Plinio Corrêa de Oliveira

 

Projeto de Constituição angustia o País

 

1987

Capítulo II – Uma Constituinte que se instala sob o signo da inautenticidade

1. Juramento sobre uma Constituição... que ainda não existe!

Causou explicável perplexidade o fato de os Constituintes, ao assumirem seus cargos, terem jurado obedecer uma Constituição que ainda não existe, a qual lhes competia elaborar!

O pretexto era de que não aceitavam a Carta Magna outorgada pelo regime militar em 1969.

A atitude, entretanto, não é sem conseqüência, do ponto de vista legal. É o que pondera o jornalista Jânio de Freitas, na “Folha de S. Paulo” (3-2-87):

O gesto com que Ulysses Guimarães encabeçou a recusa dos deputados, no ato de posse, ao juramento de respeito à Constituição vigente, jurando fidelidade à futura Constituição, tem mais conseqüências do que as pretendidas por ele. ...

A Constituição agora abjurada por Ulysses já mereceu dele, desde que a Junta Militar a ela deu em 69 o conteúdo ainda em vigor, quatro juramentos de obediência e fidelidade, nas respectivas eleições precedentes. ... A atitude de aparência cívica, e ainda por cima com um toque de romantismo, para ajustar-se à realidade deve ser reduzida à conveniência de Ulysses de não jurar submissão, sob pena de cobranças imediatas e desastrosas, a um corpo de lei que define como inconstitucional a reeleição para a presidência da Câmara. ...

Ao abjurar a Constituição que impôs a eleição do presidente pelo Colégio Eleitoral, o “Doutor Diretas’ declarou ilegítimo o mandato de seu correligionário José Sarney.

O fato provocou o seguinte comentário do Presidente Sarney, feito a alguns convidados para a Missa semanal celebradas aos domingos à noite, no Palácio da Alvorada: Se os constituintes não cumprem uma lei que está em vigor, quem vai cumpri-la? (“Jornal do Brasil”, 4-2-87).

2. Congresso-Constituinte, uma formação que muitos apontam como aberrante do ponto de vista da concepção democrática

À confusão decorrente do funcionamento simultâneo do Senado, da Câmara e da Assembléia Constituinte somou-se o descontentamento dos muitos brasileiros que apontam essa formação como aberrante do ponto de vista da concepção democrática.

Assim, o Prof. Goffredo Telles Junior, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, em seu livro A Constituição, a Assembléia Constituinte e o Congresso Nacional, afirma:

A criação de uma Assembléia Constituinte formada pela união da Câmara e do Senado é um contra-senso monumental.

A Câmara e o Senado são instituições criadas pela Assembléia Constituinte. São órgãos constituídos, não constituintes.

Como há de a Constituinte ser formada de entidades por ela instituídas? Como há de a Constituinte ser feita de Constituídos? ...

Para revogar a Constituição e substituí-la por outra, é preciso criar uma instituição que não tenha sido criada pela própria Constituição ... É preciso criar uma nova entidade – uma entidade que não seja constituída, mas constituinte.

Para essa criação, só o povo tem competência ...

Por sua própria natureza, uma Assembléia Constituinte autêntica é corpo muito menos vulnerável do que o Congresso Constituinte.

Menos vulnerável, em verdade, em virtude de dois fatores decisivos, a saber:

1º) em virtude da não-vinculação da Assembléia Constituinte a Poder nenhum do Governo;

2º) em virtude do prazo restrito de vigência da Assembléia Constituinte. ...

Com a extinção obrigatória de seus mandatos, não podem os constituintes pretender a extensão de seus mandatos de legisladores, depois da dissolução da Assembléia Constituinte. ... E se investir, sem nova eleição, nas cadeiras de deputados e senadores do Congresso Nacional. (op. cit., pp. 56, 57, 62, 63).

O impasse que se esboçou a respeito do tema, nos primeiros dias de  instalação da Constituinte (resolvido a favor do funcionamento simultâneo dos dois organismos legiferantes), não deixou de ser percebido também como um arranhão no fundamento democrático do regime.

Assim se exprime em editorial a “Folha de S. Paulo” (3-2-87):

Não é a ‘Constituinte’ que sai privilegiada: ao contrário, sua função se desfigura, enquanto a do Congresso se esvai na indiferença e na omissão. ...

Exatamente isto é o que ameaça ocorrer agora, com um Congresso constituinte eleito em meio aos calores da sucessão estadual, sem distinção alguma entre a tarefa de elaborar a Carta e a de legislar ordinariamente.

À falta dessa distinção clara – que só poderia ocorrer com dois organismos funcionando separadamente, eleitos em ocasiões distintas -, prefere-se resolver o problema de uma forma ao mesmo tempo antidemocrática, improvisada e inconsistente. ... Consolida-se o regime democrático diante de um Congresso perdido, fechado, sem funções. Festeja-se o advento de uma nova ordem jurídica – mas num clima de total desordem, arbítrio, falta de clareza quanto às tarefas constitucionais e descaso com os deveres do Poder Legislativo.

3. Polêmica em torno dos senadores eleitos em 82

Do ponto de vista da coerência da teoria democrática, não se vê como explicar que os senadores eleitos em 1982, cujo mandato prossegue até 1990, participem da atual Constituinte. Eles integram o Congresso ordinário e somente nele podem atuar, declarou o jurista Marcelo Duarte, professor de Direito Constitucional da Universidade Federal da Bahia (“O Estado de S. Paulo”, 1º-2-87).

Não obstante, do ponto de vista estritamente legal, isto é, atendendo ao que dispõe a Emenda Constitucional no. 26, que convocou a atual Constituinte, há os que têm por certo o contrário, isto é, que os referidos senadores têm o direito de participar da elaboração da nova Carta.

Posta a questão em votação no Plenário, pelo Ministro Moreira Alves, Presidente do Supremo Tribunal Federal, o qual presidia a sessão do dia 2 de fevereiro, os Constituintes decidiram por 394 a 196 votos, a favor da participação do 23 senadores.

O “Jornal da Tarde” (9-2-87) comenta em editorial que o Ministro Moreira Alves criou um perigoso precedente ao permitir que o plenário se manifestasse sobre uma matéria que envolvia a interpretação da atual ordem constitucional. Tal decisão, como reconheceram não apenas alguns experientes parlamentares mas também alguns dos principais inquilinos do Palácio do Planalto, abriu caminho para que a Carta magna vigente possa ser revista pelos constituintes – o que certamente irá propiciar, em meio a uma intrincada discussão de natureza jurídica e doutrinária, um perigoso conflito de jurisdição entre o Executivo e a própria Constituinte. Basta ver a euforia do deputado Roberto Freire, líder do PCB, com a abertura desse precedente:

“- Eu não sei se o ministro Moreira Alves se deu conta de sua decisão. Quando apresentamos o requerimento para a votação, não estávamos simplesmente interessados na questão dos senadores eleitos em 1982. O importante era a tese. Quem decide agora o que pode e o que não pode é o plenário da Assembléia Nacional Constituinte – disse ele em entrevista publicada pela imprensa carioca.

4. Numa Constituinte que pretende abolir os “Atos Institucionais” do regime militar, uma ponderável corrente de esquerda chegou a propor a edição de ‘atos constitucionais’...

Como se vê, a disputa em torno da questão dos 23 senadores de 82 e do funcionamento simultâneo do Congresso e da Constituinte não era meramente acadêmica.

É o que observa “O Estado de S. Paulo” (4-2-87):

Uma tentativa de golpe de Estado, civil, branco e desarmado – no fim de semana, quando a bancada do PMDB chegou a aprovar a tese da Constituinte exclusiva, que eliminaria o Congresso comum e tornaria o Poder Executivo meramente figurativo – foi a primeira atitude articulada de um grupo ativo da ala ‘progressista’ do partido para assumir o controle efetivo do Congresso Constituinte. O golpe foi desarmado, por inspiração do Palácio do Planalto, na sessão em que foi eleita a nova Mesa da Câmara, graças a um contragolpe regimental aplicado pelo presidente da sessão, Humberto Souto (PMDB-MG), mas ninguém duvida em Brasília que o grupo de deputados novos do PMDB – já apelidados de ‘xiita’- continuará a atuar. ...

Na verdade, contudo, o Planalto deu a primeira ajuda justamente à tese da exclusividade. Quando o consultor-geral, Saulo Ramos, opinou que a Constituição vigente estaria ‘perempta’ e que o governo poderia administrar por decretos-lei, terminou por dar o argumento que faltava aos ‘xiitas’. O apoio à tese foi vertiginosamente veloz, apanhou o Palácio do Planalto de surpresa e ela chegou a ser aprovada, na reunião da bancada do PMDB, com grande entusiasmo. ...

Tudo terminou com a decisão do presidente da sessão, Humberto Souto, que recorreu à mensagem presidencial convocando a Constituinte, para assegurar o funcionamento do Congresso e, consequentemente, dissolver o golpe de Estado. O consultor-geral da República veio a público, então, para proclamar que uma assembléia convocada para ser ‘constituinte’ não pode ser ‘desconstituinte’.

Concorda fundamentalmente com essa versão o editorial do “Jornal do Brasil” do mesmo dia: Ficou esclarecido em definitivo que a Constituinte exclusiva era exclusivamente um golpe: com a Câmara e o Senado congelados, a Constituinte iria governar através de atos constitucionais. Em vez de fundar-se sobre a soberania de que se vale para fazer a Nova Constituição, seria um poder absoluto exercido, superposto ao Executivo, no padrão de tirania institucional.

Também a “Folha de S. Paulo” coincide com esse enfoque, em editorial de 8 de fevereiro:

Um grupo de deputados e senadores pretende que o Congresso Constituinte, ... deixe de ser Congresso Constituinte. Querem torná-lo um superpoder, um governo acima do Executivo federal, uma instituição superior a todas as instituições existentes. É o que se depreende da proposta de conceder aos constituintes o poder de alterar a Carta em vigor. ...

Se querem alterar a atual Constituição, façam-no segundo os padrões da legalidade: com votos de dois terços do Congresso Nacional. Fora disto, trata-se de golpe ou de delírio.

O debate entretanto evoluíra, passando do tema exclusividade ou não da Constituinte, para a questão mais ampla dos limites de sua soberania. A respeito observa a “Folha de S. Paulo”.

A Constituinte pode acabar sendo o detonante de uma crise institucional, ela que foi convocada para fazer exatamente o contrário. ...

É este o risco implícito na discussão primeiro sobre a exclusividade ou não da Constituinte, agora, sobre os limites da sua soberania. Que a Constituição em vigor não serve, todo o mundo sabe.

Daí, entretanto, a revogá-la às pressas, no todo ou em parte, sem pôr nada de imediato no lugar, vai uma distância perigosa para um país de instituições precárias. ...

Restaria o caminho dos Atos Constitucionais, que colocariam governo e Constituinte com a mesma soma de poderes. Já seria uma situação complexa, mas se tornaria alucinante se, sobre ela, pairar ainda a tese da absoluta soberania da Constituinte.

5. A idéia, entretanto, acabou por vingar, com outro rótulo: “projetos de decisão”

Como a expressão ato constitucional era psicologicamente muito contra-indicada (pois estabelecia um paralelismo óbvio com os Atos Institucionais do regime militar), o senador Fernando Henrique Cardoso (PMDB-SP) apresentou proposta análoga com outro rótulo: projetos de decisão.

Os xiitas [radicais] do Congresso... voltam à carga apoiados pelo senador Fernando Henrique Cardoso e pelo todo-poderoso Ulysses Guimarães. Que pretendem, afinal? Aprovar o regimento interno da Assembléia fazendo com que dele conste disposição (precisamente, os projetos malsinados)  que lhes confere o poder de alterar, por maioria simples, qualquer disposição da Constituição vigente. Escusado dizer que anseiam, com isso, instalar o Governo da Assembléia, à moda da Revolução Francesa. Se amanhã decidirem suprimir o Poder Executivo e compor, para substituí-lo, um Comitê de Salvação Pública, extraídos da Assembléia, julgam que nada os impedirá de lançar mão desse golpe e saciar-se com os resultados dele ...

Aparentemente, os projetos de decisão cavam o fosso que separará definitivamente o Executivo da esquerda do PMDB, Aprovados, o presidente da República reviverá Luís XVI prisioneiro na Assembléia (“O Estado de S. Paulo”, 27-2-87).

A proposta apresentada pela esquerda minoritária prosperou e, obtendo a adesão de constituintes centristas e conservadores, foi incorporada ao Regimento Interno.

Porém, como muitas coisas no mundo hodierno, e principalmente no Brasil de hoje, o dispositivo, que ficou assim pairando como ameaça permanente sobre nossas instituições, e conduziu concretamente a alguns impasses – o veto da Comissão de Sistematização à conversão da dívida externa em capital de risco, em julho último, foi um deles – de fato até o momento não produziu o caos institucional que era de se temer.

 


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