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Plinio Corrêa de Oliveira
Nobreza e elites tradicionais análogas nas alocuções de Pio XII ao Patriciado e à Nobreza romana
Apêndice à edição Norte-Americana Setembro de 1993 |
ESTADOS UNIDOS: NAÇÃO ARISTOCRÁTICA NUM ESTADO DEMOCRÁTICOCapítulo I
ESTRATIFICAÇÃO SOCIAL NOS ESTADOS UNIDOS
1. Uma imagem unilateral dos Estados Unidos a. A influência do mito americanista A historiografia mais difundida a respeito dos Estados Unidos, ao longo do século passado e da primeira metade do presente, esteve dominada por diversas interpretações do mito americanista.1 Segundo as interpretações mais radicais, os Estados Unidos seriam a "nação redentora" do gênero humano,2 incumbida da "missão providencial" de disseminar o domínio da democracia liberal, "libertando" as nações de "opressões" remanescentes da austera e hierárquica civilização européia originada na Idade Média, e abrindo assim uma nova era para a humanidade.3 1 - A expressão "mito americanista" designa certo modo de ver o espírito norte-americano, enquanto liberal e igualitário. Provém mais de preconceitos ideológicos de fundo iluminista e racionalista, próprios a certas correntes de pensamento, do que de uma visão objetiva da realidade norte-americana. As repercussões religiosas deste mito foram condenadas por Leão XIII, na Carta Apostólica Testem Benevolentiae, de 1899. Ver: Thomas McAvoy, The Americanist Heresy in Roman Catholicism, 1895-1900 - Notre Dame, Ind., University of Notre Dame Press, 1963). 2 - Ver: Ernest Lee Tuveson, Redeemer Nation. The Idea of America’s Millenial Role (Chicago: University of Chicago Press, 1968); Conrad Cherry, God’s New Israel (Englewood Cliffs, N.J.: Prentice-Hall, 1971); A. Frederick Marck, Manifest Destiny and Mission in American History - New York, Alfred A. Knopf, 1963). 3 - Uma afirmação deste mito, em todo o seu fanatismo, está contida nas palavras pronunciadas pelo historiador e político Albert Beveridge no Senado norte-americano, em 1897: "Deus não preparou os povos anglo-saxões por mais de mil anos para ficarmos numa vã auto-contemplação e auto-admiração. Não! Ele nos fez os organizadores e mestres do mundo, para estabelecer a ordem onde reina o caos. Ele nos deu o espírito progressista para esmagar as forças da reação no mundo inteiro.... Não fosse esta força dos anglo-saxões, o mundo voltaria à barbárie e às trevas. E de toda a nossa raça, Ele escolheu o povo norte-americano como Sua nação eleita, que finalmente realizará a redenção do mundo". (Citado em: Ernest Lee Tuveson, Redeemer Nation, p. VII). Embora tal afirmação seja raramente encontrada hoje em dia, nestes termos, este é o pensamento ainda prevalente em alguns setores políticos e culturais do país. Quando o aplicam em matéria de política internacional, diz-se que esta é a concepção "missionária" do dever da democracia norte-americana no mundo. Como se vê, o oposto do isolacionismo. Foi utilizada a expressão "democracia liberal". Como bem deixa claro o presente livro, a democracia é de si um regime legítimo e segundo a ordem natural. Ela se torna nociva quando é igualitária e destruidora das antigas tradições do povo. É a esta democracia revolucionária que se aplica a expressão "democracia liberal". A impressionante expansão territorial dos EUA, que das exíguas 13 colônias originais se tornou o 4º país do mundo em superfície, e especialmente o formidável desenvolvimento econômico e militar, que fez dos EUA a maior potência temporal da História, pareceram confirmar esta "missão providencial". Obviamente, ela não teria sentido se tal democracia não vigorasse antes nos próprios Estados Unidos. Influenciados por esse mito nas suas várias interpretações, muitos historiadores e sociólogos norte-americanos se dedicaram quase exclusivamente a ressaltar os aspectos liberais, democráticos e igualitários de seu país. Freqüentemente sacrificando o rigor científico ao ânimo apologético em prol desse mito, eles praticamente ignoraram a existência de elites e de instituições aristocráticas ou com laivos aristocráticos, análogas a elites e instituições aristocráticas do Velho Mundo. Foi assim elaborada uma interpretação unilateral da realidade norte-americana, que dominou a historiografia e a sociologia até meados deste século. b. Alexis de Tocqueville, principal artífice de uma falsa visão O principal mentor da corrente de interpretação liberal da sociedade americana foi Alexis de Tocqueville [1805-1859]. "Tocqueville — diz Roberto Nisbet — foi o primeiro e, até agora, o maior teórico da democracia. Ao estudar as democracias européias que surgiram na década de 1830, ele deixou claro que a democracia, mais que qualquer outro tipo de Estado na História, introduz, aprimora e reforça o poder da maioria, a centralização do governo, o nivelamento das camadas sociais em nome da igualdade individual, e a burocratização da sociedade" (Robert Nisbet, The Present Age, Progress and Anarchy in Modern America - New York, Harper and Row, 1989). Ou seja, a democracia conduziria a um Estado todo poderoso e a uma sociedade igualitária, com um aparente "poder da maioria"; isto é, um regime comunista com disfarce democrático. O jovem aristocrata Tocqueville visitou os Estados Unidos por nove meses, entre 1831 e 1832. Em 1835 ele publicou sua célebre obra "Democracia na América", que logo se tornou o livro-referência clássico para qualquer análise da sociedade democrática norte-americana. Nesse livro ele apresentou a uma Europa em ebulição revolucionária uma visão fascinante, embora indubitavelmente unilateral, de um país próspero e quase totalmente democrático, no qual os valores familiares, aristocráticos e hereditários não tinham mais lugar. A difusão desse mito na Europa facilitou enormemente a aceitação entusiasmada das idéias democráticas revolucionárias naquele continente. Eis as próprias palavras de Tocqueville: "Na América, o elemento aristocrático sempre foi fraco desde suas origens. Hoje em dia, se bem que não esteja propriamente destruído, está de tal forma minguado que não se lhe pode atribuir qualquer influência no curso da vida pública. Pelo contrário, o princípio democrático tomou um tal dinamismo por força do tempo, dos acontecimentos e da legislação, que se tornou não só dominante mas todo-poderoso". (Alexis de Tocqueville, Democracy in America, vol. 1, p. 55) Segundo o historiador Edward Pessen, da Universidade de New York, é a mais influente e duradoura análise jamais escrita sobre a democracia americana da época. Enquanto outras obras foram largamente deixadas de lado, a interpretação igualitária de Tocqueville continua a gozar de amplo prestígio.4 4 - Cfr. Edward Pessen, Riches, Class and Power Before the Civil War (Lexington, Mass: D.C. Heath & Company, 1973, p. 1). Pessen é professor de História no Baruch College da Universidade de Nova York, e especialista na história dos Estados Unidos de antes da Guerra Civil. Prosseguindo em sua análise da obra de Tocqueville, Pessen mostra como o autor francês ressaltou apenas o aspecto igualitário da sociedade norte-americana. Segundo sua interpretação, os Estados Unidos da primeira metade do século XIX eram uma sociedade dominada pela massa. Havia poucos homens muito ricos e também poucos muito pobres. Os ricos eram quase todos "self-made men", de origem humilde. Suas riquezas não chegavam à terceira geração. Era uma sociedade dinâmica e cheia de mobilidade. A riqueza e a pobreza eram estados passageiros dentro do calidoscópio social. Em tal sociedade as diferenças sociais não tinham consistência. A palavra "servente" era tabu, os prisioneiros apertavam a mão de seus carcereiros, os trabalhadores vestiam-se como os burgueses, os políticos — mesmo aqueles de famílias patrícias — faziam ostentação de origens humildes, e a geral vulgaridade das maneiras dava testemunho do predomínio das classes baixas. (Cfr. Edward Pessen, idem, pp. 2-3) O próprio Tocqueville assim resume suas idéias: "Entre as coisas mais inovadoras que descobri durante a minha estada nos Estados Unidos, nenhuma me impressionou mais do que a geral igualdade de condições entre a sua gente.... [Esta igualdade] confere uma peculiar orientação à opinião pública e um teor particular às leis.... Quanto mais aprofundava o estudo da sociedade norte-americana, mais me convencia de que esta igualdade de condições é o aspecto fundamental e central do qual derivam todos os outros, e ao qual minhas observações sempre me conduziam". (Alexis de Tocqueville, Democracy in America - New York, Vintage Books, 1945, vol. 1, p. 3) Evidentemente, esta interpretação igualitária de Tocqueville a respeito da sociedade norte-americana não deixava margem ao papel que as elites nela poderiam desempenhar. Nathaniel Burt, historiador da classe alta de Philadelphia, ressalta que "muitas das posições [de Tocqueville] em relação à democracia eram distorcidas, porque ele não admitia, ou não queria admitir, a existência de uma aristocracia nos Estados Unidos". (Nathaniel Burt, The Perennial Philadelphians: The anatomy of an American Aristocracy – Boston, Little, Brown and Company, 1963, p. 592) Comentando esta visão distorcida de Tocqueville a respeito da hierarquia social nos EUA, o já citado sociólogo Robert Nisbet escreve: "Tocqueville foi o primeiro e, ao longo do século XIX, o maior expoente da teoria de que o regime moderno se caracteriza, não pela solidificação das classes sociais, mas pela sua fragmentação.... Segundo ele, o poder pertence às massas, e numa burocracia centralizada a riqueza vai para uma classe média em contínuo crescimento, e o prestígio social passa facilmente de um setor para outro. "As ondas da democracia após a Revolução Americana, segundo Tocqueville, esterilizaram o papel da aristocracia, deixando apenas categorias movediças de ricos e pobres, pouco capazes de produzir classes sociais no sentido próprio do termo". (Robert Nisbet, "The Triumph of Status: Tocqueville". In Holger R. Stub, ed., Status Communities in Modern Society. Alternatives to Class Analysis - Hinsdale, Ill., The Dryden Press, 1972, pp. 35, 37) Como facilmente se deduz desta síntese do pensamento de Tocqueville a respeito da sociedade norte-americana, ele não escapou ao fascínio do mito americanista. Bem aponta o Prof. Pessen que "Tocqueville não deixa claro se seus vôos de imaginação se referem à sociedade democrática norte-americana concreta ou a um modelo democrático abstrato.... Apesar de algumas de suas observações mais importantes estarem baseadas em ínfima evidência, elas foram aceitas por muitos de seus contemporâneos mais influentes". (Edward Pessen, Riches, Class and Power Before the Civil War, p. 3) Em outra obra, Pessen continua sua crítica à análise de Tocqueville sobre a sociedade norte-americana de seu tempo, tal como foi apresentada no livro "Democracia na América": "Sua concepção da estrutura social norte-americana era baseada mais na lógica e em informações não comprovadas do que na evidência de fatos que o autor tinha pouco interesse em pesquisar. Apesar disso, durante muito tempo foi tida como verdadeira "bíblia" pela maioria dos estudiosos da sociedade norte-americana. No quadro social igualitário pintado por Tocqueville, cada americano era considerado como igual ao outro, não importando as circunstâncias de nascimento; e a riqueza era distribuída quase igualmente entre todos.... Este quadro pitoresco de uma democracia social rude e inebriante, porém, foi amplamente demolido pela pesquisa moderna." (Edward Pessen, Status and Social Class in America, in: Making America: the Society and Culture of the United States, edited by Luther S. Luedtke - Washington, D.C., U.S. Information Agency, 1987, p. 276) Também Victor Lidz, sociólogo da Universidade de Pennsylvania, acusa Tocqueville de imaginar nos Estados Unidos um igualitarismo inexistente: "Nem a sociedade colonial nem a da Revolução [de 1776] e a dos anos imediatamente posteriores correspondiam ao tipo de ‘democracia’ descrito por Tocqueville. A sociedade almejada pela Constituição não era ainda democrática, mas uma hierarquia ordenada de grupos de diferentes status sociais fundados em ideais bem diversos da ‘igualdade’ que Tocqueville pretendeu ver na América". (Victor M. Lidz, "Founding Fathers and Party Leaders", in: Harold J. Bershady, ed., Social Class and Democratic Leadership. Essays in Honor of E. Digby Baltzell –Philadelphia, University of Pennsylvania Press, 1989, p. 235) Porém foi a interpretação unilateral do escritor francês que dominou a historiografia e a sociologia norte-americanas até meados do presente século. Em sociologia, ela recebeu o nome de escola pluralista, por valorizar os aspectos horizontais, ecumênicos e dinâmicos da sociedade norte-americana (de fato presentes), negligenciando os fatores de estratificação social.
Influenciados pelo mito americanista acima descrito, os sociólogos e historiadores norte-americanos pura e simplesmente fechavam os olhos para a existência das elites em seu país. "Até recentemente — escreve Vance Packard — os próprios sociólogos se esquivavam da análise objetiva do problema das classes sociais nos Estados Unidos. As classes sociais, entendiam eles, não deveriam existir. Além disso, Karl Marx tinha transformado a expressão ‘classe social’ numa obscenidade. O resultado foi que, até poucos anos atrás, os cientistas sociais [norte-americanos] sabiam mais sobre as classes sociais na Nova Guiné do que nos Estados Unidos". (Vance Packard, The Status Seekers - New York, David McKay Company, 1959, p. 6. O Prof. Packard é um dos mais antigos representantes da escola elitista) No mesmo sentido fala Philip Burch em seu minucioso estudo sobre as elites norte-americanas: "[O estudo das elites] tem sido posto de lado pelos cientistas sociais norte-americanos, talvez porque o próprio conceito [de elites] desmente os valores democráticos de nosso país". (Philip Burch, Elites in American History - New York, Holmes & Meier, 1981, Vol. 3, pp. 3-4) De fato, havia uma censura implícita contra os que tentassem levantar o tema das elites nos Estados Unidos. Tais estudos eram menosprezados como fruto de sonhadores, desacreditados nos meios acadêmicos "sérios". "Sugerir que a sociedade norte-americana é quase tão baseada na hierarquia de classes como a sociedade britânica — observam os sociólogos Peter Cookson e Caroline Persell — colocava-nos nos limites da respeitabilidade social". (Peter W. Cookson Jr. e Caroline Hodges Persell, Preparing for Power. America’s Elite Boarding Schools - New York, Basic Books, 1985, p. 16) Porém, já em meados dos anos 30 esta interpretação igualitária da experiência democrática norte-americana começou a apresentar sérias deficiências. Estudos sociológicos, históricos e psicológicos em crescente número começaram a mostrar na sociedade norte-americana, não apenas a subsistência de elites definidas e coesas, mas também que a própria história do país só se compreendia enquanto sendo principalmente a história dessas elites. Explicam Thomas Dye e L. Harmon Zeigler: "A ideologia pluralista dominou sem concorrência por muitos anos, não só nos textos oficiais do governo, mas na literatura geral das ciências políticas. Porém, recentemente vários estudiosos têm contestado as pretensões científicas dos pluralistas e, em conseqüência, negado suas formulações normativas a respeito da sociedade norte-americana.... Estes estudiosos [são] conhecidos como ‘neo-elitistas’". (Thomas R. Dye e L. Harmon Zeigler, The Irony of Democracy: An Uncommon Introduction to American Politics - Belmont, Ca., Duxbury Press, 1972, p. VII) Defrontados com a realidade da existência de elites análogas à nobreza nos Estados Unidos, e de seu importante papel na vida social, cultural, política e econômica do país, este núcleo de estudiosos — de ideologias diversas em matéria política e social — iniciou o ingente trabalho de rever os conceitos que até então tinham dominado a historiografia e a sociologia norte-americanas. Nasceu assim uma escola revisionista, que logo recebeu o nome de escola elitista, pela ênfase que dá ao papel das elites na história dos povos. É interessante notar que este aparecimento da escola elitista coincide, e até certo ponto se relaciona, com a chamada "renascença conservadora" do pós-Segunda Guerra. Iniciada por um grupo de pensadores em fins dos anos 40, esta corrente visava uma revalorização do pensamento conservador e tradicionalista anglo-saxão, diante da crescente falência das doutrinas liberais até então dominantes. Fruto desta renascença foi um movimento conservador multiforme, que subsiste até nossos dias. Uma de suas figuras exponenciais é o sociólogo Russell Kirk. Para os representantes dessa escola, a teoria pluralista igualitária está falida, pois baseia-se em pressupostos racionalistas que a ciência sociológica, histórica e psicológica está a desmentir. Após mostrar a inconsistência dos fundamentos racionalistas da democracia liberal, C. Wright Mills, conhecido estudioso das elites, conclui: "Temos de reconhecer que a descrição [da teoria democrática da sociedade] é um mero conjunto de imagens que não passam de contos de fadas". (C. Wright Mills, The Power Elite - New York, Oxford University Press, 1956, p. 300) A idênticas conclusões chegam Michael Burton e John Higley. Após analisarem a falência científica e doutrinária das outras escolas sociológicas — entre elas a marxista, a pluralista e a de Max Weber — eles ponderam: "A sociologia política está hoje em dia sem um modelo dominante. O pluralismo foi largamente posto de lado, mas nada tomou o seu lugar. "Acreditamos que a teoria das elites poderia preencher este vácuo.... Embora se possa esperar muito debate a respeito dos detalhes de suas formulações e aplicações, suas afirmações a respeito da inevitabilidade e da variabilidade das elites, bem como da interdependência entre as elites e as não elites, estão em consonância com o pensamento de muitos sociólogos políticos contemporâneos. De fato, de uma década para cá a sociologia política caminhou para uma notável, embora implícita, convergência em direção à teoria elitista. "O campo de estudo da teoria das elites está ficando enorme. Putnam publicou em 1976 uma lista de 650 obras dessa escola, apenas na língua inglesa. Desde então outras 300 foram publicadas. O Social Science Index enumera mais de 250 artigos sobre elites, publicados entre 1976 e 1984. (Michael G. Burton e John Higley, "Invitation to Elite Theory: The Basic Contentions Reconsidered", in: G. William Domhoff, Thomas R. Dye, eds., Power Elites and Organizations -Newbury Park, Ca., Sage Publications, 1987, pp. 235-237. Burton é professor de sociologia no Loyola College de Maryland. Higley é professor de Governo e Sociologia na Universidade de Texas em Austin) Sendo de existência relativamente recente, a escola elitista ainda não explicitou todo o seu conteúdo doutrinário e suas conseqüências. Faltar-lhe-ia talvez explicar melhor a influência moral dessas elites sociais — como, por exemplo, sua função de modelo para a sociedade — e também como esses valores podem exercer influência em todo o corpo social. Pelo fato de focalizar principalmente sua atenção nos aspectos políticos e econômicos, a escola elitista se diferencia da visão do Autor do presente livro, que, ao empreender a análise da hierarquia social, baseia-se em princípios religiosos, morais e de ordem natural. (Cfr. Capítulo XII, 1,2,3) Aproveitar os ensinamentos de Pio XII a respeito da existência e função das elites na sociedade moderna — ou seja, utilizar pressupostos religiosos para o debate em matéria sociológica, que normalmente não leva em conta princípios religiosos — é perfeitamente justificável. O conhecimento do pensamento pontifício a esse respeito é do maior interesse, mesmo para aqueles que não são seguidores da doutrina católica. Isso não só pelo fato de os católicos constituírem a maior denominação religiosa nos Estados Unidos, mas também porque tais princípios baseiam-se na ordem natural e na Revelação, cujo Autor é o próprio Deus. Não se pode, porém, negar alcance científico às constatações desta escola, que desmentem tantos pressupostos da visão democrática liberal moderna, ao ver a realidade social e histórica norte-americana de maneira bem diversa daquela, largamente aceita até pouco tempo atrás. Ela até permite qualificar os Estados Unidos — pelo menos segundo muitos pontos de vista — como uma nação aristocrática vivendo dentro de um Estado democrático. b. Algumas idéias-mestras da escola elitista Os professores Thomas R. Dye e L. Harmon Zeigler assim definem o elitismo: "O elitismo não é uma conspiração para oprimir as massas.... Simplesmente afirma que a sociedade está dividida entre uns poucos que têm poder, e muitos que não o têm. Segundo a teoria das elites, são estas, e não as massas, as que transmitem valores à sociedade. "Os Estados Unidos são governados pelas elites, e não pelas massas. Em nossa era industrial, científica e nuclear, a vida numa democracia, bem como numa sociedade totalitária, é modelada por poucos homens. "O elitismo não pretende que a condução da res publica ignore ou prejudique o bem-estar das massas, mas apenas afirma que este bem-estar depende das elites, e não das massas.... O elitismo afirma que as massas têm, na melhor das hipóteses, uma influência apenas indireta sobre a condução dos assuntos públicos pelas elites". (Thomas R. Dye e L. Harmon Zeigler, The Irony of Democracy - Belmont, Ca., Duxbury Press, 1972, pp. 7, 343, 3) Burton e Higley sintetizam os fundamentos da escola elitista em três idéias-mestras:
c. Elites, estratificação e desigualdades sociais: Elementos indispensáveis numa sociedade orgânica Muitos sociólogos norte-americanos, especialmente os desta escola, ressaltam que a estratificação social é normal e inerente a toda sociedade. Ela sempre existiu em todos os tempos e lugares, e os Estados Unidos não constituem uma exceção. Rebatendo o mito igualitário, o sociólogo Pierre van den Berghe escreve, não sem ironia: "Talvez os crédulos otimistas que assinaram a Declaração de Independência dos Estados Unidos pensassem que ‘todos os homens foram criados iguais’. Mas isto contradiz a própria evidência dos fatos. Que todos os homens devam ser tratados como se fossem iguais, é uma idéia exótica, nascida pouco mais de duzentos anos atrás. "Na maioria das sociedades ao longo da História humana, a desigualdade foi axiomática. As relações humanas sempre se ordenaram segundo a premissa de que duas pessoas raramente [sic], ou mesmo nunca, são iguais.... O igualitarismo pode servir para discursos inflamados, mas é sociologicamente infundado e empiricamente absurdo.... Todas as sociedades humanas são estratificadas.... A ordem hierárquica é evidente já na família, o menor e mais universal dos organismos humanos". (Pierre L. van den Berghe, Man in Society. A Biosocial View - New York, Elsevier, 1978, pp. 137-138) A mesma idéia é exposta pelo já mencionado Robert Nisbet: "A hierarquia provém das próprias necessidades funcionais das relações sociais. Não há qualquer forma de comunidade que não tenha alguma estratificação de funções. Onde quer que duas pessoas constituam uma sociedade, tem que haver alguma forma de hierarquia". (Robert Nisbet, Twilight of Authority - New York, Oxford University Press, 1975, p. 238) Por seu lado, o Prof. Robin Williams, da Universidade de Cornell, afirma: "Todas as sociedades conhecidas têm algum sistema de classificar seus membros ou grupos constitutivos dentro de uma escala de superioridade e inferioridade.... A diferente avaliação dos homens enquanto indivíduos e enquanto membros de categorias sociais é uma característica formal e universal de todos os sistemas sociais". (Robin M. Williams Jr., American Society. A Sociological Interpretation - New York, Alfred A. Knopf, 1960, p. 88) Analisando mais em detalhe esta estratificação da sociedade, Seymour Martin Lipset e Reinhard Bendix observam: "Em toda sociedade complexa existe uma divisão do trabalho e uma hierarquia de prestígio. As posições de liderança e de responsabilidade social geralmente ocupam as camadas mais altas, logo seguidas pelas posições que requerem longa educação e inteligência superior. Os líderes e indivíduos muito bem educados são sempre uma pequena minoria. A grande maioria é composta pelas pessoas das camadas mais baixas, que realizam as tarefas manuais e quotidianas de menos prestígio". (Seymour Martin Lipset e Reinhard Bendix, Social Mobility in Industrial Society – Berkeley, University of California Press, 1967, p. 1) Suzan Keller, professora na Universidade de New York, também chega a incisivas conclusões sobre a existência indispensável das desigualdades numa ordem social: "A existência e persistência de minorias influentes é uma das características constantes de uma vida social organizada. Seja uma comunidade grande ou pequena, rica ou pobre, simples ou complexa, ela sempre destaca alguns de seus membros como sendo muito importantes, muito poderosos ou muito proeminentes. A noção de uma camada social mais elevada, acima da massa, pode suscitar aprovação, indiferença ou revolta. Porém, sem tomar em conta o que os homens sintam a este respeito, o fato é que suas vidas, fortunas e destinos são e sempre foram dependentes do que um pequeno número deles, colocados em altos postos, pensem e façam." (Suzanne Keller, Beyond the Ruling Class: Strategic Elites in Modern Society - New York, Random House, 1963, p. 3) Nisbet é categórico ao afirmar: "A hierarquia é um fato universal.... Nunca existiu, e muito provavelmente nem poderia existir, uma sociedade sem desigualdade". (Robert A. Nisbet, The Social Bond. An Introduction to the Study of Society - New York: Alfred A. Knopf, 1970, p. 53) "Elitismo é uma característica necessária de todas as sociedades", afirmam Dye e Zeigler. E prosseguem mais adiante: "As desigualdades entre os homens são inevitáveis.... Os homens não nascem com as mesmas capacidades, nem podem adquiri-las pela educação. Os modernos democratas, que reconhecem que a desigualdade na riqueza é um sério obstáculo à igualdade política, propõem eliminar tal desigualdade tomando dos ricos e dando aos pobres, para conseguir um ‘nivelamento’ que eles acreditam ser essencial à democracia.... Porém, mesmo se as desigualdades de riquezas fossem eliminadas, a diferença entre os homens em inteligência, habilidade organizativa, capacidade de liderança, conhecimento e informação, determinação e ambição, interesse e atividade, permaneceriam. Tais qualidades são suficientes para assegurar um governo de poucos, mesmo se a riqueza fosse igualmente distribuída". (Thomas R. Dye e L. Harmon Zeigler, The Irony of Democracy: An Uncommon Introduction to American Politics - Belmont, Ca., Duxbury Press, 1972, pp. 363, 364) O sociólogo Joseph Fichter conclui de modo contundente: "A aspiração a uma democracia completa, a uma igualdade perfeita entre as pessoas, carece absolutamente de fundamento científico. Igualmente, pretender uma sociedade ideal, sem classes, é um afã irreal e impossível". (Joseph Fichter, "Sociologia" - São Paulo: Herder, 1967, p. 69) A presença constante de elites na sociedade é uma idéia já exposta nos trabalhos dos sociólogos italianos Gaetano Mosca (1854-1941) e Vilfredo Pareto (1848-1923), e do alemão Robert Michels. A esse respeito escrevem Burton e Higley: "Mosca e Pareto pesquisaram a História demonstrando que as elites são inevitáveis; Michels mostrou que até mesmo numa sociedade democrática e igualitária, como o Partido Social Democrata alemão anteriormente à Primeira Guerra Mundial, a emergência de uma elite era inevitável. Após três quartos de século, esta idéia-mestra permanece de pé. Nem mesmo as dramáticas convulsões ocorridas [no mundo] desde que os pioneiros desta escola enunciaram suas teses, produziram, onde quer que seja, uma sociedade sem elites". (Michael G. Burton e John Higley, Invitation to Elite Theory. The Basic Contentions Reconsidered" - pp. 220-221) Aliás, este fundamento do elitismo não poderia ser contestado, visto tratar-se de uma constatação empírica universal. "A esquerda sociológica — diz van den Berghe — tem argumentado que a estratificação é ‘disfuncional’, enquanto que a direita afirma que ela é ‘funcional’, ou seja, boa para a sociedade. Boa ou má, a desigualdade inegavelmente existe em todas as sociedades humanas.... Além de gostar ou não gostar dela, não há muito o que fazer da desigualdade". (Pierre L. van den Berghe, Man in Society. A Biosocial View, p. 169)
3. As elites nos Estados Unidos a. A sociedade norte-americana é hierarquizada A sociedade norte-americana, como qualquer outra, é hierárquica. E não podia deixar de ser, pois a existência das elites é um fato natural em todo corpo social organizado, e até mesmo essencial para o bom funcionamento deste. Segundo William Domhoff, professor de psicologia na Universidade de Califórnia em Santa Cruz, "hoje os cientistas estão refutando o mito da sociedade sem classes.... A estrutura social [norte-americana] é feita de várias camadas que se fundem cada uma na imediatamente superior, até atingir o nível mais alto". (G. William Domhoff, The Higher Circles, The Governing Class in America - New York, Vintage Books, 1971, pp. 73-74) E Lloyd Warner esclarece: "É evidente, para aqueles dentre nós que temos estudado muitas regiões dos Estados Unidos, que o sistema social americano compõe-se de dois princípios básicos e antitéticos: um princípio de igualdade e um princípio de desigualdade (Cfr. item 3,c: O paradoxo Americano), de diferenciação de níveis.... A hierarquia de status social existe sempre.... A alternativa para nós, americanos, não é escolher entre a hierarquia e a igualdade, mas entre o nosso sistema de hierarquia e outro sistema". (W. Lloyd Warner, American Life, Dream and Reality – Chicago, University of Chicago Press, 1968, pp. 127-129. A respeito de Warner, o famoso sociólogo Talcott Parsons escreve: "Os trabalhos de Warner sobre os problemas da estratificação social certamente são pontos nevrálgicos da ciência social norte-americana" - Idem, contracapa) Um autor de origem alemã, Herbert von Borch, explica que existe na Europa a idéia de que os EUA são um país democrático e igualitário, mas que isso corresponde só em parte à realidade. Segundo Borch, o igualitarismo nos EUA é apenas um fenômeno de superfície, debaixo do qual há uma realidade hierárquica que os europeus muitas vezes não percebem. Escreve von Borch: "Para quem observa de fora, a sociedade norte-americana parece igualitária à primeira vista. O observador vê uma superfície cheia de cor, vida e mobilidade, que contrasta com as velhas incrustações das sociedades européias.... Porém, debaixo dessa superfície, desvenda-se um fascinante rendilhado de distinções sociais conscientemente cultivadas, envolvendo.... forças de estratificação bem profundas". (Herbert von Borch, The Unfinished Society – Indianapolis, Charter Books, 1963, pp. 228-229) Esta presença de classes sociais hierarquizadas nos Estados Unidos também é realçada por Edward Pessen nos seguintes termos: "Existem provas abundantes de que as classes sociais e as distinções entre elas, bem como as diferenças de status, existem e sempre existiram aqui [nos Estados Unidos], como em qualquer outro lugar do mundo contemporâneo". (Edward Pessen, Status and Social Class in America, in: Making America, edited by Luther S. Luedtke, p. 270) Esta distinção de classes não se restringe às pessoas e famílias de grande fortuna, ou aos grandes centros urbanos que, à maneira de cordilheiras em uma planície, pairariam por cima de uma sociedade fundamentalmente igualitária. A estratificação social atinge toda a sociedade norte-americana, como explica o já mencionado C. Wright Mills: "Em todas as pequenas cidades dos Estados Unidos há uma camada alta de famílias que pairam por cima das classes médias e da população miúda de funcionários e assalariados. Os membros destas famílias possuem mais daquilo que pode ser possuído e confere poder na localidade. Eles detêm as chaves das decisões; seus nomes e fotos aparecem freqüentemente no jornal local; o jornal e a rádio lhes pertencem, como também as principais indústrias da área e a maioria dos prédios comerciais da avenida principal; eles dirigem os bancos. Relacionando-se intimamente entre si, eles têm a clara noção de que pertencem às principais famílias da classe dirigente.... Assim foi sempre, e assim continua a ser a vida nas pequenas cidades dos Estados Unidos".5 5 - C. Wright Mills, The Power Elite, p. 30. O testemunho de Mills é insuspeito. De tendência esquerdista (alguns o têm como um dos precursores da Nova Esquerda dos anos 60), Mills estuda as elites nos EUA, não para defendê-las, mas para denunciá-las. E ele não é o único a ter esta orientação em suas obras. Suas descrições sociológicas, porém, coincidem com as de todos os autores dessa escola no ponto essencial: a constatação empírica da hierarquização da sociedade norte-americana. Temos então uma sociedade que, embora sem usar títulos de nobreza, não é menos hierarquizada que a sociedade européia. Esta diferenciação social é evidente, por exemplo, na Nova Inglaterra, um dos núcleos originários da colonização inglesa, e até hoje centro de algumas das mais antigas tradições norte-americanas. Na sua análise das classes sociais nessa importante região dos EUA, Lloyd Warner escreve: "O estudo [sociológico] das comunidades na Nova Inglaterra mostra claramente a existência de um sistema bem definido de classes sociais. Há no cume uma aristocracia de berço e de riqueza. Este é a classe das ‘Famílias Antigas’.... Os atuais membros dessa classe nasceram em famílias que, há várias gerações, apresentam um estilo de vida peculiar à classe alta. "Depois situam-se as novas famílias, que constituem a baixa classe alta e tiveram sua origem nas novas indústrias e nas finanças.... Elas aspiram a atingir o status de ‘Família Antiga’, se não para seus atuais membros, pelo menos para seus filhos. "Abaixo destas famílias estão os membros da alta classe média, sólida e altamente respeitável.... [Os membros desta classe] aspiram a subir até a classe alta, e esperam que suas boas ações, atividades cívicas e altos princípios morais sejam reconhecidos [pelas pessoas da classe alta].... Este reconhecimento poderia elevar seu status, e muito provavelmente os faria membros da baixa classe alta. "Estas três classes — a alta classe alta, a baixa classe alta e a alta classe média — constituem os níveis acima do homem comum. Entre elas e a massa do povo há uma considerável distância social". (Lloyd Warner, Social Class in America - New York: Harper and Row, 1960, pp. 11-13) Na ausência de títulos nobiliárquicos, o costume consagrou várias expressões para designar as Famílias Antigas nas várias cidades e estados. Temos assim, por exemplo, os Boston Brahmins, os Proper Philadelphians, os Knickerbockers ou os Metropolitan 400 de Nova York, os Proper San Franciscans, os Genteel Charlestonians, as Primeiras Famílias da Virginia, os California Dons (designa as famílias de antiga aristocracia espanhola), etc. Muitas destas famílias ainda estão na posse de suas mansões ancestrais.6 6 - Em 1981, a "Preservation League of New York" incluiu 37 grandes solares do Vale do Hudson entre as mais "significativas propriedades" dos EUA. Dessas, 22 ainda permaneciam nas mãos das famílias originais. Ver: Christopher Norwood, The Last Aristocrats, "The New York", 16 de novembro de 1981, p. 40. Em Natchez, Mississippi, um dos centros da alta vida social no Sul, se verifica o mesmo fenômeno. Robert de Blieux, ex-conservador dos lugares históricos da cidade, informa que "a maioria das mais antigas mansões de Natchez ainda permanecem nas mãos das mesmas famílias após várias gerações. Estas são as ‘antigas famílias de Natchez’". (Citado em: Casey Bukro, "Deep South ambiance is alive, well in Natchez" - "The Sacramento Bee", 1 de março de 1992) Concluem estes sociólogos afirmando que é impossível entender a sociedade norte-americana sem se tomar em consideração sua hierarquização. Escreve o mesmo Warner: "É impossível estudar com inteligência e argúcia os problemas da sociedade norte-americana contemporânea e a vida psíquica de seus membros sem dar plena consideração às várias hierarquias que classificam os cidadãos, seu comportamento e sua cultura, segundo status sociais mais altos ou mais baixos. Estas hierarquias permeiam todos os aspectos da vida social deste país". (Lloyd Warner, American Life. Dream and Reality – Chicago, The University of Chicago Press, 1968, p. 68) b. A história dos EUA é feita principalmente por suas elites dirigentes Após constatarem cientificamente que a existência das elites é normal em todas as sociedades, e particularmente nos Estados Unidos, os sociólogos da escola elitista vão mais longe. Contrariando o mito igualitário segundo o qual as transformações sociais são iniciadas pelas massas, estes sociólogos afirmam que são as elites, e não as massas, as que dão o tônus à vida nacional. Qualquer transformação nas elites tem repercussão em todo o país. Dizem Kenneth Prewitt e Alan Stone: "A história da política é a história das elites. O caráter de uma sociedade — seja ela justa ou injusta, dinâmica ou estagnada, pacifista ou militarista — é determinado pelo caráter de sua elite. Os fins da sociedade são estabelecidos pelas elites e obtidos sob sua direção.... A perspectiva elitista não nega a mudança social; pelo contrário, defende que são possíveis transformações radicais da sociedade. Os elitistas somente ressaltam que a maior parte das mudanças são conseqüência de mudanças e transformações nas próprias elites". (Kenneth Prewitt & Alan Stone, The Ruling Elites: Elites, Theory, Power and American Democracy - New York, Harper & Row, 1973, p. 4. Prewitt é professor da Universidade de Chicago. Stone é professor da Universidade de Rutgers) A última frase desta citação acentua bem o importante matiz da verdade acima enunciada. Em rigor, das classes que compõem qualquer sociedade, nenhuma está habitual e necessariamente privada de alguma parcela de influência — ainda que pequena — no conjunto do andamento da sociedade. Ainda que seja por omissão, uma classe pouco influente pode exercer uma parcela de ação co-diretiva nos destinos sociais. Esta verdade está implícita ou explícita no pensamento de pessoas do passado — próximo, remoto, ou até muito remoto — que tenham tratado do assunto com competência. Por exemplo, a famosa analogia estabelecida por Menenio Agripa7 entre a sociedade e o organismo humano. 7 - Cônsul romano (503 a.C.). Venceu os sabinos e os samnitas. Grande orador. Para apaziguar um conflito surgido entre a plebe e o Senado, elaborou o apólogo "Os membros e o estômago", o qual mostrava que, assim como a revolta de uns órgãos contra os outros levaria o organismo à morte, o mesmo aconteceria com a sociedade se não houvesse harmonia entre as classes sociais. O conflito foi extinto com a criação dos tribunos da plebe no Senado. Porém é evidentemente lícito afirmar, quando a influência de uma classe torna-se tão preponderante que chega a ser quase exclusiva, que tal influência é exclusiva. Pois há nisso uma simplificação de linguagem, cujo verdadeiro sentido um leitor atilado não tem dificuldade em perceber. Munidos desta premissa, empreendem tais sociólogos o estudo da história norte-americana, não do ponto de vista das massas, como na historiografia mitológica, mas do ponto de vista das elites e de sua função social determinante. E mais adiante declaram ainda Prewitt e Stone: "A história norte-americana é normalmente apresentada nos livros de texto e nos discursos políticos como se a participação das massas.... tivesse um peso decisivo na condução da política.... Apesar da popularidade desta interpretação da história norte-americana, muitos estudiosos.... chegaram a conclusões bem diferentes. Este re-exame da história norte-americana, conhecido como revisionismo, ainda está em elaboração.... Porém, já foram realizados suficientes estudos para deitar uma pesada sombra de dúvida sobre a interpretação convencional da história norte-americana e provar ao leitor que a participação popular nas decisões políticas foi de pouca importância". (Kenneth Prewitt & Alan Stone, The Ruling Elites, p. 31) Com a minúcia própria aos cientistas, estes estudiosos analisam ainda as estruturas de poder ao longo da história, em muitas cidades e regiões, chegando invariavelmente ao mesmo resultado: os Estados Unidos não são governados pelas massas, mas pelas elites, nos vários níveis da sociedade. Uma notável obra neste sentido é o já mencionado estudo de Philip Burch sobre as elites norte-americanas, em três volumes. Na apresentação da obra o editor afirma: "A rigorosa análise de Philip Burch sobre as origens sociais e o nível econômico dos mais altos líderes dos Estados Unidos [desde a fundação da República até os anos Carter] desmente a idéia generalizada de que nosso governo tem sido ‘do povo, pelo povo e para o povo’". (Philip Burch, Elites in American History, contra-capa) "No seu influente livro sobre a estrutura de poder em Atlanta (Georgia), o sociólogo Floyd Hunter descreve uma estrutura piramidal de poder e influência, na qual a maioria das mais importantes decisões da comunidade são tomadas por uma camada superior, composta pelos líderes do comércio e das finanças". (Citado em: Thomas R. Dye e L. Harmon Zeigler, The Irony of Democracy, p. 13) Comentando o trabalho de Hunter, Dye e Zeigler prosseguem: "Os resultados das pesquisas de Hunter em Atlanta.... são próprios a incomodar aqueles que gostariam de ver os Estados Unidos governados de maneira verdadeiramente democrática. As pesquisas de Hunter desmentem a idéia da participação popular na condução dos assuntos públicos.... e levantam dúvidas se os bem-amados valores democráticos realizam-se de fato na vida norte-americana". (Thomas R. Dye e L. Harmon Zeigler, The Irony of Democracy, p. 14) O papel diretivo das elites nos Estados Unidos não se restringe ao campo político e econômico. Ele é também — e até, por alguns lados, principalmente — social e cultural. A vida cultural norte-americana não seria o que ela é, se não fosse a tradição de generoso patrocínio das classes altas. Em seu livro sobre as classes ricas nos Estados Unidos, Charlotte Curtis explica que "ao doar milhões de dólares para a fundação e manutenção de galerias de arte, museus, óperas, orquestras, hospitais, pesquisas médicas, parques, instituições educacionais e uma ampla variedade de obras de caridade, as pessoas ricas da classe alta influem sobre a cultura, tanto local como nacional.... dum modo que nenhuma pessoa comum nem grupo social pode igualar". (Charlotte Curtis, The Rich and Other Atrocities - New York, Harper & Row, 1973, p. X) As atitudes das mulheres de classe alta influem muito na vida nacional, mesmo quando não ocupam cargos públicos. Comenta William Domhoff: "As mulheres da classe alta dirigem a moda, promovem a cultura, dirigem obras de beneficência, e mantêm atividades sociais que preservam a classe alta como classe social". E prossegue: "As mulheres da classe alta participam de uma série de atividades que sustentam a classe alta enquanto classe distinta, ajudando assim a manter a estabilidade do sistema social como um todo". (William Domhoff, The Higher Circles; The Governing Class in America - New York, Vintage Books, 1971, pp. 33, 56) O papel diretivo das elites é às vezes imponderável. Um exemplo disto é a sua influência nos gostos da população. A este respeito escreve Charlotte Curtis: "Ao usarem as últimas modas, decorarem e redecorarem suas várias casas, ao exigirem iguarias refinadas de seus chefs privados.... elas formam o bom gosto do país". (Charlotte Curtis, The Rich and Other Atrocities, p. X) Concluindo, o sociólogo Thomas R. Dye afirma contundentemente: "O governo das massas não é possível nem desejável. A ampla participação popular nas decisões da política nacional, não só é impossível de atingir, numa sociedade industrial moderna, mas é incompatível com os valores liberais da dignidade individual, liberdade pessoal e justiça social. Os esforços feitos nos Estados Unidos para estimular a participação das massas na política estão totalmente equivocados.... O elitismo é uma característica necessária de todas as sociedades.... Não há uma solução para o elitismo, porque este não é o problema da democracia.... A pergunta, então, não é como combater o elitismo e dar o poder às massas.... mas como construir uma sociedade justa, ordenada e humana". (Thomas R. Dye e L. Harmon Zeigler, The Irony of Democracy, p. 363) Como foi visto, a sociedade norte-americana orienta-se por dois princípios básicos e antitéticos: um princípio de igualdade e um princípio de desigualdade. (Cfr. Lloyd Warner, American Life, Dream and Reality, p. 20) Esta coexistência de um princípio democrático e igualitário falso, mas aceito por muitos, com uma realidade hierarquizante, imposta pela vida, cria uma situação desagradável, que a simples afirmação da existência inevitável das desigualdades não elimina. Esta dicotomia entre a ideologia e o estilo de vida tem sido uma feição constante da elite social norte-americana, como indica Lloyd Warner: "Sua ideologia oficial é sempre pesadamente democrática e igualitária, mas seu comportamento e seus valores tendem a destacá-las [as elites sociais] como sendo superiores e diferentes das classes abaixo delas". (Lloyd Warner, American Life, Dream and Reality, p. 116) Tais princípios antitéticos levam as elites, enquanto tais, a se coibirem em sua expansão natural. Elas ficam — para usar a expressão francesa — coincées, quer dizer, apertadas no canto o mais possível, sem poder dispensar à sociedade todos os benefícios que delas se pode esperar. Seria difícil tratar deste fenômeno nos Estados Unidos sem concluir que esta antítese é ruinosa para o país. Pois muitos daqueles que pertencem às elites estão teoricamente convencidos de que elas não devem existir. E esta convicção de homens de elite impede em algo a expansão das próprias elites em sua plenitude natural; como se fosse alguma coisa que agisse sobre uma árvore, de maneira que seus galhos não pudessem crescer. É importante compreender que o fenômeno "elites", como tudo quanto está debaixo da alçada do homem, é suscetível de exageros e de excessos. Mas, pelo pânico de um excesso, não se deve cair no outro. Ora, no presente caso, se passa de um excesso ao outro. Realmente, pelo pânico do fortalecimento exagerado da elite, se passa a uma debilitação da mesma; ou seja, a elite fica raquítica, pelo menos em alguns de seus aspectos. Ora, um dos frutos das elites é produzir um tipo humano; e este tipo humano faz ver a superioridade dos tipos convenientes a situações de elite sobre tipos convenientes a situações que não são de elite. Esta distinção, porém, entra em choque com uma concepção democrática da vida. Por exemplo, nos Estados Unidos pode haver uma empresa colossal cujos dirigentes tenham também um poder colossal, mas que desenvolvam um esforço colossal para parecer, o mais possível, pessoas que não formaram em si um tipo humano em harmonia com aquela situação de elite que ocupam. Temos assim o paradoxo de uma sociedade que se rege por princípios democráticos e igualitários, e que, entretanto, não pode subtrair-se à organicidade social, que inevitavelmente gera hierarquias. Escreve a este respeito Joseph Fichter: "Entre nós existe a curiosa combinação de uma sociedade realmente estratificada com uma repugnância geral a admitir a presença de uma estratificação". (Joseph Fichter, "Sociologia" - São Paulo: Herder, 1969, p. 100) Na introdução ao livro de Dixon Wecter sobre a história das elites nos EUA, Louis Auchincloss declara: "A existência de uma alta sociedade [nos Estados Unidos] parece a muitos a perpetuação de uma arqui-heresia no próprio santuário da democracia, um barulho vulgar quebrando o silêncio imposto pelo sonho americano". (Louis Auchincloss, Introduction to: Dixon Wecter, The Saga of American Society. A Record of Social Aspiration 1607-1937 - New York, Charles Scribner’s Sons, 1969, p. XIV) Origens e efeitos do paradoxo americano O paradoxo norte-americano nasceu, a bem dizer, com a própria república. Conseqüentes com a ideologia republicana, os "pais fundadores" da novel nação elaboraram um arcabouço legal e institucional, no qual os privilégios aristocráticos não tinham lugar. Por exemplo, o primeiro artigo da Constituição proibiu a concessão de títulos de nobreza pelo governo republicano, como também a aceitação — por aqueles que ocupassem cargos públicos — de títulos dados por soberanos ou governos estrangeiros. "Os Estados Unidos não poderão outorgar títulos de nobreza. Nenhum cidadão que ocupe um cargo público poderá, sem o consentimento do Congresso, aceitar nenhum emolumento, cargo ou título de qualquer Rei, Príncipe ou Estado estrangeiro". (Constituição dos Estados Unidos da América, Artigo 1, Seção 8) Outros amparos legais de uma aristocracia hereditária, como o morgadio e a primogenitura, foram gradualmente abolidos nas primeiras décadas da república. (Cfr. parte II,12 deste estudo) Porém, com formas e modos variados, os sentimentos aristocráticos persistiram ao longo da história do país. Privados de seus tradicionais padrões de hierarquização social, os americanos procuraram outros padrões, movidos pelo próprio vigor orgânico da sociedade. Segundo David Potter, com a república os americanos rejeitaram os status sociais hereditários, mas não os adquiridos. Como todos devem ter algum tipo de identidade e posição na sociedade, os americanos se viram forçados a encontrar suas identidades, e iniciaram uma feroz competição para alcançar posições de certo nível social. Mas esta luta em busca do sucesso gera inevitavelmente pressões e tensões de toda ordem. Para muitas pessoas tais tensões são literalmente intoleráveis. É significativo que muitas das formas mais características de doença mental, nos Estados Unidos, são aquelas derivadas de um senso de inadequação e insegurança pessoal, inspirado por um implacável sistema competitivo em todos os campos da vida. (Cfr. David Potter, Freedom and its Limitations in American Life - Stanford, Ca.: Stanford University Press, 1976 pp. 28-29) O mesmo fenômeno é constatado por Lipset e Bendix: "Nas culturas que aceitam a idéia de aristocracia, e que explicitamente reconhecem a existência de classes, é possível a um indivíduo ignorar as distinções de status social, sem sentir por isso sua posição econômica ou social ameaçada". Porém, numa sociedade que não reconhece a hereditariedade como critério da diferenciação social, os indivíduos vêem-se forçados a procurar diversos status para afirmar sua posição, sob pena de perderem-se no anonimato da sociedade republicana. (Seymour Martin Lipset e Reinhard Bendix, Social Mobility in Industrial Society, p. 48) Assim, os Estados Unidos apresentam o paradoxo de uma sociedade com limites de classes e uma elite diligente no cultivo das distinções de status, mas ao mesmo tempo teoricamente convencida de que estas não devem existir. Por isso Edward Pessen pôde afirmar: "Os Estados Unidos apresentam uma situação paradoxal, na qual a maioria das pessoas parece ignorar inteiramente o significado, e mesmo a própria existência das distinções de classe, as quais, porém, têm de fato uma importância central na vida americana". (Edward Pessen, Status and Social Class in America, in: Making America, p. 279) 5. Conceito e fontes de status na sociedade norte-americana A hierarquização social nos Estados Unidos é feita de uma combinação de muitos fatores, alguns bem definidos, outros mais imponderáveis, que não encontram expressão institucional. Para designar esta combinação, freqüentemente é utilizado o termo "status". Joseph Fichter assim o define: "O status social é a situação, categoria ou posição que, na própria sociedade, é concedida objetivamente a alguém por seus próprios contemporâneos". (Joseph Fichter, "Sociologia" - São Paulo: Herder, 1967, p. 59) Neste sentido, todo mundo tem um "status", quer dizer, um lugar na sociedade, segundo o conceito de seus contemporâneos. Porém, a expressão é usada mais freqüentemente para referir-se especialmente aos status sociais elevados, isto é, às situações próprias às classes altas. Os elementos para definir o conceito de "status social" são assim descritos por Richard Coleman e Lee Rainwater: "Quando os norte-americanos descrevem como classificam socialmente seus conhecidos e a si próprios, eles não falam só de renda, ou de renda acrescida de educação e do cargo que ocupam. Eles incluem muitos outros elementos no quadro: altos padrões morais, história familiar, participação na comunidade, sociabilidade, maneiras de falar e aparência física. Muito poucos destes critérios podem ser medidos, e não foram medidos quantitativamente em estudos sobre fatores de status. Estes, nós chamamos os pontos finos da posição social". (Richard Coleman e Lee Rainwater, Social Standing in America. New Dimensions of Class - New York, Basic Books, 1978, p. 22) Entre as fontes de status social nos Estados Unidos, os sociólogos norte-americanos destacam: riqueza, família e parentesco, educação, pertencer a associações e clubes, cargo e autoridade. Robert Nisbet mostra como a riqueza, atual ou passada, é uma fonte de status elevado: "Mesmo onde a riqueza não é o critério direto e imediato para se ter um status elevado, nem um meio para ter acesso direto a um status elevado, a presença da riqueza ou o fato de que a família ou pessoa algum dia teve riqueza é normalmente tido como manifestação de status elevado.... Nos Estados Unidos também é assim. A riqueza.... é um critério importante para outorgar nível dentro da ordem social". (Robert Nisbet, The Social Bond, pp. 191-192) Porém, nem toda riqueza confere status social igual. Em seu livro sobre as classes sociais nos EUA, Lloyd Warner distingue vários tipos de riqueza, cada qual conferindo sucessivamente um nível menor de status social. A riqueza herdada é a que mais prestígio traz, pois significa que a família foi rica por várias gerações. A riqueza adquirida por meio de negócios, permitindo ao seu possuidor viver de rendas, proporciona um status social mais elevado do que o daqueles que têm de trabalhar para viver. (Cfr. Lloyd Warner, Social Class in America, pp. 139-142) Também Coleman e Rainwater indicam que a riqueza herdada, que esteve com a família por várias gerações, é a que confere maior prestígio: "Isto é verdade para todas as classes sociais: os que herdaram a riqueza que possuem, em todos os níveis econômicos, são considerados por seus conhecidos como exemplos de pessoas de condição social superior.... Isto é especialmente verdadeiro para as classes altas". (Richard Coleman e Lee Rainwater, Social Standing in America, p. 50) Por outro lado, a diferença entre as fontes de riqueza para a aquisição de status é constatada pelo Prof. Robert Bierstedt: "Mesmo quando a riqueza é adquirida por meios legais e éticos, há outras diferenças a serem apontadas. O dinheiro adquirido com laxantes, depilatórios, cosméticos, produtos medicinais, filmes ou pequeno comércio não tem o mesmo ‘nível’ que o dinheiro adquirido na indústria do aço, em ferrovias, madeireiras, empresas de navegação, em finanças e na indústria pesada". (Robert Bierstedt, The Social Order - New York, McGraw Hill, 1974, p. 469. Bierstedt era professor de Sociologia da Universidade da Virginia) Os estudos sociológicos mostram invariavelmente que os que dirigem os rumos dos Estados Unidos são as classes mais abastadas. Afirmam Prewitt e Stone: "O minúsculo grupo, composto principalmente por homens, que dirige a economia política dos Estados Unidos, provém quase exclusivamente das famílias mais ricas da sociedade. Poucas pessoas atingem posições eminentes na vida política ou econômica sem que tenham nascido ricas, adquirido riqueza cedo nas suas vidas, ou tido acesso a ela". E mais adiante acrescentam: "Os níveis mais ricos da população fornecem a grande maioria das pessoas que constituem as elites. As mais altas posições são quase sempre preenchidas por homens de prósperas famílias do mundo profissional ou dos negócios, ou por homens que se tornaram eles mesmos importantes profissionais ou homens de negócios". (Kenneth Prewett e Alan Stone, The Ruling Elite, pp. 136-137) Não se deve, porém, superestimar a importância da riqueza como critério de status social elevado nos Estados Unidos. Como bem pondera Vance Packard, "as pessoas da verdadeira classe alta procuram fazer crer que a riqueza tem pouca relação com sua eminência social. Esta se deveria mais bem a seu estilo de vida elegante e gentil, obtido como resultado de um gosto refinado e berço ilustre. Nas pequenas comunidades, o fato de descender de uma ‘antiga família’ é particularmente importante." (Vance Packard, The Status Seekers, pp. 8, 39) Talvez nenhum outro critério, nem mesmo a riqueza, seja tão importante na determinação do status social como o é a família. "Uma das principais funções da família — diz o sociólogo Kingsley Davis — consiste na atribuição do status social. Diz-se que os filhos ‘adquirem a condição dos pais’, subentendendo-se daí que estes possuem uma posição comum para transmitir, e que a criança recebe automaticamente o respectivo status, na sua qualidade de membro da família". (Kingsley Davis, "A Sociedade Humana" - Rio de Janeiro, Fundo da Cultura, 1964, p. 91) O conhecido sociólogo Max Lerner deixa bem claro a importância da família para ter alto status social em nosso país: "Em um lugar situado entre uma aristocracia hereditária de origem rural e uma elite de poder cuja riqueza foi adquirida, está aquilo que os jornais norte-americanos denominam ‘sociedade’. A mera riqueza não lhe abre as portas, como penosamente aprenderam numerosos homens ricos e suas esposas ao estudar o Registro Social. Nascimento e família são a chave para a admissão, e até muitos se desclassificaram pelo casamento com pessoas abaixo de seu nível social.... Em comunidades como as antigas cidades de Nova Inglaterra, apenas as Old Families ocupam as mais altas posições sociais. As New Families, embora possam pertencer à plutocracia e manobrar uma riqueza muito maior, não possuem o mesmo carisma". (Max Lerner, America as a Civilization - New York, Henry Holt and Co., 1987, p. 481) Um estudioso da família na sociedade norte-americana moderna é Robert Nisbet. Aplicando este conceito aos Estados Unidos, ele afirma: "Mesmo nos Estados Unidos democráticos de hoje encontramos regiões onde a ascendência familiar é essencial para ter status social. Talvez as mais conhecidas sejam certas regiões do Sul e da Nova Inglaterra — as chamadas Primeiras Famílias da Virginia, e os Cabots, Lowells e Lodges de Massachusetts. Mas há outras regiões no Centro-Oeste e no Oeste, onde a ascendência familiar, independente de outros fatores, pode conferir alto status". (Robert Nisbet, The Social Bond, pp. 196-197) À semelhança da nobreza européia, os membros das famílias norte-americanas de elite, ao se casarem, tomam muito em consideração os interesses do clã, as alianças com outras famílias poderosas, formando redes familiares que tendem a dominar a vida econômica e social do país. Stephen Birmingham, conhecido historiador da classe alta tradicional norte-americana, escreve sob o sugestivo título de "casamento real": "O casamento é, hoje como ontem, o que propulsiona uma dinastia, um império familiar. As famílias proeminentes ligam-se umas às outras diante do altar, em uniões de romance e de poder, tecendo uma rede de exclusividade e privilégio ao longo dos anos, quase impenetrável para os de fora.... e própria a confundir os genealogistas". (Stephen Birmingham, America’s Secret Aristocracy – Boston, Little, Brown & Company, 1987, p. 23) A iguais conclusões chega William Domhoff, ao afirmar que "as Primeiras Famílias de Boston tendem a se casar entre elas, numa forma que lembra muito os casamentos planejados da realeza européia". (William Domhoff, The Higher Circles, The Governing Class in America, p. 77) Estes contínuos casamentos entre pessoas da classe alta acabaram por formar uma rede social de antigas famílias, em que as pessoas têm status não só enquanto indivíduos, mas também enquanto membros dessa rede. A este respeito escreve Nathaniel Burt, historiador da classe alta de Filadelfia: "Tão importante quanto ser membro da família, talvez até mais importante, é ser membro dessa rede". (Nathaniel Burt, The Perennial Philadelphia, p. 42) Em algumas regiões dos Estados Unidos, especialmente no sul e na Nova Inglaterra, constituíram-se verdadeiras famílias patriarcais, que tendiam a incluir até a sociedade heril, à maneira das velhas famílias aristocráticas européias. Escreve C. Wright Mills: "Na Nova Inglaterra e no sul.... existe um senso familiar, talvez mais abarcativo, e que, especialmente no sul, além dos netos, chega a incluir velhos serventes fiéis. O senso de parentesco pode ser estendido até àqueles que, embora não aparentados por matrimônio ou sangue, são considerados ‘primos’ ou ‘tios’, porque ‘cresceram com a mãe’. Desta forma, as antigas famílias da classe alta tendem a formar grandes famílias extensas, cuja devoção ao clã e senso de parentesco as levam a ter uma reverência pelo passado e, freqüentemente, um vivo interesse pela história da região onde o clã, por tanto tempo, desempenhou um papel tão honroso". (C. Wright Mills, The Power Elite, p. 32) Por último, é preciso registrar que estes clãs tendem a manter o patrimônio dentro das famílias, formando-se assim verdadeiras dinastias, não sem semelhança com as dinastias aristocráticas européias. Talcott Parsons explica que "nas famílias de elite há uma tendência para a transmissão por varonia e primogenitura. Entre outros, este aspecto as assemelha às aristocracias históricas européias.... Há uma tendência à continuidade da propriedade familiar, especialmente ligada a uma residência ancestral, e à continuidade do status dentro de uma comunidade determinada". (Talcott Parsons, The Kinship System of the Contemporary United States, p. 29) Max Lerner mostra que, mesmo dentro da estrutura administrativa de uma moderna sociedade anônima, as decisões mais importantes são tomadas por aqueles que pertencem a famílias tradicionais: "Aqueles que vieram das camadas mais baixas da classe média, geralmente não têm a palavra final sobre as decisões de uma sociedade anônima, mesmo que ocupem altos postos na administração. A palavra final geralmente é dada por aqueles que, por pertencerem a uma elite de nascimento e serem possuidores de fortuna e poder há várias gerações, tenham o prestígio que reforça suas qualidades e seu valor enquanto participantes na direção da empresa". (Max Lerner, America as a Civilization - New York, Henry Holt and Co., 1987, pp. 480-481) Embora não seja automático, o fato de ter uma educação apurada habitualmente confere status social nos Estados Unidos. "A correlação entre educação e status, nos EUA de hoje, é muito estrita. De todos os modos de subir na escala social, os realizados na educação têm sido, historicamente, dos mais efetivos", afirma Robert Nisbet. (Robert Nisbet, The Social Bond, pp. 193-194) Entre outros critérios, os membros das elites norte-americanas se distinguem das outras classes por sua educação. Relata William Domhoff: "Desde a infância até a maioridade, os membros da classe alta recebem uma educação distinta. Esta educação começa cedo, nas escolinhas maternais, freqüentemente dependentes das paróquias dos bairros de classe alta. A educação continua em colégios particulares. Pelo menos dois anos serão passados num colégio interno (privativo da classe alta).... O cerne da educação das classes altas são as dezenas de tais colégios privativos, fundados na segunda metade do século passado e no início deste.... Baltzell conclui afirmando que estes colégios.... tiveram um papel preponderante ‘na criação de uma cultura de classe alta a nível nacional’". (G. William Domhoff, Who Rules America Now - New York, Simon and Schuster, 1963, pp. 24-25) Ciosas de suas maneiras e tradições, as classes altas começaram a estabelecer suas próprias instituições educacionais. Os colégios internos particulares, nos Estados Unidos, foram inspirados nos colégios ingleses para as elites — como Eton e Harrow — que educam há séculos as elites britânicas. (Vance Packard, The Status Seekers, p. 237) Segundo o já mencionado John Ingham, estas escolas privadas cumpriam quatro funções sociais: "Primeiro, isolavam as crianças pertencentes às antigas famílias da classe alta dentro de ambientes homogêneos, onde elas não se misturavam com pessoas de outros meios sociais. Segundo, serviam para aculturar os membros das gerações mais jovens, especialmente aqueles que não nasceram na classe alta. Terceiro, forneciam os meios adequados para a formação de amizades duradouras entre jovens da classe alta de diversas cidades. Finalmente, estas escolas, normalmente situadas em cidades pequenas ou no campo, isolavam os jovens do ambiente cada vez mais urbano e heterogêneo de suas próprias comunidades". (John Ingham, The Iron Barons: A Social Analysis of an American Urban Elite - Westport, Conn., Greenwood Press, 1978, p. 93) C. Wright Mills tira as conclusões: "As escolas privadas são uma instituição importante na preparação das crianças da classe alta para viverem nos cumes da nação, de maneira condizente com seu status, na tarefa de seleção e educação dos novos membros da classe alta, bem como na manutenção dos altos padrões entre as crianças de famílias que já pertencem há muito tempo aos cumes". (C. Wright Mills, The Power Elite, p. 64) A quase idêntico resultado chega Domhoff, ao afirmar que "o sistema de educação separada [dos membros das classes altas] é uma prova importante da diferenciação da mentalidade e dos estilos de vida dentro da classe alta. Pois as escolas têm um papel destacado na transmissão da estrutura de classe a seus alunos. As escolas ensinam o vocabulário e a inflexão de voz, os estilos de vestir-se, os gostos estéticos, valores e maneiras [próprios à sua classe]" (G. William Domhoff, Who Rules America Now, p. 24). No seu estudo sobre os internatos de alto nível, Cookson e Persell igualmente concluem que "as famílias de elite utilizam os internatos para manter sua classe social, [pois] suas motivações, programas e estilos de vida ajudam a transmitir poder e privilégio". (Peter W. Cookson e Caroline Hodges Persell, Preparing for Power, p. 4) Em toda cidade ou região existe uma verdadeira hierarquia de clubes. Pertencer a um determinado clube é fator importante na determinação do status social da pessoa. "Toda cidade americana com um vestígio de tradição — diz Dixon Wecter — tem um clube de homens eminentemente respeitável, situado numa mansão de pedra ou tijolo, de arquitetura pesada mas imponente.... Eis o seu refúgio [dos cavalheiros] contra o pandemônio do comércio, a aceitação da democracia e o feminismo de nossos lares". (Dixon Wecter, The Sage of American Society, in: John Ingham, The Iron Barons, p. 96) Nem todos os clubes têm igual nível: "Cada cidade tem seus clubes de elite e seus clubes de vestíbulo. Existe uma clara hierarquia de clubes", informa Vance Packard. E continua: "A maioria dos atuais aristocratas, ou suas famílias, pertenceram aos clubes de vestíbulo durante sua ascensão ao poder, podendo continuar ou não a ser membros dos mesmos, uma vez atingido o clube de elite". (Vance Packard, The Status Seekers, pp. 179-180) Em seu clássico estudo sobre a classe alta nos Estados Unidos, Digby Baltzell escreve: "Na maioria das grandes cidades norte-americanas há um ou dois clubes masculinos de categoria, cujos membros dominam a vida social e econômica da comunidade". (Digby Baltzell, Philadelphia Gentlemen, pp. 335-336) Alguns clubes são bem antigos, como o Philadelphia Club, que data de 1830; o Union Club e o Century, ambos em Nova York, fundados em 1836 e 1847 respectivamente; o Sommerset, de Boston, fundado em 1851; e o Pacific Union, de San Francisco, fundado em 1857. Estes clubes são tão importantes para a formação dos adultos da classe alta, como os colégios internos o são para as crianças. A este respeito comenta Domhoff: "Assim como os colégios privados são um fator característico na vida das crianças de classe alta, assim também os clubes privados são um fator importante na orientação das vidas dos adultos da classe alta. Estes clubes têm um papel importante na diferenciação entre os membros da classe alta e os membros das outras classes sociais". (G. William Domhoff, Who Rules America Now - New York, Simon and Shuster, 1983, p. 28) Como os colégios, estes clubes também realizam a importante função social de pôr em contato membros das elites das várias partes do país. Os clubes da classe alta são o mais das vezes exclusivos, e não é raro que sejam tão fechados a ponto de passar largamente despercebidos pelos membros de outras classes. Comenta a este respeito C. Wright Mills: "Não é raro que os cavalheiros pertençam a três ou quatro clubes. Estes clubes são exclusivos, no sentido de que sua existência não é muito conhecida das classes média e baixa.... Estes clubes são da, pela e para a classe alta, e mais ninguém.... Para os de fora, pertencer a tais clubes é, para um homem ou uma mulher de classe alta, um sinal de seu status. Para os de dentro, o clube oferece um ambiente íntimo, uma sensação de clã que situa e caracteriza as pessoas [da classe alta]". (C. Wright Mills, The Power Elite, p. 61). Alguns destes clubes são tão exclusivos, que mesmo pessoas da classe alta têm dificuldade em se tornar membros. Num livro sobre a classe alta de Boston, Cleveland Amory afirma: "Os principais clubes de Boston são tão exclusivos, que mesmo pessoas de sangue azul precisam tomar muito cuidado para ser aceitas". (Cleveland Amory, The Proper Bostonians - New York, E.P. Dutton and Company, 1947, p. 358) Por último, estes clubes servem para introduzir os novos ricos nos círculos da classe alta, no ritmo que sua assimilação exija, e não rápido demais. Diz C. Wright Mills: "Pertencer a certos clubes adquire uma grande importância social quando os meramente ricos tentam penetrar nos círculos da classe alta.... Os clubes constituem degraus importantes na escala social para as pessoas que querem galgar posições. Eles são a porta de entrada dos novos na classe alta, pois estes e seus filhos podem avançar nesta escala, de um clube para o próximo, até atingirem a cidadela interna dos clubes mais exclusivos". (C. Wright Mills, The Power Elite, pp. 61-62). Comentando a ascensão social das famílias, Lloyd Warner escreve: "Uma família só entra no mais alto nível da classe alta após ter participado por várias gerações do estilo de vida desta. Os novos membros da baixa classe alta.... só conseguem ser finalmente aceitos como membros verdadeiros da mais alta classe com o tempo, freqüentemente após três ou mais gerações". (Lloyd Warner, American Life. Dream and Reality, p. 117) Não só a classe alta procura associar-se em clubes exclusivos, para manter seu caráter próprio. Existem também clubes que congregam pessoas das classes médias. "Abaixo dos clubes aristocráticos — comenta Ingham — existe uma série de clubes menores que seguem mais ou menos o mesmo padrão em todas as cidades". (John Ingham, The Iron Barons, p. 97) Existem também associações profissionais que formam verdadeiras elites em seu campo. Michael Powell mostra como exemplo o caráter elitista da Association of the Bar of the City of New York (ABCNY, Associação de Advogados da Cidade de New York). Diz Powell: "A aristocracia [de advogados e juízes] criou a ABCNY como uma associação legal patrícia, com exigências para a aceitação de membros parecidas com as dos clubes da classe alta. Mantendo noções patrícias de profissionalismo, e geralmente opostos às tendências democráticas dentro da profissão, eles exigem altos padrões para aceitar novos membros". (Michael Powell, From Patrician to Professional Elite. The Transformation of the New York City Bar Association - New York: Russell Sage Foundation, 1988, p. 226). Pressionada pelas profundas mudanças culturais e sociais, a ABCNY viu-se forçada a admitir uma maior variedade de membros a partir dos anos 60. Seu caráter elitista, porém, continua, como o próprio Powell mostra. "O cargo que ocupamos — explica Vance Packard — é um poderoso fator na fixação de nosso status social aos olhos do público". Após analisar os vários elementos que conferem prestígio social a um cargo, ele conclui com uma tabela de 61 profissões e ofícios, em ordem decrescente de prestígio, segundo o conceito do público norte-americano. No topo estão os cargos de juiz, bispo, executivo de empresa, altas patentes das Forças Armadas, e alguns expoentes de profissões liberais. Na base estão os ofícios servis. (Vance Packard, The Status Seekers, p. 93. Cfr. também pp. 112-113) No mesmo sentido, Robert Bierstedt pondera: "Aqueles que têm cargos importantes terão também, com raras exceções, alto status nas suas comunidades.... Um bispo episcopaliano, por exemplo, poderá ter uma renda pequena, mas sua condição de bispo lhe confere um prestígio que lhe permite ter um status elevado na escala social.... Pelo contrário, as rendas dos atletas profissionais e das celebridades do mundo dos espetáculos às vezes atingem somas astronômicas, sem que isto influa muito para melhorar sua posição na escala social". (Robert Bierstedt, The Social Order, p. 471) O fato de ter um alto nível de autoridade sempre foi, ao longo da História, fonte de status numa sociedade, segundo constata Nisbet: "A posse de autoridade sempre foi considerada, por si mesma, um indicador de status. Sem levar em conta a riqueza, a educação e as origens familiares, a posição de autoridade que a pessoa ocupa e o grau de influência que ela exerce sobre outras pessoas são suficientes para lhe conferir um nível social razoavelmente elevado". (Robert Nisbet, The Social Bond, p. 192). Numerosos estudos mostram que esta regra se verifica também nos Estados Unidos. (Cfr. Frederic Cople Jaher, The Urban Establishment – Chicago, University of Illinois Press, 1982, pp. 718-719) Vemos pois que, pelo próprio sistema da livre iniciativa, existem nos Estados Unidos muitos e variados modos de o indivíduo adquirir status social, o que geralmente comporta um amálgama de vários destes fatores, quase sempre intimamente relacionados entre si. 6. A hereditariedade do status social tende a formar uma aristocracia Os sociólogos constatam também que o status adquirido tende naturalmente a difundir-se, a começar pela família. Pela própria estrutura orgânica desta, quando um de seus membros adquire um status destacado por mérito próprio, este é participado pelos parentes, tornando-se assim patrimônio familiar. E, destarte, o status social tende naturalmente a tornar-se hereditário. "Muitas vezes é esquecido o caráter hereditário do status. Porém, mesmo em nosso sistema social extremamente móvel, o status herdado é a regra, e o adquirido a exceção". (Egon Ernest Bergel, Social Stratification - New York, McGraw-Hill, 1962, p. 265) A este respeito diz Robert Bierstedt: "As sociedades consideram a unidade da família algo extremamente importante, pois a própria sobrevivência da sociedade depende, pelo menos em alguma medida, de um sistema familiar.... Por isso, as esposas adquirem o status dos maridos, os filhos o status dos pais. Assim, a estratificação social passa a ser um fenômeno familiar e de grupo. Mais tarde, este status familiar se torna hereditário" (Robert Bierstedt, The Social Order, pp. 453-454). Um exemplo disto é a transmissão, de pai para filho, de cargos no setor industrial e comercial. Os sociólogos descobrem que, na maioria dos casos, os negócios são passados de pai para filho, estabelecendo-se assim uma continuidade familiar de patrimônio e carreira. Diz Robin Williams: "Uma revisão global dos estudos a respeito das profissões de pais e filhos mostra que estes geralmente seguem a profissão de seus pais". (Robin M. Williams Jr., American Society, p. 117) O mesmo constata Ralph Linton: "Mesmo quando as divisões sociais nascem das diferenças de capacidades entre os indivíduos, parece haver uma forte tendência a se tornarem hereditárias. Os possuidores de um status privilegiado almejam transmitir as vantagens por eles obtidas aos seus descendentes.... Em muitos casos, isto resulta na organização da sociedade numa série de classes ou castas hereditárias. Estas são sempre utilizadas como pontos de referência para a conferição de status". (Ralph Linton, The Study of Man - New York, Appleton, Century, Croft, 1964, pp. 126-127) Quando esta transmissão de status é realizada dentro das linhagens familiares da classe alta, começam a se constituir — apesar do arcabouço democrático do Estado — os fundamentos de uma verdadeira aristocracia, como observam Lipset e Bendix: "Os homens e mulheres de situação elevada geralmente tentam conservar seus privilégios para transmiti-los aos seus descendentes. Um ‘bom’ pai é aquele que procura passar ao seu filho o status de que ele goza. Em muitas sociedades esta transmissão dá-se também aos parentes próximos e distantes. Donde, em toda sociedade complexa, estratificada.... existir uma tendência para a aristocracia e uma limitação da mobilidade". (Seymour Martin Lipset e Reinhard Bendix, Social Mobility in Industrial Society, p. 2) A constituição de tal aristocracia é ainda fomentada pela natural tendência das famílias de nível social semelhante a se relacionarem e casarem entre elas. Estes grupos hereditários, constituídos por pessoas de classe alta, são nos Estados Unidos uma elite análoga à nobreza titulada européia. Declara Bierstedt: "Quando a endogamia de classe — isto é, o casamento dentro da própria classe social — é promovida e praticada amplamente, o status da classe pode ser perpetuado por períodos relativamente longos. Em algumas sociedades isto é simbolizado por títulos e perpetuado por uma nobreza hereditária. A importância da família e do parentesco como critério de classe pode variar de uma sociedade a outra, mas sempre existe. Nos Estados Unidos, por exemplo, basta mencionar as famílias Adams e Lowell, de Massachusetts, e as famílias Byrd e Randolph, da Virginia". (Robert Bierstedt, The Social Order, pp. 469-470) Concluímos, pois, com Martin Stansfield, que tem fundamento sociológico falar de uma aristocracia nos Estados Unidos: "Algumas pessoas pensam que a aristocracia americana morreu 200 anos atrás, quando os títulos hereditários foram abolidos pela Constituição. Mas isto não é verdade. Não há títulos hereditários nos Estados Unidos, mas a aristocracia, em todos os outros sentidos da palavra — gente de qualidade, educação, influência e riqueza — .... está viva e pujante neste país". ("American Aristocracy is Very Much Alive and Growing", "U.S. News and World Report", 12 de dezembro de 1983, p. 64) 7. Transmissão hereditária das qualidades e do mérito como patrimônio familiar A transmissão hereditária do status através da família é um fato constatado e estudado por muitos sociólogos. Porém, além do status, as qualidades também podem ser transmitidas pela família. Cada geração transmite à subseqüente seus próprios valores morais e culturais, o que torna cada uma das gerações capaz de impor-se pelos seus próprios méritos. Esta sucessão de qualidades próprias a uma família, ao longo de suas várias gerações, é um fato constatado pelo sociólogo Nathaniel Burt, que a apresenta como normal na sociedade americana: "A sucessão de méritos [em cada uma das gerações].... é hereditária. Ela propulsiona a família, estabelece o prestígio familiar, e confere à sociedade norte-americana um passado forte e um presente perfumado pelo berço, pelas boas maneiras e pela tradição. O que temos? Todos os elementos que formam os apêndices, se não o cerne de uma aristocracia". (Nathaniel Burt, First Families, The Making of an American Aristocracy – Boston, Little, Brown & Co., 1970, p. 431) Por sua vez, Walter Muir Whitehill observou que muitas famílias de elevado status social mantiveram "um extraordinário realce no cenário nacional, geração após geração. Esta é a versão americana de aristocracia, uma aristocracia de realização, alcançada por um considerável e inteligente esforço, porém impondo às sucessivas gerações uma responsabilidade tão inescusável, e algumas vezes tão restritiva, como aquela observada nas aristocracias tradicionais da Europa. (Walter Muir Whitehill, Reflections of Europe in the Wilderness: American kinds of aristocracy and of inequality, in: American Civilization, Daniel J. Boorstin, ed. London, Thames and Hudson, 1972, p. 156) E Pio XII, em uma das suas alocuções ao Patriciado e à Nobreza Romana, referiu-se especificamente à transmissão das qualidades morais e espirituais pela família, ao longo das gerações, como foi visto no Capítulo V,2 de "Nobreza e Elites Tradicionais Análogas". A transmissão hereditária do mérito, embora intimamente relacionada com a das qualidades, tem recebido escassa atenção e pode parecer estranha a muitos. Porém ela mereceu atenção de sociólogos como Bernard Farber, que admite a transmissão hereditária de algo mais que o mero patrimônio material. "Possivelmente o mais valioso patrimônio de um grupo familiar, além da riqueza, é sua posição perante outros grupos familiares em termos de honra e de status, posição esta definida pelo conteúdo do patrimônio moral que este grupo familiar possui. Este patrimônio moral inclui os feitos e as honrarias conquistadas por aqueles indivíduos, vivos ou mortos, pertencentes a tal grupo familiar. Geralmente falando, as famílias podem tornar-se conhecidas por meio de um grande antepassado, por sua riqueza ou pelos empreendimentos pessoais. Uma função dos grupos familiares na estratificação social é a de perpetuar e realçar estes patrimônios morais, que se tornam assim uma parte importante da cultura familiar". (Bernard Farber, Kinship and Class - New York: Basic Books Inc., 1971, p. 8) Para uma mentalidade democrática, que só reconhece a recompensa devida ao mérito pessoal, a transmissão hereditária dos méritos seria uma das grandes injustiças de um regime aristocrático, em que muitos já nascem numa situação vantajosa, ou seja, num status social e econômico herdado de seus antepassados. Porém, se muitos negam que o mérito possa ser herdado, muitos também julgam razoável que a gratidão possa ser manifestada não só diretamente na pessoa do benfeitor, mas também em seus descendentes. Assim, quando alguém recebe de outro um grande favor, pode retribuí-lo em forma de benefício para o filho do benfeitor. Por exemplo, se um homem recebe de outro um auxílio para ajudá-lo a sair de uma situação difícil, uma vez que esta tenha sido superada o beneficiado pode perfeitamente manifestar sua gratidão na pessoa do filho do benfeitor. E ninguém, ou quase ninguém, julgaria estranha ou injusta esta forma de manifestar a gratidão. Portanto, segundo o senso comum de todas as épocas, pode-se retribuir na pessoa do filho uma gratidão devida ao pai. Isto se deve ao princípio de que todo o patrimônio do pai é hereditário. Este princípio faz com que também o patrimônio moral do pai seja hereditário. O seja, os favores, as atenções, etc, que o pai fez a diversas pessoas ou ao Estado. O pai ama no filho uma projeção de sua própria personalidade. De maneira que ele considera como um bem feito a si próprio o bem feito ao filho. Assim, manifestar o gratidão devida ao pai na pessoa do filho é reconhecer neste um prolongamento do pai, uma continuidade hereditária entre pai e filho. Isto que se passa entre duas pessoas, pode passar-se também entre um indivíduo e o Estado, sendo este o beneficiário da ação meritória, e aquele o benfeitor. Por exemplo, um pai que prestou insignes serviços a um rei ficou credor do afeto desse rei, portanto credor de um bem puramente moral, inavaliável em termos materiais. Mas como ficou credor do afeto, ficou credor também do benefício. E o rei deve dar aos filhos o pagamento devido ao pai, na falta deste. Em nossa história colonial este fato se observou quando William Penn recebeu do rei Carlos II a colônia da Pennsylvania, em agradecimento pelos serviços que seu pai havia prestado aos Stuarts. De acordo com o historiador George Tindall, "após a morte de seu pai, Penn herdou a amizade dos Stuarts e um substancioso patrimônio, inclusive o direito à devolução de um considerável empréstimo que seu pai havia feito à Coroa.... Em 1681 ele recebeu de Carlos II os direitos de donatário sobre uma extensa área na América. A terra foi denominada, por insistência do rei, em honra do pai de William Penn: Pennsylvania". (George Tindall, America: A Narrative History, p. 34) Portanto, um grande homem que tenha prestado assinalados serviços ao seu país — por sua coragem, zelo, dedicação e competência, seja no campo militar, político, diplomático ou cultural — pode ter a gratidão que lhe é devida, manifestada também em seus descendentes. Gratidão esta reconhecida não só pelo Estado, mas também pelo público em geral. É inegável, por exemplo, que ser um descendente de George Washington — ou de algum outro grande homem de nosso país — pelo simples fato de o ser, o torna alvo de uma consideração especial e contribui para acrescentar algo ao seu status na sociedade americana. Este acréscimo de status não provém dos méritos do indivíduo em questão, mas dos méritos e dos feitos de George Washington, e da gratidão que a nação tem para com seus fundadores.8 8 - Um caso muito bonito e exemplificativo dessa forma de hereditariedade ocorreu durante a guerra civil espanhola. Os comunistas haviam condenado à morte o Duque de Veráguas, último descendente de Cristóvão Colombo, cuja linhagem desapareceria se ele morresse. Todas as nações da América, embora repúblicas, escreveram uma carta ao governo comunista espanhol, pedindo clemência para o condenado, a fim de que não se extinguisse a descendência do descobridor da América. O pedido foi acolhido, e o governo, embora comunista, libertou o Duque. Este fato é um reconhecimento de que a gratidão pode ser manifestada num descendente daquele que teve algum mérito. Além disso, cumpre acrescentar que a legitimidade de serem os descendentes credores do mérito ou da gratidão devida aos antepassados é sancionada pelo próprio Deus, em diversas passagens da Escritura. Pois é sabido que Ele várias vezes poupou castigos ou concedeu favores ao povo eleito, em atenção aos méritos de seus grandes vultos, como Abraão, Isaac, Jacob, David e outros.9 9 - O livro do Eclesiástico, ao tratar dos antigos patriarcas, diz: "Louvemos os varões ilustres, os nossos maiores, a cuja geração pertencemos.... É por causa deles que os seus filhos permanecem para sempre; e nem a sua raça nem a sua glória terão fim" (44:1,13). E logo adiante, ao falar de Abraão: "Abraão foi o glorioso pai de uma multidão de nações; e não foi encontrado outro semelhante a ele em glória; guardou a lei do Excelso, e com Ele entrou em aliança. Em sua carne ratificou esta aliança, e na prova foi achado fiel. Por isso, jurou o Senhor que o havia de glorificar em sua descendência.... e que exaltaria a sua posteridade.... E com Isaac procedeu do mesmo modo, por amor de Abraão, seu pai" (44:20-24) Também papas e santos constataram e ratificaram a transmissão dos méritos e das qualidades dos antepassados aos seus descendentes. Em suas alocuções ao Patriciado e à Nobreza Romana, ou à Guarda Nobre Pontifícia, Pio XII por mais de uma vez a isso se refere.10 10 - "Recordando os vossos antepassados, vós como que os reviveis. E vossos antepassados revivem nos vossos nomes e nos títulos que vos deixaram, pelos seus méritos e grandezas.... As desigualdades sociais, inclusive as ligadas ao nascimento, são inevitáveis.... Nenhum artifício jamais logrou ser tão eficaz a ponto de fazer com que o filho de um grande chefe, de um grande condutor de multidões, permanecesse em tudo no mesmo estado de um obscuro cidadão perdido no povo". (Ver: Documentos I, PNR, 1942). "Saudamos em vós os descendentes e representantes de famílias que se assinalaram outrora no serviço da Santa Sé e do Vigário de Cristo, e permaneceram fiéis ao Pontificado Romano, mesmo quando este se encontrava exposto a ultrajes e perseguições.... A um tal atestado de reconhecida memória — que deve igualmente servir de impulso para o futuro — também o homem moderno, se quiser ter sentimentos de retidão e equanimidade, não pode negar compreensão e respeito". (Idem, PNR, 1950). "A nobreza de sangue, vós a pusestes ao serviço da Igreja e para a guarda do sucessor de São Pedro; nobreza de obras esplêndidas de vossos maiores, que vos nobilita a vós mesmos, se tiverdes o cuidado de, dia a dia, aumentardes em cada um de vós a nobreza da virtude". (Ver: Capítulo II, 3, GNP, 1941). Santos como São Carlos Borromeo deixaram bem claro ser legítima a herança do mérito e das qualidades de antepassados: "Se, pois, se deve considerar nobre aquele que tira sua origem do mérito de antepassados ilustres, quão grande é a nobreza de Maria, que teve princípio de geração em reis, patriarcas, profetas e sacerdotes da tribo de Judá, da raça de Abraão, da estirpe régia de David. "Antes de tudo, o esplendor do sangue, a virtude dos antepassados e os feitos famosos predispõem de modo maravilhoso o varão nobre a marchar sobre as pegadas daqueles de quem descende". (Ver: Documentos IV,8 - Homilia em 8/9/1584).
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