Plinio Corrêa de Oliveira

 

Nobreza e elites tradicionais análogas nas alocuções de Pio XII ao Patriciado e à Nobreza romana

 

Apêndice à edição Norte-Americana

Setembro de 1993

 

ESTADOS UNIDOS: NAÇÃO ARISTOCRÁTICA NUM ESTADO DEMOCRÁTICO

 

Nota Introdutória

 

Este apêndice analisa a história social Americana sob a perspectiva das teses a respeito de nobreza e elites tradicionais análogas expostas pelo Prof. Plinio Corrêa de Oliveira na Parte I do livro ( Ver Nobility and Analogous Traditional Elites in the Allocutions of Pius XII para a versão em Inglês e Nobreza e elites tradicionais análogas nas alocuções de Pio XII ao Patriciado e à Nobreza romana para a versão em português ), e foi preparado por uma comissão da American Society for the Defense of Tradition, Family and Property (TFP). As pesquisas e trabalhos desta comissão foram feitos sob direta orientação e coordenação do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira.

 

INTRODUÇÃO Índice

Ao longo dos capítulos I a VI, o presente livro procurou especialmente mostrar a legitimidade, a utilidade e o papel da nobreza e de outras elites tradicionais dentro do corpo social em nossos dias. Especialmente considerada foi a nobreza tradicional no contexto europeu, isto é, a nobreza militar de origem rural.

Pio XII, em suas memoráveis alocuções ao Patriciado e à Nobreza Romana — nas quais se inspira o presente livro — tinha em vista não só aquela nobreza da Cidade Eterna, mas também todas as nobrezas européias de seu tempo. E os temas por ele abordados não se restringem a problemas específicos da aristocracia romana.

Em algumas alocuções, como foi visto, o Pontífice também discorreu a respeito das elites análogas à nobreza, e da função que elas deveriam desempenhar em toda a sociedade atual.1

1 - A respeito das elites tradicionais e de sua missão na sociedade hodierna, nas alocuções de Pio XII, ver o capítulo V, itens 1, 2, 7, 9 e 12; e capítulo VI, item "Direção e Absenteísmo". Sobre as elites tradicionais como novas modalidades de nobreza, ver capítulo VII, 9.

Em conseqüência, a inclusão das elites análogas no presente estudo sobre a nobreza tem toda a razão de ser. Assim como a evolução da vida social, na Idade Média, conduziu organicamente à formação dessa nobreza histórica, processos sociais posteriores deram legitimamente origem a linhagens familiares antigas e de elevada cultura no setor do magistério, da magistratura, da administração pública, do comércio e da indústria. Famílias dessas, a evolução social as estabeleceu em todas as nações do Ocidente. Elas passaram a constituir um corpo privilegiado ao lado da nobreza histórica, ou seja, verdadeiras elites análogas à nobreza.

Esta forma de nobreza não era militar nem de origem rural, mas de ordem cultural e administrativa, surgida de uma tradição hereditária no serviço público ou na direção de empreendimentos da primeira importância na esfera da economia privada.

Isto desmente, desde já, a idéia estreita a respeito da nobreza européia como tendo sido uma casta fechada, inacessível aos que estavam fora dela. Mas, ao mesmo tempo, pode-se levantar uma interrogação de especial interesse para os Estados Unidos de hoje em dia. Se tal foi na Velha Europa a formação de elites tradicionais paralelas à nobreza, sob o influxo de circunstâncias ideológicas, sociais e econômicas bem conhecidas, é o caso de perguntar se as circunstâncias análogas existentes na América do Norte, desde a época colonial, também produziram tais elites, se estas têm tido duração suficiente para serem qualificadas justificadamente de tradicionais, qual é o posicionamento delas na sociedade democrática norte-americana, etc.

Sendo um processo orgânico, tal geração de elites semelhantes à nobreza continua até nos nossos dias, mesmo em meio às ciclópicas transformações de ordem social, política, econômica e cultural. Ponderação importante, pois para não poucos leitores contemporâneos a idéia de nobreza é arcaica. Para eles, dedicar um livro ao tema poderia parecer uma infração de um dos princípios mais enraizados da mentalidade moderna, contido no famoso aforismo time is money. Um tal livro seria perda de tempo, pois pareceria não ter aplicação prática próxima.

Longe de querer extrair de arquivos poeirentos ou de mostruários de museus uma nobreza da qual se imagina que é intrinsecamente estagnada e cheirando a mofo, o presente trabalho procura mostrar como uma sociedade sadia precisa desenvolver-se de tal forma que as elites, tanto as tradicionais quanto as emergentes, encontrem seu lugar para poderem exercer sua benéfica função diretiva no corpo social.

Que subsista este processo em países que ainda mantêm o regime monárquico — mesmo constitucional — não é de surpreender. Mas alguém poderia levantar uma pergunta: Existe ele também nas sociedades democráticas que, por definição, estão baseadas na negação dos privilégios hereditários? A esta pergunta pode-se responder que estudos contemporâneos mostram quanto é útil e natural a estratificação social em qualquer forma de governo e, portanto, a subsistência deste processo orgânico de geração de elites em todas as sociedades humanas, qualquer que seja sua índole.

E isto, até mesmo no tocante às sociedades humanas morbidamente constituídas. Também estas geram elites. Elites, sim, no sentido também mórbido do termo. E que, ao contrário das sociedades sadias, geram monstros. É o caso da "nomenklatura" comunista e outras formas de elites discriminatórias e opressivas, nascidas das desigualdades mórbidas que o regime comunista não pôde evitar de criar.

Seria um estudo interessante, porém impraticável no escopo de um livro, analisar o desenvolvimento das elites análogas nas diversas sociedades de nossos dias. Tal trabalho exigiria uma enciclopédia.

O presente livro oferece subsídios para ilustrar a evolução dessas elites no Novo Mundo — tanto o nascido da tradição católica e latino-ibérica, como o de origem predominantemente protestante e anglo-saxônica — tendo em vista sua importância no concerto das nações ocidentais.

No Brasil este processo ocorreu espontaneamente, dando origem a uma aristocracia variada, denominada de "nobreza da terra", com tradições e privilégios próprios. Na Hispano-América a geração da aristocracia local teve um caráter mais institucional, e freqüentemente deu-se por decreto real ou por processos regidos por leis positivas. Ambas aristocracias assim formadas contribuíram possantemente para o desenvolvimento de culturas próprias nos respectivos países, diferenciando-se deste modo, e gradualmente, das aristocracias das metrópoles e das outras colônias.

Houve algo de análogo nos Estados Unidos da América do Norte? A própria pergunta poderia surpreender. Com efeito, segundo a idéia corrente, quiçá nunca tenha havido na História país com condições mais inovadoras do que os Estados Unidos, nascidos de uma revolução que pretendeu instaurar um novus ordo seculorum, cindido do grande tronco da civilização européia, desprezada como velha e decadente, vítima das taras que seriam típicas das sociedades aristocráticas.2

2 - "Novus ordo seculorum" é o lema dos Estados Unidos, gravado no Selo de Estado.

Descrevendo as diferenças entre o Novo e o Velho Mundo, escreve o historiador Gordon Wood: "Os intelectuais liberais europeus do século XVIII, partindo de confusas idéias políticas, elaboraram uma imagem do Novo Mundo que contrastava agudamente com o Velho, atolado no que eles acreditavam ser uma sociedade feudal em decadência, debilitada por uma cultura e um refinamento excessivos. Os iluministas europeus viam nos americanos este ‘povo iluminado’.... O Novo Mundo parecia estar singularmente livre das restritivas diferenciações sociais: uma sociedade naturalmente igualitária, jovem, rústica, cheia de vitalidade, por vezes até assustadora e fascinantemente bárbara, porém sem o sufocante e corruptor refinamento do Velho Mundo. Na mente de não poucos filósofos franceses, a América se tornara ‘uma miragem no Ocidente’, símbolo de sua nova ordem tão sonhada". (Gordon Wood, The Creation of the American Republic, 1776-1787 - New York: W.W. Norton & Company, 1969, p. 98)

Os Estados Unidos são universalmente considerados a nação republicana por excelência, que consagrou em sua própria Declaração de Independência o princípio de que "todos os homens são criados iguais"; a nação dos "self-made men", onde todo mundo pode prosperar "from rags to riches" (dos trapos à riqueza); a nação das liberdades individuais, onde a autoridade e a hierarquia são vistas com desconfiança; a nação onde a polida elegância do cerimonial aristocrático europeu cede lugar à simplicidade desenvolta das maneiras democráticas; a nação na qual as considerações de ordem estética e espiritual passam a um segundo plano diante do pragmatismo e do "common sense".

O enorme fluxo de imigrantes, vindos de quase todos os quadrantes do globo, contribuiu para acentuar ainda mais essas características do país, parecendo enterrar definitivamente qualquer veleidade de geração de elites tradicionais locais.

As próprias palavras "nobreza norte-americana" poderiam parecer totalmente incompatíveis entre si.3 Porém, uma vez que houve nobreza e elites análogas nos países da América Latina — nascidos também eles de revoluções igualitárias, largamente inspiradas na Revolução Francesa — não é ocioso perguntar se teria havido também uma aristocracia norte-americana.4 Falamos de aristocracia, e não de nobreza, pois nos EUA — exceto no período colonial, e com características próprias — nunca houve nobreza titulada.5

3 - Comentam os sociólogos Kenneth Prewitt e Alan Stone: "A palavra ‘elite’ arranha os ouvidos da maioria dos norte-americanos. Como ‘racismo’ ou ‘socialismo’, ‘elite’ é um termo por demais duro e anti-americano para obter ampla aceitação. É de esperar, por isso, que o termo seja pouco usado nas reportagens e nos discursos políticos. Usar uma expressão como ‘elite política’ é quase negar que ‘todos os homens são criados iguais’, e, portanto, negar a própria Declaração de Independência [onde tal frase se encontra]". Kenneth Prewitt & Alan Stone, The Ruling Elites: Elite Theory, Power and American Democracy, (New York: Harper and Row, 1973), p. 2.

4 - Tendo em vista haver uma analogia entre as elites tradicionais das três Américas e da Europa, os autores, por comodidade de expressão, designam freqüentemente como "aristocracia" determinadas elites tradicionais nos Estados Unidos. É claro que os grupos humanos que se podem chamar de aristocráticos têm muitas diferenças entre si. Estas diferenças, como é natural, são observadas não só entre as diversas elites norte-americanas que se podem chamar de aristocráticas, como também entre estas e suas similares latino-americanas e européias.

5 - Pouco antes da Independência, a Coroa inglesa iria começar a outorgar títulos de nobreza a cidadãos proeminentes das colônias americanas, com o fim de formar uma aristocracia titulada local, e assim solucionar a crônica instabilidade da sociedade colonial. Isto, aliás, foi um dos fatores que precipitaram a Revolução Americana, pois os revolucionários não desejavam tal solução (Cfr. Gordon Wood, op. cit., pp. 111-112).

A pergunta sobre a eventual existência de elites análogas à nobreza, nos Estados Unidos, desperta portanto um interesse fundamental. A resposta positiva a tal indagação tornaria imperativa uma profunda e desapaixonada revisão de não poucos clichês a respeito dessa grande nação do norte, tornados obsoletos pela própria evidência dos fatos. Os Estados Unidos apareceriam sob outra luz. A miragem do "american way of life", criada especialmente pelo cinema de Hollywood, se esvairia diante da constatação de que, nos Estados Unidos como em qualquer sociedade, o processo de geração de elites análogas existiu, e até, por certos lados, com características mais marcantes do que nas sociedades ibero-americanas.

O interesse dessa constatação não é válido apenas em relação aos Estados Unidos, mas, a bem dizer, tem um alcance mundial. Com efeito, é inegável que o fascínio do mito hollywoodiano do "american way of life" esteve na raiz de profundas transformações psicológicas, culturais e sociais na Europa, América Latina e outras partes do mundo, onde a influência da cultura norte-americana se fez sentir. Acreditando ver nesse mito o caminho do futuro, inúmeras pessoas adaptaram a ele seu temperamento, suas idéias, seu próprio modo de ser, o mais das vezes abandonando as tradições e usos de sua própria cultura. Os efeitos deletérios desta verdadeira revolução cultural, sob a égide do mito liberal norte-americano, não devem ser subestimados.

O presente estudo procura fornecer alguns subsídios para formar uma idéia mais real sobre a grande nação norte-americana, assim corrigindo distorções que muito pesaram nos rumos de tantos países.

De outro lado, o problema das elites análogas nos Estados Unidos reveste-se também de interesse doutrinário especial. Tal estudo permitiria ver como, na espontaneidade de uma organização social, política e econômica inteiramente liberal, elas foram surgindo, como uma espécie de livre empresa social.

Não se trata aqui de procurar nos Estados Unidos uma nobreza histórica militar, medieval, nem seus descendentes trazidos às plagas americanas pelo infortúnio ou pelo desejo de aventura. O que interessa é constatar a existência de elites análogas à nobreza, e seu importante papel na vida política, econômica, social e cultural do país.

Levantar a questão da existência de elites análogas tem um especial interesse para os Estados Unidos de hoje. De fato, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, importantes setores da classe média norte-americana têm-se tornado um campo fértil para a germinação dessas elites.

O que tem caracterizado até agora a sociedade norte-americana é um desejo, um élan de promoção que, sob os mais variados aspectos, se faz sentir na imensa maioria de seus habitantes. É o desejo de promoção da própria pessoa, da própria família e da própria classe, de maneira que a pessoa, a família e a classe procuram, de todos os modos possíveis, aprimorar seus conhecimentos, sua condição de vida e o produto de sua atividade profissional.

Daí decorre que as camadas inferiores da classe média já possam dispor de um padrão de vida que, na geração anterior, era o de classes mais elevadas.

Foi também observado em outras camadas da classe média, especialmente naquelas onde se encontravam os setores mais intelectualizados da sociedade norte-americana, um grande aprimoramento cultural, que se deveu, pelo menos em parte, à presença de professores europeus lecionando em universidades norte-americanas.

Houve também, de modo geral, uma elevação do nível cultural nas universidades norte-americanas. Além disso, muitos norte-americanos foram à Europa e a outros lugares para fazer estudos históricos, literários, científicos, etc.

Produziu-se então, nesses setores intelectualizados da classe média, uma convergência entre esta elevação do nível intelectual e do padrão de vida, com os já existentes hábitos democráticos igualitários. Nela, o igualitarismo mantinha uma certa vulgaridade, porém a produção intelectual, por sua vez, fazia recuar o igualitarismo e elevava esta classe.

A triunfar a cultura sobre os preconceitos igualitários, tal triunfo fará de tais setores da classe média norte-americana um elemento de solidez e de fecundidade, para que dela brotem cada vez mais as elites análogas.

Como se situa então, nos Estados Unidos, o problema das elites análogas à nobreza? A fim de contribuir para uma adequada resposta a esta questão, é que sai a lume o presente estudo.