, portanto, a ser retalhada [8].

C. Oposição ao mandamento divino: “Povoai toda a Terra”

Art. 218 – A lei estabelecerá política habitacional para o trabalhador rural com o objetivo de garantir-lhe dignidade de vida e propiciar-lhe a fixação no meio onde vive, preferencialmente com os assentamentos em núcleos comunitários”.

Quanto a esse artigo, cabe comentar aqui as palavras “propiciar-lhe [ao trabalhador rural] a fixação no meio onde vive”.

Enquanto uma sadia política habitacional deveria tender a desbloquear quanto possível nossos excedentes populacionais, desviando-os das cidades e dos campos onde eles sobram, para as regiões inabitadas e inaproveitadas do território pátrio, e atraindo para as mesmas regiões fluxo imigratório proveniente de outros países, no Brasil um desconcertante conjunto de circunstâncias tem concorrido para concentrar nas cidades (e com preferência nas maiores dentre elas) os excedentes populacionais. De forma a acentuar, quase até o caricato e o monstruoso, o contraste entre megalópoles aflitivamente superpovoadas e vastidões aflitivamente ermas.

Qualquer que seja a explicação desse deplorável fenômeno, é fora de dúvida que suas conseqüências só favorecem o reformismo urbano, sem impedirem porém o reformismo agrário. Pois os fluxos populacionais rumo as cidades, suficientes para ingurgitá-las e estendê-las exageradamente, não têm sido bastante grandes para evitar que continuasse necessário encaminhar, para as terras devolutas e desocupadas, importantes fluxos de populações rurais.

Ora, estas últimas, habituadas à segurança, às facilidades e aos atrativos que a proximidade de cidades grandes, médias ou até pequenas, proporciona aos trabalhadores rurais, evitam de se embrenhar orla rural adentro.

Este efeito nocivo é reforçado pela repetição insistente e imponderada, de que é necessário fixar o trabalhador “no meio onde vive”. É o que faz entretanto, o art. 218.

Deslocar o trabalhador rural do lugar, ou do lugarejo, que o viu  nascer, e ao qual está ligado por legítimos vínculos de afeto – pois ali desenvolveu sua vida, ali goza da companhia de seus próximos, ali constituiu família e teve seus primeiros filhos – pode parecer desumano para o trabalhador rural. E é este um argumento que mais de um agitador agro-socialista, com tintas católicas ou não, tem explorado para fixar o trabalhador em seu lugar natal.

Na realidade, porém, o efeito que com isso obtêm tais agitadores é que eles tornam como que necessária a partilha indefinida de terras nos locais onde a população assim “fixada” se vai multiplicando indefinidamente.

Só o humanitarismo meramente naturalista, sentimental e melífluo de nossos dias poderia criar assim oposição à normal expansão do gênero humano nas vastidões do globo. De maneira bem diversa dispôs a Providência, quando Deus disse ao homem: “Crescei e multiplicai-vos, povoai toda a terra” (Gen. 1,28).

Se a Europa do século XVI em diante não tivesse atendido com particular exatidão a esse desígnio divino – o qual corresponde, no plano meramente natural, a um princípio de bom senso – no território europeu habitariam todos os descendentes das nações do Velho Continente que hoje povoam, em grandíssima parte, as três Américas, a Austrália e tantas outras partes do mundo.

Pode-se imaginar o que seria uma Europa assim superpovoada? Um inferno, sem dúvida. Um inferno para os homens razoáveis e ordeiros, empenhados em constituir, para si e para todos, condições de vida normais e dignas. Mas uma terra de delícias para os reformistas, agitadores e aventureiros desejosos de realizar utopias, e viver vidas de novelas. De novelas revolucionárias, de saque, sangue e crime...

Do lado de cá do oceano estariam só os índios, privados da inapreciável presença dos Missionários que lhes trariam a Boa-Nova de Nosso Senhor Jesus Cristo, e dos homens de ação que – embora com métodos dignos por vezes de franca censura – lhes trariam a civilização.



[1] Cfr. Plinio Corrêa de Oliveira, Baldeação ideológica inadvertida e diálogo, Editora Vera Cruz, São Paulo, 1965, 5ª ed., pp. 49 a 59.

[3] Cfr. Reforma Agrária – Questão de Consciência, Parte II, pp. 249 e 269, Sou Católico posso ser contra a Reforma Agrária? Parte II, pp. 113 e 164, Is Brazil Sliding Toward the Extreme Left?, in totum.

[4] Quanto à nocividade da Reforma Agrária, e seu caráter nitidamente de extrema-esquerda, cfr. Ao leitor, segunda Nota.

[5] Quanto a essas terras, convém recordar o lapidar ensinamento de Pio XI, na Encíclica Quadragesimo Anno: “É alheio à verdade dizer que se extingue ou se perde o direito de propriedade com o não uso ou abuso dele” (Coleção Documentos Pontifícios, Vozes, Petrópolis, 1959, 5ª ed., vol. 3, p. 19).

[6] Dito italiano que significa: “com a qual ou sem a qual, o mundo vai tal e qual”.

[7] O que o Sr. Atílio Faoro teve necessidade de demonstrar em sua obra, o art. 218 do Substitutivo Cabral 2 – que mais adiante se comentará – torna evidente. Com efeito, reza este: “A lei estabelecerá política habitacional para o trabalhador rural com o objetivo de garantir-lhe dignidade de vida e propiciar-lhe a fixação no meio onde vive, preferencialmente com os assentamentos em núcleos comunitários”.

[8] Cfr. Carlos Patrício del Campo, A propriedade privada e a livre iniciativa, no tufão agro-reformista, Parte II, Editora Vera Cruz, São Paulo, 1985, pp. 141-142.

Cfr. também Leão XIII, Encíclica Diuturnum Illud, de 29-6-1881 (Coleção de Documentos Pontifícios, Vozes, Petrópolis, 1951, 3a. Ed., vol. 12, pp. 5-6).


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