Plinio Corrêa de Oliveira

 

Projeto de Constituição angustia o País

 

1987

Parte IV – O Projeto de Constituição que investe contra a civilização cristã no Brasil

Encontra-se atualmente em discussão, na Assembléia Nacional Constituinte, um Projeto de Constituição – denominado Substitutivo Cabral 2 – que, conforme versão oficial divulgada pelo Senado Federal, contém nada menos de 336 artigos, 613 parágrafos, 761 incisos e 143 alíenas: ao todo 1853 dispositivos constitucionais.

A ser aprovado esse Substitutivo, ou outro igualmente volumoso, a Constituição brasileira será quantitativamente a maior do Ocidente[1].

Triste pujança quantitativa, que, desde logo e no primeiro aspecto, causa apreensão. A abundância legislativa jamais foi tida como indício da boa ordem de um país: “Corruptissima res publica, plurimae leges[2].

Tal abundância complica quase ao infinito a análise do conteúdo do Substitutivo Cabral 2.

O brasileiro comum, ou o homem da rua, não disporia de tempo para emitir juízo sobre um projeto constitucional de dimensões normais. Menos ainda dispõe ele de tempo sequer para uma leitura refletida da imensa Constituição que ameaça despencar-nos sobre a cabeça.

1. Preparação e tramitação dos Anteprojetos e Projetos

Aliás, para o estudo pormenorizado do Projeto, é de duvidar que tenham tempo todos os srs. Constituintes. Pois o Regimento Interno da Assembléia Nacional Constituinte fixou prazos muito apertados para as diversas etapas da elaboração do texto constitucional.

Com efeito, o calendário da tramitação dos projetos sucessivamente submetidos a discussão, apresentação de emendas e votação, nas várias Subcomissões e Comissões em que se dividiu a Assembléia, tornou impossível a análise suficientemente detida dos ditos projetos, quer por parte dos srs. Constituintes, quer dos estudiosos que, na esfera privada, quisessem publicar livros ou artigos sobre eles. A cada tantos dias havia um novo texto a estudar, o qual deixava em parte sem efeito o texto anterior. Assim:

1º) as 24 Subcomissões elaboraram Anteprojetos provisórios, versando sobre o tema especializado de cada uma delas, e destinado a debate, apresentação de emendas e votação, no âmbito da respectiva Subcomissão;

2º) efetuado esse debate, daí resultou, em cada Subcomissão, a elaboração de um Anteprojeto parcial;

3º) os Anteprojetos parciais das 24 Subcomissões foram encaminhados às oito Comissões temáticas, encarregadas de fundi-los três a três em um Anteprojeto provisório, o qual foi igualmente sujeito a debate, apresentação de emendas e votação, no plenário da respectiva Comissão;

4º) desse debate resultou, em cada Comissão, a elaboração de um Anteprojeto parcial;

5º) a Comissão de Sistematização estava incumbida de, com base no material recebido das Comissões, e nas emendas que a ela tenham sido encaminhadas em tempo hábil, elaborar um Anteprojeto global, tão abrangente e harmônico quanto possível;

6º) submetido o texto a debate, emendas e votação, no âmbito da Comissão de sistematização, daí resultou, por fim, o Projeto de Constituição apresentado ao plenário da Constituinte (Projeto Cabral);

7º) aceito este como base de discussão, começaram no plenário da Assembléia Constituinte os primeiros debates, com possibilidade de apresentação de emendas;

8º) após o prazo de 30 dias reservado para o oferecimento de emendas, contado a partir do início das discussões em plenário – e enquanto estas prosseguiam por mais de dez dias – o relator da Comissão de Sistematização procedeu às adaptações necessárias no texto, e apresentou, no dia 26 de agosto, o seu primeiro Substitutivo, correntemente designado pela imprensa como Substitutivo Cabral 1.

9º) seguiu-se um novo prazo regimental de seis dias (dilatados por duas vezes, pelo Presidente da Assembléia Nacional Constituinte) para os srs. Constituintes apresentarem emendas ao Substitutivo, e outro prazo de oito dias para o relator oferecer seu segundo Substitutivo (Substitutivo Cabral 2), o qual em seguida passou a debate, durante oito dias, na Comissão de Sistematização;

10º) feitas as adaptações necessárias no texto do Substitutivo, o Projeto de Constituição será então apresentado ao plenário da Constituinte, para votação em primeiro turno, sem prazo de duração prefixado;

11º) encerrada a votação em primeiro turno, a Comissão de Sistematização terá dez dias para fazer as adaptações no texto e devolvê-lo ao plenário;

12º) iniciar-se-á então a discussão em segundo turno, com a duração de até quinze dias, com a possibilidade apenas de apresentação de emendas supressivas, ou as destinadas a sanar omissões, erros, contradições ou defeitos de redação;

13º) a Comissão de Sistematização terá dez dias de prazo para apresentar o texto emendado;

14º) será iniciada a votação em segundo turno, em plenário, sem prazo de duração prefixado;

15º) a Comissão de Sistematização terá cinco dias de prazo para fazer as adaptações necessárias;

16º) votação, em sessão única, da redação final do texto constitucional;

17º) a Comissão de Sistematização fará os últimos arranjos no texto;

18º) em turno único, dar-se-á a votação final da nova Carta Magna.

Assim descrito – quão esquematicamente, e um tanto conjeturalmente – o processo de elaboração constitucional, já pode o leitor dar-se uma idéia do trabalho insano a que ficam sujeitos os srs. Constituintes, e de modo geral os analistas dos trabalhos da Assembléia Constituinte, para fazerem estudos objetivos e profundos do que naquela respeitável Casa Legislativa se vem passando.

Mais exata ainda será essa idéia, tomando-se em consideração o vulto ciclópico de cada um dos anteprojetos ou projetos elaborados pelas Subcomissões ou Comissões:

a) os anteprojetos das 24 Subcomissões somaram 702 artigos, 758 parágrafos, 896 incisos e 312 alíneas (cfr. “Jornal do Brasil”, 10-6-87);

b) os anteprojetos das oitos Comissões somaram 543 artigos, 561 parágrafos, 777 incisos e 334 alíneas (cfr. “Jornal do Brasil”, 10-6-87).

c) o anteprojeto da Comissão de Sistematização continha 501 artigos, 532 parágrafos, 764 incisos, 356 alíneas e 7 subalíneas, num total de 2.160 dispositivos;

d) o primeiro Projeto de Constituição, elaborado pela Comissão de Sistematização (Projeto Cabral), contou com 496 artigos, 527 parágrafos, 770 incisos e 350 alíneas, num total de 2.143 dispositivos;

e) o primeiro Substitutivo Cabral continha 373 artigos, 550 parágrafos, 677 incisos e 140 alíneas, num total de 1.740 dispositivos;

f) o Substitutivo Cabral 2 consta de 336 artigos, 613 parágrafos, 761 incisos e 143 alíneas, totalizando 1.853 dispositivos.

Ademais, foram oferecidas em Plenário, pelos srs. Constituintes e por eleitores (cfr. Regimento Interno, arts. 23, § 1º e 24) nada menos de 35.111 emendas.

O texto dessas emendas foi publicado pelo Centro Gráfico do Senado Federal em quatro volumes, no formato 25x31,5 cm, totalizando 3.472 páginas.

Assim, a mole de todo o material a ser estudado assumiu as proporções de uma torre de Babel.

De acordo com as estimativas (projeções)  do deputado Nelson Jobim, relator-adjunto da Comissão de Sistematização e principal elaborador do sistema de trabalho que está sendo utilizado pela Constituinte, por volta do dia 10 de janeiro se daria a votação, em turno único, da nova Constituição brasileira, e no dia seguinte, em sessão solene, seria ela promulgada. Contudo, segundo o referido deputado, a promulgação poderá ocorrer ainda em dezembro, se os prazos forem acelerados por acordos entre as diversas correntes (cfr. “Folha de S. Paulo”, 13-7-87).

2. Corre-corre põe em xeque a representatividade da Constituinte

A açodada elaboração do texto de nossa Carta Magna apresenta graves e óbvios inconvenientes.

Parece que os responsáveis pelo corre-corre legiferante se deixaram influenciar pelo pânico de uma excessiva demora na elaboração da nova Constituição. O que é concebível. Entretanto, de medo de um mal, precipitaram-se no mal oposto, ainda mais considerável.

Como ficou visto, por exigüidade de prazos se tornou impossível – ou quase tanto – para os integrantes das Subcomissões e Comissões elaboradoras dos Anteprojetos, bem como para os membros do Plenário da Constituinte, ponderar com a devida serenidade as várias propostas atinentes às suas respectivas competências. Impossível também foi, por isso mesmo, uma permeação rica e metódica das aspirações do Plenário nos trabalhos das Comissões e Subcomissões. Os grupos de estudos formados por Constituintes para análise privada do Substitutivo Cabral 1 de tal maneira se empenharam em evitar sugestões de colegas e pressões de lobbies, que chegaram a se reunir preferivelmente em locais alheios ao edifício do Congresso, como um andar da sede do Banco do Brasil, um imóvel dos Padres Salesianos e outro dos Padres Jesuítas, além de outros locais ainda.

Tudo isto vem acarretando certa marginalização de grande parte dos srs. Constituintes. E, por fim, como já foi visto, chegou-se a falar em acordos de cúpula entre blocos suprapartidários, que reduzissem ao mínimo os debates em Plenário e tornassem o mais possível céleres os trabalhos ainda por fazer (cfr. Parte III, Cap. VIII, 5).

Com isso, parece não se ter tomado na devida conta, nesta Constituinte – que possivelmente instaure o regime parlamentarista – o fato de que uma câmara legislativa constitui fundamentalmente um grande colegiado. E que o pensamento deste não pode ser a mera manifestação do que pensa cada parlamentar, e a classificação dele segundo grupos, de tal modo que, feita a adição dos votos, se apuraria com quem está a maioria, e se elaboraria rapidamente a lei.

No regime parlamentarista, ainda muito mais marcadamente do que no regime presidencialista, pressupõe-se como elemento fundamental que os congressistas, ao assumirem os respectivos cargos, são movidos por convicções que, pelo menos em parte, sejam mutáveis em função das informações e dos argumentos que ouçam dos colegas, ou recebam dos outros Poderes da República (Executivo, Judiciário), com os quais vão conviver na capital do País. Sem falar dos apelos de toda ordem que lhes serão dirigidos, dos vários Estados, pelas múltiplas correntes de pensamento, e das reivindicações e anseios emanados da população.

Ora, para que tudo isso se processe, para que todos os parlamentares saibam o que todos os seus colegas têm a dizer, o uso da tribuna e a realização dos debates é absolutamente indispensável. E não bastam os contatos, as confabulações, quiçá os cochichos. O acesso de todos à tribuna, bem como o debate público são indispensáveis à Câmara Representativa, como a respiração o é para o corpo.

Isto traz de volta a magna quaestio da representatividade.

Em outros termos, à medida que a normalidade da produção legislativa vá sendo substituída pelo corre-corre, a Constituinte deixará de representar o pensamento global do conjunto dos seus membros, ou seja (em conformidade com a doutrina da democracia representativa), o pensamento do conjunto do país.

Ora, não é difícil entrever para onde isto pode conduzir. A minoria esquerdista, muito mais coordenada, ágil e arrojada do que os elementos centristas, poderá encontrar nesse corre-corre – como sucedeu na escolha dos postos-chave das Comissões e Subcomissões (cfr. Parte III, Cap. 3, 2) – uma situação privilegiada para fazer aceitar (engolir seria o termo mais próprio) por uma Assembléia majoritariamente centrista, uma Constituição esquerdista.

Mas tal Constituição não representará o Brasil.

Sem entrar aqui na indagação das intenções, registram-se apenas os fatos, e o desfecho a que estes facilmente podem se prestar.

Tudo isto ponderado, ainda se apresenta ao espírito uma pergunta. Por que tanto açodamento? O Brasil corre o risco de ser invadido em alguma de suas fronteiras? Ou estará às voltas com uma calamidade pública, como alguma peste? Não. Simplesmente se teme, com pânico açodado, a delonga excessiva dos trabalhos legislativos. Ora, não haveria outros meios de evitar esse mal? Foram tentados esses meios antes de se chegar ao corre-corre a que presenciamos? E é tão certo assim que uma delonga um pouco maior nos trabalhos da Constituinte seria mal mais grave do que a elaboração, dentro de um regime representativo, de uma Constituição que nada representa?

Que excelentes razões há, pois, para objetar assim contra o corre-corre!

3. Um acontecer tumultuado impõe um método de análise “sui generis”

Nesse corre-corre, não pode a TFP sequer pensar em fazer uma análise completa, artigo por artigo, parágrafo por parágrafo, inciso por inciso, de quanto o Projeto atualmente em discussão contém. Pois, como foi visto (cfr. tópico 1 desta Introdução), a todo momento, em prazos cada vez mais curtos, haverá um novo projeto a estudar. E o estudo do anterior, em partes quiçá substanciais, terá ficado automaticamente ultrapassado.

Contudo, a TFP se sentiria omissa no cumprimento de seus deveres para com Deus e o País, se não publicasse, durante o período decisivo do processo de elaboração constitucional – o qual presentemente transcorre – uma análise, ainda que sumária, dos dispositivos do Projeto em curso mais relacionados com a causa da civilização cristã, e especialmente com os três pilares desta, a tradição, a família e a propriedade.

* * *

Para essa análise, procedeu o autor da seguinte maneira:

a) supondo certa coerência na sucessão dos anteprojetos e projetos publicados, admitir como cabível que cada projeto preparasse, pelo trabalho de revisão das comissões competentes, outro com mais probabilidade de ser aceito pelo plenário, de sorte que cada projeto novo estaria mais próximo do definitivo, a ser debatido e votado;

b) tomar como objeto principal do comentário, não cada um dos vários anteprojetos ou projetos anteriores, nem o conjunto deles, mas tão-só o texto mais recente, no momento em que este livro entra para o prelo, isto é, o assim chamado Substitutivo Cabral 2.

c) por outro lado, considerando as dimensões ainda surpreendentemente exageradas deste Substitutivo, e o diminuto prazo disponível para comentá-lo, fazer uma análise, não de seus 1.853 artigos, parágrafos, incisos e alíneas, mas essencialmente do que marcasse o avanço mais sensível na esquerdização do País, de modo a apresentar uma visão de conjunto desses pontos de avanço, e a informar o leitor sobre o que há de mais importante nessa caminhada.

O autor procurou comentar as várias disposições do Substitutivo Cabral 2 não considerando isoladamente cada uma delas, mas tomando em linha de conta locais paralelos do Projeto, nos quais o mesmo assunto, direta ou indiretamente, volta à baila. E sobretudo tendo em vista a linha ideológica geral que inspirou a redação desse Projeto de Constituição (cfr. Parte IV, Cap. IX).

Não é impossível, porém, que ao tratar de algum tema, haja escapado ao autor a consideração de um ou outro artigo muito distante que faça referência ao mesmo assunto.

Se isso ocorreu, terá sido muito excepcionalmente. E não será de surpreender, dada a imensidade do Substitutivo, e a exigüidade do tempo disponível.

* * *

Mas – poder-se-á perguntar – por que escolher precisamente o Substitutivo Cabral 2 como campo de análise, quando tudo faz crer que, ao sair a lume este livro, já a Constituinte estará deixando de lado tal Substitutivo, para entrar em cena outro, o qual constituirá, ele sim, a matéria da votação em plenário? Por que não esperar a publicação desse novo Substitutivo?

A tal propósito, convém ponderar, antes de tudo, que os dispositivos do Substitutivo Cabral 2 – como também, aliás, os dos anteriores projetos – não ficarão impedidos de reviver nos debates, pelo mero fato de terem sido cancelados ou emendados nas fases ulteriores dos trabalhos da Assembléia Constituinte. Pois esta é soberana, e fica livre de aceitar, a todo momento, qualquer dispositivo dos projetos anteriores.

Ademais, publicado o texto final que entrará efetivamente em votação no Plenário, têm início ato contínuo as votações. Assim, não mediaria nenhum prazo para a TFP estudá-lo, redigir sobre ele um comentário, inserir tal comentário num livro já praticamente pronto, imprimir tal livro e fazê-lo chegar ao conhecimento dos srs. Constituintes e do público em tempo oportuno.

Por fim, tudo leva a crer que o texto definitivo a ser submetido ao Plenário estará bastante próximo do Substitutivo Cabral 2. De onde ser útil a consulta dos comentários feitos a este.

As modificações introduzidas no texto definitivo, em relação ao Substitutivo aqui analisado, poderão ser comentadas em folhas avulsas a serem incorporadas a este livro.

Dada a precipitação desconcertante no processo de elaboração da futura Constituição, prejudicando a fundo o trabalho de quantos – legisladores ou simples estudiosos – queiram acompanhar lucidamente o curso dos debates e das votações, a análise do Substitutivo Cabral 2 era não simplesmente a melhor solução, mas a única possível para proporcionar à TFP a manifestação de seu pensamento, de modo útil para o bem do País.

O que sobremaneira se tratava de evitar é que, por amor a uma inteira explanação e comentário, o presente volume só saísse a luz quando as votações em Plenário já estivessem adiantadas e, portanto, sem que ele pudesse servir como despretensioso subsídio aos srs. Constituintes, e à opinião pública, da qual se deve esperar que acompanhe os debates e votações fazendo cada eleitor sentir ao respectivo deputado o que pensa sobre a matéria em apreciação na Constituinte.



[1] Cfr. Constitutions of the Countries of the World, Albert P. Blaustein & Gisbert H. Plans Editors, Oceana Publications, Ind, Dobbs Ferry, New York, 1971, 15 volumes.

[2]O mais corrupto dos Estados tem o maior número de leis” (Tácito, Anais, III, 27 – apud Paulo Rónai, Dicionário Universal Nova Fronteira de Citações, Rio de Janeiro, 1985, p. 537).


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