Plinio Corrêa de Oliveira

 

Projeto de Constituição angustia o País

 

1987

Capítulo VI – A CNBB viu frustrados seus planos de “conscientizar” o eleitorado sobre a Constituinte

 

1. Intervenção da CNBB na vida temporal do Brasil

Na Declaração Pastoral Por uma nova ordem constitucional, da 24ª Assembléia Geral da CNBB em Itaici, de 9 a 18 de abril de 1986, o organismo episcopal afirma que não é função nossa, como Pastores, apresentar pormenores técnicos para a formulação da Constituição. Mas, como membros da sociedade brasileira e de uma instituição que, fundada na mensagem e na obra de Jesus Cristo, tem nesta mesma sociedade presença significativa, não podemos deixar de dar nossa contribuição para o grande debate nacional que ora se aprofunda ( Edições Paulinas, São Paulo, tópico 3, pp. 3-4).

Este tópico do documento da CNBB afirma um princípio verdadeiro e valioso: ademais de sua excelsa função especificamente espiritual, a Igreja tem, na sociedade civil, uma presença que habilita a Hierarquia eclesiástica (cujos membros, convém notar, de modo nenhum perdem a sua condição de partícipes da sociedade temporal, quando ascendem ao Sacerdócio) a emitir juízo sobre problemas temporais.

A presença de Prelados nas câmaras políticas da Idade Média e dos tempos modernos tinha também este sentido. Ela não se fundava apenas no direito da Igreja, enquanto sociedade sobrenatural instituída por Nosso Senhor Jesus Cristo, de participar dessas altas câmaras para defesa e promoção de seus específicos direitos, e do bem comum espiritual do país, mas também para assegurar, pela sua própria participação, a inteira representação da população na câmara, já que, enquanto indivíduos privados, os católicos – Hierarquia e fiéis – são membros dela.

Este princípio explica muitas das intervenções da CNBB na vida temporal do Brasil. Nele se funda, em grande parte, o conteúdo de suas declarações. Pena é que a CNBB tenha evitado – presumivelmente por amor à brevidade – de explanar qual a atitude dos fiéis face a esses pronunciamentos feitos pelos membros da Hierarquia eclesiástica enquanto membros da sociedade temporal.

Na realidade, quando os Hierarcas da Igreja falam como Pastores instituídos para promover o bem das almas, que é o fim específico da Igreja, agem como representantes de Nosso Senhor Jesus Cristo, no exercício dos poderes de ensinar, governar e santificar, por Ele conferidos a Pedro e a todos os Bispos em união e comunhão com ele. Enquanto tais, os pronunciamentos deles devem ser objeto de respeitoso e fiel acatamento dos católicos, nos termos e condições estatuídos pelo Direito Canônico.

Outra é a atitude dos fiéis no que se refere aos pronunciamentos de Hierarcas ou de organismos eclesiásticos sobre assuntos especificamente temporais, e tendo em vista o bem comum temporal. Em face de tais pronunciamentos, a atitude do fiel deve ser sempre marcada pelo respeito, devido ao caráter sagrado dos Bispos e Sacerdotes, o qual não perdem quando se pronunciam sobre questões exclusivamente temporais. Mas, em matérias tais, extrínsecas à Revelação enquanto meramente temporais, os fiéis têm o direito – membros, também eles, da sociedade temporal – de formar e exprimir livremente seu pensamento.

É o que se encontra claramente estabelecido no novo Código de Direito Canônico (cânon 227).

2. Um exemplo concreto

A seguinte notícia do “Jornal do Brasil” (19-4-86) é característica a tal respeito:

O direito de todos à propriedade, submetida à sua função social; o salário-desemprego; a primazia do trabalho sobre o capital; o direito de greve para os trabalhadores nos serviços essenciais; e a proibição do investimento público na indústria bélica de exportação são alguns dos princípios cristãos que a CNBB quer ver incluídos na próxima Constituição Brasileira. ...

D. Ivo Lorscheiter disse esperar que os políticos recebam a contribuição da CNBB ao debate com simplicidade e aproveitou para retirar a carapuça:

Os que criticarem esse texto devem ser anotados como indignos de receber o voto dos brasileiros. Os que aprovarem o documento e tiverem competência para colocá-lo em ação merecem o voto. Será um teste.

Diante do pronunciamento da CNBB sobre um assunto essencialmente temporal, como é o do fabrico de canhões para efeito de exportação, eis que D. Ivo Lorscheiter deduz a obrigação, para os fiéis, de seguir nisto a opinião do organismo episcopal. Como se a solução do problema não estivesse, em larguíssima medida condicionada a aspectos econômicos, financeiros, técnicos, políticos e diplomáticos, sobre os quais o católico pode legitimamente divergir do pensamento de seus Pastores.

3. O grande esforço frustrado da CNBB

Enquanto os partidos se preocupam com o sucesso eleitoral em novembro, deixando num segundo plano os temas constitucionais, a Igreja deflagra no País uma verdadeira “Operação Constituinte”, pondo sua estrutura a serviço do debate sobre as propostas a serem levadas à Assembléia Nacional Constituinte ...

Seus 14 Secretariados Regionais, 242 Dioceses e 6.838 paróquias, mas sobretudo suas quase cem mil Comunidades Eclesiais de Base, sem falar nos movimentos leigos, representam uma estrutura muito melhor do que a de qualquer partido político. ... A Constituinte será ‘a principal bandeira social da Igreja’, como diz o Presidente da CNBB, Dom Ivo Lorscheiter. Tão forte como tem sido até aqui, por exemplo, a reforma agrária – que aliás continuará em pauta e a Igreja a pretende ver consagrada na futura Carta.

Para o Presidente da CNBB, o principal é que de todo esse debate – as CEBs sozinhas conseguem atingir cerca de um milhão de famílias em todo o País – saia o eleitor conscientizado para fazer a opção certa na hora de votar e apto a cobrar de seus candidatos as propostas prometidas. ...

Cartilhas em linguagem simples explicando ao povo ‘o que é uma Constituição’, sermões em missas, catequeses, cursilhos, cursos de casais e movimentos carismáticos são, além da estrutura hierárquica da Igreja, os veículos que levam a discussão da Constituinte à população ...

Sermões, palestras, encontros, ‘plenarinhos’ em favelas, tudo vem sendo usado pela Igreja para a conscientização da população para a importância da Constituinte. No Maranhão, a Rádio Educação, de propriedade da Arquidiocese de São Luís, chega a distribuir prêmios aos ouvintes que responderem mais depressa às perguntas de um questionário – ‘A constituição vem aí, e eu com isso’ – distribuído nos bairros por agentes pastorais (“O Globo”, 11-5-86).

Esse relato apresentado por “O Globo” parece retratar com bastante objetividade qual era, já em maio do ano passado (e portanto sete meses antes das eleições), o grande esforço da CNBB e organismos auxiliares, na montagem de um debate de alto nível em todo o País, acerca dos temas constitucionais.

Posto o quadro como ele se apresenta, vê-se que, para esse esforço ter chegado à amplitude nele descrito, é necessário que tenha datado de muito antes: pelo menos mais quatro meses.

Se bem que a TFP esteja em desacordo com considerável número de teses sustentadas pelo respeitável organismo eclesiástico ao longo dessa campanha, tem a alegria em registrar seu apoio ao propósito manifestado pela CNBB de, por ocasião das eleições de 15 de novembro, dar realce todo especial aos temas sobre os quais caberia à Constituinte decidir.

Isto posto, é possível levantar aqui – também em vista do mesmo quadro – algumas perguntas que se relacionam de perto com a grave carência de representatividade das últimas eleições. As perguntas são estas:

a)    Dada a grande influência geralmente atribuída à CNBB pelos analistas políticos, seria normal que todo o esforço acima descrito tivesse desfechado em que a campanha eleitoral fosse marcada por um cunho ideológico excelente.

b)    Ora, como o presente trabalho vai demonstrando, o que se passou foi muito exatamente o contrário. E a campanha eleitoral foi marcadamente pobre em seus aspectos ideológicos.

c)     Então se pergunta: como explicar este imenso insucesso da CNBB? Há um eventual e muito acentuado declínio de sua influência sobre a opinião pública? Qual a causa ou causas desse declínio? Que relação tem ele com a Reforma Agrária e suas seqüelas – Urbana e Empresarial – que ela tão extremadamente apoia, mas que nem sequer com a ajuda dela o Governo vai conseguindo impor ao País renitente?

Essas são questões para as quais não se encontram, de momento, respostas satisfatórias. Talvez venham elas a se explicar com o recuo do tempo, habitualmente tão propício à investigação histórica.

De qualquer forma, fique registrada, ainda aqui, uma observação: quanto foram pouco representativas da realidade brasileira estas eleições que frustaram esperanças afagadas em tão altos círculos do País.

4. Listas “brancas” e “negras”

Indo além das diretrizes, houve Cardeais, Arcebispos, Bispos e Sacerdotes que sugeriram – em “listas brancas”- nomes concretos de candidatos alinhados com a orientação reformista da CNBB.

Não bastou, porém, a esses Prelados, indicar o “bem”; julgaram preciso denunciar o “mal”. Assim, alguns organismos e membros da CNBB divulgaram também “listas negras” dos candidatos opostos à implantação das reformas de estrutura.

É o que informa “O Globo” (26-10-86):

A Igreja no Estado do Rio se absteve até agora de usar um recurso que vem sendo utilizado por ela em outros Estados, principalmente nos do Norte do País: as listas negras! ...

Ao lado dessas ‘listas negras’, Igrejas de outros Estados fazem circular também ‘listas brancas’, com os candidatos que as pastorais e as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) consideram dignos de confiança.

A propósito, informa “O São Paulo” (7 a 13-11-86), órgão da Cúria Metropolitana de São Paulo:

A igreja do Maranhão, por exemplo, está divulgando uma ‘lista negra’ de candidatos que, de acordo com a Comissão Pastoral da Terra (CPT), não estão comprometidos com os interesses populares. No Maranhão são onze dioceses, onde atuam 200 padres e estão organizadas mais de mil comunidades eclesiais de base. Anteriormente, bispos de algumas dioceses da Bahia também divulgaram listas semelhantes.

E, explica o “Jornal do Brasil” (20-9-86): Segundo o coordenador da Pastoral da Terra no Maranhão, o padre italiano Gianluigi Zuffellato, a idéia de fazer a lista surgiu ‘porque nessa época de eleição todos os candidatos aparentam ser bonzinhos e a gente precisa abrir os olhos dos lavradores’. O arcebispo de São Luís, D. Paulo Ponte, não tem conhecimento ainda da iniciativa da Pastoral da Terra, pois está em viagem de retiro, mas o padre Zuffellato afirma que ela se enquadra na orientação do bispo, de linha marcadamente progressista.

5.  Êxitos localizados

E nem tudo, nesse campo, foi decepção. Veja-se esta notícia do “Jornal do Brasil” (12-1-87).

O Movimento Eclesial de Base – MEB – em Alagoas decidiu-se engajar na política e conseguiu eleger seis dos 12 membros do Diretório Regional do Partido dos Trabalhadores – PT – no estado. Com essa força, lançou um candidato a deputado federal, o médico Fernando Barreiro, que obteve quase 17 mil votos, foi mais votado que muitos eleitos, mas não obteve o número mínimo de legendas.

A participação dos leigos na Igreja aumentou depois da vinda do arcebispo Miguel Fenelon – hoje ele está em Teresina – e ganhou dimensão nos meios políticos com a cobrança da implantação da reforma agrária, a conscientização dos negros, o não-pagamento da dívida externa e a proposta para a implantação de um regime semelhante ao da Nicarágua.

A julgar pela notícia, este é um caso de êxito real – embora relativo – da esquerda católica. Mas terá sido ideológico o tema da campanha por ela desenvolvida? As metas que lhe atribui o “Jornal do Brasil” serão realmente as de seus eleitores? Sobretudo, quantas dessas exceções terão ocorrido pelo Brasil afora?

A tais perguntas, o noticiário corrente dos grandes centros não proporcionou resposta.

Parece, entretanto, sumamente provável que, se fossem muito mais numerosas as exceções como esta, a esquerda festiva estaria batendo em todo o Brasil os pandeiros da vitória. Pois organizada e informada, ela certamente o é. E festiva, mais ainda.

6. A CNBB se considera dona do Brasil?

O otimismo de D. Angélico Sândalo Bernardino vai ainda muito além: Se a Igreja quisesse, diz ele, esse país seria invadido numa questão de dias. Somos responsáveis pelo movimento popular mais vigoroso dos tempos atuais (“Veja”, 9-7-86).

Portanto, para D. Angélico, a CNBB é de facto (se bem que não de jure, cumpre observar) dona do Brasil.

Se assim é, resta explicar por que razão a CNBB sofreu tão formidável desmentido a suas esperanças de montar uma campanha eleitoral densa de pensamento e rica em projetos audaciosos?

Se a CNBB pode tomar conta do País num abrir e fechar de olhos, pelo fato de que ela seria a fundadora e mentora do maior movimento popular de nosso tempo, é o caso de perguntar por que não efetuou pressões de bastidor e de praça pública que coroassem de sucesso as invasões de terras, promovidas ou favorecidas por sacerdotes nas mais diversas latitudes do País?

Por que – pergunta-se – bastou a TFP difundir em todo o Brasil os pareceres dos professores Silvio Rodrigues e Orlando Gomes, justificando a legítima defesa dos proprietários rurais contra as hordas agro-reformistas, para que estas últimas cessassem os esbulhos em série que vinham operando em todo o País?

Estas são questões que, mais proximamente ou menos, se relacionam todas com a representatividade das últimas eleições.


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