Plinio Corrêa de Oliveira

 

EM DEFESA DA

AÇÃO CATÓLICA

O presente texto é transcrição da edição fac-símile comemorativa dos quarenta anos de lançamento do livro, editada em Março de 1983 pela  Artpress Papéis e Artes Gráficas Ltda - Rua Garibali, 404 - São Paulo - SP - Brasil

TERCEIRA PARTE - Problemas internos da A.C.  

CAPÍTULO I

Organização, Regulamentos e Penalidades - Novas concepções sobre o movimento do laicato católico

 

Se analisarmos a fundo as críticas feitas, em certos círculos da A.C., à organização, bem como aos métodos de formação e apostolado dos sodalícios religiosos até aqui existentes, notaremos que elas se podem dividir em dois grupos. Algumas atingem defeitos extrínsecos, que não existem em razão das finalidades e estatutos das associações, mas apesar deles, como por exemplo uma certa rotina de atividades, uma certa superficialidade de formação, etc.. É óbvio que estas críticas, muitas vezes verdadeiras, nada têm de censurável, quando formuladas por pessoa autorizada, e de acordo com as exigências do decoro eclesiástico. Outras críticas, entretanto, atingem a própria estrutura e fins da associação, e, ferindo precisamente o que a autoridade aprova, ferem implicitamente a própria autoridade. O que estas últimas críticas têm de particularmente perigoso é que elas implicam na afirmação de que a Ação Católica deve evitar cuidadosamente idênticos “erros”. Ora, esses “erros” não são muitas vezes senão precauções altamente salutares, de que a sabedoria da Igreja cercou as associações anteriores a A.C. e que esta deverá conservar, se não quiser morrer torpedeada pelo modernismo.

a) – quanto a várias devoções

É grave erro pretender que as associações erigidas para cultuar determinado Santo, como Nossa Senhora, por exemplo, acarretem o risco de incutir uma visão fragmentária e tacanha da piedade, obnubilando o caráter “cristocêntrico”, que evidentemente toda a vida espiritual deve ter. Por isso, a A.C. deveria ser muito menos insistente, quanto ao culto dos Santos, do que outras associações.

De nada vale o argumento de que, por vezes, em certas associações, a devoção ao Padroeiro deixa na penumbra a figura adorável de Nosso Senhor. Todas as coisas, inclusive as melhores, são passíveis de má interpretação ou abuso, não por causa de um defeito intrínseco, mas em conseqüência de defeitos existentes em quem delas se serve. Assim, ninguém por exemplo será contrário ao culto das imagens, só porque os caipiras de certas zonas do interior as quebram, quando não atendidos em suas preces. É evidente que a Santa Igreja, aprovando, abençoando e recomendando a fundação de tais associações no Código de Direito Canônico, em mil atos oficiais de seu magistério e governo, e ainda recentemente no Concilio Plenário Brasileiro, previu abusos, a despeito do que não recuou em sua linha de conduta, precisamente pelas razões que apontamos. Não nos demos ao insuperável ridículo de pretender ser mais “cristocêntricos” do que a Igreja, forma nova e infeliz de ser “mais católico do que o Papa”. Por este diapasão, poderíamos acabar censurando Nosso Senhor Jesus Cristo, por haver instituído a Sagrada Eucaristia, que iria ser objeto de tantos sacrilégios.

Ao contrário das Irmandades, a A.C. não existe só ou principalmente para o culto do Padroeiro. Mas isto não impede que a A.C. tenha Santos Padroeiros, aos quais podem e devem seus membros tributar ardentíssima, pública e desassombrada devoção, sem por isto confundir a A.C. com uma Irmandade.

Outras críticas, freqüentemente desfechadas contra as associações, atingem propriamente seus estatutos, e de modo particular certas prescrições, como por exemplo, a prática de atos de piedade em comum e periódicos, etc.. Excluída qualquer coação, a prática destes atos sempre foi louvada pela Igreja por motivos óbvios.

b) – quanto a atos de piedade periódicos e em comum

Os atos de piedade praticados em comum, atraem, segundo a promessa divina, maiores graças. Por outro lado, o comparecimento simultâneo de várias pessoas, para a prática ostensiva destes atos, serve de estímulo recíproco e edifica consideravelmente o público. Qual não é, por exemplo, a impressão magnífica que em uma paróquia causam as associações de moços, apresentando-se em massa compacta à Sagrada Mesa!

Quanto à periodicidade desses atos, desde que ela não implique em violência aos direitos da consciência, ela acarreta os mais felizes resultados. Com efeito, ela enraiga hábitos salutares, que constituem preciosa garantia de perseverança e regularidade na vida espiritual. Por tudo isto, não existe nenhum princípio capaz de infirmar tal prática, muito louvável de todos os pontos de vista. E não vemos porque a A.C. não os possa adotar. A JUC de São Paulo os adotou desde sua fundação, e sempre auferiu com isto excelentes resultados.

Estas reflexões nos lembram o caso concreto de um curioso diálogo entre um Religioso e um “exaltado” da A.C.. Este último sustentava que a sujeição à obrigatoriedade de atos em comum, a um regulamento de vida, etc., implicava em diminuição da autonomia e, implicitamente, da dignidade humana. Ao que o Religioso lhes respondeu que neste caso ele deveria considerar escravos indignos todos os religiosos do mundo, sujeitos a um regulamento de vida bem como a atos periódicos de piedade em virtude de Regras aprovadas pela Santa Igreja. E com efeito seria esta a última conseqüência de tais princípios...

c) – quanto a promover íntimo convívio entre seus membros e possuir sede recreativa

Também não é verdade ser censurável que uma associação católica possua sede com finalidade recreativa, na qual congregue seus membros em horas de lazer. O princípio que justifica esta prática é, em última análise, fundado na natural sociabilidade humana. Afirma-nos a filosofia que a natureza do homem tende a fazê-lo viver na companhia de seus semelhantes. É inerente à sociabilidade, ao menos para a imensa maioria dos homens, a tendência de freqüentar um ambiente que esteja de acordo com seus gostos, inclinações e idéias. Qualquer sociologia elementar contém esta regra, e basta observar o móvel que inspira a constituição da generalidade das associações profanas de qualquer natureza para que isto fique demonstrado. Reciprocamente, se o homem não freqüenta um ambiente conforme às suas convicções, a sociabilidade o leva a se adaptar ao meio em que se encontra, assimilando-lhe, tanto quanto possível, o modo de pensar e de sentir, ou, quando nada, estabelecendo interiormente certos “arranjos”, que terão como conseqüência final uma adaptação completa. Assim, parafraseando Pascal, poder-se-ia dizer que constitui para a imensa maioria uma inclinação imperiosa “conformar as idéias com o ambiente quando o ambiente não se conforma com as idéias”. Obrigados pelas múltiplas necessidades domésticas, econômicas, etc., a freqüentar os mais variados ambientes, e a viver a maior parte de seu dia em atmosferas cada vez mais profundamente empestadas de paganismo, os católicos contemporâneos não se devem limitar a uma atitude meramente defensiva, mas, pelo contrário, devem desfraldar por toda parte, e com ufania, o estandarte de Cristo. É este o “apostolado no meio”, tão insistente e energicamente apregoado por Pio XI. Só uma pessoa absolutamente ingênua, por jamais ter freqüentado certos ambientes profissionais ou domésticos de nossos dias, ou por jamais ter desfraldado em tais ambientes, com sincera e valorosa intrepidez, o estandarte de Cristo, pode ignorar a energia sobre-humana que uma tal linha de conduta impõe. Conhecemos o caso concreto de um jovem que teve de chegar ao emprego da força física para conservar sua pureza em um ambiente que, em si mesmo, seria inofensivo. Ora, é humano, é natural, é imperioso que os entusiasmos desgastados pela luta, as energias depauperadas no combate sejam reparadas pela freqüência de um ambiente bom, onde as almas se podem expandir e refazer à sombra da Igreja, e onde a recíproca edificação possa restaurar as forças de todos.

Seria falso supor que, assim, os católicos se afastam do mundo e deixam de cumprir seu dever de apostolado. É precisamente para que eles cumpram melhor tal dever, que se organizam para eles esses centros de distensão e restauração de forças:

“Certamente, deve o sal ser misturado à massa, que ele deve preservar da corrupção. Mas, ao mesmo tempo, deve defender-se contra ela, sob pena de perder seu sabor e de não servir senão para ser atirado fora e calcado aos pés”. (Leão XIII, Encl. “Depuis le jour”, de 8 de Setembro de 1899). Tão importante é esta verdade, que a Igreja, sempre sábia, não se contentou em dar sua melhor aprovação a iniciativas como estas, mas de certa maneira levou ao máximo sua confiança na ação dos ambientes bons e seu temor dos ambientes maus, ao excluir inteiramente do convívio do século aqueles que destina à milícia sacerdotal. O Direito Canônico chega a recomendar ao Bispo que empenhe o melhor de seus esforços para que os próprios Sacerdotes seculares residam em comum sempre que possível. Qual a razão desta providência, senão evitar para os próprios Sacerdotes os inconvenientes de ambientes maus, ou ao menos tíbios? E, se esta precaução existe para almas tão fervorosas, dotadas de tão especial graça de estado, que dizer-se de simples leigos?

Isto posto, não só entendemos que a A.C. pode mas até que ela deve lançar mão deste esplêndido processo de formação, que ninguém pode atacar sem temeridade.

d) – quanto à regulamentos sobre trajes, modas, etc.

Também não tem o menor fundamento afirmar-se que a A.C. não deve sujeitar seus membros a regras especiais no tocante a trajes, modas, etc.. O argumento, que em favor desta temerária inovação se alega, consiste em que tais regras são incompatíveis com a dignidade humana, porque constituem uma imposição. Daí inferem certos elementos que a Ação Católica deve, ao contrário das associações auxiliares, primar por uma intransigente abolição destas regras. Se se alega em contrário que à Ação Católica cabe primar pelo exemplo, replicam conforme o interlocutor, com dois argumentos diversos. Ora afirmam que a A.C. deve adaptar-se aos costumes modernos, sob pena de perder qualquer influência no ambiente em que vive e assim tornar impossível o apostolado. Ora afirmam que as regras de conduta são supérfluas e até irritantes, que a A.C. deve obter que seus membros usem espontaneamente trajes modelares, em conseqüência de convicções profundas neles incutidas, e jamais pela ação de regras meramente exteriores e de valor apenas coercitivo. Por isto, consideram a necessidade de promulgar as regras de modéstia como fracasso de formação. Mas, analisando o primeiro argumento, vemos que, pelo contrário, elas constituem precioso meio de formação.

São Tomás de Aquino esclarece luminosamente esta questão quando diz na Sum. Theolog., Ia., IIae., Q. 95, art. 1 – “Se é útil terem os homens estabelecido leis”.

Examinemos o assunto, deixando para outro capítulo a tarefa de refutar a alegação de que a Ação Católica precisa capitular ante os costumes modernos se não quiser ser estéril. Quanto à utilidade e necessidade da lei, diz o Doutor Angélico: “Parece que não é útil terem os homens estabelecido leis”. Pois,

1ª Objeção: – “A intenção de qualquer lei é tornar os homens bons. Mas os homens são levados ao bem antes voluntariamente, por advertências, do que coagidos por leis”.

Solução: “Como do sobredito resulta, o homem tem aptidão natural para a virtude; mas a perfeição mesma da virtude é forçoso adquiri-la por meio da disciplina. Assim, vemos que é por alguma indústria que o homem satisfaz às suas necessidades, por exemplo, as do comer e do vestir-se. Dessas indústrias já a natureza lhe forneceu o início, a saber, a razão e as mãos; não porém o complemento, como o fez para os outros animais, a que deu a cobertura dos pêlos e alimentação suficiente.

“Ora, para a disciplina em questão, o homem não se basta facilmente a si próprio. Pois a perfeição da virtude consiste, principalmente, em retraí-lo dos prazeres proibidos, a que sobretudo é inclinado, e máxime os jovens, para os quais a disciplina é mais eficaz. Logo, é necessário que essa disciplina, pela qual consegue a virtude, o homem a tenha recebido de outrem. Assim, para os jovens naturalmente inclinados aos atos de virtude, por dom divino, basta a disciplina paterna, que procede por advertências. Certos, porém, são protervos, inclinados aos vícios e não se deixam facilmente mover por palavras. Por isso é necessário sejam coibidos do mal pela força e pelo medo, para que, ao menos assim, desistindo de fazer o mal, e deixando a tranqüilidade aos outros, também eles próprios pelo costume sejam levados a fazer voluntariamente o que antes faziam por medo, e, deste modo, se tornem virtuosos. Ora, essa disciplina, que coíbe pelo temor da pena, é a disciplina das leis. Por onde é necessário, para a paz dos homens e para a virtude, que se estabeleçam leis. Pois, como diz o Filósofo, “o homem, se aperfeiçoado pela virtude, é o melhor dos animais, afastado da lei e da justiça é o pior de todos”; porque tem as armas da razão, para realizar suas concupiscências e crueldades, que os outros animais não têm”.

Evidentemente, a lei ou regulamento interno da A.C. ou de qualquer associação tem isto de diverso da lei civil – de que trata no texto acima o Doutor Angélico que ao império da lei civil não se foge, e qualquer pessoa pode subtrair-se à ação dos regulamentos demitindo-se do sodalício.

O amor aos ideais do sodalício e aos benefícios espirituais que ele proporciona, o temor dos perigos a que se expõe a alma desgarrando-se de um ambiente sadio e edificante, o receio de desagradar pessoas respeitáveis e dignas de estima, tudo isto concorre para tornar difícil e por vezes dificílima tal demissão, com o que o argumento de São Tomás conserva, para este caso concreto, valor decisivo. Aliás, se a Igreja pensasse de outra maneira seria o caso de queimar o Código de Direito Canônico e as Regras de todas as Ordens Religiosas.

É fato que a verdadeira virtude resulta das disposições interiores, pelo que qualquer associação, e máxime a A.C., deve antes de tudo formar as almas interiormente, dispensando-lhes os conhecimentos e os meios de adestramento da vontade necessários para tanto. A existência de um regulamento em que se encontrem proibições relativas ao comportamento e ao modo de trajar, auxilia poderosamente esta formação não só em conseqüência do que disse São Tomás sobre o valor educativo da lei mas ainda porque elucida questões concretas, a respeito das quais mesmo os espíritos mais zelosos teriam por vezes dificuldade em encontrar o meio termo entre o escrúpulo e o laxismo.

São Tomás de Aquino trata indiretamente desta questão, quando diz na Sum. Theolog., Ia., IIae., Q. 59, art. 1:

2ª Objeção: – “O Filósofo diz: “Os homens buscam o juiz, como à justiça animada. Ora, a justiça animada é melhor que a inanimada, contida nas leis. Logo, melhor seria entregar a execução da justiça ao arbítrio dos juízes, do que legislar a este respeito”.

Resposta: “Como diz o Filósofo, é melhor que tudo seja regulado por lei, do que entregue ao arbítrio dos juízes. E isto por três razões. Primeiro, por ser mais fácil encontrar uns poucos homens prudentes, suficientes para fazer leis retas, do que muitos que seriam necessários, para julgar bem de cada caso particular. Segundo, porque os legisladores, com muita precedência consideram sobre o que é preciso legislar; ao contrário, os juízos sobre fatos particulares procedem de casos ocorridos subitamente. Ora, mais facilmente pode o homem ver o que é reto depois de ter refletido muito, do que apoiado só num único fato. Terceiro, porque os legisladores julgam em geral e para o futuro; ao passo que os homens, que presidem ao juízo, julgam do presente, a cujo respeito sentem a inclinação do amor ou do ódio, ou de qualquer outra cupidez. Portanto, como a justiça animada do juiz não se encontra em muitos, e é flexível, é necessário, sempre que for possível, que a lei determine como se deve julgar, e quase nada se deixe ao arbítrio dos homens”.

Com efeito, é em virtude do mesmo princípio que devemos evitar, por meio de leis e regulamentos, na A.C. como nas demais associações religiosas, que a decisão de questões concretas delicadíssimas seja confiada a cada associado, que assim será, aliás, ao mesmo tempo, parte e juiz.

Exemplifiquemos com um caso concreto. A Federação Mariana Feminina de São Paulo sentiu a necessidade de prescrever regras do vestuário às Filhas de Maria, levada sobretudo pelo desejo de dirimir as questões complexas que a adoção de trajes convenientes suscita na prática. Era então Diretor da Federação o Pe. José Gaspar de Afonseca e Silva, ulteriormente “ad maiora vocatus”. A fixação dessas regras, que será útil transcrever, absorveu muito a atenção do seu ilustre autor, o que bem demonstra que os problemas ali resolvidos não estavam ao alcance de qualquer pessoa. De tal trabalho, saiu uma obra de raro equilíbrio e grande utilidade. Ficaram, assim, as Filhas de Maria dotadas de um meio de santificação, que não era necessário em conseqüência de falta de formação interior, mas, pelo contrário, se impunha como único meio de dar realização concreta aos generosos impulsos que a formação interior suscitara.

Transcrevemos aqui o douto e prudente documento:

“A) – MODAS

a) – deve a moda achar-se em absoluta conformidade com a modéstia cristã, excluído qualquer exagero, inclusive no tocante à pintura;

b) – exigem-se mangas compridas até os punhos para a recepção dos Sacramentos, bem como em toda a ocasião em que esteja exposto o Santíssimo;

c) – em qualquer outra circunstância são toleradas as mangas curtas, uma vez que cheguem ao cotovelo;

d) – nunca será, portanto, permitido a uma Filha de Maria trazer um vestido de todo sem mangas.

B) – DIVERSÕES

Cumpre à Filha de Maria, na medida do possível, somente apresentar-se em sociedade na companhia de sua família.

a) – Bailes: nas condições supra, toleram-se os familiares, onde exclusivamente será permitida a dança respeitadas as regras intrínsecas da modéstia.

b) – Praias: a Filha de Maria deve, em qualquer praia de banho, conservar a máxima distinção, como o requer o título que a honra. Escolherá com sensatez o seu traje e, em hipótese alguma, deixará o seu roupão toda a vez que se achar fora d'água. Em nenhuma outra ocasião lhe será permitido abster-se de meias ou usá-las curtas.

c) – Piscinas: É expressamente vedado à Filha de Maria tomar parte em banhos mistos em piscinas.

d) – Clubes de regatas ou de natação: Dada a promiscuidade inevitável dos clubes de regatas e de natação, proíbe-se à Filha de Maria inscrever-se em seus quadros sociais.

e) – Carnaval: É expressamente proibido à Filha de Maria tomar parte em bailes e em cordões carnavalescos, bem como usar traje masculino ou qualquer fantasia que possa, embora de leve, ofender as regras da decência.

Parágrafo único: O traje masculino é sempre vedado à Filha de Maria, em qualquer circunstância que seja. A proibição dos pijamas estende-se também às praias de banho.

Nota: – Se acaso se vir uma Filha de Maria na impossibilidade de cumprir à risca qualquer destas disposições, deve imediatamente, depois de consultado o confessor próprio, expor o caso ao Revmo. Pe. Diretor de sua Pia União, o qual dará a solução que julgar mais acertada, tendo porém o cuidado de fazer chegar essa solução ao conhecimento da Federação de sua Diocese. No caso contrário, a falta cometida resultará para a Filha de Maria na sua exclusão imediata da Pia União.

Tomando o Conselho conhecimento da eliminação de uma Filha de Maria deve fazê-lo com grande elevação de espírito não permitindo, de modo algum, se teça a respeito descaridoso comentário. Esforce-se a Diretoria por desenvolver intenso apostolado junto à faltosa, afim de levá-la a melhores sentimentos e reconduzi-la quando possível, à grei mariana após novo período do noviciado”.

*  *  *

É evidente a utilidade de tais regras. Com efeito, o fim da lei não é apenas elucidar, mas ordenar e punir. É justo, louvável e explicável que os membros de determinada associação não se queiram deter nos limites extremos sugeridos ou tolerados pela moral, mas que se proponham reagir contra o paganismo ambiente, não só pelo uso exclusivo do que é lícito como ainda trajando-se apenas do modo compatível com a mais severa e rigorosa pureza de costumes. Ora, é natural que uma organização assim constituída tenha o direito de exigir dos membros o cumprimento das regras, que constituem sua finalidade. Só um temperamento marcadamente vibrátil poderia sentir-se melindrado com tal coisa.

Finalmente, só se admitirmos a ação mágica ou mecânica da Sagrada Liturgia poderemos conceber que jamais membro algum de tais associações transgrida a modéstia do traje ou do procedimento. De que maneira se defenderá a associação, senão punindo o membro faltoso? Como estabelecer uma punição sem lei prévia? Exageramos? Então exagerou conosco a Santa Sé. A Sagrada Congregação do Concílio, no pontificado de Pio XI em documento de 12-1-1930 decretou que:

“I – Os párocos e pregadores, quando se lhes oferecer ocasião insistam, repreendam, ameacem, exortem os fiéis, segundo as palavras de São Paulo, afim de que as mulheres se vistam de um modo que respire o pudor e seja o ornamento e a salvaguarda da virtude; . . .

III – Que os pais proíbam a suas filhas a participação em exercícios públicos e concursos ginásticos e se suas filhas forem forçadas a tal participação, velem eles por que elas trajem de modo que respeite a decência, e não tolerem jamais os trajes imorais.. . .

VII – Que, se estabeleçam e propaguem associações femininas que tenham por fim refrear, com seus conselhos, exemplos e ações, os abusos contrários à modéstia cristã no modo de se vestir, e se proponham a promover a pureza dos costumes e a modéstia dos trajes;. . .

VIII – Nas associações piedosas de mulheres, não se admitem as que se vestem sem modéstia; se os membros da associação são repreensíveis neste ponto, sejam repreendidos e, caso não se penitenciem, sejam excluídos”.

Como se vê, é a própria Santa Sé que entende deverem tratar de modas, etc., os estatutos das associações, a tal ponto que, receando que não o façam, as dotou no número VII acima citado, de um verdadeiro regulamento supletivo. Ora, como admitir a eficácia destas determinações, sem regras concretas e fixas, que dêem aos Diretores de Associações uma conduta uniforme, e um meio de agir com evidente imparcialidade em todos os casos concretos que se apresentarem? Com efeito, o que pode haver de mais eficaz para armar de prestígio um Diretor senão um regulamento impessoal que ele aplique imparcialmente a todos os problemas supervenientes?

Curiosa contradição

Não queremos concluir o assunto sem uma observação. Por uma curiosa coincidência são muitas vezes as pessoas que, com maior exaltação defendem entre nós a doutrina da incorporação da A.C. à Hierarquia, as que mais se batem contra a adoção, na A.C., dos Códigos de modas em vigor em certas Pias Uniões. Ora, a realidade deveria ser inteiramente outra. De fato, quanto mais altas as funções, tanto mais severas as obrigações. Seria profanar o mandato recebido, pretender-se que dele decorreria outra conseqüência que não um afastamento maior e mais radical de tudo quanto é mau, e uma prática mais perfeita de tudo quanto é bom. Mas, se existe contradição, esta contradição se explica: a nota comum de uma e outra atitude está no desejo de diminuir toda autoridade e todo freio.

e) – quanto à aplicação de penalidades aos sócios faltosos

Já que tratamos destas espinhosas questões, não queremos esquivar-nos ao penoso dever de mostrar até que extremos de coerência no erro podem levar certas paixões. Já vimos sustentada a estranha doutrina de que não é próprio à A.C. excluir, suspender, ou aplicar qualquer penalidade a seus membros faltosos. No documento há pouco mencionado verificamos como a Sagrada Congregação do Concílio prescreveu às associações religiosas o dever de fulminar tais penas, e o fez em termos tais, que a A.C. de nenhum modo se poderia eximir da mesma obrigação, com o que indiretamente condenou a Sagrada Congregação do Concílio a afirmação, que ora refutamos. Não será supérfluo, porém, que a este argumento de autoridade, o qual aliás devera ser suficiente, acrescentemos outros. O repúdio das penalidades decorre diretamente da negação da legitimidade ou conveniência de existirem regulamentos para as associações religiosas e para a A.C.. Demonstrada há pouco a legitimidade de tais regulamentos, caem por terra as conseqüências pendentes da tese contrária. Limitemo-nos, pois, a acrescentar, ao que foi dito, algumas noções de simples bom senso apoiadas em textos da Escritura.

Aliás, contra este como contra muitos outros dos erros que no presente livro refutamos, o único meio de réplica é o recurso a argumentos imediatamente acessíveis ao bom senso comum. Com efeito, estes erros atacam tantos pontos da doutrina católica e colidem em tantos pontos com São Tomás, que refutá-los a fundo exigiria a elaboração de um tratado contra cada qual.

Brandura e persuasão, antes de tudo

É evidente que, consistindo o apostolado da Igreja, essencialmente, em uma ação que visa ao mesmo tempo pregar uma doutrina e educar as vontades na prática desta doutrina, todo o apóstolo, seja ele Bispo, Sacerdote ou leigo, deve preferir acima de tudo os processos que obtenham uma plena elucidação das inteligências, e a adesão espontânea e profunda da vontade. É para este fim, que devem concorrer os melhores esforços de qualquer pessoa que se dedique ao apostolado. Para chegar à maior perfeição no emprego de todos os métodos capazes de conduzir a uma finalidade tão desejável, o zelo dos apóstolos deve saber multiplicar indefinidamente os expedientes de sua indústria, e sua paciência deve estender com imensa amplitude a ação da caridade e da benignidade a todos aqueles junto a quem o apostolado se faz.

Por isto, julgamos altamente censurável que certos apóstolos leigos façam, dos meios exclusivamente penais ou coercitivos, seu processo educativo a bem dizer único. Jamais se nota neles um esforço sério e persistente, no sentido de explicar, esclarecer, ou definir certas verdades, com o objetivo de firmar convicções profundas e estruturar princípios vigorosos. Jamais se nota neles qualquer esforço para resolver por uma ação pessoal toda ela feita de doçura e de caridade, os problemas morais que se mostram de modo às vezes dramático, em almas rebeldes à ação do apóstolo. Uma punição, e está tudo acabado: é nisso que se cifra a pedagogia simplista de muito apóstolo, de muito educador. Não é preciso qualquer argumento para provar aos espíritos de bom senso como estão distantes estas práticas do pensamento da Igreja e do regime moral instaurado com a lei da graça, no ambiente dulcíssimo da Nova Aliança. Jamais seríamos nós que haveríamos de cerrar fileiras em torno desses processos educativos sombrios, mais próprios do jansenismo, do que do Catolicismo.

Esse erro taciturno nada tem de comum com as doutrinas que aqui refutamos, as quais pecam precisamente pelo extremo oposto. No entanto, quisemos declarar explicitamente nossa condenação formal, categórica e decidida a certo pedagogismo ou a certos processos de apostolado exclusivamente consistentes na truculência, a fim de que jamais se suponha que, condenando o extremo oposto, queremos de qualquer maneira, direta ou indiretamente, explicita ou implicitamente, advogar a causa dessa pedagogia sombria, que deixou ainda sequazes entre nós, mas cuja época, indiscutivelmente, já passou.

Na realidade, porém, e precisamente porque a época desse pedagogismo sombrio já passou, o mal mais atual, mais premente, mais ruinoso, em todos os ambientes em que se faz apostolado leigo, consiste no extremo oposto. As novas doutrinas concernentes à Ação Católica vieram reforçar ainda mais os acentuadíssimos exageros que se notavam neste sentido.

Punir é faltar com a caridade?

Já anteriormente à fundação da A.C. entre nós, notava-se em geral, neste assunto, a idéia de que os regulamentos e estatutos das associações religiosas deveriam conter penalidades, como por exemplo suspensões, exclusões, etc., muito e muito mais para mero efeito de intimidação, do que para serem traduzidas na prática por atos disciplinares vigorosos. A grande razão essencial estava em que as penas fazem sofrer, e não é próprio à Religião Católica, toda impregnada de suavidade e doçura, causar sofrimentos a quem quer que seja; e que além disto, a pena nenhuma utilidade concreta apresenta, porque ela irrita contra a Igreja o faltoso, e, quando consiste em exclusão, o atira ao pélago da perdição, sem qualquer proveito para ele. A estas razões, os novos erros sobre a A.C. vieram acrescentar outras. A A.C. não deve ter penalidades em seu regulamento, para não afastar de si as pessoas interessadas em obter inscrição, e porque é humilhante e contrário à dignidade humana, que o homem se oriente pelo temor e não pelo amor. Dotada a Ação Católica de processos de apostolado irresistíveis – e isto no sentido mais estrito e literal da palavra – porque usar penas que serão sempre inúteis?

As conseqüências destes erros se fazem notar cada vez mais em nossos meios, pelo que cumpre acabar com eles quanto antes. Houve tempo em que o simples fato de usar alguém o distintivo de certas associações religiosas era uma garantia de piedade ardente e vigorosa, de formação esmerada e de segurança absoluta. Hoje... quem ousaria dizer o mesmo? Multiplicaram-se os membros, mas não cresceu proporcionalmente a formação. As elites se afogaram e se diluíram na turba multa dos espíritos banais, sem maior surto para a perfeição e para o heroísmo. O mau exemplo, a constituição de um ambiente refratário a qualquer incitamento à virtude total, tudo isto passou a se tornar cada vez mais frequente. E não são poucos, infelizmente, hoje em dia, os sodalícios em que, na mesma paz, vivem lado a lado “oves, boves... et serpentes”. E tudo isto porque? Simplesmente porque um falso sentimentalismo religioso desarmou muitas vezes os braços dos dirigentes leigos que deveriam mover-se para, sob as ordens da Autoridade Eclesiástica, evitar que “Jerusalém se transformasse em uma cabana para guardar frutos”.

Panorama real

Para que compreendamos bem a necessidade de figurarem penalidades nos estatutos particulares a cada ramo da A.C., bem como de serem essas penalidades aplicadas na prática, é preciso, antes de tudo, que nos persuadamos profundamente de que não existem métodos de apostolado irresistíveis. Nosso Senhor Jesus Cristo, o Modelo Divino de apóstolo, encontrou resistências das mais cruéis, e foi de junto dEle, depois de ouvir por muito tempo Suas adoráveis doutrinações, e de contemplar Seus exemplos infinitamente perfeitos, que saiu, de coração enregelado e alma negra, um malfeitor que não foi um criminoso qualquer, mas precisamente o maior dos malfeitores de toda a História, até que venha o Anti-Cristo. Desenvolveremos em outro capítulo, mais a fundo, esta tese. Por ora, baste-nos lembrar que todos nós encontraremos almas endurecidas no erro e no pecado, que se mostrarão refratárias a qualquer ação apostólica. Se jamais encontrássemos almas destas, se pudéssemos ter a certeza de que sempre, e invariavelmente, nossos esforços seriam bem sucedidos, é óbvio que agiria pessimamente quem expulsasse de um sodalício religioso qualquer, e máxime da Ação Católica, um membro indigno. Mas a realidade, infelizmente, é muito outra. Sem requintado orgulho, não podemos esperar um sucesso que Nosso Senhor não obteve. O quadro diante do qual nos colocamos é, pois, o seguinte: em uma associação qualquer, ou na Ação Católica, não causa espanto que apareça, de quando em vez, alguma defecção; mas o sócio faltoso, em vez de se desligar da associação, nela permanece com a má doutrina e má vida que abraçou. Esgotados os meios suasórios para reconduzir ao bom caminho a alma transviada, pergunta-se: que fazer?

A impunidade sistemática é uma falta de caridade:

a) – para com a sociedade

A mesma situação existe, a título permanente, na sociedade temporal, e, por certo, ninguém se lembraria de alvitrar que, a título de caridade cristã, fossem abertas as penitenciárias e rasgados os Códigos Penais. Já se foi, graças a Deus, o tempo do romantismo, em que as antipatias do público se dirigiam habitualmente contra o delegado, o promotor, o juiz, e as simpatias se voltavam inteiramente para o criminoso. Foram funestos os efeitos deste estado de espírito, ao qual em boa parte se deve a anarquia generalizada, que tantos alarmes causa em nossa época. Não sabemos porque os resquícios desta mentalidade errônea, frivolamente sentimental e claramente anti-católica, banida hoje do espírito de todas as leis, se foi aninhar precisamente em certos ambientes católicos, produzindo por vezes como conseqüência a manutenção, dentro de nossas organizações, de um ambiente e de métodos dilatórios tipicamente liberais, hoje proscritos de todas as nações inclusive as democráticas – e de todas as organizações particulares de fins profanos, convenientemente estruturadas. Porque foi o erro refugiar-se precisamente em alguns dos arraiais onde se combate pela Verdade? Os motivos que nos levam a reputar censurável, absurda, anárquica, a inexistência de penas efetivas e capazes de incutir temor, nas sociedades profanas, devem levar-nos a reconhecer que elas também são indispensáveis nos sodalícios religiosos. Entretanto, não é isto que se pensa ou se pratica em certos setores de nosso laicato.

Em sentido contrário deveria animar-nos, no entanto, o exemplo decisivo da Santa Igreja, que em seu Código de Direito Canônico estatue, define e regulamenta penas severíssimas, e faz o mesmo quando aprova os Estatutos, Regras ou Constituições das várias Congregações ou Ordens Religiosas. Se quanto ao Clero e aos Religiosos essa necessidade se reconhece, que dizer-se então das associações de leigos!

S. Tomás de Aquino demonstra magnificamente a necessidade de penalidades. No texto que citamos a propósito da necessidade das leis, externa implicitamente o Doutor máximo sua opinião a respeito da necessidade das penas, pois que afirma ser uma das vantagens da lei a perspectiva da pena que, de sua inexecução decorre. E, francamente, sentimos constrangimento em ter de demonstrar coisa tão evidente.

É claro que, se tomássemos em consideração o exclusivo interesse da pessoa a quem a pena se destina, às vezes seria melhor adiar indefinidamente o castigo. Com efeito, há almas que, sob a ação severa de uma pena, se afastam ainda mais do bem. É certo, pois, que se deve efetuar a aplicação da pena com muito discernimento, evitando ambos os excessos, isto é, de jamais remitir um castigo, ou de jamais o aplicar. Neste assunto, é sobretudo necessário levar na devida conta que toda a transgressão disciplinar é antes de tudo um atentado contra a finalidade da associação e, em segundo lugar, uma violação dos direitos da coletividade. À vista de dois valores de tão alta natureza, devem sacrificar-se até certos interesses individuais legítimos. E se, com a aplicação de uma pena algumas almas se endurecem, sofrem com isto um justo castigo que de nenhum modo deve desarmar a defesa dos direitos da coletividade. O Espírito Santo descreveu admiravelmente a conduta perversa das almas que desprezam os justos castigos que merecem, e o fez de modo a indicar claramente que esse endurecimento era uma conseqüência diante da qual não deveria recuar sistematicamente o juiz. Assim, diz Ele que “aquele que abandona a disciplina experimentará a indigência e a ignomínia” (Prov., XIV, 18). E acrescenta: “O ouvido que ouve as repreensões salutares terá o seu posto entre os sábios. Aquele que rejeita a correção despreza sua alma, mas o que se submete às repreensões é possuidor de seu coração. O temor do Senhor ensina a Sabedoria e a humildade precede a honra” (Prov., XIV, 31-33). É próprio de “homens corrompidos não amar quem os repreende” (Prov. XV, 12). Por isto, é “bem-aventurado o homem que está sempre com temor, mas o que é de coração duro cairá no mal” (Prov. XXVIII, 14). Este não poderá queixar-se legitimamente do castigo que merece, já que “o açoite é para o cavalo, o freio para o asno e a vara para as costas do insensato” (Prov., XXVI, 6).

Aliás, que vantagem pode auferir uma associação religiosa, conservando em seu grêmio membros tais? De que maneira podem servir? Diz o Espírito Santo: “O homem apóstata é um homem inútil, que caminha com boca perversa” (Prov., VI, 12). E acrescenta: “Com depravado coração maquina o mal, e em todo o tempo semeia distúrbios” (Prov., VI, 14). Seu apostolado é estéril: “nos frutos do ímpio não há senão turbação” (Prov., XV, 6).

Aliás, cumpre notar, como já dissemos, que há almas refratárias ao apostolado pela profunda malícia em que se encontram, como diz a Sabedoria (I, 4-5): – “Na alma maligna não entrará a Sabedoria, nem habitará no corpo sujeito a pecado, porque o Espírito Santo, que ensina, foge das ficções e afasta-se dos pensamentos desatinados e é expulso pela iniqüidade superveniente”. É destas almas malignas que diz ainda a Sabedoria (I, 16): – “Os ímpios chamaram a morte com as suas obras e palavras; e, julgando-a amiga, desvaneceram-se e fizeram aliança com ela, porque eram dignos de tal sociedade”. É destas almas que diz a Escritura: “O coração do insensato é como um vaso quebrado; nada pode reter da Sabedoria”. (Eclesiástico, XXI, 18). E ainda: “A Sabedoria é para o insensato como uma base arruinada; e a ciência do insensato reduz-se a palavras mal digeridas”. (Eclesiástico, XXI, 21). Para que procurar reter a todo transe, com risco para os bons, desedificação geral e perigo para a disciplina, almas deste estofo? “Aquele que ensina o insensato é como o que quer tornar a unir os cacos de um vaso quebrado. Aquele que fala da Sabedoria ao insensato é como o que fala a um homem adormecido, o qual, no fim do discurso, dirá: – Quem é este?” (Eclesiástico, XXII, 7-9). “Não deis aos cães o que é santo, nem lanceis aos porcos as vossas pérolas, para que não suceda que eles as calquem aos pés, e que voltando-se contra vós, vos dilacerem” (S. Mat., VII, 6).

Esta invulnerabilidade à ação apostólica é por vezes um castigo de Deus, e, conservando um associado assim em seu grêmio a A.C. tem dentro de si uma raiz de pecado que só um grande e raro milagre da graça pode reconduzir ao bom espírito.

Às vezes, essa cegueira é obra do demônio. A Escritura se refere mais de uma vez a tal cegueira: “Se nosso Evangelho ainda está encoberto, é para aqueles que se perdem que está encoberto; para aqueles de quem o deus deste século cegou os entendimentos, para que não resplandeça para eles a luz do Evangelho da glória de Cristo, o qual é a imagem da glória de Deus” (2, Cor., 4, 3-4).

b) – para com os que merecem a punição

Acrescentemos desde logo que, se o mal eventual que uma pena pode causar a certas almas não é, por vezes, senão um justo castigo que elas mereciam e cuja iminência não deve desarmar a defesa de direitos mais altos, como os da Igreja e dos demais membros da associação, pelo contrário a pena constitui por vezes medicina salutar para o próprio faltoso. Assim, poupar-lhe a pena será roubar ao miserável o acesso ao único caminho que ainda o poderia conduzir para a emenda. Pelo que é verdadeira falta de caridade reduzir os artigos penais dos estatutos a uma ineficácia completa ou quase completa.

O filho pródigo só voltou ao lar paterno, após haver sido duramente castigado pelas conseqüências de seu ato. A Providência Divina tem trazido, geralmente, por via da penitência e da punição, os maiores pecadores ao bom caminho, a tal ponto que bem podemos considerar as maiores desventuras como as mais preciosas das graças que Deus faz ao pecador. As próprias almas justas só progridem à custas das purgações espirituais, por vezes atrozes, de seus defeitos, e muita razão teve a alma piedosa que chamou ao sofrimento o oitavo Sacramento. Assim, será o caso de perguntar-se, quando erigimos em método a perpétua inaplicação de penas, se não roubamos às almas faltosas um precioso meio de emenda. A resposta não pode deixar de ser afirmativa. “O pai que poupa a vara a seu filho não ama seu filho”, diz a Escritura. O presidente que, sistematicamente, e sem qualquer discernimento, recusa penas merecidas por seus jurisdicionados, odeia-os. Lembramo-nos de certo Presidente que lamentava a decadência geral de seu sodalício. As regras já não eram observadas, a frequência caía e o espírito geral, dia a dia, indicava novos sinais de torpor. “Reconheço, dizia-nos ele, que algumas exclusões remediariam o mal, mas – e voltou os olhos obliquamente para o céu, sorrindo ao mesmo tempo com visível complacência – sou bom demais para isso”. Bom demais? É bom demais quem assiste, por moleza, ao esfacelamento de uma iniciativa de cujo êxito dependeria a salvação de tantas almas? Sem hesitação afirmamos que essa pessoa fazia maior mal à Igreja do que todas as seitas e igrejas protestantes, espíritas, etc., que funcionavam no mesmo lugar.

Na realidade, é tão precioso o efeito da pena sobre o delinqüente, que “aquele que poupa a vara a seu filho odeia seu filho” como dizem os Provérbios (XIV, 24). Se a A.C. poupar a seus membros punições que forem realmente indispensáveis, odeia-os. Pelo contrário, “aquele que ama seu filho, corrige-o continuadamente” (Prov., XIV, 24). Porque? “A loucura está ligada ao coração do menino, mas a vara a afugentará”. (Prov., XXII, 15). Do menino... e de quantos adultos! Há almas que precisam de um castigo para que se não percam eternamente: “Não poupes a correção ao menino, porque se lhe bateres com a vara não morrerá. Tu lhe baterás com a vara, e livrarás a sua alma ao inferno”. (Prov., XXIII, 13-14). Ora isto equivale a dizer: “se não lhe bateres com a vara, exporás sua alma ao inferno”. Quanta razão, tem, pois, o Divino Espírito Santo ao dizer: “Melhor é a correção manifesta do que o amor escondido. Melhores são as feridas feitas pelo que ama, do que os ósculos fraudulentos do que quer mal”. (Prov., XXVII, 5-6). Não receemos, pois, de faltar com a caridade, fazendo uso decidido e efetivo dos castigos. Com efeito, temos por modelo o próprio Deus que, “cheio de compaixão, ensina e castiga os homens, como um pastor faz a seu rebanho” (Eclesiástico, XVIII, 13).

Seria ridículo argumentar em sentido contrário com as belíssimas palavras do Eclesiastes (VII, 19), quando diz: “bom é que sustentes o justo, mas também não retires a tua mão daquele que não o é, pois o que teme a Deus nada despreza”. Com efeito, “retirar a mão” é não prestar socorro; e, se como acabamos de ver, a punição é um autêntico socorro, “retira a mão” do pecador, e “despreza-o”, aquele que não o pune quando necessário.

Severidades do Antigo Testamento, ab-rogadas pela Lei da Graça? Estultice! Ouçamos S. Paulo: “estais esquecidos daquela exortação de Deus, que vos fala como a filhos, dizendo “Filho meu, não desprezes o castigo do Senhor, nem desanimes quando por ele és repreendido, porque o Senhor castiga aquele que ama, e açoita todo o filho que reconhece por seu.”. “Sede perseverantes sob o castigo. Deus trata-vos como filhos; porque, qual é o filho a quem seu pai não corrige? Se, porém, estais isentos de castigo, do qual todos são participantes, então sois bastardos, e não filhos legítimos. Além disso, visto que nossos pais segundo a carne nos castigam, e nós os respeitamos, quanto mais não devemos ser obedientes ao Pai dos espíritos para ter a vida? E aqueles castigam-nos por um período de poucos dias, segundo sua vontade; este, porém, tanto quanto é útil para nos tornar participantes de sua santidade. Ora, na verdade, toda a correção no presente não parece um motivo de gozo, mas de tristeza, porém, depois, dará um fruto de paz e de justiça aos que por ela forem exercitados”. (Hebr., 12, 4-11).

Muito se tem falado do egoísmo dos professores que, por não quererem conter o mau humor, punem excessivamente seus alunos. No dia do Juízo Final se verá que o número de almas que se perderam porque professores egoístas não quiseram impor-se a si próprios o dissabor de castigar um aluno, é muito maior do que geralmente se pensa.

Cumpre acrescentar que a penalidade é, muitas vezes, o único meio para desagravar os princípios ofendidos, ou a autoridade desacatada. Renunciar a ela implica em introduzir no sodalício um ambiente de indiferentismo doutrinário ou de laxismo cujas conseqüências são imensamente funestas.

c) – para com os que periclitam

Seria preciso notar ainda que a pena oferece a considerável vantagem de, pelo temor, afastar os associados vacilantes, da sedução do mal que os solicita.

Diz o Espírito Santo “aos que pecarem, repreende-os diante de todos, para que também os outros tenham medo” (I, Tim., 5,20). E isto porque “com o castigo dos escandalosos fica mais sábio o inexperiente” (Prov. XXI, 11). Com efeito, a apreensão de penas é sempre muito útil: “todo o homem evita o mal por meio do temor do Senhor” (Prov., XIII, 27), e as penalidades da A.C. ou das associações auxiliares são meios excelentes para fazer ver aos sócios transviados que se iludem em vão, se pensam possuir ainda o agrado do Senhor. Com efeito, “o temor do Senhor é uma fonte de vida para fazer evitar a ruína e a morte” (Prov., XIV, 27). Assim, quando poupamos aos maus as penas que merecem, expomos injustamente a risco a perseverança dos tíbios, dos que vacilam, dos que duvidam, isto é, dos arbustos partidos e das mechas fumegantes que o Senhor não quer que se rompam ou extingam, mas que se revigorem e perseverem. “O não ser proferida logo sentença contra os maus é causa de cometerem os filhos dos homens crimes sem temor algum” (Ecl. VIII, 11).

d) – para com os bons

Finalmente, ainda por outro título faltamos com a caridade mantendo dentro da A.C. ou das associações auxiliares um ambiente de perpétua impunidade. Conservar dentro de uma associação elementos maus é transformá-la, de meio de santificação, em meio de perdição, expondo a perigos espirituais aqueles que à sombra da associação se tinham acolhido precisamente para fugir deles. É grave a advertência que, neste sentido, dá o Espírito Santo: “O que tocar o pez ficará manchado dele, e o que trata com o soberbo pegar-se-lhe-á a soberba” (Eclesiástico, XIII, 1). O perigo das más amizades é sempre considerável: “o homem iníquo seduz seu amigo e o conduz por um caminho que não é bom” (Prov. XVI, 29). E por isto a Escritura nos adverte: “não acompanhes o insensato, para que não sejas contaminado com seu pecado” (Eclesiástico, XII, 14-15). Ora é precisamente essa perigosa companhia de insensatos que se pretenderia, sob pretexto de caridade, impor a todos os membros da A.C.! Esquece-se assim a observação de S. Paulo, de que “um pouco de fermento altera a massa” (Ga., 2, 7-12). Não permitamos que, nos mais fecundos canteiros da Igreja, fique alguma “raiz de amargura, brotando para fora, servindo de embaraço de modo que por ela sejam muitos contaminados” (Hebr., 12, 14-17). Faltaremos com isto à caridade.

Aliás, a mais comezinha prudência deveria conduzir-nos a idêntica conseqüência. Quanta crise interna, quanta desordem, quanta divisão de espíritos seria possível evitar às vezes, se um golpe solerte libertasse determinados ambientes de elementos que deveriam já ter saído espontaneamente, por serem pessoas das quais diz a Escritura: “o homem apóstata é um homem inútil, que caminha com a boca perversa” (Prov. VI, 12). São essas as pessoas que “com depravado coração maquinam o mal, e em todo tempo semeiam distúrbios”. (Prov., IV, 14). Aliás, esses distúrbios são muitas vezes ocasionados pelo contato entre mentalidades diversas, uma ortodoxa, reta, amiga da Verdade e do Bem, e outra heterodoxa, disfarçadamente acumpliciada com todos os erros, e de antemão disposta a todas as complacências, recuos e transigências com o mal. Como evitar, neste caso, o entrechoque? Com efeito, a presença de tais elementos deve molestar os elementos sadios, aos quais ameaçam corromper: “O temor do Senhor odeia o mal”, e “detesta a arrogância e a soberba, o caminho corrompido e a língua dupla” (Prov., VIII, 13). “Quando o lobo tiver amizade com o cordeiro, então a terá o pecador com o justo” (Ecles., XIII, 21). Serão vãos, nestes casos, todos os incitamentos à concórdia: eles terminarão inevitavelmente por uma derrota dos representantes da boa mentalidade, se o sodalício não for liberto da influência dos maus.

As penas não desfalcam a A.C. de auxiliares úteis

Aliás, que vantagem pode a A.C. esperar da cooperação de tais membros em seus trabalhos? Eles prestarão sempre o concurso de uma doutrinação inconsistente ou de um apostolado incompleto: “Assim como ao coxo de nada serve ter pernas bem feitas, assim não ficam bem as parábolas sentenciosas na boca do insensato” (Prov., XXIV, 7).

Será inútil objetar que, se os elementos estranhos à A.C. perceberem que esta se organiza com tanta disciplina, tomados de temor, nela não entrarão. O rigor da lei não afasta aos que têm, não já a Sabedoria, mas até mesmo um simples “initium Sapientiae”. Por isto, S. Bento, legislador profundo e talvez inspirado, julgou tornar atraente a Regra monástica que compôs, inscrevendo na primeira página este convite: “Vinde, oh filhos, ouvi-me e eu vos ensinarei o temor do Senhor”.

É, pois, com muita razão que se deve temer a falta de energia: “Aquele que absolve o réu e o que condena o justo, AMBOS são abomináveis diante de Deus” (Prov., XVII, 15). E, por certo, “não é bom termos considerações com a pessoa do ímpio, para não nos desviarmos da verdade do julgamento” (Prov., XVIII, 6).

Muita razão tinha, pois, Santo Inácio de Loyola, quando dizia que eram para ele dias de alegria o da entrada... e o da expulsão de um elemento, na Companhia de Jesus.

Nem prejudicam o ambiente na A.C.

Mas, dir-se-á, o temor das penas enche de sombras qualquer ambiente, e nossas afirmações são feitas para criar uma atmosfera de apreensão e de temor, de melancolia e de expectativa ansiosa, que destoam singularmente do entusiasmo da jovialidade, do espírito confiante e empreendedor que deve reinar na A.C.. Estamos em desacordo com esta opinião. O temor santo é o pórtico por que se passa para chegar à Sabedoria (Prov., I, 17). Eis o prêmio magnífico que está prometido aos que transpuserem este pórtico severo:

“Se a Sabedoria entrar no teu coração,

e a ciência agradar a tua alma,

a reflexão te guardará

e a prudência te conservará,

a fim de seres livre do caminho mau

e do homem que fala coisas perversas;

dos que abandonam o caminho reto

e andam por caminhos tenebrosos;

que se alegram por terem feito o mal,

e fazem gala de sua maldade;

cujos caminhos são corrompidos e cujos passos são infames.

(Prov., II, 10-15).

Toda a razão tem, pois, o Eclesiástico ao dizer que “o temor do Senhor é glória e honra e alegria, e uma coroa de regozijo. O temor do Senhor deleitará o coração, e dará alegria e gozo e larga vida” (I, 11-12). “O temor do Senhor é a piedade da ciência. Esta piedade guarda e justifica o coração, dá-lhe gozo e alegria. Quem teme o Senhor será ditoso, e, no dia de sua morte, será abençoado”. (I, 17-20). “O temor do Senhor é a plenitude da Sabedoria; ele dá a plenitude da paz e frutos de salvação” (I, 22). “Como é grande aquele que encontra a Sabedoria e a ciência! Porém nenhum destes ultrapassará aquele que teme o Senhor. O temor de Deus eleva-se sobre tudo. Bem-aventurado o homem que recebeu o dom do temor de Deus, com quem se comparará aquele que o possui? O temor de Deus é o princípio de seu amor, mas inseparavelmente se Lhe deve juntar um princípio de fé” (Eclesiástico, XXV, 13-16). “O temor do Senhor é como um paraíso bendito, e acha-se revestido de uma glória superior a toda a glória” (Ibid., XL, 28).

Compreende-se, pois, perfeitamente, que S. Paulo tenha escrito: “trabalhai na vossa salvação com temor e tremor, não só como na minha presença, mas muito mais agora na minha ausência” (Fil., 2,12). E que, na Epistola aos Hebreus (10,31), tenha dito que “é coisa horrenda cair nas mãos de Deus vivo”, acentuando assim o temor santo que constantemente nos deve animar. O Apóstolo insistiu mais de uma vez nesse pensamento: “Portanto, recebendo nós um reino imutável, temos a graça pela qual, agradando a Deus, o sirvamos com temor e reverência. Porque o nosso Deus é um fogo devorador” (Hebr., 12, 28-29). Escrevendo aos Romanos (1, 9, 21-22), desenvolve ele o mesmo pensamento, referindo-se a um tempo ao amor e à severidade de Deus: “se Deus não perdoou aos ramos naturais, teme que ele te não perdoe também a ti. Considera, pois, a bondade e a severidade de Deus; a severidade para com aqueles que caíram; e a bondade de Deus para contigo, se permaneceres no bem; doutra maneira também tu serás cortado”. No Apocalipse também encontramos a repetição do que o Espírito Santo dissera no Antigo Testamento: “Quem te não temerá, Senhor, e não glorificará o teu nome?” (Apoc., XV, 4).

É visível a complacência com que S. Paulo elogia os Coríntios pelo seu “zelo em punir” as injúrias feitas à Igreja (2, 7, 8-11) porque reconhecia as evidentes vantagens desta disposição para a igreja de Corinto.

Também na 2ª Epístola aos Coríntios, (13, 1-3), demonstrou S. Paulo quanto lhe parecia necessário agir com rigor: “Eis que vou ter convosco pela terceira vez. Sobre a declaração de duas ou três testemunhas tudo será decidido. Assim como já o disse, achando-me presente, assim o digo, estando ausente, que se eu for outra vez, não perdoarei aos que antes pecaram, nem a todos os outros. Porventura quereis pôr a prova Cristo, que fala por mim, o qual não é fraco a vosso respeito, mas sim poderoso em vós?”

Do Príncipe, disse S. Paulo: “é ministro de Deus para teu bem. Mas, se fizeres o mal, teme, porque não é debalde que ele traz a espada. Porquanto ele é ministro de Deus vingador, para punir aquele que faz o mal” (Rom., 13, 4). Ora, o que se diz do Poder Temporal com toda a propriedade de expressão se pode entender neste caso ao Poder Espiritual, e ainda mesmo de seus mais ínfimos representantes ou agentes, como os Presidentes de sodalícios religiosos. E como S. Paulo desempenhou ardentemente essa função vingadora do Poder Espiritual! Ouçamo-lo dirigindo-se aos Coríntios: “Alguns andam inchados, como se eu não estivesse para ir ter convosco. Mas brevemente irei ter convosco, se o Senhor quiser; e examinarei não as palavras dos que andam inchados, mas a virtude. Que quereis? Que eu vá ter convosco com vara, ou com amor e espírito de mansidão?” (1, Cor., 4, 18-21). E ainda: “Ouve-se constantemente falar que há entre vós fornicação, e tal fornicação, qual nem ainda entre os gentios, tanto que chega a haver quem abusa da mulher do próprio pai e andais ainda inchados, e não tivestes antes pesar, para que fosse tirado dentre vós quem fez tal maldade. Quanto a mim, embora ausente de corpo, mas presente com o espírito, já julguei como presente àquele que assim procedeu. Em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, congregados vós e o meu espírito, com o poder de Nosso Senhor Jesus, seja o tal entregue a Satanás, para a morte da carne a fim de que sua alma seja salva no dia de Nosso Senhor Jesus Cristo. Gloriai-vos sem razão. Não sabeis que um pouco de fermento faz levedar toda a massa?” (I, Cor., 5, 1-6). “Por carta vos escrevi que não tivésseis comunicação com os fornicadores; não certamente com os fornicadores deste mundo, ou com os avarentos, ou ladrões, ou com os idolatras; doutra sorte, deveríeis sair deste mundo. Mas vos escrevi que não tenhais comunicação com aquele que, dizendo-se vosso irmão, é fornicador, ou avarento, ou idolatra, ou maldizente, ou dado à embriaguez, ou ladrão; com este tal nem comer deveis. Porque, que me importa a mim julgar aqueles que estão fora? Porventura não julgais vós aqueles que estão dentro? Porque aqueles que estão fora, Deus os julgará. Tirai do meio de vós o mau” (I, Cor., 5, 9-13). Os textos de S. Paulo se poderiam citar em número ainda maior. Retenhamos apenas mais alguns: “Quanto ao mais, irmãos, orai por nós, para que a palavra de Deus se propague, e seja glorificada, como é entre vós, e para que sejamos livres de homens importunos e maus; porque a fé não é de todos” (II, Thessalonic., 3, 1-2). E na mesma Epístola (3, 6) o Apóstolo acrescenta: “Nós vos ordenamos, irmãos, em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, que vos aparteis de todo o irmão que viver desordenadamente, e não segundo a doutrina que receberam de nós”. E ainda mais adiante (13-15): “Irmãos, não vos canseis nunca de fazer o bem. Se algum não obedece ao que ordenamos pela nossa carta, notai-o, e não tenhais comércio com ele, a fim de que se envergonhe; não o considereis todavia como um inimigo, mas adverti-o como irmão”.

Evitemos qualquer unilateralismo

Advogando tão austeros princípios, jamais quereríamos ser unilaterais. Deus nos livre de esquecermos a brandura evangélica! O próprio Espírito Santo põe limites à ação da justiça, quando adverte no Antigo Testamento: “Castiga teu filho, não percas a esperança (da emenda), mas não chegue tua severidade ao excesso de lhe dares a morte” (Prov., 19,18).

Mas, se não queremos esquecer os limites, fora dos quais a justiça seria odiosa, livre-nos Deus de esquecer também os limites fora dos quais não seria menos odiosa a tolerância. Não é na observância de ambos os limites que está a perfeição?

Equilíbrio difícil este, entre a benignidade e a fidelidade à lei: “Muitos homens se chamam compassivos, mas quem achará um homem inteiramente fiel?” (Prov., XIX, 6).

A Santa Igreja, sempre fiel à doutrina revelada, consagrou os mesmos princípios, como já dissemos, em sua legislação. É típica, neste sentido a situação em que se encontram os “excomungados vitandos”, que, além da privação dos bens espirituais a que ficam sujeitos todos os excomungados, devem ser evitados pelos fiéis, mesmo nas coisas profanas, conversas, cumprimentos, etc., excetuando-se apenas o que de todo for indispensável, bem como os empregados, parentes ou semelhantes (Canon, 2257). Para que se veja a situação de horror em que a Igreja lança o excomungado “vitando”, note-se o seguinte: caso um indivíduo que tenha incorrido nesta pena entre numa Igreja onde se esteja celebrando o Santo Sacrifício da Missa, deve o celebrante parar até que o excomungado seja expulso do recinto. Mas se isso não for possível, interromper o Sacrifício, caso não tenha chegado ao Canon ou à Consagração, e, se já tiver consagrado, continuar a Missa até a segunda oblação, terminando as últimas orações noutro lugar decente [1].

Não é, entretanto, da infidelidade ao dever de justiça, de que acima falávamos, hoje tão freqüente, que decorre o poder-se aplicar a muita associação e a muito setor da A.C. esta descrição: “Passei pelo campo do homem preguiçoso e pela vinha do homem insensato, e vi que tudo estava cheio de urtigas, e que os espinhos cobriam sua superfície, e que o muro de pedra estava caído”? (Prov., XIV, 30-32). Ah! O muro caído que já não defende o campo contra a semeadura do “inimicus homo”! Ah! As urtigas e os espinhos, que deveriam ser arrancados, mas que vicejam abafando o trigo e as flores! Se ao menos pudéssemos dizer, como logo em seguida diz a Escritura: “Ao ver isto, refleti, e este exemplo foi para mim uma lição” (Prov., XXIV, 32-33).

Compreendêssemos ao menos assim que “a vara e a correção dão sabedoria, o menino porém que é abandonado à sua vontade é a vergonha de sua mãe” (Prov., XXIX, 15).

É, aliás, de energia a atitude natural e espontânea de qualquer alma nobre e reta, quando posta em presença da arrogância e rebeldia do pecador, que se orgulha de seu pecado. Diz do justo a Escritura que “sua boca publicará a verdade”, isto é, não a calará nem desbotará, mas que, pelo contrário, “sua língua detestará o ímpio” (Prov., VIII, 7).

Com efeito, o justo, isto é, aquele que tem “o temor do Senhor, odeia o mal, detesta a arrogância e a soberba, o caminho corrompido e a língua dupla” (Prov. VIII, 13).

Por isto, no trato com os inimigos da Igreja, e sobretudo os inimigos internos, sem jamais violar a caridade, “o homem sábio é forte e douto, robusto e valente” (Prov., XXIV, 5).

Pelo contrário, que impressão penosa deixam certos “recuos estratégicos” dos bons, recuos estes que são quase sempre menos estratégicos do que se pensa: “Como uma fonte turbada com o pé, e como uma veia de água corrompida, assim é o justo que cai diante do ímpio” (Prov, XXV, 26).

E, com isto, invertem-se escandalosamente os papéis, pois, segundo os desígnios de Deus, “o ímpio foge... o justo, porém, como um leão furioso, estará sem terror” (Prov., XXVII, 1).

E que ótimo apostolado se faria, se se seguissem os desígnios de Deus! “Quando os ímpios perecerem, multiplicar-se-ão os justos” (Prov., XXVIII, 28). E, pelo contrário, “com a multiplicação dos ímpios, se multiplicarão as maldades” (Prov., XXIX, 16).

Não é pois em vão que, esgotados amorosamente todos os outros recursos, deve o dirigente sábio “dissipar os ímpios e curvar sobre eles a roda” (Prov., XX, 26). Aquele que persiste, por atos ou palavras, em transgredir a lei de Deus ou os regulamentos da A.C., escarnece, no fundo, da autoridade. E a Escritura diz: “Lança fora o mofador, e com ele se irá a discórdia, e cessarão os litígios e ultrajes” (Prov., XXII, 10).

Concluamos, pois, afirmando com o angélico e dulcíssimo Pontífice Pio X que quem falta com o dever de advertir e punir o próximo, longe de mostrar verdadeira caridade, mostra possuir apenas a caricatura da caridade, que é o sentimentalismo, porque a transgressão desse dever é uma ofensa a Deus e ao próximo:

“Quando sei a vosso respeito de coisas que não agradam a Deus e são contrárias aos vossos interesses, se eu não vos advertir, não posso pretender que amo a Deus, nem que vos amo como devo” (Pio X, Encl. Communium Rerum, de 21 de Abril de 1909).

Em uma afirmação notável, que podemos repetir baseados na autoridade de seu grande nome, dizia o ínclito D. Antonio Joaquim de Melo, um dos maiores Bispos que teve o Brasil, que “a Misericórdia de Deus tem mandado mais almas para o inferno do que sua Justiça.” Em outros termos, afirmava o grande Prelado que a esperança temerária de salvação perderá maior número de almas, do que o temor excessivo da Justiça de Deus. Do mesmo modo é indiscutível que a excessiva benignidade na aplicação das penas, que ora se observa em muitas associações religiosas, e a inteira carência delas em certos setores da A.C., têm depauperado mais as fileiras dos filhos da luz, do que os atos de energia inconsiderados e talvez excessivos, eventualmente levados a cabo.

O espírito das confrarias maçonizadas

Conversando certa vez com pessoa de influência preponderante e até decisiva em certos meios da A.C., disse-nos ela que, em cinco anos, jamais excluíra do setor que dirigia, quem quer que seja, e ainda mesmo os elementos mais distanciados. Quando alguém deixava inteiramente de comparecer, era sua ficha transferida para uma gaveta especial, de onde seria simples reintroduzi-la no fichário das sócias ativas, desde que, cinco, dez, vinte anos depois, reaparecesse. E isto sem o menor noviciado, o menor exame, o menor ato de penitência.

Este fato faz-nos lembrar o caso autentíssimo de uma velha Irmandade, na qual certa vez uma piedosa senhora inscrevera seu filho de 9 anos a fim de cumprir promessa. Depois de inscrito, o jovem confrade nunca mais reapareceu. Tornou-se homem, perdeu a fé, e hoje já é um provecto ancião. Esta pessoa conta com explicável hilaridade, que durante todo este tempo nunca deixou de receber as convocações para todos os atos da Irmandade. Provavelmente continuará a recebê-las até alguns anos depois de morto. Os leitores, a quem o romantismo não tiver feito abandonar inteiramente o bom senso, bem compreenderão a que último degrau de desprestígio este procedimento da Irmandade arrasta a Igreja. Curioso ponto de convergência, a se somar a tantos outros, a fim de atestar que, sob pretexto de novidades de A.C., se deseja, na realidade, restaurar, com todo o seu espírito, os erros das Irmandades maçonizadas do tempo de D. Vital. Não negamos que esse convite insistente talvez pudesse ter feito bem à alma assim chamada. Mas vale a pena afetar o prestigio da Igreja, que interessa a salvação de milhares de almas, em troca de uma pequeníssima probabilidade de reconduzir à vida da graça esta alma extraviada? Quem não percebe que só depois de abafado o bom senso se poderá pensar assim?

“Time Jesum transeuntem et non revertentem”, lembra-nos Dom Chautard. Como é salutar o medo de que Jesus não volte quando uma vez bate a porta de um coração! E como aviltam o chamado de Jesus tais práticas rançosas!

As penas constituem uma dura necessidade

A não se pensar assim, poder-se-ia entender que a Santa Igreja deveria cancelar todos os capítulos penais de seu código, e que a Santa Sé, verdadeira “Mater misericordiae” teria faltado com a caridade, quando fulminou, com as tremendas penas de excomungado “vitando”, vários chefes modernistas. É certo que, sendo Mãe, procurará sempre a Igreja governar de preferência seus filhos pela lei do amor, lei esta em que encontra a melhor parte da fecundidade de seu apostolado.

Com toda razão, disse S. Francisco de Sales que “se apanham mais moscas com uma colherinha de mel do que com um tonel de vinagre”. Seria blasfêmia pensar-se que, com isso, recomendava o Santo Doutor qualquer espécie de Liberalismo. Com efeito, adverte a Espírito Santo, que “as moscas que morrem no bálsamo fazem-lhe perder a suavidade do cheiro. Uma imprudência ainda que pequena e de pouca dura, diminui a sabedoria e a glória mais brilhante” (Ecl. X, 1). Misericórdia, sim, muita e sempre. Mas isto sem nos esquecermos que a misericórdia e a justiça nunca devem andar desacompanhadas.


NOTAS

[1] ) É este o sábio ensinamento de VermeerschCreusen, no seu “Epitome Juris Canonici”, tomo III, nº 469.

1º: “O excomungado vitando deve ser expulso, se quiser assistir passiva ou ativamente aos ofícios divinos, excetuando-se a pregação da palavra divina. Se não puder ser expulso deve-se cessar o ofício desde que isso possa fazer-se sem grave incômodo” (c. 2259)

“Se o vitando não quiser sair ou não puder ser expulso, o Sacerdote deve interromper a Missa, desde que não tenha começado o Canon; depois de ter começado o Canon, e antes da Consagração, pode, mas não deve continuar; depois da Consagração, deve continuar até a segunda ablução, para terminar o resto do ofício em um lugar decente e contíguo à Igreja. Cf. S. Afonso, Teologia Moral, VII, nº 177. Os outros assistentes, com exceção do Ministro, devem retirar-se desde o momento em que se lhes tornou manifesta a pertinácia do vitando em continuar presente”.  


 

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