Plinio Corrêa de Oliveira

 

EM DEFESA DA

AÇÃO CATÓLICA

O presente texto é transcrição da edição fac-símile comemorativa dos quarenta anos de lançamento do livro, editada em Março de 1983 pela  Artpress Papéis e Artes Gráficas Ltda - Rua Garibali, 404 - São Paulo - SP - Brasil

CAPÍTULO II

Admissão de novos membros

 

Se considerarmos as ideias em voga, em certos círculos da A.C., sobre o critério a seguir, para recrutar novos membros, encontraremos ainda aí um efeito desastroso das doutrinas sobre a ação mágica da participação litúrgica e da graça de estado na A.C..

Recrutamentos tumultuários

 Conhecemos o fato concreto de certo membro da A.C., que trabalha em um ambiente todo ele maciçamente hostil à Igreja, e que foi interpelado por um elemento “exaltado” sobre os motivos por que ali não fundava um setor da A.C.. Dado o vigor da interpelação, e o inesperado da idéia, julgou ele que o interlocutor desconhecesse inteiramente as condições do ambiente em questão. Este, porém, se apressou em desmenti-lo, entrando na mais pormenorizada descrição das peculiaridades desse meio. O interpelado mostrou-se então surpreso com a ideia. E o interlocutor lhe disse: “O Senhor não sabe o que é a A.C.! Que ela se encha de maçons e de quaisquer outros elementos do mesmo naipe e, dentro em pouco, estarão todos convertidos.”

Esquece-se assim a palavra do Espírito Santo: “Não introduzas em tua casa toda a sorte de pessoas, porquanto são muitas as traições do doloso. Porque assim como sai um hálito fétido de um estômago estragado, assim é também o coração do soberbo, daquele que está espiando para ver a queda do seu próximo. Porque ele arma ciladas convertendo o bem em mal. Uma só faísca produz um incêndio, e um só doloso derrama muito sangue, e o homem pecador arma traições para o derramar. Evita o homem corrompido, pois está forjando males, para que não faça cair sobre ti uma perpétua infâmia. Dá entrada em tua casa ao estranho, e te derrubará como um torvelinho, e te tornará estrangeiro aos teus (Eclesiástico, IX, 31-36).

E acrescenta: “Não te fies jamais do teu inimigo, porque, como vaso de cobre, cria azinhavre sua malícia. E, se ele todo humilhado vier cabisbaixo, põem-te alerta, e guarda-te dele. Não o ponhas junto de ti, para que não suceda que ele ocupe tua cadeira, e que reconheças por fim as minhas palavras, e não tenhas pena ao lembrar-te dos meus avisos” (Eclesiástico XII, 10-12).

Fala-se muito em apostolado de infiltração. Não se pensa que nossos adversários estão na prática secular deste hábito? O ínclito bispo D. Vital, reinante Pio IX, publicou um opúsculo em que informava que certos adversários da Igreja passaram muito tempo comungando diariamente das mãos do Pontífice, a fim de Lhe captar a confiança.

Pensem na gravíssima responsabilidade que sob todos os pontos de vista lhes cabe, os que advogam a admissão, em massa, de membros na A.C.. De certo modo, dirige-se aos que recrutam tumultuariamente os colaboradores da Hierarquia o que o Apóstolo advertia: “Não te apresses em impor as mãos a ninguém, e não te faças participante dos pecados dos outros” (I, Tim., 5, 20).

No entanto, esse principio errôneo, enunciado com toda seriedade, e que parece inexplicável se não for considerado em conjunto com o automatismo litúrgico, dá a medida de critério com que muita gente pretende praticar A.C.. Esse erro se repete com crescente freqüência em muitos círculos de estudos, e daí nasceu a perigosíssima doutrina de que na A.C. devem ser recebidas a esmo quaisquer pessoas, e, a breve espaço, admitidas a prestar compromisso; o ingresso no estágio depende da vontade da pessoa, e o compromisso se faz três meses depois; logo em seguida ao compromisso, pela ação maravilhosa do mandato adquirido, e da mágica litúrgica, os novos membros se transformarão em elementos ótimos. Em outros termos, como a pedra filosofal, a A.C. teria o raro condão de transformar em ouro tudo quanto dela se acercasse. Como vemos, é sempre o mesmo automatismo a produzir suas conseqüências lógicas.

Diminuem a dignidade da A.C.

Seria supérfluo desenvolver qualquer argumentação exaustiva, em sentido contrário a tal doutrina. Digamos simplesmente sobre o assunto algumas rápidas palavras.

Preliminarmente, lembremos a contradição em que caem certos partidários do mandato, desposando esta estranha doutrina. Desejam conferir sem discernimento, o mandato da Igreja a elementos, a respeito dos quais se tem muitas vezes toda razão de supor que, sob uma tênue camada de Fé, conservam a herança pesada de longo passado vivido fora da Igreja. É isto realmente esbanjar despreocupadamente o dom de Deus, é olvidar o conselho de Nosso Senhor que não se devem atirar pérolas a pessoas indignas, “a fim de que elas as calquem com seus pés e voltando-se contra nós dilacerem” (Math. 7,6).

O douto Papa Leão XIII enunciou a este respeito um princípio que não podemos de modo algum olvidar:

“É coisa evidente que, quanto mais um oficio for elevado, complexo, difícil, tanto mais longa e esmerada deve ser a formação dos que forem chamados a desempenhá-lo” (Leão XIII, Encl. “Depuis le jour”, de 8 de Setembro de 1899).

São improfícuos

Seria errôneo pretender que a necessidade de um rápido desenvolvimento da A.C. autoriza tais facilidades. A vida espiritual impõe, como condição de perseverança, a prática de deveres por vezes heróicos e ninguém pode saber que grau de fortaleza oferecerão elementos tumultuariamente recrutados, quando tiverem de sofrer as “provas de fogo” da luta interior. Ademais, a que resultados concretos chegaremos, com esses recrutamentos em massa, já que os mesmos elementos que os aconselham se mostram infensos a que a A.C. determine expulsões e imponha penas?

Tem-se a impressão clara de um conjunto de preceitos tão desassisados que, se tivessem sido calculados para pôr a pique o movimento católico, não poderiam realmente ser mais funestos.

Particularmente no Brasil

Como adiante veremos, deve a A.C. ser um movimento de elite, se realmente quiser ser fecundo. Compreende-se que a fascinação dos grandes movimentos de massa possa iludir os dirigentes católicos de alguns países. No Brasil, porém, a mais rápida análise dos fatos mostra que não são as massas que nos fazem falta, mas elites bem formadas, aguerridas e disciplinadas que saibam, no momento dado, imprimir a todo o laicato católico uma orientação segura e realmente conforme às intenções da Autoridade Eclesiástica. Vários países pagaram caro sua ignorância deste principio, e só se têm lembrado de formar elites sob o fogo das perseguições. Não façamos como eles, e saibamos prevenir para que amanhã não sejamos forçados a remediar.

Qual então a linha de conduta a ser seguida pela A.C.? Resumamo-la nos seguintes princípios:

Como deve ser feito o recrutamento de membros da A.C.?

1. O apostolado da A.C. deve dirigir-se indistintamente a todos os homens, por mais distantes que estejam da Igreja, procurando fazer chegar a todos o conhecimento da doutrina Católica, e quanto mais ampla for nesse sentido sua atividade, tanto mais perfeita será. Pelo rádio, pela imprensa, por todos os outros meios deve incessantemente dirigir-se a voz da A.C. “increpando, arguindo, exortando, em tempo oportuno” segundo conselho do Apóstolo;

2. Lendo a Sagrada Escritura, ou observando diretamente as almas afastadas de Deus, vê-se que algumas possuem uma dureza que as torna surdas a qualquer apostolado. Essa surdez vai tão longe que, às vezes, chega a se mostrar refratária aos maiores milagres. Já tratamos deste assunto no capítulo anterior. Outras, pelo contrário, se mostram receptivas e sensíveis, e basta por vezes um simples chamado, para que elas sigam a Jesus Cristo, tomando sobre os ombros a cruz, deixando todas as coisas, e trilhando as sendas do Mestre;

3. Se bem que, por vezes, se encontrem entre os maiores pecadores as almas mais sensíveis, o que alias só acontece por uma ação extraordinária da graça, não é esta a regra geral, e a Teologia nos ensina que os extremos do mal embotam a alma e a tornam, de modo quase absoluto, refratária à ação da graça: “um abismo atrai outro abismo” diz a Escritura;

4. Reciprocamente, as pessoas de vida mais morigerada são as que habitualmente se dispõem a subir mais alto, porque a correspondência a uma graça predispõe sempre à correspondência a graças ainda maiores;

5. Em vias de regra, pois, é nos ambientes morigerados e de modo especialíssimo entre os membros das associações religiosas que a A.C. deve recrutar os elementos que passarão a fazer parte dela. Se bem que o prudente critério de um Assistente Eclesiástico, ou de um leigo muito experimentado possa abrir uma ou outra exceção, por discernir o trabalho oculto da graça em alguma alma chamada desde logo, dos extremos da impiedade para os extremos do amor, seria temerário e até prejudicial fazer, de elementos largamente transviados, os recrutas normais da Ação Católica;

6. Estabelecer tais exceções deve ser atribuição exclusiva de espíritos de especial discernimento, pois que a Ação Católica se exporia do contrário às mais variadas aventuras e à censura de todos os espíritos criteriosos.

*   *   *

Massa ou elite?

Situa-se aí um problema de importância verdadeiramente central. Será a A.C. um movimento de massa ou de elite? Os Sumos Pontífices têm insistido com tanta freqüência sobre a idéia de que a A.C. deve ser um movimento de elite, que ninguém ousa contestá-los. Isso não obstante, opinam certos comentadores por uma solução que, sem transgredir de frente as determinações pontifícias, contudo é contrária a estas.

Pretende-se que a A.C. deve ser um movimento simultaneamente de massa e de elite, isto é que, ao par de elementos de escol, dever-se-iam admitir nela, como membros de compromisso prestado, pessoas de uma formação muito pouco esmerada, que iria sendo fermentada e transformada pela elite.

Para que melhor percebamos o erro que se contém nessa concepção, aparentemente muito lógica, devemos esclarecer bem os termos do problema. MASSA indica um grande número de pessoas, e ao menos em tese, devemos admitir a possibilidade da existência de elites tão vastas, que possam constituir uma multidão. Assim, pois, é certo que a A.C. seria ideal se ela se compusesse de uma inumerável multidão de pessoas verdadeiramente bem formadas, de elementos de escol dentro da Santa Igreja. Neste sentido, de bom grado concedemos que a A.C. possa vir a ser de futuro, ao mesmo tempo um movimento de massa e de elite. Mas neste sentido é bem de se ver que a palavra “massa” deverá ser tomada em uma acepção bem menos ampla do que geralmente possui.

Uma alternativa fundamental

Entretanto, não é sempre que se pode chegar a tão brilhantes resultados, e, sobretudo, não é logo nos primeiros anos de trabalho que se chega a tão feliz situação. Por mais virtuosos e doutos que sejam os Assistentes Eclesiásticos, os dirigentes e os militantes, acontecerá muitas vezes que os corações se fechem ao apostolado. Deixemos a este respeito, de romantismos apostólicos, e não imaginemos que a A.C. possui uma vara de condão que abrirá inelutavelmente todos os corações. Por melhores apóstolos que sejamos, nunca poderemos igualar-nos a Nosso Senhor, e, entretanto, quantos foram os corações que se fecharam à sua voz! Quantos foram os que se fecharam à voz dos Apóstolos, e dos inúmeros Santos que a Igreja tem produzido! A experiência de todos os dias nos mostra o que também a Hagiografia ensina: há pessoas, famílias, classes sociais, às vezes, cidades inteiras que permanecem surdas à voz de Deus.

Disse-o o próprio Salvador: “Porque Deus não enviou seu Filho ao mundo, para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele. Quem nele crê não é condenado, mas quem não crê, este já está condenado, porque não crê no nome do Filho unigênito de Deus. E a condenação está nisto: a luz veio ao mundo, e os homens amaram mais as trevas do que a luz, porque as suas obras eram más. Porque todo aquele que faz o mal, aborrece a luz, e não se chega para a luz, a fim de que não sejam argüidas suas obras; mas aquele que pratica a verdade, chega-se para a luz, a fim de que as suas obras sejam manifestas; porque são feitas segundo Deus” (S. João, III, 17-21). Pouco adiante, ainda diz o Senhor, de Si mesmo: “Ele testifica o que viu e ouviu, mas ninguém recebe o seu testamento” (S. João, III,31).

E por isso disse o Mestre da cegueira dos fariseus: – Eu vim a este mundo para exercer um juízo; para que os que não vêem vejam, e os que vêem se tornem cegos. E ouviram isto alguns dos fariseus que estavam com ele, e disseram-lhe: porventura também nós somos cegos? Jesus disse-lhes: se vós fosseis cegos, não teríeis culpa; mas pelo contrário, vós dizeis: nós vemos. Fica pois subsistindo vosso pecado” (S. João, IX, 39).

É, pois, muito explicável que S. João tenha escrito no prólogo de seu Evangelho: “Nele estava a vida e a vida era a luz dos homens. E a luz resplandeceu nas trevas, e as trevas não a compreenderam”. E o Apóstolo acrescentou: “era a luz verdadeira que ilumina todo o homem que vem a este mundo. Estava no mundo e o mundo foi feito por ele, e o mundo não o conheceu. Veio para o que era seu, e os seus não o receberam”.

De tudo isto, guardemos uma conclusão importante. Nem os maiores milagres de Nosso Senhor venceram a obstinação de certas almas. A. A.C. não deve, pois, esperar que ela leve de roldão todos os obstáculos, e não esbarre, por sua vez, ante almas endurecidas.

Ouçamos S. João (XII, 37-42) e seu comentário acerca do endurecimento de alguns corações, mesmo ante os maiores milagres de Nosso Senhor: “E tendo ele feito tantos milagres em sua presença não criam nele, cumprindo-se a palavra do profeta Isaías, quando disse: “Senhor, quem creu o que ouviu de nós? E a quem foi revelado o braço do Senhor? Por isso não podiam crer porque Isaías disse também: “Obcecou-lhes os olhos e endureceu-lhes o coração, para que não vejam com os olhos e não entendam com o coração, e não se convertam e eu não os sare. Isto disse Isaías, quando viu a sua glória e falou dele. Todavia, também muitos dos principais creram nele; mas, por causa dos fariseus, não o confessavam, para não serem expulsos da sinagoga. Porque amaram mais a glória dos homens do que a glória de Deus”.

O mesmo pode suceder à A.C.; e ainda que não esbarre em todas as portas, encontrará muitas e muitas fechadas, como aconteceu a S. Paulo, que falando no Areópago, só arrastou algumas poucas almas. Neste caso, a alternativa se impõe inexorável; e, como esta alternativa já se tem formulado a tantos e tantos bispos e párocos zelosos, a A.C. deve humildemente reconhecer que a ela se lhe anteporá também em muitas ocasiões: ou massa, ou elite.

Com efeito, de nada valeria a alegação de que o homem contemporâneo é de coração muito menos duro que os judeus do tempo de Cristo. O Santo Padre Pio XI, de quem já citamos a opinião de que nossa época se parece com os tempos abominabilíssimos do Anticristo, afirmou na Encíclica “Divini Redemptoris” que o mundo hodierno chegou a tal degradação que está ameaçado de cair ainda mais baixo do que estava antes de Cristo!

Insubstituível fecundidade das elites

A esta inevitável alternativa, respondemos optando decididamente não pela massa, mas pela elite. Os princípios mais fundamentais de apostolado a isto nos levam. Quem tiver lido o admirável livro de D. Chautard, “A Alma de todo apostolado” terá visto por certo que a fecundidade do apostolado resulta muito mais do grau de virtude do apóstolo, do que do talento e das qualidades naturais que ele possa desenvolver, ou do número de auxiliares que inscrever em sua associação. A graça de Deus é que, em última análise, opera as conversões; e o homem não é senão um canal, tanto mais útil, quanto menos obstruído por seus vícios e pecados. Assim, uma pessoa generosa pode trazer para Deus muito maior número de almas do que uma multidão de apóstolos de pouca formação. A vida de um S. Francisco de Sales, de um S. Francisco de Assis, de um Sto. Antônio de Pádua prova-nos, à saciedade, quão verdadeira é esta afirmação. É, pois, no interesse da própria massa, afim de tornar mais ampla a difusão da graça, que devemos preferir que a A.C. seja um punhado de apóstolos verdadeiros, a que se torne vasta e inexpressiva multidão.

O desejo de fazer da A.C. um movimento que, na ilusão de ser de elite e de massa simultaneamente, será, na realidade, só de massa, decorre por vezes do generoso anseio de estender rapidamente os benefícios espirituais da A.C.. Esquece-se de que “Deus não deseja ter uma multidão de filhos infiéis e inúteis” (Eclesiástico, XV, 21-22).

Mas é muito discutível que os recrutamentos tumultuários e rápidos de grandes massas signifiquem efetivamente a distribuição de grandes benefícios espirituais, quando não tenham por base uma levedação lenta, gradual e segura.

A própria experiência que temos sob os olhos prova, à evidência, que os movimentos, que crescem com excessiva rapidez, rapidamente decaem em fervor.

Aos poucos, passado um entusiasmo todo fictício, essas massas se dissolvem, sem que seus elementos hajam melhorado de modo ponderável. E assim se confirma a punição de Deus por esse orgulhoso açodamento: “Os bens que se ajuntam muito depressa diminuirão, mas os que se colhem à mão, pouco a pouco, multiplicar-se-ão” (Prov XIII, 13).

De todos os tempos, preferiu a Igreja um clero pouco numeroso mas santo a um clero pouco santo mas numeroso. Por maior que seja a falta de sacerdotes entre nós, ninguém se lembrou, jamais, de remediar o mal tornando mais elásticas as condições para promoção ao sacerdócio, muito pelo contrário. O mesmo argumento vale, em todo sentido, para a A.C.. Em suma, a A.C. deve fazer uma tal seleção, deve ser uma tal “elite” que possa sempre corresponder à paternal e altiva afirmação de Pio XI: seus membros “são os melhores dentre os bons” (Enc. “Non abbiamo bisogno” de 29-VI-1931).

Meio termo impossível

Mas não poderia a A.C. ser ao mesmo tempo um movimento de massa e de elite, no sentido de conter em seu grêmio, indistintamente, valores espirituais de primeira categoria e uma grande multidão de outros, medíocres ou tíbios?

Consideramos tão infundada a opinião dos que entendem que a A.C. deve ser franqueada até aos elementos que vivem habitualmente em estado declarado de pecado mortal, que é supérfluo discuti-la.

Sustentamos, porém, ainda, que da A.C. não devem fazer parte todos os católicos, que cumpram as mais elementares exigências da lei de Deus e da Igreja, mas somente aqueles que, por sua assídua freqüentação dos Sacramentos, vida modelar e atitudes edificantes, realmente constituem um escol.

Assuntos como estes não devem ser resolvidos de modo puramente teórico, mas com os olhos postos na realidade concreta. E a primeira lição que esta realidade nos oferece consiste em que ninguém, ou quase ninguém, em nossos dias, consegue manter-se na prática, ainda mesmo mínima, dos mandamentos da Lei de Deus, se não se aproximar assiduamente dos Santos Sacramentos. Esta verdade vale para quase todas as idades e condições. Tome-se um jovem, um estudante por exemplo, meça-se a violência da luta que ele deve desenvolver para vencer o tumulto das paixões, as mil e uma solicitações para o mal que a todo o momento lhe vêm dos fatores de corrupção modernos, e pergunte-se se, sem uma vida eucarística real, ele pode vencer o combate. O chefe de família, que tão freqüentemente deve optar entre transações desonestas ou a miséria para o lar, a mãe de família que tantas vezes cumpre com o risco da vida o dever da maternidade, podem dizer melhor do que ninguém se, com uma simples comunhão anual, cumpririam seus deveres.

Assim, é simplesmente temerário afirmar que a mera prática anual dos deveres impostos pela Igreja é critério para diferenciar o católico, que pode ser apóstolo por estar na posse habitual do estado de graça, do que não o é.

Conclui-se daí que, tomando a A.C. por critério de seleção a simples prática da Comunhão e confissão anuais, não poderá preservar-se de ser transformada em uma dessas multidões inexpressivas que, por vezes, são muito mais difíceis de fazer fermentar, do que se possa imaginar.

A isto acresce que, como já dissemos em capítulo anterior, um dos mais importantes deveres que tocam a A.C. é, sem dúvida, o de proporcionar aos seus membros, e, muito particularmente, aos jovens, uma sede social para as horas de lazer. Se a A.C. não quiser fracassar, deverá lançar mão necessariamente deste meio de ação, do qual, com o nome de “Dopolavoro” e “Kraft durch Freude” tanto proveito tiraram o Fascismo e o Nazismo. É esta a grande alavanca de que se serve a mística totalitária. Ora, imagine-se que ambiente de tintas diluídas, que ambiente perigoso por vezes, seria a sede da A.C., em uma paróquia em que todos os católicos de Comunhão e Confissão anuais fossem admitidos em seus quadros. Consciências laxas, eivadas de naturalismo e da infiltração de tantos erros do século, espíritos minimalistas e acomodatícios, tais elementos só serviriam para constituir um ambiente irrespirável, que tornaria nociva ou estéril qualquer iniciativa para o soerguimento das almas.

Como conseqüência, é bem patente que só podem fazer parte da A.C. elementos de escol, assim considerados segundo o melhor critério, que é sempre a vida modelar, ligada à prática assídua – e quanto mais assídua melhor – dos Sacramentos.

A voz dos Papas

Toda razão tinha, pois, o Santo Padre Pio X, quando desejava como colaboradores leigos da Igreja “católicos à toda prova, inteiramente submissos à Igreja e, em particular, a esta Suprema Cátedra Apostólica e ao Vigário de Jesus Cristo sobre a terra; devem ser homens de piedade máscula e verdadeira, de costumes puros e de vida de tal maneira imaculada, que a todos sirva de exemplo eficaz.

“Se o espírito não estiver formado desse modo, não somente será quase impossível agir com reta intenção, mas as forças faltarão para suportar, com perseverança, as contrariedades que traz consigo todo apostolado, as calúnias dos adversários, a frieza e o pequeno concurso dos próprios homens de bem, por vezes enfim, as invejas dos amigos e companheiros de armas, desculpáveis sem dúvida, dada a fraqueza da natureza humana, mas altamente prejudiciais e causas de discórdias, atritos e choques intestinos. Só uma virtude paciente e firme no bem, ao mesmo tempo suave e delicada, é capaz de afastar e diminuir estas dificuldades, de maneira que o trabalho, a que estão consagradas as forças católicas, não seja comprometido” (“Il fermo proposito” de 11 de Junho de 1905). – “Por isto mesmo queria o Santo Padre Bento XV que os apóstolos leigos “fossem profundamente penetrados pelas verdades da Fé Católica, para que cada qual, conhecendo seus deveres e seus direitos, se conduza de acordo com eles”. E o Pontífice acrescenta: “resumimos em uma palavra nosso pensamento: Jesus Cristo deve ser formado nas almas dos fiéis antes que eles possam combater por Ele. Se circunstâncias novas parecem exigir obras novas, só as realizarão sem dificuldade aqueles que... tiverem sido bem preparados para a luta da Lei” (Carta “Acepimus”, de 1º de agosto de 1916). – E Pio XI, na Carta Apostólica sobre S. Luiz de Gonzaga, acrescenta que “aqueles que não possuírem um patrimônio de virtudes interiores, nós não os julgaríamos aptos para as tarefas do apostolado: tanto quanto o bronze que soa ou o tímpano que repercute, eles não poderiam prestar serviços, mas antes prejudicariam a causa que pretendem defender: a experiência de épocas precedentes já o demonstrou.” (Carta Apostólica “Singulare Illud” de 13 de Junho de 1926).

Seria talvez conveniente acrescentar mais um tópico da mesma Carta Apostólica:

“Deve-se fazer sentir aos jovens, inclinados por natureza para as obras exteriores e sempre apressados em se atirar ao campo de batalha da vida, que, antes de pensar nos outros e na causa católica, lhes será necessário lutar por sua própria perfeição interior por meio do estudo e da prática das virtudes” (Pio XI, Carta Apostólica “Singulare Illud”, de 13-6-1926).

Como vemos, nada poderia ser mais concludente.

Desta luminosa doutrina dos Pontífices, não se pode encontrar melhor comentário do que o livro de D. Chautard que já citamos. Para ele remetemos o leitor desejoso de mais extensa argumentação. De tudo quanto ficou dito retenhamos apenas a conseqüência recolhida da pena de Pio XI: serão nocivos à causa da Santa Igreja os católicos que a A.C. recrutar tumultuariamente.

Falta-nos apenas considerar um argumento: se Pio XI convocou todos os fiéis para a A.C., como pretender que só alguns devem entrar na A.C.?

A isto se responde com toda facilidade. Se Pio XI julgava nocivo que na A.C. se aproveitasse a colaboração de “oves et boves... et serpentes” como se poderia pretender que ele teve em mira convocar a todos? É que ele incitou a que todos adquirissem uma formação suficiente, para depois, e, caso a autoridade os julgasse aptos, virem a trabalhar na grande milícia do apostolado. “Muitos, com efeito, são os chamados e poucos os escolhidos” (Mat. XXII, 14).

*   *   *

Vida interior acima de formação técnica

Mas, de que natureza deve ser esta formação?

A este respeito se tem feito, com razão, uma distinção entre formação espiritual, destinada a dotar o apóstolo das virtudes necessárias, e a chamada “formação técnica”, que tem por objetivo ensinar ao estagiário ou membro da A.C. os meios de que se deve servir para tornar eficaz seu apostolado.

Tem-se divulgado, infelizmente, entre nós, a doutrina de que a chamada preparação técnica é muito mais importante do que a preparação espiritual, a tal ponto que, em certos círculos, ocupa lugar preponderante, ou quase exclusivo. Discordamos deste modo de entender. Uma simples localização do problema em seus devidos termos mostra a sua verdadeira solução.

Se bem que se possa estabelecer entre a formação técnica e a formação espiritual uma certa distinção, esta jamais poderá implicar em separação. Com efeito, a formação técnica compreende noções sobre o fim, natureza, estrutura da A.C., suas relações com a Hierarquia e as várias organizações do laicato, o meio de expor a verdade, atrair as almas, e conquistá-las para Jesus Cristo; o devotamento, o entusiasmo, o espírito sobrenatural com que o apostolado deve ser feito, o conhecimento do ambiente e dos problemas sociais, etc.. Ora, sem instrução religiosa séria, sem verdadeiro senso católico, é absolutamente impossível ter-se de todos estes assuntos, uma ideia exata. Os numerosos erros, que neste livro vimos refutando, provam de sobejo quanta razão nos assiste ao afirmá-lo.

Ademais, a posse das qualidades naturais, tão úteis ao apostolado, está longe de ser o fator mais importante do êxito. Prova-o o próprio caráter sobrenatural da comunicação da graça, que é a essência do apostolado. Limitemo-nos somente a narrar aqui um fato típico referido por D. Chautard.

É evidentemente conforme ao bom senso que se desenvolva com todo o esmero a formação técnica. Mas seria um absurdo negligenciar a formação espiritual, sacrificando-a à formação técnica. Antes pelo contrário, se algum sacrifício devesse ser feito, sê-lo-ia necessariamente em detrimento da técnica e em proveito da vida interior. Em outros termos, na ordem dos valores a formação espiritual deve preceder a formação técnica.

Leiamos o esplêndido exemplo que, a este respeito, narra Dom Chautard:

“Uma Congregação de admiráveis Irmãs catequistas era dirigida por um Religioso, cuja vida se escreveu há pouco. “Minha Madre, disse um dia esse homem interior a uma Superiora local, sou de opinião que a Irmã X..., deixe, pelo menos durante um ano, de ensinar o catecismo. – Mas, meu Padre, talvez V. R. não tenha pensado que essa Irmã é a melhor das diretoras. As crianças concorrem de todos os bairros da cidade, atraídas pelas suas maneiras maravilhosas. Retirá-la do catecismo é provocar a deserção da maior parte desses rapazinhos. – Assisti da tribuna ao seu catecismo, respondeu o Padre. Ela deslumbra, com efeito, as crianças, mas de uma forma demasiadamente humana. Após mais um ano de noviciado, melhor formada na vida interior, ela há de santificar então a sua alma e as almas das crianças pelo seu zelo e pela utilização dos seus talentos. Mas atualmente, ela é, sem o pensar, um obstáculo à ação direta de Nosso Senhor sobre essas almas que se estão preparando para a primeira Comunhão. Vamos, Madre, vejo que a minha insistência a contrista. Pois bem: aceito uma transação. Conheço a Irmã N..., alma muito interior, mas sem grandes dotes de inteligência. Peça a Sua Superiora Geral que lha envie por algum tempo. A primeira virá começar por um quarto de hora o catecismo, precisamente para acalmar os seus temores de deserção; depois, pouco a pouco, há de retirar-se completamente. Verá como as crianças rezarão melhor e cantarão mais piedosamente os cânticos. O recolhimento e a docilidade delas hão de refletir então um caráter mais sobrenatural. Esse será o termômetro.

“Quinze dias depois (a Superiora pôde comprová-lo), a Irmã N... dava sozinha as lições e sem embargo aumentava o número das crianças. Era verdadeiramente Jesus que dava o catecismo por ela. Pelo seu olhar, sua modéstia, sua doçura, sua bondade, pela sua maneira de fazer o sinal da cruz ela dizia Nosso Senhor. A Irmã X... conseguia explicar com talento e tornar interessante as coisas mais áridas. A Irmã N... fazia mais. Certamente ela nada negligenciava para preparar as suas explicações e expô-las com clareza, mas o seu segredo, o que dominava no seu curso, era a unção. É por meio desta unção que as almas se põem verdadeiramente em contacto com Jesus.

“Nos catecismos da Irmã N... não abundavam essas expansões ruidosas, esses olhares estupefatos, essa fascinação que, de igual sorte, provocaria qualquer conferência interessantíssima de um explorador ou a comovente narração de uma batalha.

“Ao invés havia uma atmosfera de atenção recolhida. – Aquelas crianças estão na sala do catecismo como na igreja. Nenhum meio humano se emprega para impedir a dissipação ou o aborrecimento. Qual é pois a influência misteriosa que paira sobre essa assistência? Não nos iludamos, é a influência de Jesus que ali diretamente se exerce. Porque uma alma interior, explicando as lições de catecismo, é uma lira que vibra tão somente sob os dedos do Artista divino. E nenhuma arte humana, por maravilhosa que seja, é comparável à ação de Jesus” (“A alma de Todo o Apostolado” – págs. 144-145 da edição portuguesa).

 


 

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