Plinio Corrêa de Oliveira

 

A Reforma Agrária socialista e confiscatória – A propriedade privada e a livre iniciativa, no tufão agro-reformista

 

1985

Secção E – O “assentamento”, uma nova figura jurídica na qual o “assentado” se torna mero posseiro e usuário da terra; o direito de propriedade fica sendo do Poder público... ou deixa de existir

 

TEXTO DO PNRA

4.3 – Alternativas para Posse e Uso da Terra

107 . A Reforma Agrária determinará modificações substanciais nas formas de posse e uso da terra e nas relações de trabalho.

108 . Ao equacionar democraticamente os problemas da posse da terra, a Reforma Agrária proporcionará oportunidade a todos os que nela trabalham como parceleiros, arrendatários, assalariados, posseiros, ocupantes e pequenos proprietários, com área insuficiente para a reprodução de seu sustento, para que redefinam as suas relações com os meios de produção e trabalho.

109 . Seguramente, a dinâmica da Reforma Agrária, através da participação democrática dos assentados, nos diversos momentos de sua implementação, ampliará as possibilidades para consolidação das formas mais adequadas de organização sócio-econômica dos beneficiários.

110 . O Estado deve respeitar as mais distintas formas de posse e uso da terra existentes, apoiando-se nelas para, em consonância com os próprios beneficiários da Reforma Agrária encontrar as soluções mais adequadas aos conflitos pela terra e para a legalização das situações de posse.

111 . Nesse sentido, reformar será também reconhecer como legítimas as suas experiências e saberes sufocados pelas matrizes culturais dominantes. Reformar será compreender e libertar o potencial humano para o livre exercício do trabalho e para a prática de seus direitos de cidadania.

112 . A estratégia de ação relacionada com a posse e uso da terra reafirmará na prática a função social da terra para que todos dela se beneficiem democraticamente.

113 . A heterogeneidade das situações concretas exigirá um amplo espectro de soluções. A vivência dos trabalhadores rurais será o ponto de partida para o equacionamento dos seus problemas. Assim, as alternativas de organização do assentamento poderão se concretizar sob as formas de:

unidade familiar;

unidade de propriedade em comunhão;

unidades associativas;

ou unidades mistas.

COMENTÁRIO

O conjunto destes tópicos (n.os 107 a 113) dá o quadro da transformação do Brasil rural de hoje, no Brasil rural de amanhã.

Cada uma de suas disposições é feita para exclusiva vantagem de “como parceleiros, arrendatários, assalariados, posseiros, ocupantes e pequenos proprietários  (n.o 108). Só é excluído – e excluído inteiramente – desse quadro de distribuição de benefícios, o proprietário enquanto tal.

Com efeito, a referência, aliás bem na cauda da lista dos beneficiados, aos pequenos proprietários, deixa claro que do banquete estão excluídos os grandes e médios proprietários.

Ademais, a fobia do PNRA contra o proprietário é tão radical, que essa mesma referência ao pequeno proprietário vem carregada de caráter nitidamente discriminatório. Pois beneficiados só serão os “pequenos proprietários, com área insuficiente para a reprodução [sic] de seu sustento”. Ou seja, os proprietários minifundiários, irremissivelmente condenados a se proletarizarem.

Todos os demais proprietários são sumariamente excluídos da participação da vida agrícola, na perspectiva do PNRA, sem a menor preocupação pela falta que possam fazer à agricultura nacional. Assim se vê que o PNRA os trata como parasitas que já agora não exercem função útil nenhuma. O que é desconhecer, não só a realidade atual, mas o imenso papel histórico dos fazendeiros, na expansão da fronteira rural interna do País.

Pode-se dizer que os tópicos 107 a 113 do PNRA constituem o dobre de finados do direito de propriedade na agricultura brasileira.

TEXTO DO PNRA

114 . São as seguintes as diretrizes que orientarão o processo de assentamento de trabalhadores rurais:

115 . – Assegurar, nos termos da legislação vigente, o reconhecimento das formas de organização da produção e o sistema de apossamento pré-existentes.

116 . – enfatizar a participação efetiva dos beneficiários e dos seus órgãos de classe em todos os níveis de decisão;

117 .- impedir a reconcentração de terras, evitando a transferência de domínio da propriedade a terceiros, não participantes como beneficiários preferenciais;

118 . – adotar o prazo mais curto possível para efetivar os assentamentos e reassentamentos.

119 . – evitar, ao máximo, o deslocamento de beneficiários de seus locais de origem, no processo de redistribuição de terras;

COMENTÁRIO

Evitar, ao máximo, o deslocamento de beneficiários de seus locais de origem”. – Em entrevista à imprensa, o sr. Ministro Nelson Ribeiro asseverou que este dispositivo tem por fim evitar a “desagregação da família” (“O Globo”, 6-6-85).

É certo que a separação das famílias, imposta pela necessidade da expansão desbravadora, pode ter muito de doloroso. Mas constitui erro de modernos sociólogos pensar que tudo quanto é doloroso é necessariamente digno de ser evitado.

Assim, o parto é doloroso. Mas daí não se deduz a legitimidade da limitação artificial da prole pelo uso de contraceptivos, do aborto etc. Tal é a doutrina católica, como vem sendo ensinada desde os primórdios da Igreja até nossos dias.

Também é doloroso o trabalho: “Comerás o pão com o suor de teu rosto” (Gen. III, 19). Daí não se pode deduzir que o trabalho deva ser eliminado, ou pelo menos evitado sempre ao máximo.

Dolorosa é a separação da filha que abandona seu lugar no lar paterno, para constituir com seu esposo outro lar. Daí não se infere ser um mal o casamento.

Assim também, dolorosa é a separação dos desbravadores que abandonam suas famílias e suas cidades para povoar outras terras. Mas em que situação estariam as três Américas, em nossos dias, caso as correntes imigratórias crescentes que as vêm povoando desde o século XVI até nossos dias se tivessem obstinado a ficar na Europa, “distribuindo e redistribuindo” (cfr. tópico 48) ao infinito os recursos gastos do velho Continente, em lugar de aproveitar corajosamente os ubérrimos espaços novos que os descobrimentos abriram para o gênero humano? (cfr. Título II, Cap. I, 3, D).

O Império nipônico, em que situação demográfica estaria, caso as emigrações japonesas dos séculos XIX e XX não tivessem franqueados espaços imensos para seus excedentes populacionais? Apesar dessas emigrações, os minguados espaços insulares do Império do Sol Levante são ainda hoje gravemente insuficientes para sua expansão demográfica...

Teria Deus sido menos compassivo para com os homens, do que o moderno reformismo brasileiro, quando lhes preceituou: “Povoai toda a terra” (Gen. I, 28)? Como poderia tal povoamento de toda a terra fazer-se sem as separações que tanto condoem o sr. Ministro da Reforma e Desenvolvimento Agrária?

A Abraão, bem-amado de Deus, preceituou Ele: “Sai de tua terra, de tua parentela, da casa de teu pai, para a terra que te indicarei” (Gen. XII, 1).

Pelo contrário, o PNRA se propõe “evitar ao máximo” (n.o 119) tais separações, dolorosas mas necessárias.

Por essa estranha política, ficará o Brasil “distribuindo e redistribuindo” (cfr. tópico n.o 48) ao infinito a área ocupada, e deixando abandonada a maior parte possível de área inocupada. Nesse caso, não nos surpreendamos que, diante de nosso espantoso e confessado propósito de não ocupar o que é nosso, nações superpovoadas, alegando a função social da terra e os direitos humanos, exijam que não criemos obstáculos a que elas ocupem compactamente o que nós deixamos inaproveitado por motivos sentimentais.

Nesse dia, a própria soberania sobre nossas áreas desocupadas periclitará.

E a causa disso estará no sentimentalismo agro-reformista.

* * *

A esse argumento sentimental, o sr. José Gomes da Silva, presidente do INCRA e um dos autores do PNRA, soma outro argumento, este de caráter prático. Em entrevista à imprensa declarou ele: “As reformas agrárias massivas, como tem que ser a brasileira, o pessoal [sic] tem que aproveitar a infra-estrutura existente... Porque essa infra-estrutura responde a uma realidade econômica: um terreiro, um paiol, uma tulha, coisa que o valha, é fruto de uma necessidade” (“O Estado de S. Paulo”, Suplemento Agrícola, 29-5-85, p. 8).

Tal argumento desperta reflexões. Durante séculos veio a iniciativa particular procedendo, com energia indomável, à elaboração da “infra-estrutura” necessária a seu próprio desenvolvimento. E isto, ela o fez à custa de trabalho, poupança e espírito de iniciativa, arrancando da própria terra os recursos necessários para tal.

É verdade que, mais ou menos nos últimos cem anos, a ação do Estado coadjuvou de modo expressivo o estabelecimento de “infra-estrutura”, por meio de estradas de rodagem, açudes, silos, armazéns etc. Sem embargo disso, a atuação da iniciativa privada continuou tão importante nessa matéria, que o Estado pôde prestar sua justa cooperação dentro do quadro de seus poderes normais, e de seus recursos correntes.

No ano de 1985, o Poder público, munido de recursos técnicos incomparavelmente mais eficazes do que os do passado, e confortado pela perspectiva de torrentes de dinheiro fornecidas pelo Banco Mundial (por exemplo, empréstimo de cem milhões de dólares para o programa de assentamentos no Nordeste – cfr. “O Estado de S. Paulo”, 28-6-85), afasta arbitrariamente a colaboração da iniciativa privada, e se confessa impotente para análoga realização. A ponto de optar por expor o Brasil a um empreendimento vertiginosamente arriscado, o de uma Reforma Agrária que revolva de ponta a ponta sua área cultivada.

Oxalá a constatação do que há nisto de contraditório abra os olhos dos propugnadores do agro-reformismo nacional.

TEXTO DO PNRA

120 . – estimular a exploração cooperativista condominial e/ou comunitária da terra, da produção, da comercialização e da transformação agro-industrial.

COMENTÁRIO

Os condomínios e outras formas de propriedade associativa, nada têm de intrinsecamente mau. Pelo contrário, são legítimos, e podem prestar úteis serviços à agricultura, como à pecuária.

Seria de censurar, entretanto, que essas formas associativas ou condominiais – pelas quais cabe aos interessados optar livremente, quando assim o prefiram – fossem impostas pelo Poder público, a título de regra geral aplicável a todos os fazendeiros que se encontrem em certas situações especificadas por lei.

O “estímulo” que o PNRA pretende dar a tais formas de “exploração... da terra, da produção, da comercialização e da transformação agro-industrial” faz recear essa intromissão indevida do Poder público. Na arquitetura geral do PNRA não se vê como ele escapará disso (cfr. Comentário ao n.o 137).

* * *

Neste tópico, como em muitos outros, o PNRA se exprime em termos pouco claros: “Exploração cooperativista condominial e/ou comunitária”: o que quer dizer tudo isto para o leitor, mesmo quando dotado de cultura geral média?

Cooperativista”, ele tem a idéia do que seja. Mas o que será, aos olhos dele, uma “exploração cooperativista condominial”? E uma “exploração cooperativista comunitária”? No que o significado, para ele confuso, de cada um desses três adjetivos condiciona o cooperativismo?

No que, ainda, uma “exploração cooperativista condominial” se conjuga com uma “exploração cooperativista comunitária” (“condominial e comunitária”) e de outro lado se diferencia da “exploração cooperativista condominial” porém não (“ou”) “comunitária”?

Outras tantas charadas. É pelo menos arriscado introduzir o moderno “e/ou” num texto oficial, sem muita ponderação...

A linguagem do PNRA é por vezes tão diversa da corrente que torna impossível ao homem comum da rua formar uma compreensão a respeito dele.

Atirar esse projeto ao público dando-lhe apenas 30 dias – depois benevolamente dilatados para 80 – para que ele proceda a essa decifração, à força de engenho interpretativo ou de estudos especializados, eqüivale a renunciar a que seja autêntico o pronunciamento desse público sobre o PNRA. Pelo que aqui fica consignado o nosso apelo às autoridades competentes para que, no próximo PNRA a ser apresentado em substituição ao presente, esses termos – caso figurem – sejam acompanhados de definições precisas e acessíveis ao brasileiro de mediana cultura geral.

* * *

O Brasil de hoje é um mundo. E, nesse Brasil, constitui por sua vez um mundo o conjunto das atividades agropecuárias.

Reformar cabalmente esse mundo com base em inteira amplitude de informações e de critérios de análise, tomados em consideração por especialistas de estofo os múltiplos aspectos morais, religiosos, sociológicos, jurídicos, científicos ou técnicos que tal reforma contém em si, coordenar todo o cabedal de estudos daí decorrentes, de maneira a construir um plano de grande envergadura, animado por uma nobre elevação de pensamento, e um atilado senso das realidades práticas, não só em matéria especificamente agrária, mas também nas atinências dessas matérias com as atividades industriais e comerciais e com o bem comum do País globalmente considerado, vazar todo esse plano em moldes técnicos e jurídicos de impecável coerência e clareza, numa linguagem correta e acessível ao público: essas seriam as tarefas preliminares ao PNRA que o País gostaria de ter visto executadas ponderadamente ao longo do tempo indispensável, com a mobilização de seus mais lúcidos talentos.

Porém não há conhecimento de que assim tenha sido elaborado o PNRA.

Daí uma sensação de aventura, que a divulgação dele causou a todo o Brasil.

Paralelamente, a crítica completa ao PNRA suporia a montagem de um sistema de documentação e análise, de estruturação e redação, quase tão amplo como o que fora desejável para a elaboração dele. Os oitenta dias concedidos pelo Governo para que o País opinasse sobre os mil aspectos das múltiplas matérias incluídas no PNRA são de uma exiguidade proibitiva disto.

Tal exiguidade se refletirá por força, nas carências inevitáveis de qualquer obra desejosa de analisar cabalmente perto de quatro centenas de tópicos do PNRA, ainda que em função apenas de dois princípios, o da propriedade privada e o da livre iniciativa.

Máxime considerando que tal análise não pode abstrair da Constituição Federal, do ET, e da luxuriante vegetação legislativa sobre matéria agrária em vigor, forçoso é que cá e lá se deixem notar lapsos que tenham escapado ao autor do presente estudo, e à prestimosa equipe de auxiliares que o coadjuvaram.

Desde já, agradece pois o autor todos os reparos que neste sentido se lhe queiram comunicar para uma nova edição.

TEXTO DO PNRA

4.4 – Participação da Sociedade Civil

121 . A Reforma Agrária é parte essencial do processo de consolidação de uma sociedade democrática. Trata-se de integrar à comunidade política, como cidadãos plenos, uma parcela significativa da população brasileira – os trabalhadores rurais – hoje marginalizados pela impossibilidade do livre acesso à terra em que trabalham.

COMENTÁRIO

No tópico 121, se evidencia um estranho pressuposto doutrinário do PNRA.

Afirma este que todos os trabalhadores rurais, indiscriminadamente, não são cidadãos plenos, e vivem marginalizados.

A afirmação causa estranheza, uma vez que todos podem e devem estar em condições de exercer o direito de voto, devem ainda possuir título eleitoral e são obrigados a votar. Ademais, gozam dos direitos civis e políticos que a Lei assegura a todos os cidadãos. O que lhes falta, então, para serem “cidadãos plenos”?

O projeto o explica desinibidamente: é a “impossibilidade do livre acesso à terra em que trabalham”.

Em outros termos, o assalariado, mesmo quando ganha largamente (e há muitos desses assalariados!), não está em condições de ser “cidadão pleno”, pois não tem “acesso à terra em que trabalha”.

A conclusão é clara para o PNRA: o regime do salariado é incompatível com a plena democracia.

Mas, por sua vez, tal conclusão conduz a outra: se esse regime é intrinsecamente antidemocrático, ele o é em todos os campos em que exista. No setor da lavoura, já foi dito. Mas também no setor industrial e no comercial. Ou seja, o PNRA, dispondo embora só sobre matéria rural, firma um princípio genérico que conduz à plena abolição do salariado também na área urbana, e à introdução compulsória da co-propriedade (portanto, também da co-gestão e da co-participação nos lucros), dos industriários e comerciários. O que representa o desmantelamento autogestionário da empresa.

Se é isto que o PNRA entende por “Nova República” – é forçoso que o reconheçam infelizmente até seus entusiastas – esta terá dado um passo imenso rumo à esquerdização total do Brasil.

TEXTO DO PNRA

122 . Um projeto com essa dimensão não pode se restringir à atuação sistemática do Estado. Por ser do interesse não apenas dos seus beneficiários diretos, mas de toda a sociedade, exige a participação ativa de todos os setores comprometidos com o projeto democrático.

123 . A participação da sociedade civil no processo de Reforma Agrária não pode restringir-se ao apoio passivo às medidas governamentais que vierem a ser adotadas. É indispensável que ela atue na própria definição dos seus objetivos que venha a ser dada pelo governo ao processo de Reforma Agrária.

124 . Entendemos que o PNRA já é, ele mesmo, resultado do amplo processo de organização e mobilização social que perpassa a sociedade brasileira e que, mudando a correlação de forças políticas, abre espaço para as reivindicações de forças sociais até então excluídas, e exige a democratização do poder do Estado, de suas políticas, de seus órgãos e de sua atuação.

COMENTÁRIO

Nestes três tópicos, o PNRA define os pressupostos políticos dos quais resulta, e os reflexos políticos que visa produzir antes de tudo.

1 . O PNRA sente de tal maneira o ciclópico do esforço exigido para a realização de sua utopia global que, apesar de ter disposto para si uma situação ímpar no novo Estado brasileiro, ainda considera insuficiente todo o potencial de ação daí decorrente: “um projeto com essa dimensão não pode se restringir à atuação sistemática do Estado”, afirma o documento com toda a naturalidade (n.o 122).

Estima ele que, ademais do Estado, tal projeto “exige a participação  ativa de todos os setores comprometidos com o projeto democrático” (n.o 122).

Quais são esses “setores”? Dir-se-ia que constituem uma parte da sociedade, pois quem fala em “setores comprometidos” faz pensar que existem, em contrapartida, “setores não-comprometidos”.

Setores comprometidos”... “setores engajados”, as expressões se eqüivalem. A palavra “engajados” é característica no linguajar da esquerda. Designa ela alguém que assumiu um compromisso consigo mesmo e eventualmente com terceiros, e tem posição tomada na execução de certo esforço, rumo a certa meta. A meta é a implantação do regime socialista, quando não do regime comunista. O “esforço” é o do PCB, do PC do B, ou de alguma organização “companheiros de viagem”, como as CEBs. Em suma, o “engajado” (a palavra passa de adjetivo a substantivo) é um idealista-ativista de esquerda.

Segundo essa interpretação, o PNRA quer e até “exige”, não tanto a participação de todos os brasileiros, mas de uma parte deles, filiados aos “setores comprometidos com o projeto democrático”, isto é, com o “projeto” do qual o PNRA se considera elemento integrante e capital.

Mas o PNRA deixa transparecer que tem metas políticas de dimensões não menos vastas do que suas metas sócio-econômicas.

Ao que parece, os tais “setores comprometidos” devem acabar por abranger toda a sociedade civil. Pois, imediatamente após se haver referido a tais “setores”, o PNRA continua: “A participação da sociedade civil no processo de Reforma Agrária não pode restringir-se ao apoio passivo às medidas governamentais que vierem a ser adotadas” (n.o 123).

Ante a Reforma Agrária não se tem pois o direito de ser contrário, ou pelo menos neutro e silencioso [1]. “É indispensável” que todas as forças vivas cooperem. Nada, pois, de multidões submissas, resignadas, emudecidas ante a ação governamental desenvolvida sem obstáculo, em toda a sua amplitude.

Houve tempo em que um povo descontente com seu monarca conservava a liberdade de se exprimir através do silêncio. O rei aparecia: não havia aplausos. “O silêncio dos povos é lição para os reis”, comentava-se.

Esse silêncio, parece temê-lo o PNRA. E por isso arvora em condição para seu êxito, algo que é muito mais do que o simples aplauso. E convoca com timbre ufano de toque de clarim: “É indispensável que ela [a sociedade civil]  atue na própria definição dos seus objetivos” (n.o 123).

Porém não se trata só de preceituar que assim deve atuar a sociedade civil. Trata-se ainda de conseguir que, abandonando a aliás lamentável displicência com que se conduz ante os problemas do Estado, ela queira de fato prestar à Reforma Agrária o tipo de colaboração que dela exige o PNRA.

Esclarecer mentes, movê-las à ação eficaz e dedicada, é coisa que se consegue maximamente em nossos dias pela propaganda. Isto é, pela mobilização dos meios de comunicação social, pela estruturação e dinamização de correntes de opinião, de modo que, todas à uma, executem a partitura ideológica, política etc., distribuída pelos magnatas propulsores da Reforma Agrária.

2 . Além de reformar o Brasil, o PNRA quer assim reformar os próprios brasileiros. Cometimentos deste gênero não são originais em nosso século. Tentou-os a partir de 1917, e continua a tentá-los nos nossos dias, com melancólica mas inflexível insistência, a Rússia soviética. E essas quase sete décadas de insucesso não parecem nem de longe demovê-la de tal esforço.

Resultados muito mais eficientes obtiveram, com a orquestração modeladora da mentalidade pública, o regime fascista e o nazista. Mas o caráter passageiro de seu sucesso publicitário todos o conhecem.

Não se vê como descartar a apreensão de que o PNRA conduza o País, também neste domínio e não apenas no da produção rural, a alguma aventura não tão diferente destas.

Com efeito, para quem se situa na perspectiva e na lógica dele, seria forçoso concluir que:

a)    a Reforma Agrária é indispensável para o Brasil;

b)    porém, ela não é realizável sem o apoio de toda a sociedade civil;

c)     e tal apoio só pode ser obtido por meio da propaganda que esclareça o povo sobre a eficácia com que essa reforma conduzirá o País ao Éden da agricultura estruturada em unidades familiares, ou preferivelmente organizada segundo as máximas do socialismo autogestionário;

d)    em conseqüência, um governo zeloso do bem comum deve suscitar, favorecer e estimular de todos os modos os talentos especializados em atear no coração das multidões tíbias, adormecidas, a chama sagrada das convicções e dos entusiasmos agro-igualitários.

e)    em contrapartida, esse governo deve ver, nos anti-agro-reformistas, inimigos do bem comum e da salut public. O que importará em os relegar ao canto, em os privar, quanto necessário, de voz e de vez. Para os que increparem os homens de tal governo, de contraditórios com seu rótulo democrático, restará sempre o recurso à máxima romana: Salus populi suprema lex esto (Lei das XII Tábuas).

Rótulo democrático, também o tinham o regime nazista e o fascista. Também o tem a Rússia comunista. E é precisamente pela aplicação abusiva da máxima romana, que julgaram (e no caso soviético ainda julgam) poder usá-lo sem contradição. Pois, alegavam e alegam, a democracia não pode descuidar de sua própria defesa ante os adversários.

Quem remonte ainda mais o curso da História, deparará, no século XVIII, com o trio do Terror: Danton, Robespierre e Marat. Democratas e liberais até ao ponto do delírio, não julgaram que sua sanguinária ditadura constituísse um desmentido dos princípios que professavam. É que assim o exigia a salus populi, a salut public, em holocausto ao qual o famoso Comité ensangüentou a França inteira.

* * *

Longe de qualquer comentador ponderado afirmar que tais sejam os propósitos do Exmo. Sr. Presidente José Sarney, ou de seu dinâmico Ministro da Reforma e do Desenvolvimento Agrário.

Entretanto, a História apresenta múltiplos casos de homens públicos – inclusive dotados de verdadeiro valor intelectual – que afirmavam certos princípios e os punham em vias de realização, sem se darem conta das últimas conseqüências a que tais princípios conduziam. Essa hipótese, que não discrepa da consideração devida a SS. Exas., vem naturalmente ao espírito quando se consideram as conseqüências lógicas inelutáveis destes tópicos do PNRA, tão densos e tão carregados de perigos. Conseqüências que, no febricitante desempenho de seus amplíssimos encargos, eles eventualmente não tenham medido em toda a sua extensão.

3 . Seja como for, a mobilização da opinião pública, o redator dessa parte do PNRA não a vê como uma quimera, mas como algo que já começou.

Algo que teria nascido espontaneamente de um “amplo processo de organização e mobilização social que perpassa a sociedade brasileira e que, mudando a correlação de forças políticas, abre espaço para as reivindicações de forças sociais até então excluídas, e exige a democratização do poder do Estado” (n.o 124).

É precisamente como se autodefinem as correntes de esquerda que vêm agitando o Brasil, com a colaboração tão ampla de grandes forças de opinião pública do País: os meios de comunicação social (4º Poder) e a CNBB (5º Poder).

É, pois, na continuidade do sopro para a esquerda, que o PNRA deseja que sejam postos em ação não só o poder do Estado, como os impulsos vigorosos da sociedade civil, algum dia por fim inteiramente “conscientizada” e “engajada”.

TEXTO DO PNRA

125 . A  participação das diferentes instituições, sindicatos, associações, grupos e movimentos da Sociedade Civil no processo da Reforma Agrária têm como base o reconhecimento pelo Estado das suas identidades específicas, do seu direito à autonomia e à representação direta dos interesses e reivindicações dos segmentos sociais que as constituem, da legitimidade das suas formas de organização, ação e participação social e de suas formas de expressão.

126 . Assim, para viabilizar este PNRA, tornando-o um projeto de toda a sociedade, é imprescindível, que canais permanentes de acesso às instâncias e agentes do Estado, responsáveis pela elaboração de planos e implementação de programas de Reforma Agrária sejam abertos às reivindicações e propostas de todas as forças sociais. Pressupõe-se também, uma ruptura com todos os artifícios autoritários, como a burocratização interna dos órgãos governamentais executores da Reforma Agrária.

127 . É igualmente imprescindível que as informações sobre o processo de Reforma Agrária fluam livremente para a sociedade, para que esta possa exercer o necessário controle sobre a sua implementação.

COMENTÁRIO

É igualmente imprescindível que as informações sobre o processo de Reforma Agrária fluam livremente para a sociedade” (n.o 127). – Esse “fluir” para a sociedade das “informações sobre o processo de Reforma Agrária” ninguém o poderá assegurar melhor do que os próprios órgãos diretivos dessa reforma. Pois deles dependem as melhores fontes de informação. A eles pertencem os mais amplos meios de fazerem “fluir” para o público o manancial dos dados de que dispõem. Em suma, nesta matéria, os reis da propaganda agrária são eles. E mal avisados andarão os que contrariarem o curso “fluente” dessa reforma “indispensável” e “urgente”, difundindo informações “antipatrióticas” sobre os efeitos do agro-igualitarismo...

É para estes rumos que, na lógica de quanto dispõe, o PNRA encaminha o Brasil, possivelmente sem o advertir.

TEXTO DO PNRA

128 . O Congresso Nacional  deverá ser uma caixa de ressonância do amplo debate que se estabelecerá no País, em torno da Reforma Agrária. Para ele deverão convergir muitas das propostas a serem formuladas pelos sindicatos e movimentos de trabalhadores rurais e urbanos, bem como os pleitos das entidades patronais, as reivindicações de organizações civis e religiosas que atuam no campo, as análises dos estudiosos e as opiniões dos partidos políticos.

129 . Será, pois, mais do que nunca necessário um diálogo intenso entre o Legislativo e o Executivo.

130 . Aos principais interessados na Reforma Agrária, os trabalhadores rurais, está reservado papel central na sua efetivação. As entidades representativas dos trabalhadores, além de participar, como todas as demais forças sociais, da discussão das propostas e das políticas de Reforma Agrária, exercerão o seu direito de reivindicar e fiscalizar a sua execução. Respeitada a sua autonomia elas estarão presentes em todos os momentos e em todos os níveis do processo: na indicação das áreas a serem objeto de intervenção do Poder Público; na discussão do perfil dos assentamentos; na seleção de beneficiários, nos levantamentos para fim de desapropriação, na busca de soluções para conflito de terras e em todas as demais situações em que os interesses dos trabalhadores estejam envolvidos.

131 . A participação da sociedade civil e a dos trabalhadores rurais em especial, no processo de Reforma Agrária, não pode ser vista como uma concessão do Estado. Trata-se, na realidade, de um requisito vital, para que o processo chegue a bom termo. Sem elas, o PNRA perderia a sua identidade e tornar-se-ia apenas mais um plano entre os muitos produzidos pela tecnocracia.

COMENTÁRIO

Uma caixa de ressonância” (n.o 128). – A metáfora não poderia ser mais expressiva. Ela deixa bem claro que a propósito do grande cometimento agro-reformista, as duas casas legislativas federais farão tão-só o papel de um ambiente ilustre, no qual se travem debates com repercussão em todo o País.

Mas a tarefa de legislar, não se lhes abrirá a menor brecha para que a exerçam nesta emergência. A aprovação, modificação ou rejeição do PNRA compete exclusivamente ao Presidente da República.

Este tópico permite avaliar a amplitude do debate agrário que o PNRA espera. Fica-se entretanto desconcertado ao considerar que debate tão amplo deveria, segundo o pensamento inicial do promotores do PNRA, travar-se e esgotar-se dentro de 30 dias!

Segundo indicam o bom senso e a experiência corrente dos fatos, quanto maior o número de pessoas que participam de um debate, tanto mais longo tende este a ser.

Ora, foi convocada para este debate uma nação de 130 milhões de habitantes, distribuídos em 8,5 milhões de km2. E imaginavam os responsáveis por ele que bastariam 30 dias para que a discussão chegasse a seu termo conclusivo natural!

* * *

Quem corre risco com essa limitação de prazo, embora oportunamente dilatado por mais 50 dias? O próprio PNRA. Pois se for alheia a ele a sociedade civil, é improvável que “o processo chegue a bom termo”. Neste caso, “o PNRA perderia a sua identidade e tornar-se-ia apenas mais um plano entre os muitos produzidos pela tecnocracia” (n.o 131).

O presente tópico não importa apenas sob esse aspecto. Ele deixa ver bem claramente quanto, segundo a sistemática do PNRA, é necessária a ação sobre a opinião pública já descrita (cfr. Comentários aos n.os 122 a 124).

TEXTO DO PNRA

5 – PROGRAMAS DE AÇÃO

132 . O PNRA terá a sua execução orientada de acordo com um conjunto de Programas que assumem funções e graus hierárquicos diferentes, mas que apresentam rígida complementariedade e dependência.

133 . O Programa Básico, definidor e configurador do processo de transformação das relações de propriedade e das melhorias de condições de acesso à terra, é o Programa de Assentamento de Trabalhadores Rurais. Ele substantivará as ações de desapropriação por interesse social, tendo como fator de mobilização, deflagração e consolidação de todo o processo a organização sócio-econômica dos beneficiários, em unidades agrícolas de trabalho e produção, comercialização e industrialização capazes de promovê-los social e economicamente.

134 . Os Programas Complementares e os de Apoio apresentam características diferentes, sendo os primeiros de ação direta e substantiva e, os demais, de natureza acessória. No primeiro caso, se situam os Programas de Regularização Fundiária, Colonização e Tributação, geradores de produtos intermediários expressivos que, se não configuram um processo de Reforma Agrária, constituem segmentos de importância, no sentido de poderem assumir autonomia operacional em determinadas condições especiais. No entanto, sua implementação deverá guardar, preferencialmente, íntima correlação com as necessidades e exigências do Programa Básico.

135 . Os Programas de Apoio, com funções eminentemente adjetivas e supletivas, têm também destacada importância, pois representam uma das vertentes responsáveis pela viabilidade do processo, como o são os Programas de Cadastro Rural e de Desenvolvimento de Recursos Humanos. Vencida a primeira fase do desenvolvimento da Reforma Agrária, de natureza emergencial, eles condicionarão as ações de médio e longo prazo, em termos de consistência, amplitude e operacionalidade. O Programa de Apoio Jurídico aos trabalhadores rurais, de configuração periférica, provoca efeitos multiplicadores à medida que assumir caracter´siticas preventivas e mediadoras no contexto dos conflitos sociais pela posse da terra, bem como de proteção às vítimas da prepotência, do arbítrio e da violência no campo. Por último, contrastando com essas atividades de caráter executivo, releva acentuar o Programa de Estudos e Pesquisas, que além de analisar e interpretar as informações fornecidas pelo Cadastro Rural e por outros levantamentos relacionados com a questão agrária, servirá de valiosa memória documental de um importante momento da história social brasileira. Ele também fornecerá o necessário embasamento para a formulação de políticas coerentes e consistentes.

136 . Esse elenco de programas é esquematizado na tabela 5.

Tabela 5: Esquema de Programas previstos no 1º PNRA da Nova República

        

Natureza dos programas

Denominação

Básico

Assentamento de Trabalhadores Rurais

 

Complementar

Regularização Fundiária

Colonização

Tributação da Terra

 

Apoio

Cadastro Rural

Estudos e Pesquisas

Apoio Jurídico

Desenvolvimento de Recursos Humanos

 

 

 

COMENTÁRIO

Note o leitor o considerável número e amplitude de ação dos “Programas Complementares e de Apoio” que o PNRA imagina, além do “Programa Básico”, o “Programa de Assentamento de Trabalhadores Rurais”.

Assim, os “Programas de Regularização Fundiária, Colonização e Tributação”, os “Programas de Cadastro Rural e de Desenvolvimento de Recursos Humanos”, o “Programa de Apoio Jurídico aos trabalhadores rurais”, o “Programa de Estudos e Pesquisas” etc.

Ora, todos esses Programas são de uma elaboração dispendiosa. E mais dispendiosa ainda é a sua aplicação. Tudo isso importará na constituição de uma burocracia sem fim, que pesará de modo inclemente sobre a tão onerada economia nacional.

Porém, tal parece não espantar nem atemorizar os autores do Plano. Visceralmente utopistas, percebe-se que eles se preocupam pouco com as despesas. Realmente o PNRA é um plano de luxo. E isto precisamente no momento em que os interesses do Brasil tanto pedem contenção de despesas!

 

TEXTO DO PNRA

5.1 – Programa Básico de Assentamento de Trabalhadores Rurais

a) Caracterização

137 . A Reforma Agrária se concretizará através da organização dos trabalhadores rurais em novas unidades de trabalho e produção com estrutura associativa e administração autônomas, que constituirão os Assentamentos, cujas dimensões, formas possessórias e de gestão estarão condicionadas inclusive às decisões dos próprios beneficiários, à diversidade e às especificidades locais e regionais.

138 . Assim, se procurará diferenciar, de forma nítida, o processo de criação de novas unidades de produção do Programa de Assentamento de Trabalhadores Rurais, objeto central da Reforma Agrária, daqueles assentamentos proporcionados pelo Programa de Colonização.

139 . Não somente será distinta a maneira de se obter a terra, como também os níveis de participação e de decisão dos beneficiários e do Poder Público. Será adotada preferencialmente, a desapropriação por interesse social para os Programas de Assentamento de Trabalhadores Rurais, e a utilização das terras públicas para o Programa de Colonização.

COMENTÁRIO

O tópico 137 é dos mais importantes do PNRA, pois define o “assentamento” agrário, sucedâneo da propriedade privada.

Com efeito, a definição de “assentamento” do presente tópico, de nenhum modo corresponde à que tem, na técnica jurídica brasileira, a palavra “propriedade” (cfr. Código Civil Brasileiro, art. 524).

Que é um “assentamento”? É mais fácil entendê-lo, dispondo em ordem didática as várias características que o PNRA aqui enumera:

a ) “Unidade de trabalho e produção”.

* A propriedade não se define assim. Ela constitui direito individual do proprietário sobre a coisa, com ou sem trabalho.

b ) Constituída de “trabalhadores rurais”.

* O titular do assentamento é, portanto, normalmente plural, e abrange certo número de indivíduos. Está na índole da propriedade privada ser habitualmente individual.

c ) “Com estrutura associativa e administração autônomas”.

* A estrutura associativa obviamente não é essencial à propriedade individual.

Os trabalhadores “assentados” não serão, portanto, proprietários, ou o serão em dose residual e infinitesimal. Pois o poder de determinação das “dimensões, formas possessórias e de gestão” da área de nenhum modo estará inteiramente em suas mãos, mas nas dos órgãos competentes do Poder público. As “decisões dos próprios beneficiários” podem fazer-se ouvir a esse respeito, mas sem verdadeiro alcance decisório. Elas simplesmente poderão “condicionar” em alguma medida as “formas possessórias e de gestão”, tanto quanto o poderão a “diversidade e as especificidades locais e regionais”. Ora, tal situação de modo algum corresponde à da propriedade plena, isto é, a propriedade na qual todos os direitos a ela inerentes (posse, uso, gozo e disposição) se acham enfeixados na pessoa do proprietário.

Note-se de passagem que os “assentados” são aqui qualificados de “beneficiários” (n.o 130), o que efetivamente bem exprime sua condição. Mas também a diferencia da condição de proprietário. Pois se há alguma coisa que, de si, a propriedade não é, essa coisa é um “benefício” conferido pelo Poder público. Ela não nasce da outorga de uma vantagem, operada pelo Poder público, mas da apropriação, do trabalho ou da herança.

Aliás, ao que parece, os colonos das zonas de que trata o “Programa de Colonização” (tópico 139) também não serão proprietários. Pois o PNRA qualifica também de “assentamentos” as novas unidades proporcionadas por tal Programa (n.o 138).

O que será então da propriedade rural individual, se – tanto na zona cultivada e habitada, como na zona inculta e, na melhor das hipóteses, habitada por índios – o mais substancial do direito de propriedade sobre a terra será exercido pelo Poder público?

* * *

Até aqui, a análise da concepção de assentamento se cingiu ao próprio texto do PNRA. Não foram mencionados autores que a corroborem. Será citado agora um só deles. Trata-se do próprio Sr. José Gomes da Silva, autor oficial do PNRA e presidente do INCRA. Dois títulos que revestem de singular autoridade suas declarações.

A tal respeito, declarou ele à reportagem de “O Estado de S. Paulo” (Suplemento Agrícola, 29-5-85):

ESTADO - ... As terras vão ser entregues gratuitamente?

“JOSÉ – Não, são pagas. Nós só damos conselho – de graça, só conselho! A terra é paga. Prazo? A lei permite pagar em até 20 anos.

...

“Esse é outro detalhe importante que precisa ficar bem claro, que reforma agrária não significa loteamento. Necessariamente, a terra não precisa ser dividida, a lei não obriga a distribuir em propriedade familiar. É que existe uma conotação. A imagem de agricultura e o espírito de poupança do agricultor de origem européia: italiano, espanhol, português, é da parcela em propriedade familiar, em propriedade individual. Mas a lei não obriga a isso. ....

“ESTADO – O beneficiário não poderá vender a terra que ele adquiriu através do processo?

“JOSÉ – Não, não pode. Nós estamos estudando inclusive algumas maneiras para evitar o famoso caso da bicicleta: um cara [sic] da Transamazônica que acabou de receber o título e trocou por uma bicicleta.

“ESTADO” – Isso poderia ser evitado de que forma?

“JOSÉ – Você, ao invés de dar um título de propriedade, dá uma concessão de uso.

“ESTADO – Com um prazo determinado correspondente ao pagamento da dívida.

“JOSÉ” – É. Um mínimo. Nessa concessão de uso ele pode fazer financiamentos, ele pode fazer qualquer tipo de operação, mediante autorização do INCRA, ele pode até agravar a propriedade com a hipoteca etc., desde que não dificulte a capacidade de pagamento dele. Mas não poderá vendê-la.

“ESTADO – Mas aí não cai fora um pouco do espírito de propriedade. Quer dizer, o cidadão, será que ele vai se sentir proprietário?

“JOSÉ” – Esse conceito está mudando hoje um pouco. O conceito mais moderno hoje é o resultado do fruto do trabalho, não necessariamente a propriedade”. (loc. cit. pp. 7-8).

Mais claro não poderia estar que, a juízo do próprio autor do PNRA, este visa fazer da estrutura agrária brasileira uma imensa rede de unidades cujos titulares não são proprietários, e que não se chamam “propriedades”, mas “assentamentos”.

No dia em que a Reforma Agrária visada pelo PNRA se tiver estabelecido em todo o solo rural brasileiro, terá cessado de existir neste a propriedade individual.

Poder-se-ia objetar a esta ponderação que, embora o “beneficiário” não seja um proprietário a título individual, ele é integrante de uma comunidade de “assentados”, a qual exerce sobre a terra discriminada para ela um conjunto tão amplo de direitos, que pode ser comparada ao direito de propriedade. É a comunidade “assentada”.

O indivíduo seria então como que uma célula viva de um organismo global, o qual organismo, este sim, é proprietário. A propriedade individual desapareceria. Mas subsistiria uma propriedade coletiva privada, a qual gozaria de ampla autonomia em relação ao Estado. Por onde pareceria afastado da realidade dizer que o PNRA visa criar o espantalho do comunismo mais radical, em que a terra pertencesse exclusivamente ao Estado.

Pura ilusão. No PNRA (cfr. tópico 264), como na citada entrevista do sr. José Gomes da Silva (“O Estado de S. Paulo”, Suplemento Agrícola, 29-5-85, p. 7), são mencionadas expressamente as Cooperativas Integrais de Reforma Agrária (CIRA), já criadas pelo ET (art. 79) e regulamentadas pelo Decreto n.o 58.197, de 15 de abril de 1966. Essas cooperativas deverão ser agora reformuladas de modo a se ajustarem ao PNRA (cfr. n.o 264). Por sua própria natureza, elas se destinam a ser superpostas aos assentamentos, e se revestirão, em relação a estes, de um caráter federativo e hegemônico. Governadas por seus órgãos diretores próprios, as decisões delas condicionarão a fundo os assentamentos “autônomos”.

Por sua vez, os poderes dessas entidades hegemônicas serão também, ex-natura propria, determinados por lei. Lei cujo cumprimento está normalmente afeto ao Poder executivo. E assim, é nas mãos do próprio Estado que ficará o poder sobre esses organismos federativos e hegemônicos. E se na base dessa pirâmide desaparece o proprietário individual, do mais alto dela não desaparece o Estado. Pelo contrário, ele aparece investido de poderes muito mais amplos, capaz de intervir com redobrada meticulosidade, na vida e na produção de cada nesga do território nacional.

Qualifique-se isso em tese como se quiser, em tal caso se estaria em presença de uma gigantesca hipertrofia do poder do Estado.

E o “assentamento” autogestionário e cooperativizado não teria sido senão um meio de empurrar o Brasil no rumo apontado pelas utopias marxistas.

Não é aqui o momento de provar que o socialismo autogestionário, cuja versão mais conhecida no Ocidente é o inexecutado plano da coligação socialo-comunista vitoriosa na França quando das eleições de 1981, constitui, segundo a doutrina comunista, um passo mais “avançado” do que o próprio capitalismo de Estado (cfr. Parte II, Nota 3).

* * *

Acrescente-se de passagem – e este ponto tem sido realçado por autorizados juristas – a criação dos “assentamentos” como nova forma de vinculação do homem à terra, obviamente não pode ser imposta por um Plano ou regulamento emanado do Poder executivo. E, como nada dispõe a este respeito o ET, seria indispensável que o Congresso votasse disposições legais próprias.

Avocando essa atribuição exclusivamente ao Poder executivo, o PNRA sugere ao Presidente Sarney um verdadeiro lance de autoritarismo ditatorial, no mais flagrante contraste com a abertura. Lance que, cabe esperar, ele não acederá em efetivar.

* * *

O que pensar da impossibilidade em que fica o assentado, de vender a terra que entretanto ele deve pagar? Como evitar que ocorra, na implantação dos “assentamentos”, a mesma evasão verificada por ocasião da aplicação do ET?

Com efeito, segundo informações disponíveis, de 500 mil lotes distribuídos de 1981 a 1984, cerca de 40% já tinham seu título de propriedade passado a outras mãos. E provavelmente essa porcentagem ainda crescerá algum tanto com o decurso do tempo.

Um trabalhador rural ou urbano que adquiriu o título de propriedade de um lote e depois o vende, o faz por quê? – Em primeiro lugar, pode fazê-lo com intuito especulativo; ou então porque se formou uma miragem sobre a condição do pequeno proprietário rural, e essa miragem não correspondeu à realidade, preferindo ele retornar à condição de assalariado rural ou de trabalhador urbano; ou, por fim, porque, sendo ele trabalhador urbano, seus hábitos não se ajustaram à vida rural.

O sistema de “assentamentos” preconizado pelo PNRA não estará isento de análogos problemas.

A solução, vista com simplismo, consistiria em reter no assentamento as pessoas que para lá forem.

Para isso há dois caminhos: aumentar-lhes de qualquer maneira o interesse pela permanência; ou, se isto for impraticável, aumentar a sua dependência, de maneira que se ele sair, as suas condições ainda serão piores do que eram quando ele fora assalariado urbano ou rural.

Essa segunda solução apresenta desde logo o inconveniente de só atrair, em grande número, para os assentamentos, pessoas que, por falta de iniciativa pessoal e capacidade de trabalho, fracassaram tanto na condição de assalariado urbano ou rural, que até as condições precárias do PNRA lhes pareçam sedutoras.

Isto ainda quando ele sabe de antemão que, se quiser sair, se desencadeará contra ele um mecanismo persecutório, de prejuízos materiais. Por exemplo, se, ao cabo de cinco anos ou dez de trabalho, quiser abandonar o assentamento, estará exposto a não levar consigo nada, a não ser o peso das fadigas e dos anos que lhe desgastaram, em proporções maiores ou menores, a capacidade de trabalho.

Se esse sistema de fixação nos assentamentos fracassar – o que constitui um perigo pelo menos para certas parcelas da população brasileira, volúveis a ponto de se habituarem até a um quase seminomadismo – a solução será a coerção policial com base em leis penais promulgadas adrede.

Quer no caso da coerção econômica, quer no da coerção policial, nossa legislação agrária terá desembocado no regime de servidão da gleba, talvez não necessariamente como ele existiu na Idade Média, mas como a legenda negra que ainda paira no ar a respeito dessa época da História costuma apresentar.

* * *

Ainda a propósito da estabilidade do assentado na terra, convém lembrar quanto a prejudica – a ponto de a tornar quase quimérica – a atual legislação sobre o divórcio, bem como a gradual equiparação da concubina à esposa.

Com efeito, essa legislação pressupõe uma dissolução moral da sociedade, que torna como que impraticável a magnífica estabilidade inerente ao casamento monogâmico e indissolúvel. E torna muito fácil que um dos esposos assentados abandone o outro. A fortiori isso acontecerá com o concubino ou a concubina.

Ora, o desatar desses vínculos facilmente pode trazer como conseqüência que, por razões emocionais e outras, uma das partes, ou ambas, queira abandonar o assentamento.

O convívio constante e íntimo entre os dois sexos, inevitável no regime de assentamento, pode por sua vez facilitar a instabilidade das uniões conjugais concubinatárias, determinando situações de queixa ou de ciúmes que se tornem explicavelmente insuportáveis para estes ou aqueles, dentre os assentados, envolvidos em dramas passionais.

Se outras circunstâncias faltassem para isso, bastaria lembrar que, no lar do assentado, por certo não faltará a televisão...

Diante de situações dessas, que a erosão moral vai tornando sempre mais freqüente, qual a solução do PNRA? Manter uns e outros compulsoriamente no assentamento, inclusive com a projeção desse convívio forçado, no terreno da criminalidade?

Utopista, quimérico, sonhador, o PNRA nem cogita de todas essas eventualidades...

TEXTO DO PNRA

140 . No Programa de Assentamento de Trabalhadores Rurais, a concepção do projeto técnico do assentamento contará,  em todos os níveis e fases com uma participação direta dos beneficiários, em particular no que se refere às decisões sobre as formas possessórias e de uso da terra, evitando-se regular através de normas pré-estabelecidas as maneiras de viver e trabalhar dos beneficiários da Reforma Agrária.

141 . A ação do Estado se circunscreverá à aplicação das medidas disposta no Estatuto, as quais abrangem desde o uso dos instrumentos de legalização de posse da terra até as ações de política agrícola necessárias para garantir a ocorrência de condições adequadas tanto para a produção como para a vida pessoal dos beneficiários.

142 . O Programa de Assentamento de Trabalhadores Rurais será direcionado, prioritariamente, às áreas de intervenção para Reforma Agrária, tendo a desapropriação por interesse social como seu fato gerador primordial. Dentro dele, as distintas formas possessórias da terra, de caráter definitivo ou temporário, será o instrumento mediador das relações dos beneficiários com o Estado. Seu produto final será um complexo socialmente organizado capaz de proporcionar democraticamente condições adequadas de reprodução dos meios de vida e de trabalho.

COMENTÁRIO

No tópico 140 figura mais uma atribuição dos “assentados”: a “participação direta”, “em todos os níveis e fases”, na “concepção do projeto técnico do assentamento”.

Aqui, ainda, a situação dos “assentados” é ambígua, e distinta da dos proprietários.

Com efeito, o leitor do PNRA – a menos que se entregue a mais outro estudo, isto é, o do “Programa de Assentamento de Trabalhadores Rurais”, apenas esboçado no PNRA – fica sem saber em que medida a participação deles é decisiva.

O PNRA se limita a esclarecer que a matéria sobre a qual se exercerá essa participação abrange “as decisões sobre as formas possessórias e de uso da terra” (n.o 140).

Deste último particular parece depreender-se que essas “decisões” variarão de “assentamento” (“unidade de trabalho e produção” – cfr. n.o 137) para “assentamento”, o que dá ao dispositivo caráter fortemente autogestionário e socialista.

O tópico 140 prossegue: “... evitando-se regular através de normas pré-estabelecidas as maneiras de viver e trabalhar dos beneficiários da Reforma Agrária”. Dado que a palavra “evitando” não tem aqui caráter normativo, mas apenas de conselho, fica-se entendendo que os poderes competentes (“evitando-SE”) preferivelmente não regularão “as maneiras de viver e trabalhar dos beneficiários da Reforma Agrária”.

Por sua vez, daí se deduz que o PNRA pressupõe que o Estado tem normalmente o poder de regular “as maneiras de viver” dos cidadãos! Ou, pelo menos, dos “beneficiários” de seus programas sócio-econômicos!

Se se considerar toda a amplitude de liberdades de que o homem naturalmente deve dispor no tocante às suas “maneiras de viver”, compreende-se que enorme extensão de poder o PNRA concede aos órgãos públicos em causa, pelo menos se verificadas determinadas circunstâncias.

Com efeito, em cada situação concreta, a quem toca dizer se é o caso de “evitar” ou não o exercício de tais atribuições? Obviamente, e antes de ninguém, aos mesmos órgãos! Ou seja, desde que esses órgãos o queiram, exercerão esse poder.

A conseqüência é tão abstrusa, que o leitor brasileiro, ao lê-la, pensará em algum erro de datilografia da edição do PNRA aqui tomada por base.

Porém, como tantas coisas abstrusas, ela é simplesmente moderna. “Está no vento”. Segundo o projeto autogestionário francês do Presidente Mitterrand, compete aos órgãos do sistema ditar normas até sobre o arranjo interno da residência das pessoas “autogestionadas” [2].

Aliás, tal dispositivo do n.o 140 está em contradição com os tópicos imediatamente anteriores (cfr. n.os 137 a 139), bem assim com os seguintes (cfr. n.os 141-142 e 147). Pois uns e outros não fazem outra coisa senão “pré-estabelecer” as “maneiras de viver e trabalhar dos beneficiários da Reforma Agrária”, as quais devem ajustar-se a “unidade de trabalho e produção” com “estrutura associativa” etc.

* * *

O tópico 141 indica o âmbito no qual se “circunscreverá” a ação do Estado: a matéria contida neste âmbito é tão vasta que “circunscreve”... mais ou menos tudo, inclusive “a vida pessoal dos beneficiários” !

No tópico 142 se lê que “as distintas formas possessórias da terra... será [sic] o instrumento mediador das relações dos beneficiários com o Estado”. – Confuso.

Igualmente confusa a frase seguinte: “Seu produto final será um complexo socialmente organizado capaz de proporcionar democraticamente condições adequadas de reprodução dos meios de vida e de trabalho”.

TEXTO DO PNRA

b) Diretrizes operacionais

143 . As terras necessárias à realização dos Assentamentos deverão ser obtidas prioritariamente, através da desapropriação por interesse social dos latifúndios, admitindo-se, também, em condições especiais, a utilização dos demais mecanismos previstos no Estatuto.

144 . A adjudicação das terras se fará através dos distintos instrumentos de legalização de posse em função das condições naturais de cada área, dos sistemas de produção propostos, de sua localização em relação aos mercados consumidores e de decisões compartilhadas entre o Estado e os trabalhadores rurais beneficiários.

145 . O acesso à terra deverá ser efetivado imediatamente após a imissão de posse das áreas desapropriadas – para o caso de assentamento que exigir transferências de famílias -, mediante um processo seletivo expedito a ser conduzido em conjunto com as organizações de trabalhadores rurais, com a assistência e assessoria do Poder Público.

146 . Para as áreas já ocupadas, ou com ocupação rarefeita, procurar-se-á respeitar, na medida do possível, as situações existentes, desde que não se caracterizem como privilegiamento em relação às demais situações.

COMENTÁRIO

... desde que não se caracterizem como privilegiamento” (n.o 146): sempre a nota acidamente igualitária do PNRA.

TEXTO DO PNRA

147 . Os beneficiários da Reforma Agrária serão organizados em complexos agrícolas de estrutura associativa, com autonomia administrativa e dimensionados essencialmente pela possibilidade de conhecimento mútuo das famílias, pelas possibilidades operacionais dos membros da organização em dirigi-los, e em função do tamanho adequado às explorações possíveis, ditadas pela aptidão agrícola dos solos e características regionais.

COMENTÁRIO

Este tópico está em flagrante contradição com outro anteriormente analisado (cfr. n.o 140), o qual recomenda que se evite “regular através de normas pré-estabelecidas as maneiras de viver e trabalhar dos beneficiários da Reforma Agrária”.

O que contém este tópico senão precisamente isso?

* * *

Para garantir o não “privilegiamento” recomendado no tópico 146, na distribuição das áreas,  cuja igualdade repousa sobre a avaliação de tantos fatores, alguns dos quais variáveis segundo apreciação meramente subjetiva, o encarregado da distribuição fica arvorado praticamente em déspota dos arranjos e rearranjos distributórios...

TEXTO DO PNRA

148 . O Poder Público deverá promover, de imediato, propostas de melhoria da capacitação dos beneficiários, objetivando atender aquelas demandas oriundas de um processo de reflexão participativa entre os beneficiários e o pessoal técnico e administrativo das distintas instituições governamentais que atuarão na área do assentamento.

COMENTÁRIO

As “propostas de melhoria de capacitação dos beneficiários” são inteiramente facultativas? Pode o beneficiário escolher qualquer forma de “capacitação”? Não parece isto possível.

O tópico faz pensar então em programas alternativos (ou em um só programa!) dentro do qual o mujique brasileiro, “beneficiário” do agro-igualitarismo, fará a sua escolha em uma estreita faixa de opções. Tal será a liberdade no agro-reformismo.

A este propósito cabe uma pergunta: no que consistirão estes exercícios de “capacitação”? Poderá o mujique nacional protestar contra eles, julgando-os, por exemplo, excessivamente duros? A quem tocará, então, o poder decisório? Questões essenciais para a liberdade individual, que o PNRA deixa displicentemente na penumbra.

Tal não espanta, aliás. Pois no trinômio Liberdade-Igualdade-Fraternidade há uma constante fricção (por vezes fatal para a Fraternidade) entre a Igualdade e a Liberdade. Em outros termos, sempre que os homens sejam livres, eles se desigualam. E, para manter entre eles uma igualdade real e inteira, é preciso submetê-los a um jugo de ferro.

É esta a razão de fundo pela qual o PNRA, animado por um ardente “zelo missionário” para com a Igualdade, propõe um procedimento férreo em relação ao corpo social do País.

Ou seja, ele o quer modelar como se não fosse matéria viva, mas sim inerte, tal qual faz com a argila o escultor. E essa modelagem não é menos pesada para o trabalhador “beneficiário” da Reforma Agrária do que para o proprietário trucidado por esta. O primeiro perde a liberdade. O segundo a propriedade.

TEXTO DO PNRA

149 . O MIRAD/INCRA deverá promover gestões para a participação de Órgãos Estaduais e Administrativos Municipais no desenvolvimento e consolidação dos Assentamentos, através da promoção de difusão de Tecnologia, Crédito, Equipamentos Sociais Básicos e demais serviços públicos que são prestados à sociedade em geral.

COMENTÁRIO

De tudo o que se viu até agora – e do muito que ainda se verá em seguida – cabe considerar quanto o PNRA se mostra ingenuamente otimista:

1.     Ele não toma em linha de conta a influência obstinadamente negativa (e provavelmente refratária até à demagogia ideologizante do agro-reformismo – cfr. Comentário ao n.o 249) da condição de funcionário público, sobre o trabalho das pessoas encarregadas de converter em ato este imenso planejamento. Nem com as misérias e fraquezas inerentes ao Estado, reputado pelo mesmo PNRA onisciente e onipotente.

2.     Ele não conta com as necessárias adaptações que um planejamento como esse deve prever, em função dos eventuais fracassos decorrentes dos fatores acima enumerados, bem como da inadaptação ou do desinteresse de certos segmentos ou de todo o público. Faltam-lhe assim diretrizes sobre como proceder ante essas eventuais frustrações.

* * *

Todo o disposto nos tópicos do PNRA comentados nesta Secção (n.os 107 a 143) suporia uma muito menos imprecisa e incompleta enumeração das características que diferenciam o “assentamento” e a condição de “assentado”, da propriedade privada e da condição de proprietário, como atualmente existem. À falta disso, a execução do Plano não poderá evitar múltiplas e espinhosas confusões.

Causa pasmo que essa diferenciação haja sido omitida em um plano de tal maneira prolixo e – quase se diria – imaginoso e verboso.

 

[1] A abertura tem propugnadores radicais que a comprometem.

Por exemplo, mesmo os que no regime militar mais bradavam contra a Lei de Segurança Nacional, uma vez instaurada a abertura, não consta que se tenham empenhado em fazê-la cessar.

Por estranha coincidência, essa lei pode agora ser instrumentalizada por eles contra os adversários ideológicos ou políticos.

Assim, um Prelado, destacado promotor das liberdades civis e políticas, não duvidou em declarar que agora quem for contra a Reforma Agrária é subversivo. Pois – diz – “se quem se opõe às normas vigentes em um regime é chamado subversivo, não existe outra denominação para eles”.

O mesmo Prelado se manifestou também favorável à desapropriação não só dos latifúndios improdutivos, como também dos produtivos, num assomo de radicalidade agro-igualitária.

Esse Prelado está no píncaro do mais alto organismo episcopal brasileiro. É o Sr. D. Ivo Lorscheiter, que, além de Bispo no próspero e florescente centro geográfico sul-riograndense (Santa Maria), é também presidente da CNBB (cfr. “Jornal do Brasil”, 30-5-85).

[2] Cfr. PLINIO CORRÊA DE OLIVEIRA, O socialismo autogestionário, em vista do comunismo, barreira ou cabeça-de-ponte?, Mensagem das Sociedades de Defesa da Tradição, Família e Propriedade de 13 países, “Catolicismo”, n.o 373-374, janeiro-fevereiro de 1982, Capítulo II, n.o 9.


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