Plinio Corrêa de Oliveira

 

Projeto de Constituição angustia o País

 

1987

Capítulo V – Requisitos da genuína representatividade no processo eleitoral

Feita  nos capítulos anteriores a exposição do sentido e da importância da representatividade no processo eleitoral, cumpre tratar dos principais requisitos para que ela seja genuína.

1. Nas prévias partidárias, requisitos de representatividade

Como é geralmente conhecido, a “prévia” partidária é uma votação interna em determinado partido, em que é feita a escolha daqueles de seus membros a serem apresentados ao público, em nome do mesmo partido, como candidatos aos vários cargos eletivos cujo provimento uma eleição tenha em vista fazer.

Nessa eleição intrapartidária, devem ter direito a voto todos os membros do partido regularmente inscritos nos registros partidários.

Normalmente a votação deve ser secreta. E a apuração dos votos deve ser feita segundo os trâmites estabelecidos no regulamento do partido.

A representatividade desse ato é condição fundamental para a representatividade de todo o processo eleitoral. Pois, se os candidatos apresentados ao sufrágio universal, pelos vários partidos, não têm as preferências dos respectivos eleitorados, existe todo o risco de que as chapas partidárias não contenham os nomes dos candidatos verdadeiramente preferidos pelo povo.

Evidentemente as condições acima não bastam para que uma prévia partidária represente com inteira fidelidade a vontade dos membros do partido. Tal representatividade depende ainda de outros requisitos. Dentre estes, cabe mencionar:

a ) Máxima facilidade para a renovação dos quadros dos dirigentes internos, e das listas de candidatos.

Com efeito, a tendência à formação de oligarquias internas que se entreajudam de maneira a formar, de alto a baixo do partido, nos níveis federal, estadual e municipal, toda uma rede de comparsas mancomunados para a obtenção de vantagens econômicas e políticas de toda ordem, é a principal tentação a que estão sujeitas as diversas cúpulas partidárias.

Para chegar a tal resultado, é necessário que, já a começar na prévia partidária (na qual podem ser designados, além dos candidatos a cargos públicos, também os encarregados dos vários cargos de direção partidária federal, estadual ou municipal), sejam criados obstáculos à formação de tais “panelas”.

E, por sua vez, o primeiro desses obstáculos consiste em uma grande mobilidade na renovação de quadros aqui mencionada, de dirigentes partidários.

Se neste primeiro passo do processo eleitoral, as “panelas” não obstam a representatividade do eleitorado partidário, é possível que esta chegue autêntica, de degrau em degrau, até o passo último do processo eleitoral, que é a escolha dos ocupantes dos cargos públicos eletivos.

Se, pelo contrário, já nas prévias a eleição não é representativa, o restante do processo  eleitoral fica irremediavelmente viciado pela carência de representatividade.

b ) Por razões análogas às enumeradas no Capítulo 1 (tópicos 7 a 9), a vinculação do nome de cada candidato a um enunciado de princípios doutrinários, a um definido programa de ação, e a outros requisitos ainda, deve estar presente na formação das chapas das prévias partidárias, na votação etc.[1].

2. A incongruência do voto obrigatório com o sistema democrático

A obrigatoriedade do voto constitui uma imposição da lei ao eleitorado – entretanto soberano – pela qual este é coarctado a votar, ainda que não o queira, em candidatos que ele de tal maneira não tem empenho em eleger, que, se para tal fosse livre, se absteria de votar.

Em outros termos:

-        quando os assuntos que a vida partidária levou à tona são tão desinteressantes, que não inspiram ao eleitor o desejo de comparecer às urnas;

-        quando os candidatos que integram as chapas partidárias são ou tão insignificantes ou tão nocivos ao bem comum, que considerável parte do eleitorado prefere se abster da votação, fica provado de modo indiscutível que não há sintonia entre certas máquinas eleitorais de um ou de muitos partidos, e o corpo dos eleitores; e que, portanto, a representatividade eleitoral minguou, ou cessou de existir.

Mais concludente ainda é a prova, quando o eleitor – compelido pela lei a votar – comparece à cabine eleitoral unicamente para evitar as sanções desfechadas pela mesma lei contra quem se abstém de votar. E, mesmo neste caso, a repulsa do eleitor em sufragar qualquer das chapas partidárias é tão grande, que chega por vezes a ponto de anular o seu voto, preenchendo erradamente a cédula; ou, mesmo votando, não vota, pelo que ele deposita mal-humoradamente na urna uma cédula em branco, ou, também mal-humoradamente, agarra o primeiro “santinho” ao alcance e copia na cédula eleitoral os respectivos dados.

O risco de que se produza um grande número de fatos como este deve conduzir os partidos a elevarem o nível do debate político, e o valor dos candidatos que apresentam.

O que farão notadamente se, em suas chapas, abrirem largamente espaço para nos nomes dos profissionais-políticos e, em conseqüência, diminuírem, na medida do eleitoralmente necessário, o número dos políticos-profissionais (cfr. Parte I, Cap. III, 6 e 7). Se não o fizerem, o eleitor se “vingará”, deles abstendo-se cada vez mais das eleições. Ou depositando na cabine da votação um voto de protesto, isto é, nulo ou em branco, ou copiado de um “santinho” que escolheu como que de olhos fechados.

No Ancien Régime francês, as manifestações de desagrado aos reis, explícitas e públicas, eram proibidas. Ora, as ocasiões para que a população demonstrasse fidelidade e dedicação a seus reis ocorriam com relativa freqüência. Nesses atos, o povo, que ninguém podia obrigar a comparecer, caso entretanto preferisse estar presente igualmente não podia ser obrigado a aplaudir. E, mais de uma vez, aconteceu que o povo se absteve de aplaudir o monarca ou o príncipe homenageado.

“O silêncio dos povos é a lição dos reis”, comentava-se[2]. Assim também, a abstenção dos eleitores é a lição dos partidos políticos.

“O Silêncio...”: em matéria eleitoral tal silêncio consiste muitas vezes no voto em branco, no voto nulo, ou no “santinho” escolhido “à la diable”. Ou, mais corajosamente, na abstenção[3]. O modo inglório de que dispõem as máquinas partidárias para tentar fugir a essa eloqüente lição é o estabelecimento do voto obrigatório: lamentável exemplo de autoritarismo democrático.

Pelo voto obrigatório, o partido político impõe que os eleitores aceitem, de um modo ou de outro, o “cardápio” de programas e de candidatos que lhes apresenta.

A este ato antinatural de tirania (isso é precisamente o contrário do que a democracia proclama ser), o eleitor se “vinga”, usando do segredo da cabine, sua liberdade natural. “Chassez le naturel, il revient au galop”[4].

Poder-se-ia fazer, contra a abolição do voto obrigatório, uma objeção. É que os partidos de esquerda costumam ser muito mais organizados do que os do centro e de direita. Consequentemente, as abstenções nunca – ou raramente – ocorrem no comportamento eleitoral dos esquerdistas. Elas existem muitas vezes, isto sim, nos partidos  centristas e direitistas. Torna-se, pois, preciso que a lei mantenha o voto obrigatório, sob pena de as eleições conduzirem a uma inautêntica vitória das esquerdas.

Como anteriormente foi afirmado (cfr. início deste tópico), o remédio para tal divórcio entre os partidos e o eleitorado não está em obrigar o eleitorado, dito soberano, a votar em quem não quer.

A verdadeira solução está em que os partidos de centro (e não se fala aqui dos de direita que, infelizmente, no Brasil não conta, por ora, com eleitorado de vulto) estimulem em seus eleitores o gosto de participar dos debates políticos, e a vontade de votar. O que podem obter mediante a larga divulgação, segundo as melhores técnicas de alto nível, bem como de programas partidários e de biografias pormenorizadas dos candidatos. Essa é a grande solução que a lei eleitoral deve facultar e favorecer num regime democrático autêntico.

Das preocupações, dos esforços e dos desgostos a que legitimamente os obriga tudo isto, os dispensa o voto obrigatório.

3. A permissão de candidaturas avulsas

As candidaturas avulsas – isto é, de candidatos desvinculados de chapas eleitorais partidárias – ou a formação facultativa de chapas eleitorais com nomes sem vinculação partidária, ou ainda, constituídas por candidatos inscritos em diferentes partidos, são preciosos recursos que a lei deve facultar ao eleitor (e presentemente não lhe faculta) para subtrair os votantes à tirania partidária.

4. Limitação e controle dos gastos com propaganda eleitoral

A limitação (e conseqüente fiscalização)  dos gastos de propaganda dos partidos e dos candidatos é outra forma de garantir a representatividade das eleições[5].

Com efeito, dada a potência de que dispõem os meios de comunicação social modernos para condicionar o panorama que os vários setores da opinião pública possuem acerca da realidade nacional, bem como para veicular a seu talante um argumento ou tese justos ou injustos, ou para tornar conhecido de um momento para outro um nome dias antes imerso no anonimato, como por fim para atirar ao olvido um nome até o momento no ápice da notoriedade, é fácil que o candidato mais rico (ou apoiado nos bastidores por alguma potência financeira) tenha condições de vencer outro candidato menos favorecido de recursos econômicos.

Mas a vitória do candidato mais rico constitui tão-só a vil vitória do dinheiro. E nela se exprimirá o poder do ouro como meio de embriagar de publicidade artificiosa a democracia. E não de promover a democracia autenticamente representativa, por meio de funcionamento correto do sistema eleitoral.

O que só o debate pré-eleitoral inteligente, franco, e elevado pode obter.

5. Proibição da propaganda eleitoral vazia

A lei deve proibir, ademais, qualquer cartaz, anúncio, ou outra forma de propaganda, na qual o candidato se limite a exibir sua própria fotografia, com ou sem dados biográficos de nenhum ou quase nenhum alcance para os pontos controvertidos do debate eleitoral.

Em toda propaganda eleitoral deve figurar obrigatoriamente a menção do programa de ação que o  candidato defenderá, caso eleito. E também a descrição, ainda que sumária, de seu posicionamento ideológico.

6. Uma cédula eleitoral tão simples quanto possível

Por fim, a cédula eleitoral deve ser tão simples, que reduza ao máximo a possibilidade de votos nulos, ocasionada não raras vezes pelo atarantamento eventual, no ato de votar, do  eleitor pouco experiente.



[1] Análogas medidas são desejáveis para as assembléias partidárias convocadas com outros fins, como leitura e aprovação do relatório anual e do balanço do partido, aprovação ou reforma dos estatutos, e principalmente aprovação e reforma do programa partidário.

[2]Le silence des peuples est la leçon des rois”. – Da oração fúnebre de Luís XV por Mons. de Beauvais, Bispo de Senez; fórmula retomada por Mirabeau em seu discurso na Assembléia Constituinte no dia 15 de julho de 1789 (apud Dictionnaire des citations françaises et étrangères, Larousse, Paris, 1980, p. 59).

[3] O eleitor que deposita na urna um voto nulo, em branco ou dado “à la diable” esconde absolutamente sua identidade. Pelo contrário, aquele que se abstém deixa claro que não se interessou pela vitória de qualquer candidato.

[4]Expulsai o natural; ele voltará a galope”, escreveu Philippe Néreicault Destouches (Le Glorieux, III, 5, Lisette – apud Dictionnaire des citations françaises et étrangères, Larousse, Paris, 1980, p. 178). Já bem antes, no mesmo sentido, escrevera Horácio “Naturam expellas furca, tamen usque recurret”- “Ainda que expulseis a natureza com um forcado, voltará a reaparecer” (Epístola I, 10).

[5] A tal propósito, vem ao caso lembrar que no Projeto Cabral se encontrava a seguinte disposição, pelo menos hilariante:

“Art. 29 ... § 4º - Na forma que a lei estabelecer, a União ressarcirá os partidos pelas despesas com suas campanhas eleitorais e atividades permanentes”.

Que cifras astronômicas atingiria o montante dos gastos públicos efetuados nessas condições?

Manifestação de um Brasil que começa a delirar.


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