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Plinio Corrêa de Oliveira
A Reforma Agrária socialista e confiscatória – A propriedade privada e a livre iniciativa, no tufão agro-reformista
1985 |
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Capítulo II – A
propriedade privada e a livre iniciativa face ao ET e ao PNRA
1 . Duas
perguntas capitais
A
análise do ET e do PNRA foi feita até aqui na perspectiva da seguinte
questão: qual a coerência da legislação agrária em vigor ou em
elaboração, com a letra e o espírito das instituições que nos regem? Cabe
agora considerar o ET, em conjunto com o PNRA – tão intimamente ligado
a ele – em função de duas outras perguntas capitais: A)
como fica a propriedade privada em face do ET e do PNRA? B)
Como fica, na mesma perspectiva, a livre iniciativa? Não
se analisará aqui a situação da propriedade privada e da livre
iniciativa diante do compacto emaranhado legislativo nascido no período
64-85, pois constitui este, como foi visto (cfr. Cap. I, 2), um magma
dentro do qual não é possível a um particular – em prazo curto –
destrinçar tudo quanto nele se contém. As
questões delicadas e complexas só podem ser tratadas muito
condensadamente em um estudo da natureza deste. Não obstante, o
pensamento da TFP sobre propriedade privada, livre iniciativa e
agro-reformismo se encontra largamente exposto em diversas obras, às
quais a entidade deu muita difusão em todo o País, e que estão ao fácil
alcance de todos os interessados ([1]). 2 . A situação
agrária brasileira: pensamento da TFP
Não
é entretanto supérfluo apresentar, resumidamente, algumas das principais
teses de Reforma
Agrária – Questão de Consciência (RA-QC), relembradas na Declaração
do Morro Alto (DMA)
e por fim novamente reafirmadas em Sou
Católico: posso ser contra a Reforma Agrária?
(SC), obras que condensam o pensamento da TFP sobre a situação agrária
brasileira. É o que se passa a fazer: A . Produção satisfatória da agricultura brasileira
A
agricultura brasileira, apesar dos consideráveis sacrifícios com que
arca em prol da economia nacional, vai acompanhando satisfatoriamente a
expansão demográfica. Dela procedem em magna parte as divisas com que se
tem feito nossa industrialização. Ela vai assim cumprindo normalmente
seu dever para com o País. As afirmações em sentido contrário,
formuladas pelo agro-igualitarismo demagógico, carecem de fundamento
(cfr. RA-QC, Parte I, Secção III, Cap. III; Parte II, Cap. VII a XII;
DMA, p. 6; SC, pp. 289 a 291). B . Defeitos na estrutura
É
bem verdade que aqui e acolá se notam defeitos na estrutura como nas
atividades rurais em geral. Entretanto, esses defeitos podem ir sendo
sanados paulatinamente, com uma política, entre outras, de colonização
e de estímulo rural, de que já no livro Reforma
Agrária – Questão de Consciência (pp. 10 a 12) se podem encontrar
vários fundamentos, e que foram mais largamente explanadas na Declaração do Morro Alto (pp. 19 a 27). Ver também Sou
católico: posso ser contra a Reforma Agrária?, pp. 335-336. C . A situação dos trabalhadores rurais
Entre
esses defeitos sobreleva a deficiente situação de tantos trabalhadores
rurais, a qual, se é próspera em vários lugares, a ponto de
proporcionar, a ponderável número deles, o acesso à condição de
proprietários, em outros é deficiente, injusta e até desumana. Em Reforma
Agrária – Questão de Consciência (pp. 10 a 12, 21-22, 113 a 117)
e na Declaração do Morro Alto (pp.
6 a 8, 15-16, 28 a 30) estão enumeradas várias medidas capazes de
promover a melhoria das condições de vida do trabalhador rural. Essas e
outras medidas devem ser postas em prática segundo o comportem as condições
que, bem aproveitadas, essas propriedades rurais proporcionam. Entre
outras, cabe lembrar aqui: a)
proteção contra o alcoolismo, o jogo, a prática das uniões
ilegítimas e a prostituição; b)
salário justo e familiar, proporcionado ao valor do
trabalho, como também às necessidades do trabalhador e de sua família; c)
remuneração que torne possível o acesso do trabalhador
diligente e parcimonioso à condição de proprietário; d)
melhoria do conforto e salubridade das habitações; e)
assistência médica; f)
elevação do nível de instrução e educação. D . A fragmentação em propriedades de dimensões
familiares: uma panacéia?
Enganam-se
os que imaginam encontrar caminho para essas melhorias, em nosso País,
fragmentando todas as grandes propriedades rurais e até as médias. Com o
que – sonham – ficaria inaugurada para a agricultura brasileira uma
era de ouro, baseada na divisão compulsória das terras e na transformação
dos atuais trabalhadores rurais em pequenos proprietários (cfr. RA-QC,
pp. 101 a 120, 145 a 149, 181 a 188, 218 a 222, 252 a 262; DMA, p. 4; SC,
pp. 54-55, 103, 169 a 174, 326-327). E . Grande, média e
pequena propriedade, para cada qual um papel na agricultura
Muitos
são os erros em que esse programa demagógico se funda. Em nosso tão
extenso território, a estrutura rural deve constar de grandes, médias e
pequenas propriedades, pois conforme a natureza do solo e da cultura se
recomenda um ou outro tipo de
propriedade rural. A experiência das pequenas propriedades, aliás,
provou mal no Brasil, em não poucos casos. Muitas vegetam na penúria,
quer por falta de vitalidade, quer em razão da incapacidade demonstrada
pelo Poder público de lhes dar a conveniente assistência. Transformar
nossa estrutura agrária em um vasto conglomerado de pequenas propriedades
amparadas pelo Estado constitui, pois, sob todos os pontos de vista, erro
gravíssimo (cfr. RA-QC, pp. 62 a 69, 101 a 120, 145 a 149, 181 a 188, 218
a 222, 252 a 262; DMA, pp. 8-9; SC, pp. 95, 103, 169 a 174, 325 a 327). F . Quando é aconselhável a pequena propriedade
É
bem verdade que o natural desenvolvimento da agricultura acarreta, em
determinadas zonas, a necessidade da partilha de terras. Em via de regra,
onde essa necessidade se manifesta, a partilha se vem fazendo regularmente
pela iniciativa particular. Na medida em que convenha multiplicar as
pequenas propriedades, o Poder público deve estimular esse fato sócio-econômico
espontâneo, e dispensar especial apoio às companhias privadas de
colonização (cfr. DMA, pp. 9, 26-27). G . O Estado, senhor de latifúndio fabuloso
Sendo
o Poder público detentor de cerca de 4,6 milhões de quilômetros
quadrados de terras incultas (cfr. adiante Nota 4), quase sempre aproveitáveis
em proporções importantes, justo é que promova a partilha das terras de
que ele assim pode dispor gratuitamente, antes de se atirar sobre os
latifundiários particulares, que não são na realidade senão
micro-latifundiários, em comparação com o Poder público, latifundiário-moloc
(cfr. RA-QC, pp. 10, 111, 155-156, 157, 185; DMA, p. 7; SC, pp. 92 a 94). H . Injustiças da desapropriação agro-igualitária
Nestas
condições, o tentame da demagogia agro-igualitária, de promover a
desapropriação de terras de domínio privado, constitui grave injustiça. Tal
injustiça ainda sobe de ponto com o fato de o Poder público não dispor
de recursos financeiros para pagar, por seu justo valor, as terras que
sejam desapropriadas, pelo que a demagogia agro-reformista tem sugerido
continuamente, ao longo destes anos, a desapropriação por valor menor do
que o real, segundo o critério do chamado custo histórico, mediante
pagamento em títulos, inevitavelmente depreciados, da dívida pública,
ou pelo valor declarado para fins de tributação. O que é manifestamente
injusto (cfr. RA-QC, pp. 110-111, 123 a 127; DMA, p. 9; SC, p. 232). As
decisões do Supremo Tribunal Federal têm feito prevalecer o critério do
valor do mercado, fato esse reconhecido pelo próprio Ministro Nelson
Ribeiro (cfr. “Jornal do Brasil”, 9-6-85), o que implica no
reconhecimento da injustiça dos outros critérios mencionados. Também o
PNRA admite, em mais de uma passagem, ser essa a jurisprudência firmada
pelos tribunais (cfr. tópicos 373 e 374). Aliás,
a ser feito esse pagamento, é incompreensível que o Poder público não
reconheça ao proprietário confiscado a opção entre esses títulos públicos,
desde logo desvalorizados, e a escolha de áreas devolutas cujo valor seja
equivalente ao valor venal da terra confiscada. Por
vezes o agro-reformismo confiscatório tem sugerido outro meio de perseguição,
ou seja, uma dura pressão tributária sobre os proprietários médios ou
grandes. O que muda a forma da injustiça, porém não a elimina em sua
essência (cfr. RA-QC, pp. 107 a 113, 202-203; DMA, p. 9). I . O agro-igualitarismo socialista
O
agro-igualitarismo confiscatório e demagógico, ao pleitear estas
medidas, se manifesta inspirado pela doutrina socialista (quer a do
capitalismo de Estado, quer a autogestionária), a qual, negando a
inviolabilidade sagrada do direito de propriedade e visando estabelecer
uma sociedade em que todos os níveis sociais e econômicos se igualem,
outra coisa não é senão uma rampa de acesso que conduz ao abismo
comunista (cfr. RA-QC, Parte I; DMA, p. 10; SC, pp. 89 a 96, 161 a 182,
187 a 189, 271 a 272, 301 a 304) ([2]). 3 .
Propriedade privada, expropriação e indenização: a doutrina social católica
explanada nas obras da TFP
Cabe
ainda apresentar aqui, resumidamente, as principais teses da doutrina
social católica sobre o sagrado direito de propriedade, explanadas longa
e detidamente nas já referidas obras da TFP: a)
A propriedade privada constitui elemento necessário da
ordem natural criada por Deus. Ela está assegurada no 7.º e
no 10.º Mandamento do Decálogo: “Não
furtarás” e “Não cobiçarás
as coisas alheias” (cfr. RA-QC, pp. 33 a 36, 97 a 101, 185 a 188,
191 a 204; DMA, pp. 10-11; SC, pp. 156 a 160, 180 a 182, 196 a 198, 213). b)
Tal direito confere ao homem a faculdade de se apoderar
legitimamente da coisa não possuída, que é naturalmente do primeiro
ocupante (cfr. RA-QC, pp. 33 a 36; SC, pp. 156 a 160, 180 a 182). c)
Não é só a ocupação que confere ao homem o direito de
propriedade. Também do trabalho decorre esse direito. Dono de si mesmo, o
trabalhador é naturalmente dono do que sua inteligência ou seus braços
produzem, e tem direito a uma compensação proporcionada, em razão do
acréscimo de valor que seu trabalho produza quando aplicado ao bem de
terceiros. Em qualquer dos casos, o trabalhador faz jus àquela remuneração
da qual se torna dono (cfr. RA-QC, pp. 34, 95 a 98, 187; SC, pp. 156-157,
198). d)
Esse direito de propriedade não pode ser extinto por ação
do Estado, pois ele não é concessão do Estado. Provém tal direito,
como acima foi dito, da ordem natural das coisas criada por Deus, a qual
é anterior ao Estado, e da qual o próprio Estado deriva (cfr. RA-QC, pp.
33-34, 93, 105 a 107, 109; DMA, pp. 13-14). e)
A desapropriação é legítima quando o bem comum a exige.
Por exemplo, a desapropriação de uma faixa de terra necessária para que
nela passe uma via pública indispensável para o tráfego. Mas, em tal
caso, a desapropriação deve normalmente ser feita mediante o pagamento
prévio e integral, pelo poder expropriante, do justo valor do imóvel
expropriado. O que se mede habitualmente pelo valor de venda do mesmo
(cfr. RA-QC, pp. 120 a 127; DMA, p. 9; SC, pp. 28 e 232). f)
O direito de propriedade importa no direito de alienar o
bem. Isto é, de o doar ou vender. E, como o filho é carne da carne e
sangue do sangue de seus pais, é maximamente direito destes doar seus
bens aos filhos. Ou de os deixar a estes por sucessão hereditária (cfr.
RA-QC, pp. 34 a 36, 130 a 133; SC, p. 180). 4 . Debate
oco e inconcludente – o Governo só dá conhecimento ao público de
parte de seus motivos
Em
conseqüência dos princípios enunciados no item anterior, o Governo
deveria demonstrar ao povo que, de fato, nas condições atuais do Brasil,
o direito natural imprescritível do homem, ou o bem comum nacional exigem
a Reforma Agrária. Tal
demonstração, ele a deveria fazer em duas ordens de idéias: a)
na linha da justiça, provando que a atual estrutura fundiária
do País é injusta; b)
na linha do bem comum social e econômico, demonstrando que
a atual situação fundiária é contrária ao interesse coletivo, porque
não produz suficientemente. Mas
para isto seria indispensável que ele exibisse a argumentação doutrinária
correspondente, bem como estatísticas, pesquisas, análises e relatórios
em abundância, para que o povo pudesse formar seu juízo sobre a matéria.
Porém, nada disso fez ele. O
debate do qual o Governo deveria ser o grande animador, mediante a
apresentação de todo esse material probante, à míngua desses elementos
só pode – pelo contrário – estiolar. Com efeito, fica ele assim sem
sentido, carecendo dos elementos indispensáveis para a sua prossecução.
O que mais uma vez faz notar o vazio do debate, que de outro lado o
Governo estrangulou de início no exíguo prazo de trinta dias, e depois
estendeu algum tanto até o próximo dia 20 de agosto. Esse
estrangulamento é particularmente danoso, se se tem em vista a inibição
de descrever, analisar e concluir, tão freqüentes no mundo rural
brasileiro
([3]). 5 . Livre
iniciativa: o direito de usar, em favor de si mesmo, a inteligência, a
vontade e a sensibilidade próprias
É
o momento de dizer, rapidamente embora, uma palavra sobre a livre
iniciativa. Tanto
se fala, em nossos dias, da liberdade individual, conseqüência natural
da condição de ente dotado de alma e corpo, de inteligência, vontade e
sensibilidade, como é o homem. Infelizmente,
contudo, o zelo por essa liberdade se aplica cada vez mais em restringir o
poder do Estado na repressão da imoralidade, do vício e do crime.
Vivemos, por exemplo, na era da anarquia penitenciária, do que fatos
ocorridos recentemente no Brasil dão exemplos consternadores. Porém,
os zelotas da liberdade dão cada vez menos mostras de seu empenho em
defender as legítimas liberdades do homem de bem contra essa ação do
Estado, ora invasora quase até as raias do totalitarismo, ora omissa
quase até as raias da anarquia. Assim, a proibição de uma peça de
teatro imoral pode dar ocasião a que se desencadeie contra o Governo um
verdadeiro estrondo publicitário. E a eventual atuação da polícia
contra piquetes grevistas pode ocasionar análogo efeito. Tudo em nome da
liberdade. De
maneira que propagar no palco o vício ou o crime seria um “direito
humano”. Usar de violência para impedir a colegas que trabalhem
honestamente no sustento do lar, também seria um “direito humano”. Ora,
a liberdade do homem consiste essencialmente no direito de fazer o bem. Por
disposição divina, o homem tem necessidades a enfrentar nesta vida, mas
ao mesmo tempo é dotado de recursos para prover a essas necessidades. Os
problemas de cada homem devem ser resolvidos antes de tudo por ele mesmo,
isto é, com a utilização de seus dotes de corpo e muito principalmente
dos de alma. O direito de utilizar
em favor de si mesmo sua própria inteligência, sua própria vontade, os
recursos de sua própria sensibilidade – nisso consiste a livre
iniciativa. Negá-la, mutilá-la, criar-lhe entraves usurpatórios, é
tratar o homem parcial ou inteiramente como coisa, como objeto inanimado. 6 . Livre
iniciativa e princípio de subsidiariedade
Nos
casos em que o homem se encontre legitimamente impedido de prover por si
às próprias necessidades, é natural que ele recorra à ação supletiva
do grupo social que lhe é mais próximo, ou seja, a família. Quando
a ação subsidiária da família se verifica legitimamente insuficiente,
pode o homem recorrer a outros grupos menos próximos, como associações
profissionais, caritativas etc. Na
eventualidade de mesmo então não encontrar a ajuda necessária, está o
homem no direito de recorrer, também subsidiariamente, à ação do
grande grupo que sobrepaira a todos os outros, e na mais alta instância
os protege: o Estado. O
princípio de subsidiariedade,
assim descrito, embora com o caráter algum tanto hirto das exposições
esquemáticas, situa a livre iniciativa no âmago de um conjunto de círculos
concêntricos sucessivamente destinados a ajudá-la. É
ela exatamente o oposto do coletivismo, que se propõe estancá-la. Com
efeito, o Estado coletivista impede toda iniciativa individual, suprime a
família e os demais grupos intermediários entre o indivíduo e o Estado,
e enfeixa tudo nas mãos do Poder público, dotado, para dominar a cada
qual, do cetro da Propaganda monopolizada, e da terrível chibata da
perseguição policial. 7 . ET,
PNRA e livre iniciativa
O
PNRA (pretendendo-se quiçá inspirado em alguma disposição do ET
carente de inteira clareza) encaminha o agricultor para a condição ambígua
de mero “assentado”, adstrito a explorar a terra sob a direção mais
ou menos draconiana de uma pesada pirâmide de organismos estatais. Com
os textos do ET e do PNRA em mãos, não é difícil provar que um e outro
golpeiam a fundo – este mais ainda do que aquele – a iniciativa
individual e deixam agonizante a propriedade rural. O
ET, de sua parte, contém múltiplas disposições pelas quais o pequeno
proprietário de dimensões familiares, freqüentemente, ou sempre, fica
sem os meios de efetuar a exploração completa e a fundo da sua terra. Com
efeito, para isso são necessários recursos de capital destinado à
compra de máquinas, de adubos, e de tudo quanto é preciso para explorar
por si a gleba. A figura da pequena propriedade rural, como mais ou menos
liricamente a idealiza o ET, corresponde a uma velha concepção de
atividade agrícola, ainda desajudada de todos os contributos que lhe
trouxe o progresso científico e técnico dos séculos XIX e XX. Concepção
arcaica esta, que remonta a séculos ainda anteriores, em que o agricultor
só tinha meios de tirar da terra – por assim dizer com suas próprias mãos
– não muito mais do que o suficiente para se manter a si e aos seus. Hoje,
com todos os recursos modernos, a produtividade agrícola aumentou muito.
Mas tal aumento, o pequeno proprietário raramente tem os meios para o
alcançar por si mesmo. O resultado é que precisa cooperativizar-se para
obter créditos, e também máquinas, que por si só ele jamais
conseguiria adquirir. E, de fato, um regime cooperativista, quando
aplicado em circunstâncias como esta, muito facilmente acarreta a dependência
de todos para com a direção da cooperativa. E, por outro lado, as
cooperativas assim descritas podem por sua vez ter necessidade – por análogo
mecanismo – de se porem sob a dependência do Estado supercapitalista.
É o coletivismo que passa a imperar. Em
análoga direção rumarão, de seu lado, os “assentamentos” –
dispostos à maneira de rede – do Brasil agro-nivelado. O titular de
tais assentamentos – segundo os concebe o PNRA (cfr. Parte II, Comentário
ao n.o 137) – ficará transformado praticamente em funcionário
do assentamento. Ou, por vezes, até mesmo da cooperativa. Esta ajudará o
assentado, ou o assentamento, na proporção em que ele possa produzir, e
lhe imporá condições para que ele produza (cfr. Parte II, Comentário
ao n.o 137). Em conseqüência, o “assentado” não poderá
produzir senão o que a cooperativa queira, quando ela queira, quanto ela
queira e como ela queira. E, em uma cooperativa, ou através do sistema
cooperativo estatizado, o desfecho será o regime comunista, em que tudo
depende do Estado. O
quantum que o “assentado”
auferirá, pelas horas que trabalhou, dependerá então do contrato com a
cooperativa. A dependência do assalariado em relação ao seu empregador
é bem menor que a do “assentado” em relação a seu assentamento ou a
sua cooperativa. Aliás,
cumpre notar, o PNRA define mal, ou de todo não define, o que seja um
“assentado” (cfr. Parte II, Comentário ao n.o 137). Sem
embargo, essa ambigüidade não é tal que não permita entrever o
desaparecimento virtual, em tal regime, da propriedade privada. E é possível
afirmar também que a iniciativa individual, alma do regime da propriedade
privada, fica coarctada de todos os modos pelo sistema de assentamentos,
em cuja implantação o PNRA deita todo o empenho. Poder-se-ia
alegar, contudo, que os “assentados” mandam no assentamento ou na
cooperativa pelo exercício do voto e pelo direito de ser votado nas
respectivas assembléias. Em conseqüência do que, a direção do
assentamento ou da cooperativa ficaria dependente deles. E não seriam
assim meros dependentes da direção do assentamento ou da cooperativa. É
ingênua tal objeção. Dentro de um assentamento ou de uma cooperativa
desse gênero, o eleitorado é limitado. Uma direção pode conhecer
individualmente cada um dos “assentados”, e quais os verdadeiros líderes
naturais que em todos os grupos humanos surgem. Pode ainda dar a esses líderes
naturais vantagens pessoais muito preciosas, conquanto pequenas, e com
isso fazer com que tais lideranças exerçam sua influência no sentido
desejado pela direção. 8 . A família
em crise, frágil apoio da propriedade familiar
É
o momento de dizer agora uma palavra sobre a propriedade familiar, à qual
tanto realce deu o ET e, em muito menor medida, o PNRA, cujas preferências
se voltam decididamente para outras formas mais socializadas de utilização
da terra. A
propriedade familiar é, em princípio, a mais simpática forma de
propriedade imobiliária rural. Mas o caráter quase obsessivo com que a
ela se referem certos agro-igualitários tem muito de utópico. Com
efeito, o otimismo deles os impede de ponderar a devastação que a crise
da família vai fazendo de norte a sul do País, em todas as classes
sociais. Um dos mais ruinosos aspectos dessa devastação consiste em que
cresce a todo momento, nas cidades como no campo, o número de uniões de facto, feitas sem legalização canônica nem civil. Resultam
elas, em geral, do relaxamento moral da juventude, à qual tantas vezes
nem sequer ocorre a necessidade dessa dupla legalização, de sorte que a
relação concubinatária se ata e desata despudoradamente. Aliás, sem
maior censura do ambiente, trabalhado a fundo por tantos meios de comunicação
social a serviço da corrupção. E
ainda quando se trata de uniões genuinamente matrimoniais, já são elas
contraídas com os olhos postos no eventual divórcio, ou mesmo em alguma
separação de fato, especialmente mais cômoda quando os cônjuges não têm
bens a partilhar. A isto se seguem com freqüência uniões concubinatárias
sucessivas, agravadas pelo fato de serem adulterinas. Em suma, verdadeiras
aventuras sexuais, ao longo das quais os filhos – quando os há – são
distribuídos à matroca entre os pais, parentes, estabelecimentos
beneficentes etc. Leis
recentes, favorecendo dos mais variados modos a equiparação da concubina
à esposa e dos filhos ilegítimos aos legítimos, não têm feito senão
agravar catastroficamente essa situação. Acrescente-se
que a generalizada coeducação escolar entre os sexos e o uso de
contraceptivos, como também a impunidade do aborto, trazem por sua vez
pesado contributo para o ambiente de exacerbação sexual em que está
afundando o mundo hodierno. E
seria impossível terminar esta lúgubre enumeração de fatores de corrupção
sem mencionar ainda a propaganda crescente pela legalização da
homossexualidade, que os costumes modernos vão tornando gradualmente
infrene. Ora,
já o velho ET, como o novo PNRA, falam da propriedade familiar (ou do
“assentamento” sob a forma de “unidade familiar” – cfr. Parte II,
Comentário ao n.o 137) como se a família – o eixo de tal
propriedade, o santuário abençoado, a rocha firme que comunicava outrora
solidez e pujança a tudo quanto se apoiasse nela – não se encontrasse
nos estertores de uma crise atroz. Com
a família cedendo rapidamente lugar ao concubinato, volúvel por definição,
que solidez, que durabilidade pode ter a propriedade ou o
“assentamento” familiar? Isto,
que salta aos olhos, parece não ter chamado a atenção de tantos
agro-igualitários. 9 . Bem
comum e direito dos pobres, na perspectiva dos agro-reformistas e na da
TFP
Pressuposto
implícito ou explícito das posições agro-igualitárias é que o
direito de propriedade e a livre iniciativa são intrinsecamente opostos
ao interesse social e ao bem comum, de sorte que quanto mais mutilados
melhor. E, em conseqüência, se extintos, melhor ainda. Cabe mostrar o
erro desse pressuposto. Não
é possível que a ordem posta por Deus, infinitamente sábio e bom, seja
contrária ao interesse social. A realidade é que o favorecimento dos
interesses privados importa na promoção do bem comum. Pois a
coletividade se compõe de indivíduos. E se determinada situação sócio-econômica
favorece a todos, ipso facto
favorece a coletividade. Algum
leitor poderia perguntar se a TFP, tomando tão afirmativamente a defesa
do direito de propriedade e da livre iniciativa, não negligencia a proteção
e o favorecimento dos que nada têm. Segundo essa objeção, a TFP não
guardaria na alma o espaço necessário para considerar as privações, as
angústias e os dramas que freqüentemente flagelam o trabalhador manual.
E esqueceria a “opção
preferencial pelos pobres”, tão enfatizada por S.S. João Paulo II. O
contrário, porém, é que é a verdade. Desde
logo, a melhoria das condições de vida dos trabalhadores manuais no
campo é tema insistentemente versado pela TFP (cfr. Cap. II, 2, C). Ademais,
mesmo reformas fundiárias locais, efetuadas nas zonas em que a
necessidade delas fosse demonstrada com idoneidade científica, seriam
apoiadas por esta Sociedade, sempre que, naturalmente, os fazendeiros
atingidos pela expropriação recebessem prévia e justa indenização. A
TFP contesta, isto sim, a necessidade de aplicar, em um território tão
imenso e tão variegado quanto o nosso, uma Reforma Agrária compacta,
estritamente uniforme e indiscriminada. Ela contesta a legitimidade de uma
partilha compulsória e confiscatória de terras particulares, quando 54%
do solo pátrio são ocupados por terras devolutas, quase sempre aproveitáveis
em proporções importantes, pertencentes ao maior latifundiário do País,
o Estado. Terras devolutas, sim, que este tem o direito e o dever de
repartir, prioritariamente à expropriação de quaisquer terras
particulares ([4]). A
TFP impugna, de fato, uma Reforma Agrária que visa reduzir nossa
estrutura fundiária a uma imensa rede de “assentamentos” (cfr. Parte
II, Comentário ao n.o 137) – não “propriedades”,
note-se – autogestionários e cooperativizados, à maneira da utopia que
o socialista Mitterrand não ousou realizar ([5]). E,
entre outras razões pelas quais a TFP impugna tal reforma, ocupa lugar de
destaque o fato de que esta não proporcionará ao pobre a condição de
proprietário, mas o atirará numa aventura que pode levá-lo à mais
negra miséria. Tal
Reforma Agrária empobrecerá certamente os ricos, como afirmou desejar,
com espanto nosso, um Purpurado brasileiro. Parece ele imaginar que assim
se enriquecerão os pobres. Com efeito, há quem imagine que simplesmente
confiscar, dividir e distribuir os bens dos outros ponha os pobres na
abastança. Ilusão simplista que os fatos estão a desmentir do modo mais
clamoroso! (cfr. adiante Título II, CARLOS PATRICIO DEL CAMPO, Cap. II,
4). Nos
países em que essa política se instalou com todo o caudal de suas conseqüências
lógicas e radicais, reina por certo entre os ricos de outrora a pobreza.
Mas entre os pobres de outrora não reina a riqueza. Pelo contrário,
jazem eles numa indigência tão extrema que um já hoje célebre
documento da Santa Sé afirma constituir a “vergonha
de nosso tempo” ([6]). É
para evitar que caiam numa situação mais ou menos análoga a essa todos
os que vivem no campo – patrões ou assalariados – que a TFP vem
lutando com destemor e afinco desde 1960. 10 . A
proteção do Estado, um direito que também os empregadores possuem
É
bem verdade que, no relacionamento entre patrões e trabalhadores, estes
constituem normalmente a parte mais fraca. Em conseqüência, mandam a
justiça e a equidade que mais especialmente os proteja o Poder público. Mas
isto absolutamente não conduz a que o Estado fique desobrigado de
qualquer tutela dos direitos dos empregadores. Pois estes fazem parte da
Nação. E a tal título têm direito a apoio sempre que, injustamente
atacados, em virtude da lei ou por carência de meios, não possam
defender-se com os recursos próprios. Ou sempre que seja necessário à
boa ordem que, para evitar a multiplicação indefinida das vinditas
privadas, o Estado exerça em toda a sua amplitude a defesa dos direitos
violados, sejam eles quais forem, e também os dos abastados e dos ricos. Assim,
o ladrão é normalmente mais pobre do que o proprietário em cuja residência
irrompe. Mas sua punição deve estar nas mãos do Estado, sob pena de o
proprietário ficar com o direito de reprimir por si o roubo, perseguir e
encarcerar em estabelecimento próprio o ladrão. O
pulular de “polícias privadas” numa cidade conduziria a um caos quase
tão grande quanto aquele a que conduz a impunidade do roubo. É portanto
indispensável que o Estado, colocado naturalmente acima dos interesses
individuais e das classes sociais, conserve ciosamente em suas mãos o
direito de fazer Justiça. Diga-se
entre parênteses que a omissão – cada dia mais freqüente – de
tantas autoridades constituídas, no cumprimento desse dever soberano, tem
estimulado no Brasil contemporâneo as invasões de terras e, por
contra-golpe, as reações individuais dos proprietários desajudados pelo
Poder público. Vão estes tendendo a substituir, por agentes privados, a
ação policial omissa, paralisada como está por influência de mais de
um governo estadual. E
assim o Brasil vai correndo o risco, sempre maior, de se transformar numa
imensa e ensangüentada babel. Ora,
para quem analisa o texto do PNRA, não é possível evitar a penosa
impressão de que o documento está todo imbuído de concepções doutrinárias
e de intenções cujo pressuposto é a máxima de famoso extremista do século
passado: “A propriedade é um
roubo” – a qual é precisamente afim com o modo de agir das
autoridades omissas, ante as invasões dos imóveis rurais. [1] São as seguintes as publicações da TFP que versam mais amplamente sobre essa temática: 1 . Reforma Agrária – Questão de Consciência (ver Cap. I, nota 9). 2 . Declaração do Morro Alto, dos mesmos autores de Reforma Agrária – Questão de Consciência, Editora Vera Cruz, São Paulo, 1962, 2ª ed., 32 pp. 3 . PLINIO CORRÊA DE OLIVEIRA – CARLOS PATRICIO DEL CAMPO, Sou católico: posso ser contra a Reforma Agrária?, Editora Vera Cruz, São Paulo, 1982, 4ª ed., 360 pp. 4 . Coleção “Diálogos Sociais”: I - A propriedade privada é um roubo?; II – Devemos trabalhar só para o Estado?; III – É anti-social economizar para os filhos?, Editora Vera Cruz, São Paulo, 5ª ed., 1973. Nessas obras, a TFP apresenta uma visão de conjunto das questões referentes à propriedade privada, à livre iniciativa e ao agro-reformismo. Enquanto no presente estudo cinge-se ela tão-só ao necessário para apreciar o ET e o PNRA. Para o leitor desejoso de aprofundar o estudo da posição global da TFP nessas matérias, são aqui mencionados com freqüência tópicos dos trabalhos anteriores, de maneira a lhes facilitar a consulta. (Essas obras, bem como os manifestos, comunicados e outras publicações da TFP, podem ser encontradas na Editora Vera Cruz, Rua Dr. Martinico Prado, 246, CEP 01224, São Paulo, telefone 221-8755). [3] O prazo de trinta dias estabelecido inicialmente não tardou em parecer insuficiente para crescente número de brasileiros. Assim, as manifestações em favor de uma ampliação de prazo começaram a afluir ao Palácio do Planalto. Desde logo a TFP se pronunciou no mesmo sentido, mediante duas cartas do autor deste livro ao Sr. Presidente da República, respectivamente datadas de 28 de maio e 12 de junho p.p. Aqui deixa ela consignado seu aplauso por haver sido atendida aquela aspiração que, aliás, acabou se tornando geral no Brasil. Entretanto, a simpática dilatação do prazo até o dia 20 de agosto p. f., deixa ainda de pé o que acima foi dito quanto à insuficiência de tempo para que o público acabe de estudar e debater o amplo e palpitante tema. [4] Não existe um levantamento atualizado do montante das terras devolutas no Brasil. Assim, não resta outra solução senão fazer uma estimativa com os dados disponíveis. De acordo com o Censo Agropecuário de 1980, a área ocupada com estabelecimentos dedicados à exploração agrícola ou pecuária era, naquele ano, de 3.695.870 quilômetros quadrados, correspondentes a estabelecimentos individuais, de cooperativas, de entidades públicas, de entidades religiosas e outras. Admitindo que a área urbana de todos os Municípios brasileiros seja de 200 mil quilômetros quadrados (dois mil metros quadrados por habitante das cidades!), a área ocupada total no Brasil – rural e urbana – seria de cerca de 3,9 milhões de quilômetros quadrados. Sendo a área total do território brasileiro de 8,5 milhões de quilômetros quadrados, restariam aproximadamente 4,6 milhões de quilômetros quadrados (ou seja, cerca de 54% do território) para as terras devolutas. [5]
Cfr. PLINIO CORRÊA DE OLIVEIRA, O
socialismo autogestionário, em vista do comunismo, barreira ou cabeça-de-ponte?,
Mensagem das Sociedades de Defesa da Tradição, Família e
Propriedade de 13 países, “Catolicismo”, n.o 373-374,
janeiro-fevereiro de 1982, p. 30. [6]
No documento Instrução sobre
alguns aspectos da “Teologia da Libertação” de 6 de agosto
de 1984, afirma o Cardeal Ratzinger, Prefeito da Sagrada Congregação
para a Doutrina da Fé: “Um
fato marcante de nossa época deve ocupar a reflexão de todos aqueles
que desejam sinceramente a verdadeira libertação dos seus irmãos.
Milhões de nossos contemporâneos aspiram legitimamente a reencontrar
as liberdades fundamentais de que estão privados por regimes totalitários
e ateus, que tomaram o poder por caminhos revolucionários e
violentos, exatamente em nome da libertação do povo. Não se pode
desconhecer esta vergonha de
nosso tempo: pretendendo proporcionar-lhes liberdade, mantêm-se nações
inteiras em condições de escravidão indignas do homem. Aqueles
que, talvez por inconsciência, se tornaram cúmplices de semelhantes
escravidões, traem os pobres que eles queriam servir” (Documentos Pontifícios, n.o. 203, Vozes, Petrópolis,
1984, p. 39).
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