Plinio Corrêa de Oliveira

 

Projeto de Constituição angustia o País

 

1987

Parte III – A carência de autenticidade da Constituinte, manifestada no funcionamento tumultuado e anômalo desta

Provada embora a insuficiente autenticidade da Constituinte que saiu das urnas a 15 de novembro de 1986, poder-se-ia alegar quiçá que ela se legitimaria por uma atuação consoante com a lei de Deus e a vontade da Nação. Infelizmente, não foi o que ocorreu, como se mostrará a seguir.

*  *  *

O entrechoque político, seja ele doutrinário, partidário, puramente pessoal, ou ainda de qualquer outra natureza, apaixona facilmente.

E essa paixão costuma contagiar desde logo círculos mais amplos do que aqueles em que tal episódio ou tal lance tenha ocorrido: “torcedores” da política em rodas intelectuais ou sociais, homens de imprensa, leitores ou tele-ouvintes particularmente interessados em assuntos políticos etc.

Assim, é de se admitir que certos episódios narrados nesta coletânea de textos o tenham sido com tal ou qual paixão.

Sem embargo, pareceria muito exagerado negar valor a este amplo conjunto de notícias extraídas exclusivamente das páginas de órgãos da imprensa brasileira, tidos pela grande maioria do público como dos mais dignos de fé.

Assim, as notícias a seguir citadas a propósito dos múltiplos aspectos dos trabalhos da Constituinte, bem como do Projeto de Constituição em elaboração, nem sempre exprimem o pensamento do autor desta obra. Porém, são elas reproduzidas aqui pelo interesse que, a um ou outro título, possam apresentar para o leitor[1].

 

Capítulo I – O relacionamento eleitorado-Constituintes carece de autenticidade

1. Alheamento da população em relação à Constituinte

Como resultado da eleição-sem-idéias de 1986, a população não ficou preparada para acompanhar adequadamente o curso dos trabalhos da Constituinte, de forma a ajuizar sobre a conformidade dos resultados que esta fosse produzindo com os desígnios do eleitorado.

Para tal não faltavam motivos.

Daniela Chiaretti, da “Gazeta Mercantil” (2-2-87), fornece dados concretos: O fato mais alarmante da pesquisa realizada pela SGB Publicidade e Promoções S.A. - agência de propaganda de São Paulo – é o grau de desinformação revelado no estudo: 54% dos 800 eleitores ouvidos no eixo Rio-São Paulo desconhecem as reais funções dos 559 constituintes que iniciam os trabalhos nesta segunda-feira. Do total da amostra, 39% afirmaram que os governadores participarão da elaboração da nova Constituição.

Exemplo característico dessa desinformação é o que registra Cristina Christiano, em artigo para “O Estado de S. Paulo” (15-2-87):

É possível imaginar 559 constituintes eleitos por 60 milhões de brasileiros, reunidos em plenário, discutindo se devem ou não incluir na futura Carta Magna do País que o técnico da seleção brasileira de futebol seja escolhido por um plebiscito nacional, se proíbem programas policiais apresentados por Gil Gomes e Afanásio Jazadji, se elaboram uma lei permitindo a caça ao jacaré ... Não. Não se trata de nenhuma brincadeira. Estas são algumas das cerca de 5.000 propostas do povo paulista, incluídas no livro As sugestões do povo de São Paulo à Assembléia Nacional Constituinte, que a Secretaria da Descentralização e Participação do Governo do Estado de São Paulo começa a distribuir esta semana. ...

Das cerca de 5.000 propostas do povo paulista à Assembléia Nacional Constituinte ... estão a proibição de qualquer tipo de operação no corpo humano, a criação de uma lei proibindo os hospitais de deixarem a mulher dar a luz à filhos que não pode criar, extinção do Senado, ‘por ser inútil, dispensável e cabide de empregos’; obrigatoriedade de fabricação de almoços enlatados ou refeições em conserva, proibição do uso discriminatório dos elevadores de serviço, construção de banheiros público com chuveiros para os mendigos, proibição de transportar animais domésticos em carros particulares, proibição de desenhar óculos, barba e bigodes nas figuras das notas de cruzado, elaboração de uma lei garantindo ao homem sete dias de licença quando a mulher tiver filhos, entre outras.

A crise econômica e a confusão política, que se agravaram muito depois da instalação da Constituinte, contribuíram para aumentar ainda mais esse alheamento da população. É o que lembra o deputado Raul Belém (PMDB-MG):

Ninguém está prestando atenção à Constituição – desabafou o deputado do Triângulo, no exercício da presidência da tumultuada seção estadual do PMDB. ...

Atendo a mais de 50 telefonemas por dia, de eleitores do interior. Falo com centenas de pessoas. Todos estão preocupados com a crise econômica e com a confusão política. Pela Constituinte, não há quem se interesse. A crise liquidou com a Constituinte (Villas-Bôas Corrêa, “Jornal do Brasil”, 15-5-87).

Depois do farto noticiário que nossos mass media têm fornecido ao público desde a instalação da Constituinte em 1º de fevereiro, era de esperar que essa situação melhorasse. Pesquisas recentes do Gallup e do Ibope divergem, entretanto, a esse respeito, segundo notícia do “Jornal do Brasil” (13-9-87): Há profundo desprezo nas ruas pelo que acontece na Constituinte. Os dados do Gallup a esse respeito ainda são otimistas: 64% dos brasileiros sabem o que é Constituinte, embora apenas 18% acompanhem efetivamente o seu trabalho ‘com muito interesse’. Mas os do Ibope são demolidores para quem se imagina porta-voz da vontade popular. Desde 1985, quando foi feito o primeiro levantamento, até agosto de 1987, data do último, o grau do conhecimento dos brasileiros sobre a Constituinte praticamente não sofreu alteração, segundo o Ibope: 6% ‘sabem bem’ do que se trata, 25% ‘sabem mais ou menos’ e 69% ‘não sabem nada’.

2. Constituintes sem compromisso com o eleitorado

Uma população pouco ideologizada é fruto de – e ao mesmo tempo tem como conseqüência – uma organização político-partidária vazia de idéias. Esta situação projeta seus efeitos sobre os Constituintes, que não se sentem vinculados por qualquer espécie de compromisso com seus eleitores.

O senador Fernando Henrique Cardoso exprime essa situação numa fórmula lapidar: Eleição é uma coisa, comportamento parlamentar é outra. O voto, no Brasil, não carrega uma idéia (Luís Carlos Lanzetta, “O Globo”, 1º-2-87).

Como imaginar que a Carta Magna que elaborem os Constituintes assim eleitos tenha muito alto teor de representatividade democrática?

Sob o título inquietante O início da aventura, José Paulo Cavalcanti Filho escreve de Recife para a “Folha de S. Paulo” (1º-2-87): O Brasil começa, hoje, a aventura de uma Assembléia Nacional Constituinte que chega fora de hora, quando toda a gente está preocupada com a ameaça do Cruzado 2 e a opressão da dívida externa, e já não com a reordenação institucional do país. O Congresso é agora composto por deputados e senadores eleitos em decorrência de campanha para o governo dos Estados onde se discutiu quase tudo, mas quase nada se disse sobre a nova Constituição; e, nessa equação, o nível de ignorância dos eleitores em relação à posição ideológica dos eleitos é proporcional ao descompromisso destes em relação àqueles. Os partidos políticos não forma capazes de produzir projetos específicos que corporificassem um conjunto de propostas coerentes, que se prestasse a ser uma referência para a nova Constituição; ou não mostraram interesse nisso.

O jornalista Luiz Carlos Lisboa aponta o que essa situação tem de irregular: As agremiações partidárias deviam informar claramente aos que votam as idéias básicas daqueles em quem estão votando. Em outras palavras, candidatos deviam pertencer a partidos com projetos definidos e imediatamente identificáveis. É o mínimo que se pode esperar. ... Esse requisito elementar não é atendido, entre nós. A maioria absoluta do eleitorado ... não conhece bem o indivíduo que está elegendo para um cargo público, e nada sabe sobre a agremiação que abriga esse candidato. O que não é de admirar, porque a própria agremiação nada sabe de si mesma, visto que é um oco total, a menos que se trate dos partidos comunistas e, até certo ponto, de um partido como o PT. Votar no PMDB, ou no PFL, significa algumas coisa como escolher cinco números na aposta semanal da loto: - puro capricho, mero acaso. O programa? De que vale o programa partidário? ... Ninguém sabe, no Brasil, o que se esconde atrás de siglas como a do PMDB, a do PFL, a do PDT, a do PTB, que não sejam frases de efeito e o discurso tradicionalmente vazio da parlapatice pública nacional (“O Estado de S. Paulo”, 4-7-87).

O deputado Michel Temer (PMDB-SP), professor de Direito Constitucional da PUC-SP e ex-Secretário da Segurança Pública nesse Estado, também assinala essa dicotomia eleitorado-Constituinte com prejuízo da crença na representatividade desta: “Os eleitores, tomados pelo calor da campanha aos governos estaduais, não puderam receber mensagem concreta, eficiente, objetiva daqueles candidatos que aspiravam a representá-los na casa criadora da nova carta constitucional. O povo não soube qual era o programa, nem as idéias básicas de seus candidatos. Apenas notícias esparsas, formulações genéricas e, quase sempre, assemelhadas é que chegavam ao conhecimento público lançadas pelos postulantes aos cargos eletivos. Tudo isso fez crescer a preocupação popular com a representatividade da Assembléia Constituinte, que iniciou os  trabalhos sob o signo da incredulidade popular (“Folha de S. Paulo”, 7-9-87).

Tudo isto indica a existência de um mal muito mais profundo, que o Prof. Roque Spencer Maciel de Barros não hesita em qualificar de atoleiro mental: A ausência de orientação doutrinária nos partidos nacionais é coisa de rotina. ... O País, pelo menos o dos políticos e de uma grande parte dos ‘intelectuais’, não consegue sair do atoleiro mental em que anda há muito mergulhado. E, acrescente-se, esse atoleiro mental é muito pior do que o econômico, pois dificilmente se conseguirá sair deste sem, primeiro, livrar-se daquele. Sinceramente, esse atoleiro mental talvez até seja, sob vários aspectos, mais preocupante do que o descaramento e a falta de espírito público da ‘classe política dominante’. (“O Estado de S. Paulo”, 3-3-87).

3. Siglas de partidos: “uma mera questão de elegância”...

Seria um poderoso contributo para soerguer a opinião pública, do atoleiro mental em que se encontra, que as correntes de opinião nacional assumissem uma posição ideológica nítida e vigorosa, e tingissem com o seu colorido os diversos partidos representados na Constituinte. Só assim os debates na Assembléia se revestiriam de conteúdo e elevação, e se estaria a caminho de eliminar outros tantos inconvenientes da atual democracia-sem-idéias (cfr. Parte I, Caps. II e III).

Entretanto, isto não se verifica.

Para o cientista político Bolívar Lamounier, segundo artigo de Arlete Salvador (“O Estado de S. Paulo”, 22-2-87), ainda não desenvolvemos partidos ideológicos no Brasil. Por isto, conclui a articulista, a verdade é que o eleitorado do País acostumou-se às mudanças de siglas partidárias tanto quanto aos políticos, que vivem mudando de partido. ... Pelo visto, os eleitores também sabem que a sigla de um partido é meramente uma questão de elegância.

O Prof. David Fleischer, Chefe do Departamento de Relações Internacionais e de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), sustenta a tese de que o sistema de representação proporcional e a ausência de partidos com ideologia e programa bem enunciados estão na origem da maleabilidade que os parlamentares demonstram ao definir politicamente a si mesmos e a seus adversários ( Raymundo Costa, “O Globo”, 15-2-87).

O líder do PMDB no Senado, Fernando Henrique Cardoso, também consigna que é preciso ver que no caso do Brasil não existem partidos organizados a partir de doutrinas consistentes. A mesma pessoa muitas vezes assume uma posição diferente conforme a questão em jogo (“Folha de S. Paulo”, 28-6-87).

Análises realizadas no Palácio do Planalto, para decifrar o perfil da Constituinte, concluem que mais da metade dos congressistas constituintes não age de acordo com qualquer modelo ideológico (Márcio Chaer, “Folha de S. Paulo”, 19-2-87).

4. Centro-direita-esquerda: rótulos vazios na Constituinte

A essas lacunas se deve somar o fato de que o próprio conceito de centro, direita e esquerda (e suas gradações) é questionado a nível mundial. Muitos entendem que [o conceito] está em crise e pouco representa hoje em dia. (“Folha de S. Paulo”, 28-6-87).

No Brasil, em particular, o fenômeno é muito visível: Desde 1984, quando se tornou certa sua convocação, a grande curiosidade em torno do pensamento dos 559 constituintes, girava no eixo da classificação de ‘direita’ e ‘esquerda’. Eleitos e empossados, verifica-se que é impossível passar uma linha demarcatória tão simples (“Veja”, 4-2-87).

O “Jornal do Brasil” (14-6-87)  comenta em editorial: Em Brasília neste instante, o que é maioria e o que deve ser tido por minoria ninguém sabe. Cada grupelho, por mais insignificante, sente-se em condições de dominar a Constituinte ... quem é comunista ou quem não é, quem se coloca à esquerda ou à direita de quem, tudo depende do grau de confusão medido na hora, segundo a escala estabelecida por cada um [sic] constituinte.

A respeito da dicotomia direita-esquerda, Roque Spencer de Barros, assim se exprime em artigo para o “O Estado de S. Paulo” (30-6-87):

Luiz Carlos Lisboa ... dedicou breve comentário à pesquisa realizada pelo Prof. Leôncio Martins Rodrigues, com a cobertura do Jornal da Tarde, acerca da ‘imagem ideológica’ que os nossos constituintes fazem de si próprios. O resultado: 53% dos nossos constituintes se consideram de ‘centro-esquerda’ ou da ‘esquerda moderada’.

Nos países intelectualmente subdesenvolvidos – e, parcialmente, até em certos países desenvolvidos -, graças à magia das palavras, ‘ser de esquerda’ é chique, revelando um espírito moderno e ‘progressista’, sem os ranços do conservadorismo próprio a seus avós. O ‘ esquerdista’ se imagina ‘liberado’, aberto, compreensivo, de visão larga e profundamente humanitário. Liberado, obviamente, com moderação, de forma a desfrutar das vantagens de ‘estar a favor do sentido da história’, que ‘marcha para o socialismo’... mas sem apressar-se muito para que ela chegue lá ...

Poucos, apenas 4%, se declaram ‘esquerdistas radicais’... Formam o que poderíamos chamar de ‘turma da implosão’, isto é, dos que advogam a demolição revolucionária do edifício social, metendo dentro dele suas cargas de dinamite. São os enragés, à moda dos Genoínos, Arantes e Lulas, este, aliás, ao que parece, jogando hoje entre o meia e a ponta... pois não é que até a Escola Superior de Guerra ela já freqüenta?

Ninguém, por outro lado, bota a carapuça de ‘direitista radical’.... O ‘direitista radical’ seria, no vocabulário corrente dos políticos, o ‘fascista’ ou o ‘nazista’... É um tipo vocabularmente superado e fora de moda. Ser ponta esquerda, muito bem, mas direita!

Mesmo o declarar-se ‘moderado de direita’, ‘meia direita’ ou pertencente à direita ajuizada e bem comportada, causa aos nossos políticos, assim como aos nossos intelectuais, um certo constrangimento, um dificilmente disfarçável mal-estar. Afinal, o que admite ser rotulado dessa maneira pode acabar considerado um ‘atrasadão’, demodé, perdido nas malhas do conservadorismo ou até mesmo – insulto dos insultos – um ‘reacionário’.

Algo semelhante se passa com a distinção entre “conservadorismo” e “progressismo”: Os sinais trocados que balizam a vida política brasileira piscam com a mesma inautenticidade na Constituinte: conservadores e progressistas são rótulos vazios de significado, e colados erradamente (“Jornal do Brasil”, 2-6-87).

Tudo isto permitiu ao senador Fernando Henrique Cardoso concluir: Há tanta confusão entre direita, centro e esquerda, que é difícil estabelecer limites. Tenho visto muito ‘progressista’ retrógrado e muito conservador avançado. (“Folha de S. Paulo”, 9-4-87).

*  *  *

A vida política brasileira parece mesmo compelida a naufragar nos mares do relativismo a-ideológico e das indefinições doutrinárias. Em tal atmosfera, quem propugna o debate sério em torno de programas partidários, de doutrinas, de teorias e de idéias, corre o risco de ser tão mal recebido quanto um maestro que, em algum campo de futebol, se pusesse a reger músicas clássicas no momento em que a torcida festeja uma vitória!

Não obstante, o amor à Pátria, e sobretudo o amor a Deus, deve levar os bons brasileiros a enfrentar esse ambiente adverso, e desenvolver todos os esforços para instaurar o clima de seriedade, único em que tudo ainda pode ser salvo.

5. Barganha política em vista de interesses pessoais ou partidários

Despojados de ideologia e de programas, os partidos rebaixaram sua atuação ao nível da barganha política  em vista de interesses pessoais ou partidários. Este aspecto, comum em nossa vida política, toma importância particularmente grave, ao se tratar de uma Assembléia Constituinte que deve fixar os destinos do Brasil. Repugna pensar que estes ou aqueles dispositivos entraram na Constituinte em conseqüência de acordos dessa natureza.

A imprensa regurgita de palavras duras contra essa prática. “O Estado de S. Paulo” (28-5-87), por exemplo, em editorial afirma: O que se torna cada vez mais difícil de imaginar é a possibilidade de virmos a desfrutar de uma verdadeira democracia ... com uma classe política com o nível desta que aí está, voltada, em sua grande maioria, para seus interesses exclusivamente pessoais, para suas ambições de simples usufruto do poder, enfim, para as dimensões de sua própria pequenez.

Escrevendo sobre Educação e Constituinte, o prof. Alfredo Bosi pondera, na “Folha de S. Paulo”(6-2-87): Se a avaliação for justa, e não demasiado primista, as alianças políticas, que veremos armarem-se no Congresso (e também as que não veremos, porque feitas a socapa) acabarão palmilhando a rota batida dos compromissos. O velho ‘toma lá, dá cá’ vai nutrir os acordos dos principais atores que sustentam hoje o processo educacional: o sistema público e a rede particular, leiga ou confessional.

A mesma “Folha de S. Paulo”, em editorial de 21 de fevereiro de 1987, intitulado Cargos em leilão, assim se exprime:

       Por mais evidências de clientelismo que se acumulem, é prática cotidiana na política brasileira negar qualquer acordo envolvendo a troca de cargos por apoio ou votos. ...

Já começa o que se poderia chamar de temporada de redistribuição de postos públicos. ...

Desvenda-se assim a engrenagem fisiológica menor, cuja existência é quase sempre nebulosa e clandestina, de que lança mão um governo – em qualquer nível – para conseguir ou ampliar seu apoio no campo político de modo geral, e no Poder Legislativo em particular. É desta forma que se costuma alimentar o emaranhado, também pouco discernível, das ‘bases’ sobre as quais se sustentam muitos votos no Congresso nacional, sobre as quais se erguem carreiras e até mesmo partido sem ideologia, sem representatividade e sem caráter.

6. Multiplicam-se os protestos contra o “estelionato eleitoral” que teriam sido as eleições de novembro de 86

O já apontado fato (cfr. Parte II, Cap. III, 2) de o governo ter despistado a população sobre o malogro do Plano Cruzado, em conseqüência do que o PMDB despontou como partido largamente majoritário nas eleições de novembro de 86, continua a ser freqüentemente lembrado por políticos e líderes de todos os quadrantes ideológicos.

Assim, o deputado Delfim Netto usa a expressão estelionato eleitoral – também adotada por outros – para designar essa eficiente manobra do PMDB (cfr. “O Globo”, 21-4-87). Luiz Carlos Prestes fez uma declaração equivalente: “O Plano Cruzado foi um golpe eleitoral”(“Jornal do Brasil”, 6-6-87).

Sobre as conseqüências desse fato sobre a credibilidade do regime democrático – o qual será consagrado pela atual Constituinte – Gilberto Dupas assim escreve para o “Jornal do Brasil” (28-6-87):

As mudanças de política econômica anunciadas ainda durante a apuração da estrondosa vitória eleitoral do governo (e dos que defenderam e usaram o congelamento como bandeira de voto) tiveram um efeito profundo (e perverso) a nível da identificação da nação-governo. Teria sido preferível, sem dúvida, que o PMDB tivesse obtido uma vitória menos uníssona, mas calcada sobre uma mais transparência com o eleitor. ...

Um regime democrático repousa seu equilíbrio sobre uma classe política razoavelmente representativa, com certa credibilidade, e instituições (partidos, sindicatos, organizações) que mantenham um mínimo de compromisso com seus filiados e suas teses. Se o descrédito ocorrer, o processo democrático se inviabiliza.



[1] Sobre os recortes utilizados para a Parte III deste trabalho, ver nota 22 da Introdução à Parte II.


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